sábado, setembro 23, 2006

Uma Metáfora Melhor.

Aqui há uns dias critiquei a metáfora do DNA como linguagem. Vou agora propor uma metáfora melhor, inspirando-me na metáfora do Richard Dawkins, do DNA como receita.

Imaginem uma máquina de fazer bolos. Tem ingredientes e forno, e é controlada por uma fita perfurada. Conforme a fita passa, os furos activam circuitos da máquina e esta mede uma quantidade de farinha, ajusta o termostato, bate as claras, ou faz o que for preciso. E na nossa cozinha futurista temos uma fita mestra com todas as receitas, e copiamos cada receita para fitas mais curtas que colocamos na máquina de fazer bolos. A fita mestra é análoga ao DNA, e as mais curtas são análogas ao RNA.

A analogia é melhor que a da linguagem porque são as propriedades físicas e químicas da fita e do RNA que activam a máquina, em vez de conceitos abstractos duma linguagem independente do material onde está escrita. O análogo biológico da máquina de fazer bolos é o ribossoma, que “cozinha” as proteínas seguindo as marcas na “fita” de RNA.

Outra semelhança importante é o âmbito limitado e específico destas “linguagens”. A fita com a receita apenas especifica coisas como tempos de cozedura e quantidades de ingredientes, que depois vão interagir e se transformar no bolo. O DNA especifica a ordem e número de aminoácidos na proteína, cujas interacções são a vida do organismo. A linguagem humana permite falar da beleza das flores ou combinar um encontro com os amigos, mas nem o DNA nem a fita se parecem com isto.

Isto ajuda a compreender o efeito de alterações aleatórias. Uma mutação no padrão de furos na fita pode mudar 200g de açúcar para 200g de sal, estragando por completo o bolo. Mas pode também mudar os 200g de açúcar para 220g de açúcar, e até melhorar o sabor. Na linguagem humana uma alteração aleatória quase sempre destrói o sentido, mas alterar a fita ou o DNA pode mudar apenas um pouco o resultado final. Isto permite compreender como espécies podem evoluir e adaptar-se pela acumulação gradual de pequenas alterações. Exactamente como um cozinheiro pode aperfeiçoar a receita por tentativa e erro, pondo mais uma pitada de sal, deixando cozer um pouco mais, e assim por diante.

Nunca iríamos escrever uma enciclopédia com o processo de tentativa e erro que usamos para aperfeiçoar uma receita. E aqui reside outra diferença importante: quando descrevemos algo com linguagem há uma relação bidireccional entre a descrição e a coisa descrita. Ao conhecer a descrição sabemos como é a coisa, e ao conhecer a coisa sabemos como a descrever. Escrevemos a enciclopédia porque compreendemos o que estamos a descrever.

Numa receita, ou no DNA, isto não acontece. Só sabemos como vai sair o bolo se o fizermos, e não conseguimos descobrir a receita só por provar o bolo. Enquanto que a enciclopédia exige compreensão, a receita apenas regista os passos do processo. Não é preciso compreender a composição química do bolo para escrever ou seguir uma receita, e uma máquina que fabrica bolos é algo muito diferente duma máquina que compreende enciclopédias.

Neste aspecto, o DNA é também como a receita, e nada como a enciclopédia. O que nos trás por fim à grande diferença entre as duas metáforas. O DNA linguagem implica compreensão, inteligência, propósito e deliberação na sua criação. O DNA linguagem, como uma enciclopédia, não evolui por tentativa e erro. Mas o DNA linguagem é uma má metáfora.

O DNA como fita na máquina de fazer bolos é uma metáfora mais ajustada à realidade. A máquina dos bolos não tem inteligência, a receita pode ser criada por tentativa e erro, e em lado nenhum é preciso o mínimo de compreensão dos processos puramente mecânicos que levam da fita ao bolo.

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