quarta-feira, dezembro 20, 2006

Carl Sagan

Carl Sagan influenciou-me pelo seu entusiasmo e simpatia. Aquelas tardes a ver o “Cosmos” na TV foi uma das coisas que me empurrou para a ciência; via-se o puro prazer de compreender na maneira como ele falava dos milhões e biliões de estrelas. E a sua forma de abordar o cepticismo com compaixão, consideração, e empatia, é um exemplo que tento seguir, mesmo que nem sempre com sucesso. Mas o mais importante para mim foi ter mostrado que não precisamos procurar conforto acreditando no que não compreendemos. Não precisamos de fé, de crendices, ou superstições para que a vida tenha sentido. Nem perante a morte ou a perda dos que nos são queridos. No “The Demon-Haunted World” ele escreveu:

«Probably a dozen times since their deaths, I heard my mother and father, in a conversational tone of voice, call my name. [...] I still miss them so much that it doesn’t seem at all strange that my brain will occasionally retrieve a lucid recollection of their voices.”

A crença preponderante é que a sensação de “eu” é uma coisa aqui na cabeça. Uma alma ou espírito que, quando o corpo morre, vai para outro lado. Mas pelo que sabemos o eu não é uma coisa. É uma acção do cérebro. Eu sou como um bocejo, um passo, um gesto. Algo que aparece, dura enquanto se faz, e depois volta para lado nenhum. O corpo é uma coisa, com uma existência contínua, com um principio e um fim, que vive e morre, mas a consciência é uma acção intermitente, episódica. Existo acordado, desapareço quando adormeço, e de manhã o cérebro faz outro eu.

Pessoas como Carl Sagan mostraram que compreender a realidade é muito mais reconfortante que qualquer crença ou fantasia. Não só porque a compreensão dá mais segurança que a crença, mas porque a realidade é muito mais rica e profunda que a nossa pobre imaginação. Muitos procuram conforto na fé numa alma imortal, mas qualquer funeral revela a falta de convicção nesta crença. E é um fraco consolo. Consolam-se perante a morte desvalorizando a vida, tentando-se convencer contra todas as evidências que é a próxima que conta.

Não há que temer a nossa morte. Ao fim de cada dia desligamos a consciência, e no dia a seguir o cérebro faz outra. Parece que é a mesma porque temos memórias e o mesmo corpo, mas a consciência é uma acção, e não faz sentido dizer que é a mesma. Um passo pode parecer igual ao anterior mas é outro passo, não é o mesmo passo ressuscitado. Eu vou morrer esta noite como muitos eus já morreram antes. Um dia vai morrer o último eu, quando o meu cérebro deixar de fazer eus, mas paciência; acontecerá a esse o que aconteceu a todos os outros.

A morte dos que nos são queridos é sempre algo triste, mesmo para quem acredita em almas. Mas também aqui a realidade é superior à nossa imaginação. A morte não é uma alma que parte ou uma coisa que se desfaz. Quando o corpo morre deixa de fazer essas consciências, mas as que fez ainda se fazem sentir noutras consciências. Partes dos actos de consciência de outros cérebros vivem nos nossos, nas nossas memórias e no que somos. Faz hoje dez anos que o cérebro de Carl Sagan deixou de fazer Carl Sagans, mas as consciências que aquele cérebro fez ainda têm efeitos em muitos cérebros.

7 comentários:

  1. Obrigado pelo aviso Helder. Já deixei lá o comentário, a ver se não se repete o infeliz episódio dos Felipes no século XVII ;)

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  2. Não concordo com aquilo que dizes a respeito da identidade.

    A identidade ("Eu") não é necessariamente a mesma coisa que a consciência. A consciência pode ser activada e desactivada (quando o teu cérebro pára de a "fazer"), mas a tua identidade é mais do que isso.

    A memória, por exemplo, é algo que está embuído nas redes neuronais do teu cérebro. A tua identidade. em grande medida, está extremamente ligada à tua memória. E não apenas as recordações (essas poderias perder muitas num ataque de amnésia, e apesar disso ter um impacto forte na tua identidade, não a destruiria): as tuas habilidades, as tuas intuições, a tua sensibilidade, etc...

    A "identidade" de alguém é mais do que a consciência que o cérebro dela está a "fazer" naquele momento, e não morre quando ela adormece. A identidade está relacionada com a personalidade dessa pessoa, com o seu historial, com aquilo que podes esperar dela, etc...

    Não sei de nenhuma definição formal de identidade que leve em conta todos estes factores que indubitavelmente com ela estão relacionados. Mas certamente que a definição que tu deste é estremamente incompleta, e que o teu "eu" não morre a cada noite.

    Quando morreres, será mesmo triste para os teus amigos, pois não poderão contar com outra consciência funcional que funcione da forma que eles sabiam que a tua funcionava. Em princípio, quando morreres, a tua identidade perder-se-á pela primeira vez. E pela última... Não há indícios muito famosos de reencarnações ou vidas eternas..

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  3. João,

    Concordo que a identidade é algo mais duradouro. Foi por isso que não usei essa palavra identidade. Mas a minha identidade não é o mesmo que o eu. Um cadáver é identificável -- tem identidade -- mas não tem eu.

    Penso que estás a pôr na mesma palavra a identidade (o ser idêntico a si e identificável como tal) e a consciência da sua própria identidade (o eu de um ser self-aware). A primeira dura, a segunda vai e vem conforme o que o cérebro faz.

    Quanto a definições, em filosofia fala-se por vezes em ipsidade ("mesmidade") em vez de identidade, porque se bem que sejamos a mesma coisa ao longo do tempo não permanecemos identicos. Mas quando perceber bem a diferença provavelmente vou achar que é treta :)

    Resumindo: nós não somos o corpo, nem o cérebro, nem os neurónios. Somos uma actividade especifica destas coisas, entre outras que eles fazem e que não são parte do "eu". Estás a confundir o passo com as pernas, o soco com a mão, e o eu com os orgãos que o fazem.

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  4. «Muitos procuram conforto na fé numa alma imortal, mas qualquer funeral revela a falta de convicção nesta crença.»

    Verdade, e muito bem observado.

    «E é um fraco consolo. Consolam-se perante a morte desvalorizando a vida, tentando-se convencer contra todas as evidências que é a próxima que conta.»

    100% de acordo.

    «Não há que temer a nossa morte. Ao fim de cada dia desligamos a consciência, e no dia a seguir o cérebro faz outra.»

    Aqui discordo.
    Onde a morte permanece como sendo algo definitivo, é que aquela pessoa (não aquele "eu" como lhe chamas, sem te referires à identidade, mas aquela personalidade, aquela história de vida, aquele padrão de comportamentos em quem, de alguma forma, poderias confiar mais ou menos) desaparece de vez.
    Não há volta a dar, em geral, é algo triste para quem gosta dela. E não há fé ou racionalização que dê volta a isso.


    «Parece que é a mesma porque temos memórias e o mesmo corpo, mas a consciência é uma acção, e não faz sentido dizer que é a mesma.»

    Faz sentido dizer que é a mesma "pessoa", que é o que importa. Uma pessoa que foi mantendo certas características (e alterando outras) à medida que foi acordando e adormecendo, mas que as perdeu todas quando morreu.

    Ficam a obra e as memórias.


    Há que apreciar a companhia uns dos outros enquanto estamos vivos; e apreciar bem a vida, que não temos outra.

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  5. João:

    «Faz sentido dizer que é a mesma "pessoa", que é o que importa. Uma pessoa que foi mantendo certas características (e alterando outras) à medida que foi acordando e adormecendo, mas que as perdeu todas quando morreu.»

    Imagina que congelamos o teu corpo. Mantemos todas as características duradouras (neurónios, ligações, proteínas, o que for) mas paramos por completo a sua actividade.

    Proponho que se o resto da tua vida for assim vais perder o mais importante. O "eu" no teu corpo não é os neurónios nem as características estáticas, mas sim uma certa actividade. O mais importante não é o que o teu corpo é, mas sim o que ele faz.

    Por isso quando o meu corpo morrer não será estritamente correcto dizer que o Ludwig morreu, mas sim que já não se fazem Ludwigs como dantes :)

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  6. «O "eu" no teu corpo não é os neurónios nem as características estáticas, mas sim uma certa actividade»

    Falsa dicotomia.

    Se releres o que escrevi entendes que eu nunca defendi que fossem os neurónios ou características estáticas. Até falei em padrões de comportamento e tudo.
    Mas a morte é quando a tua pessoa deixa de existir. Quando dormes, mesmo que a consciênca cesse, a tua pessoa continua a existir. No sentido em que estão lá os diferentes traços de personalidade que te caracterizam, as tuas memórias, etc...

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  7. Olá caros, o último post aqui faz uns 2 anos, mas fiquei tentado a postar, espero que possam ler e responder.
    Sabemos que a atividade do cérebro produz ondas detectaveis mesmo quando dormindo ou fazendo meditação. Sao as ondas chamas Alfa, Beta, Delta e Teta se nao me engano. As ondas Alfa (alta frquencia) indicam plena atenção. As ondas de frequencia mais baixas próximas a zero indicam um estado de coma, morte cerebral. Nesse momento existe consciencia? Seria possível medir essa consciencia? Qualquer tipo de emanação, ou algo do tipo? É algo para se pensar.
    Abraços,
    Ramon

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