terça-feira, fevereiro 27, 2007

Incentivar: o quê, e como.

Tenho desabafado regularmente sobre piratas e partilhas, mas vejo pelos comentários que a minha posição acerca deste sistema de incentivo não é clara. O que é que se quer incentivar, como o fazer, e se ainda é necessário fazê-lo com a tecnologia que temos. Consideremos então as duas formas principais do que se chama «propriedade intelectual»: patentes e copyright.

As patentes aplicam-se à exploração comercial de inovações tecnológicas, o que geralmente exige uma infra-estrutura dispendiosa. Não se pode patentear teoremas, fórmulas matemáticas, ou descobertas científicas, e a patente é um documento público, pelo que a ideia se torna «propriedade» de todos. Por isso a patente não recompensa ideias; o seu papel é proteger o investimento necessário para se tirar proveito da ideia. É para incentivar fábricas e não invenções.

O copyright cobre expressões materiais de uma ideia, também não cobre a ideia em si. Ninguém é dono de uma música ou de um poema. O copyright apenas restringe o direito de criar certas representações da ideia. Restringe o direito de distribuir fotografias do Rato Mickey mas não o direito de desenhar o Rato Mickey. Restringe o direito de vender CDs mas não o direito de cantar no duche. Também aqui o propósito não é proteger a ideia, que se assume ser de todos, mas proteger o investimento necessário à sua divulgação.

As empresas de distribuição vendem o copyright como incentivo à criatividade, mas este sistema tem pouco mais de cem anos e já havia criatividade antes. O copyright não foi inventado para remediar uma falta de inspiração de músicos e escritores do final do século XIX, mas para regular a concorrência entre as editoras que imprimiam e vendiam livros e pautas. Este serviço era importante para todos e era preciso que a sociedade o protegesse.

A coisa começou a dar para o torto nos anos 1910-20 quando os estúdios de cinema aproveitaram a lei de 1909 sobre o trabalho contratado, uma lei que dava ao empregador o direito de autoria sobre a obra do empregado. Tinha sido criada para simplificar a gestão dos direitos sobre jornais e revistas, mas teve um impacto imprevisto ao mudar por completo a noção de «autor». Os estúdios passaram a contratar argumentistas e a ficar com os direitos sobre as suas obras. E a enriquecer. E a pagar aos políticos para dar uns jeitinhos na lei. Hoje em dia os artistas têm muito poucos direitos sobre a arte que criam, o período de exclusividade cresceu de catorze para cento e vinte anos, e a arte parece mais uma competição de vendas que uma expressão de criatividade.

Os direitos de «propriedade intelectual» são restrições que a sociedade se impõe para proteger o investimento que a exploração da criatividade exige. Isto concedeu aos distribuidores o poder de distorcer gradualmente o sistema a seu favor, e em prejuízo da criatividade artística e do consumidor. Mas agora esse modelo de distribuição é obsoleto, e podemos fazer com as músicas e histórias o que fazemos com a matemática, as receitas, ou o design de roupas. Deixemos que os artistas se entendam com o seu público como se entendem professores e alunos, cozinheiros e gourmets, desportistas e adeptos, e tantos outros que criam e apreciam as mais diversas coisas. Porque nenhum poeta deixa de escrever, nenhum pintor deixa de pintar, e nenhum músico deixa de compor só por medo que os fãs partilhem essas obras.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Receitas? Notícias?!

É nítido que o site da Pro-Music é organizado pela indústria do entretenimento. Cada vez que lá vou farto-me de rir. A página sobre o «copywright» (aqui) parece uma sátira. Um pouco abaixo da gralha no título, vem:

«No nosso quotidiano, desde o jornal que compramos de manhã até à nova receita para um novo prato. Quase tudo foi criado por alguém. O facto das pessoas poderem ser donas da expressão das suas ideias significa que podem potencialmente viver a partir da sua imaginação.»

Os exemplos são tão bons como a pontuação. As receitas são processos e listas de ingredientes, e não são protegidas por direitos de autor enquanto tal. E segundo o Artigo 7º do código do direito de autor:

« 1 – Não constituem objecto de protecção:
a) As notícias do dia e os relatos de acontecimentos diversos com carácter de simples informações de qualquer modo divulgadas;»

É certo que eles limitaram-se a traduzir os disparates da Pro-Music internacional, mas podiam ao menos ter dado uma olhada na lei Portuguesa. Se o fizessem, talvez evitassem outra calinada:

«O direito de autor protege a expressão duma ideia; permite às pessoas ‘criar’.»

Se isto fosse verdade haveria muita coisa que não nos era permitido ‘criar’ (não se percebe o porquê das aspas) por não ser coberto pelo código de direitos de autor:

«As ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios ou as descobertas não são, por si só e enquanto tais, protegidos nos termos deste Código.»

Para finalizar, a treta do costume acerca da partilha de ficheiros:

«Se este tipo de cópia e distribuição persistir sem respeito pelas pessoas cujas ideias, talento e habilidade levam à criação musical, elas poderão simplesmente ficar impossibilitadas de continuar a criar – nesse caso todos ficaremos a perder.»

Não... nem todos. Há uns dias um aluno enviou-me a referência a um artigo no Diário Económico, que aproveito já para agradecer. Neste artigo, Ricardo Reis (1) faz as contas ao que os músicos ganham. Para os mais bem sucedidos as vendas de CDs somam menos de 15% dos seus ganhos totais. Os menos bem sucedidos ficam em dívida para com a discográfica, que cobra a gravação e a edição além de ficar com os direitos sobre a obra. Em ambos os casos os rendimentos dos músicos vêm principalmente dos concertos.

E há uma correlação interessante entre a partilha de ficheiros e o preço dos bilhetes. Os bilhetes dos concertos pop aumentaram 10% nos últimos anos. Os bilhetes para concertos de jazz, música menos pirateada, aumentaram 2%. É difícil dizer se é a popularidade que aumenta a partilha ou se é o contrário, mas o facto é que, mesmo para os artistas com mais vendas, 10% de aumento nos concertos paga uma quebra de 50% nas vendas dos CDs. Para o artista, e para o consumidor, a partilha compensa.

Quem fica a perder são os senhores da Pro-Music, que gerem o «copywright» e ficam com 90% do preço de cada CD.

1- Ricardo Reis, Fevereiro de 2007, O dinheiro dos músicos.

domingo, fevereiro 25, 2007

Miscelânea Criacionista: o criacionismo é ciência?

Uma pergunta difícil, porque há muitos criacionismos, e porque os criacionistas se contradizem a este respeito. Defendem que a ciência está limitada pelo naturalismo e não pode explicar os milagres da mitologia criacionista, mas querem ensinar o criacionismo como explicação científica e alternativa à biologia moderna. Também alegam que há investigação científica criacionista, mas recorrem ao milagre sempre que as contradições entre o criacionismo e a realidade são demasiado óbvias.

Penso que a melhor forma de compreender isto é pela história do criacionismo. A concepção inteligente sempre foi uma hipótese científica. Mesmo hoje é um problema comum determinar se um pedaço de rocha se formou por processos naturais ou se foi afiado com inteligência e propósito. A arqueologia e a paleontologia estudam muitas coisas criadas inteligentemente.

O mesmo se aplica à hipótese criacionista para a origem das espécies. A hipótese tem que identificar o propósito para um milhão de espécies de insectos, para os inúmeros parasitas ou para a maioria das criaturas sem relação óbvia com algum plano de salvamento ou redenção da espécie humana. E se foram criados com inteligência, é preciso explicar porque os ratos que vinham nos navios dos exploradores tantas vezes dizimavam as espécies indígenas de ilhas recém descobertas. Era estranho que um ser inteligente tivesse criado aves incapazes de reagir aos ratos que comiam os seus ovos ou pintos, ou escaravelhos com asas perfeitamente formadas debaixo de uma carapaça que não conseguem abrir, ou peixes cegos com olhos que não servem para nada, entre muitos outros exemplos.

Foi por ser uma hipótese científica que o criacionismo bíblico foi rejeitado. Nem nisto se distingue, pois aconteceu o mesmo com a maioria das hipóteses científicas. O que distingue a versão moderna do criacionismo é querer a autoridade da ciência sem se admitir vulnerável a factos contraditórios, e isto é impossível. A ciência escolhe os modelos de forma a corresponderem ao que se observa, e quando a correspondência falha o modelo é substituído. As falhas dos modelos científicos são erros a corrigir, e é o sucesso contínuo nesta correcção que justifica a nossa confiança na ciência.

As falhas dos modelos criacionistas não são erros. São milagres. É por isso que a versão moderna do criacionismo nem é científica nem serve para nada. Se ligam o interruptor e a lâmpada não acende o melhor é pôr uma lâmpada nova. Ajoelhar-se e louvar o milagre da lâmpada fundida é inútil e irracional.

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Miscelânea Criacionista: Porque Deus quis.

Duma explicação tem que ser possível inferir o que é explicado. Por que é que ele usa suspensórios verdes e encarnados? Para segurar as calças não explica, pois não permite inferir a cor dos suspensórios. Uma explicação seria, por exemplo, que só tem suspensórios verdes e encarnados.

A consequência deste requisito é a falsificabilidade, um palavrão que não é só esquisitice de cientista. Se a explicação implica algo, então tem que estar errada se esse algo não se concretiza. Por outro lado, se nada pode contradizer uma hipótese então nada se pode inferir da hipótese, e então não explica nada.

Este é o problema mais fundamental do criacionismo. Em geral, os criacionistas propõem hipóteses que são falsificáveis. E, em geral, são falsas. Mas quando confrontados com a falsidade evidente de uma dessas hipóteses recorrem ao milagre: a intervenção arbitrária de um ser todo-poderoso. E nesse momento a hipótese já nem é uma explicação errada. Deixa de ser explicação. Se é todo-poderoso, então os suspensórios podiam ser de outra cor, as calças podiam segurar-se sozinhas, e a Terra podia ter sido quadrada. Tal hipótese não ajuda a perceber porque é que as coisas são como são em vez de serem de outra forma.

A crença na ciência.

O leitor Pensar Custa (1) criticou a minha descrição da ciência como sendo um método «de gerar e aperfeiçoar crenças que correspondam à realidade». Pensar Custa sugeriu:

«diria talvez que seja um método de aperfeiçoar a explicação e o domínio da realidade. [...]A ciência não tem nada a ver com acreditar, ela não precisa que acreditemos nela. Apenas tem que funcionar, de permitir gerar novo conhecimento.»

Reconheço que fui desleixado, e dou razão ao leitor. E agradeço a desculpa para abordar este tema que acho importante.

É verdade que a ciência não precisa de crenças. São até um empecilho, porque acreditar numa explicação dificulta a avaliação imparcial das alternativas (e temos sempre que considerar alternativas, senão não é ciência, é engano). Também é verdade que a ciência não se caracteriza por uma crença em particular. E, em rigor, a ciência não exige que acreditemos na melhor explicação.

Mas a ciência tem que «permitir gerar novo conhecimento», e aí entra a crença. Contradigo-me se digo que sei que o teatro está a arder mas que não acredito que o teatro esteja a arder. Se não acredito, então não sei. Desconfio, talvez, mas não tenho conhecimento se não o tiver como verdadeiro. Mais, se a ciência me indica uma explicação como superior às outras, é mau uso do método acreditar numa alternativa inferior. Perdi tempo inutilmente e fiquei sem poder gerar novo conhecimento por escolher um caminho que provavelmente está errado. Quando a melhor explicação diz que a Terra tem milhares de milhões de anos não faz sentido acreditar que foi criada por milagre na terça-feira passada. Finalmente, a ciência gera modelos úteis, que permitem prever e controlar a natureza. Estes modelos são demasiado complexos e sofisticados para que sejam úteis por mero acaso. A explicação mais razoável para a utilidade dos modelos científicos é que são, pelo menos em parte, verdadeiros. Se aceitamos que são verdadeiros então acreditamos neles.

Mas é preciso cuidado com o termo «crença», pela conotação com algo definitivo que não admite refutação. As crenças que a ciência nos dá são provisórias, e foi falha minha não distinguir estes dois sentidos. Mas com esta ressalva posso dizer que a ciência serve para gerar crenças. Crenças questionáveis, sujeitas a revisão, mas que o processo garante serem explicações úteis obtidas de forma adequada. Ou seja, crenças que são conhecimento.

Em contraste cada religião é uma crença que se pretende irrefutável. Para isso tem que se isolar da realidade e perder qualquer utilidade como explicação. Essa é a crença que é fé.

Deixo no ar a questão do que é explicação, mas vem mesmo a calhar. Estou a acabar mais um texto para a miscelânea criacionista, sobre isso. Não percam o próximo episódio.

1- Pensar Custa.
2- 17-2-07. Miscelânea Criacionista: A Ciência é uma Fé. (ver comentários).

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Censura?

Finalmente consegui discordar do Helder Sanches, em vez de andar à cata de desculpas para comentar um texto dele. No «YouTube censura Ateísmo» (1) ele conta como a YouTube baniu o ateu Nick Gisbourne (2) por ter lá colocado um vídeo sobre a violência no Corão. A YouTube afirmou mais tarde que era por questões de copyright, por causa da música que acompanhava as citações do Corão, mas concordo que deve ter sido por causa do conteúdo anti-religioso. Não concordo é que seja censura.

A YouTube não um serviço público. Não é claro como vão fazer dinheiro com aquilo, mas é um negócio, e o facto é que os computadores são deles, são eles que pagam o tráfego de dados, e ninguém que põe lá vídeos lhes paga seja o que for. À partida, parece-me razoável que eles detenham o controlo do conteúdo que hospedam e transmitem gratuitamente.

Por exemplo, ninguém chama censura à proibição de vídeos pornográficos no YouTube. Nem sequer é pudor, e certamente não é por falta de popularidade. É apenas porque esse nicho de mercado não lhes interessa, e permitir esse conteúdo pode impedir que se estabeleçam com o público que eles querem. E se há uma coisa que uma empresa deve poder decidir é o mercado que serve.

É discutível se banir este vídeo foi uma boa decisão. É indiscutível que não serviu de nada; há tanta gente que o continua a pôr lá o vídeo que nunca vai desaparecer de vez. Basta pesquisar islamic teachings youtube no Google (o dono da YouTube, curiosamente). Mas censura não é. A YouTube não está a impedir Nick Gisbourne de se exprimir. A empresa apenas tentou (sem sucesso) evitar pagar para o ajudar a fazê-lo, e nisso está no seu direito.

1- Helder Sanches, 19-2-07, no Penso, logo sou ateu e no Diário Ateista
2- http://www.gisburne.com/

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Miscelânea Criacionista: Os filhos como os pais.

Os filhos são sempre da mesma espécie que os pais. E as crianças aprendem com os pais a língua que os pais falam. Nunca um casal Romano, ao ensinar Latim aos seus filhos, os ouviu responder em Francês.

No entanto, o Francês descende do Latim, bem como o Português, o Castelhano, o Italiano, ou o Romeno. A evolução das línguas é análoga à evolução da vida em muitos aspectos, e um deles é a forma gradual, quase imperceptível, como progride. Sem descontinuidades, a divisão é forçosamente arbitrária. Considera-se que o Português arcaico se tornou em Português moderno com a publicação das gramáticas de Fernão de Oliveira e João de Barros, 1536 e 1540 (1), mas nem eles nem os seus contemporâneos notaram alguma diferença. Todos diriam que a Língua falada em Portugal em 1535 era a mesma que se falava em 1541.

O mesmo se passa com a evolução das espécies. O grande número de fósseis na transição entre os répteis cinodontes e os mamíferos dá-nos um contínuo análogo ao que conhecemos na evolução do Português. Também neste caso foi necessário escolher um ponto arbitrário para marcar a transição: a articulação da mandíbula directamente com o crânio sem articulação com o osso quadrado. Em quase todos os animais excepto os mamíferos, as mandíbulas são articuladas com o osso quadrado, e não directamente com o crânio. Na transição, há vários fósseis de cinodontes com uma articulação mandibular dupla, em que a mandíbula articula com o osso quadrado e com o crânio ao mesmo tempo. Os mamíferos começam no Adelobasileus cromptoni, o fóssil mais antigo em que o osso quadrado deixou de fazer parte da articulação da mandíbula (2). Mas mesmo isto foi um processo gradual, com este osso imperceptivelmente mais «solto» a cada geração. Quanto mais solto, mais sensível a vibrações e melhor a audição do animal, e isto criou uma pressão selectiva para a modificação gradual da mandíbula. Eventualmente, nos mamíferos o osso quadrado acabou por se dividir nos três ossículos do ouvido médio.

Quanto mais informação temos mais arbitrária se torna a transição, pois diminuem as diferenças entre os exemplares que classificamos. Mas isto não invalida a evolução, nem das línguas nem das espécies.

1- Instituto Camões, A Língua Portuguesa
2- TalkOrigins Archive, Transition from synapsid reptiles to mammals

E aqui uma página com umas imagens de répteis cinodontes. Parecem mamíferos, mas são todos répteis porque não têm a articulação mandibular de mamífero.

O Manual da Vida.

Da autoria do Professor Mário Neto, blinólogo. Os leitores menos familiarizados com a blinologia podem encontrar aqui outros artigos sobre o tema

Foi pela Sua sabedoria e misericórdia que os Blin criaram para nós este universo ordenado, inteligível, e compreensível à razão do Homem. E foi também pela Sua sabedoria e misericórdia que os Blin nos deram os Mistérios. O Mistério da Vida. O Mistério da Salvação. O Mistério da Papa de Aveia primordial e dos alfinetes com cabeça em forma de joaninha. Os que são cegos à dimensão espiritual da nossa existência queixam-se que mistérios incompreensíveis à razão do Homem contradizem a ideia de um universo compreensível a esta mesma razão. Pois enganam-se, os infelizes, como eu aqui demonstrarei.

Enganam-se porque insistem em usar apenas e somente o bisturi frio do intelecto, e esquecem as pantufas quentinhas do sentimento religioso, que apesar de não cortarem nada são mais confortáveis e convidam ao repouso da mente. O intelecto científico procura respostas no exterior, e leva o cientista a dissecar o que o rodeia. Mas aquele que conhece a sua espiritualidade é introspectivo. Procura a Verdade olhando para o interior da alma, para o centro. Para o umbigo, por assim dizer.

Isto gera um conflito desnecessário entre a ciência e a verdadeira religião. Desnecessário porque a ciência depende totalmente de teorias e interpretações. Os geólogos que observam uma formação em granito usam as suas teorias para classificar a rocha, e os físicos datam-na como tendo muitos milhões de anos. Mas são só interpretações à luz das teorias científicas. Em contrapartida, a Blínia sagrada não carece de interpretações ou teorias. É a palavra infalível dos Blin, e o que está lá escrito quer dizer exactamente o que está lá escrito. O relato da criação da Terra é claro e explícito: os continentes foram criados sobre um enorme oceano de Papa de Aveia. A ausência de vestígios desta papa nas formações geológicas modernas é fácil de explicar à luz da Blinologia. Evidentemente, a Papa de Aveia transformou-se em granito.

Em suma, os cientistas vêm-se perante um aparelho complexo como é este universo e põem-se a brincar com os botões. Fazem experiências, carregam aqui e ali, e ficam todos contentes quando descobrem como acertar o relógio ou ejectar a cassete. Digo isto com todo o respeito por estes jovens que, enquanto não arranjam um emprego sério, descobrem coisas fascinantes como os computadores, as vacinas, e a electricidade. Mas nada disso importa. Não há grande valor em saber física, química, ou matemática, pois estas teorias são uma coisa hoje e outra amanhã, e não nos dão nada de consequência. É mais cómodo viver numa casa e ter saúde que viver numa caverna infestado de parasitas, mas a comodidade não é tudo. Nesta azáfama com o aparelho, esquecem-se que têm na Blínia sagrada o manual completo com tudo o que importa saber.

A Verdade que importa é a Blínia sagrada. É a Verdade imutável, infalível, a única em que podemos ter inteira confiança. E é também a mais relevante, pois dá-nos a vislumbrar o Maravilhoso. Quantos dias passou Gernifásio no Monte dos Caracóis. Como conseguiu o profeta Zaramias derrotar os sacerdotes Cumanitas à bisca dos nove. Tudo isso está escrito no mais perfeito Manual da Vida, tão perfeito que basta ler o manual, e nem precisamos tirar o aparelho do caixote.

domingo, fevereiro 18, 2007

Miscelânea Criacionista: o decaimento radioactivo.

O urânio 238 é instável, e de vez em quando um átomo perde um pedaço do núcleo e transforma-se em tório 234. Muito de vez em quando; demora quatro mil e quinhentos milhões de anos para desaparecer metade do urânio 238 desta forma. Outros isótopos são mais radioactivos. O carbono 14, por exemplo, tem um tempo de meia vida de 5730 anos. Com estes tempos, vários isótopos diferentes, e conhecendo os produtos destas reacções nucleares, podemos calcular a idade de alguns materiais pela sua composição.

Os criacionistas têm um problema com isto. Esta técnica dá valores de milhares de milhões de anos para a idade da Terra, mas eles têm um livro que diz que a Terra só tem seis mil anos. Por isso propõem que a taxa de decaimento radioactivo era maior no passado. É mesmo por isso: por causa do livro. Não há mais nada que precise desta hipótese como explicação.

Para muitos isto é um mero detalhe. Se calhar os criacionistas até têm razão, sabe-se lá. Mas o decaimento radioactivo não é um mero detalhe. É o calor gerado por este processo que mantém líquido o núcleo da Terra. A Terra tem seis mil quilómetros de raio, dos quais só meia dúzia é rocha sólida. É como uma camada de tinta numa laranja. Agora imaginem que o aquecimento no interior da Terra aumenta um milhão de vezes. Puf, lá se vai a laranja.

Além disso o decaimento radioactivo está relacionado com constantes fundamentais da física. Esta proposta é simplesmente absurda. É como ler num livro que as pirâmides foram construídas por meia dúzia de pessoas num fim de semana, e por isso propor que no tempo dos egípcios as pedras pesavam muito menos, e só se tornaram pesadas mais tarde. Não é porque lemos num livro que se justifica assumir que os aspectos mais fundamentais da matéria mudam de um dia para o outro.

Vitória de Pirro.

Sempre discordei de apresentar a despenalização do aborto como um conflito entre religião e laicidade. Decidir que às 10 semanas temos menos direitos que às 11 não tem nada a ver com deuses ou religiões. Mas hoje o desagrado passou a preocupação quando li o comentário do Massimo Pigliucci a uma palestra do Philip Kitcher sobre como mitigar os efeitos da religião (1).

Kitcher sugere que há dois factores principais, muito mais importantes que movimentos humanistas, ateístas, ou de lacidade: laços comunitários e segurança social. O que distingue os E.U.A. de grande parte da Europa, da Austrália, Nova Zelândia, e Japão, é que nos E.U.A. é comum as pessoas viverem longe das famílias e amigos, e a qualidade de vida está sempre em risco por um apoio social deficiente a quem perde o emprego ou tem um problema de saúde. Isto torna importante a pertença a uma comunidade religiosa à qual se possa recorrer em caso de necessidade. Nos outros países desenvolvidos a religião têm um peso muito menor porque é supérflua, mesmo naqueles em que há uma religião oficial do estado. Vai à missa quem quer, e quem não vai não perde nada com isso.

Isto que muitos apregoam como a vitória do ateísmo sobre a religião acaba por ajudar a fortalecer a religião em Portugal. O que o referendo disse a milhares de mulheres que todos os anos se vêm em dificuldades com uma gravidez é que nós pagamos se quiser matar o filho. Mas se quiser ajuda para o criar, que recorra à caridade. Ou seja, à igreja. Como diria Pirro, se continuamos com vitórias destas estamos tramados.

Massimo Pigliucci, 15-2-07, How to do away with religion, really.

00111 – Licença para digitalizar.

No dia 12 o Miguel Caetano criticou uma proposta para substituir todos os direitos de autor por uma única licença de transmissão digital (1). Concordo que não seria prático licenciar cada utilizador de redes de partilha, mas penso que há duas objecções mais fundamentais: a natureza do conteúdo digital, e o propósito dos direitos de autor.

Um quadro igual a outro é uma cópia. Mas «um rectângulo azul pantone 266, com 13,2 cm de altura por 28,6 cm de largura...» é uma descrição, e por muito detalhada que seja não é uma cópia do que descreve. No copyright digital temos que ignorar esta distinção. Digitalizar é calcular uma descrição numérica, não é copiar nem converter, e temos que estender a protecção às descrições das descrições, numa recursividade infinita. Enquanto o ficheiro mp3 descreve a música, o ficheiro zip do mp3 descreve o ficheiro mp3 e não a música. E isto é só parte do problema.

É fácil ver que «rectângulo azul...» descreve uma imagem e «blaofot8 90 jfakdjf...» não descreve nada. A forma natural de interpretar um texto permite determinar o seu significado. Com sequências de números nem isto temos. Uma sequência como «10010101101101...» significa o que quisermos e pode descrever qualquer coisa. Sendo impossível especificar que sequências se pode ou não transmitir, não faz sentido regular a transmissão de informação digital.

Por outro lado, o licenciamento não serve para fomentar a criatividade, mas para custear a distribuição. A investigação científica, a filosofia, a matemática, até a culinária, não têm qualquer forma de licenciamento. Até nas patentes, o que é não é a ideia, mas apenas a sua aplicação comercial. A ideia patenteada é do domínio público.

O licenciamento de obras artísticas no inicio do século passado foi uma forma de subsidiar a produção e distribuição de livros, gravuras, pautas, e eventualmente filmes e discos. Tal como antes do século XX, também agora isto é desnecessário, e não há razão para que os artistas tenham que ganhar a vida de forma diferente de um biólogo, matemático, professor, ou cozinheiro.

A sociedade deve incentivar a criatividade artística, e a melhor maneira é fazê-lo como o faz noutras áreas: financiado o ensino e a prática das artes sem conceder direitos exclusivos que acabam por prejudicar a divulgação, adaptação, e a própria criatividade.

1- Miguel Caetano, 12-2.07, Uma licença global para o “mercado” da música digital

sábado, fevereiro 17, 2007

Miscelânea Criacionista: A Ciência é uma Fé.

E a calvície é um penteado. É típico dos criacionistas afirmar que a ciência é apenas outra fé. Citando Jónatas Machado:

«Tanto os evolucionistas, como os criacionistas interpretam os dados a partir de premissas aceites pela fé.»

Há aqui um vestígio de verdade, pois qualquer dado tem que ser interpretado no contexto de um modelo teórico. Não há dados interpretáveis sem premissas, e é preciso sempre pelo menos um modelo teórico daquilo que se está a observar.

Pelo menos um. Mas enquanto a fé admite exactamente um e mais nenhum, para a ciência quantos mais melhor. Um crente vê na torrada queimada uma imagem de Jesus, e crê que é um sinal de Deus. O cientista considera alternativas. Por um lado a pequena probabilidade de um ser todo poderoso escolher a torrada como meio de comunicação. Por outro lado a facilidade com que o cérebro humano vê caras, até em dois pontos e um parêntesis. A fé do crente não o permite questionar o seu modelo pois exclui modelos alternativos. A ciência pesa os méritos de todos os modelos disponíveis para escolher o mais fiável.

Por isso é que durante séculos o criacionismo foi aceite como a melhor explicação. Já não é, mas não por fé. Apenas porque surgiram modelos melhores. Mas enquanto a ciência aceitou o criacionismo quando se justificava, o criacionista nunca pode aceitar a evolução, pois a sua fé rejeita à partida qualquer modelo alternativo.

Ateísmo

Tenho andado para escrever sobre isto, mas como não vinha a propósito de nada fui adiando. Agora a estreia do Helder Sanches no Diário Ateísta (1) deu a deixa. Aproveito para dar os parabéns a ambas as partes pela entrada do Helder no DA. Melhor, só se tivesse sido antes do dia 11.

Para o Helder, «ser ateu é, sobretudo, não acreditar no sobrenatural, seja de que espécie for. Ser ateu é duvidar e questionar, promover a discussão, divulgar uma visão naturalista do mundo em que vivemos e acreditar no conhecimento científico, nunca esquecendo a sua capacidade única de auto-validação.»

Concordo com quase tudo. Pelo que observamos do mundo, não há deuses a atirar raios, nem assombrações, alminhas, ou essas coisas que enchem o balde do «sobrenatural». Faz sentido defender uma visão naturalista porque o universo em que vivemos é 100% natural. Nisto, como de costume, estou de acordo com o Helder.

Mas para mim isso é bom senso, não é ateísmo. Não é por ser ateu que eu duvido do Pai Natal ou do Super Homem. Não é por ser ateu que eu duvido que um deus tenha criado isto tudo. Simplesmente não há indícios que estas histórias sejam verdadeiras, não pelo que eu sou mas pelo que o Universo é.

Se Deus existir, será bem vindo cá em casa (telefona primeiro). Tenho muito interesse em conversar com ele, perguntar como criou isto, qual a ideia, enfim, a história toda. Ou o Super Homem. Também gostava de saber porque raio a capa dele abana quando ele voa no espaço. Mas isto teria a ver com o universo em que eu vivo, e não com o meu ateísmo. Eu continuava ateu à mesma. Não é por existir o Criador do Universo que eu me vou por de joelhos a rezar, ouvir secas dos padres, ou louvar o Seu nome (louvar o nome? têm com cada ideia...). Fez isto, chama-se Deus, é todo-poderoso, muito bem, mas nada disso me obriga a ter um deus ou venerar seja o que for. Sou ateu por opção, o resto é circunstancial.

Para mim o ateísmo é decidir por mim o que é bom e mau em vez de consultar um livro ou perguntar a um padre ou a um deus. Para mim o ateísmo é dar eu valor à minha vida em vez da vida ter valor por outrem. Para mim o ateísmo é deixar no armário as lantejoulas da humildade, vestir uma dignidade confortável, e gozar este breve passeio pelo universo, seja como o universo for.

1- Helder Sanches, 16-2-07, Querido Diário. Também aqui.

Miscelânea Criacionista.

O argumento criacionista tem duas estratégias. Primeiro atirar um grande número de afirmações sem as fundamentar: o decaimento radioactivo era mais rápido; as mutações só destroem informação; não há fósseis de formas transitórias, e assim por diante. Quem assume que num debate ninguém mente descaradamente fica com a impressão que o criacionismo tem alguma razão.

E é muito mais simples afirmar que refutar. Uma vez numa festa uma criacionista apresentou-me o «facto» de as mulheres terem mais costelas que os homens como evidência da criação de Eva duma costela de Adão. Sentado à espera do jantar não é possível demonstrar a imensidão deste disparate. Por sorte é tão disparatado que só um criacionista incurável o leva a sério, mas nem sempre temos esta sorte.

A outra parte da estratégia é ignorar qualquer refutação e repetir as mesmas afirmações. Idealmente, com copy-paste. Um exemplo neste blog é a ideia que as mutações destroem informação, que já foi aqui tão batida e rebatida que parece massa de padeiro. Mas continua a aparecer na sua forma original, como se estivéssemos a começar agora a conversa. Outra coisa que se assume num debate é o dever de avançar com o argumento em vez de repetir o passo anterior. O criacionismo aproveita-se disto para obrigar o oponente a dar sempre o mesmo passo, enquanto o criacionista fica sentado a descansar. Ctrl C, Ctrl V, Ctrl C, Ctrl V...

Por isso decidi começar aqui uma rubrica dedicada aos cogumelos ressurgentes do argumento criacionista. Sei que não os posso eliminar definitivamente, mas fico já com o fungicida à mão para sempre que for preciso.

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

A sova.

Consta nos comentários que eu estou a levar uma «sova intelectual» do Jónatas Machado (1). Em parte é um alívio; sova por sova, que seja intelectual, que sempre dói menos.

Mas não me parece útil travar este combate entre o criacionismo e a teoria da evolução sobre coisas abstractas e obscuras como a exegese bíblica o a fé nisto ou naquilo. Prefiro o cenário mais arejado da biologia, e proponho que se lute sobre a origem das espécies, que foi o que despoletou o conflito.

Segundo o criacionismo, cada ser vivo foi criado de acordo com o seu tipo. O «tipo» é vago, mas a ideia é não haver poucas-vergonhas. Cada um é o que é e não há cá misturas. A teoria da evolução diz que as espécies se separam gradualmente de uma população ancestral. Aqui o criacionista vê o ponto fraco e ataca: nesse caso, temos que ter uma situação intermédia entre uma espécie e duas espécies, e dois organismos têm, ao mesmo tempo, que ser da mesma espécie e de espécies diferentes. Não pode haver casos assim, por isso o criacionismo ganha.

E com isto os criacionistas contam um ponto a seu favor, que é o procedimento correcto numa discussão teológica à moda da escolástica medieval. Mas a ciência não se ganha com argumentos bonitos, e isto ainda não é uma sova. É uma experiência. Se não há casos intermédios, então o criacionismo tem razão. Mas se há a sova é outra.

A gaivota argentea (Larus argentatus) habita o norte da Europa Ocidental e da América. A gaivota de asa escura (Larus fuscus) habita no norte da Europa Ocidental e Escandinávia. São duas espécies distintas, de aparência diferente, e sexualmente isoladas mesmo nas zonas onde coexistem. Mas na Russia há uma subespécie de aspecto intermédio, que a Ocidente se cruza com a gaivota de asa escura, e a Oriente, no Alasca, se cruza com a gaivota argentea.

Por tradição, a gaivota de asa escura e a gaivota argentea são consideradas espécies separadas. Mas biologicamente podíamos agrupá-las na mesma espécie, visto que há um continuo de populações que se cruzam: da Europa Ocidental, pela Escandinávia, norte da Russia, Alasca, América do Norte e de volta ao ponto inicial.

Há outros exemplos de espécies anel como esta. A salamandra Ensatina da Califórnia e o pequeno pássaro Phylloscopus trochiloides dos Himalaias são outros bem conhecidos. São casos raros, pois é uma situação instável e é preciso uma geografia particular, que permita que a espécie se espalhe e modifique gradualmente nos extremos de forma a que se tornem incapazes de se cruzar.

Mas estes casos ilustram bem a natureza gradual da evolução, e o contínuo de modificações na adaptação dentro de uma espécie, a geração de novas espécies e assim por diante. O combate tem que ser travado em casos concretos, e não na interpretação bíblica ou na fé de cada um. E se os criacionistas me derem uma sova intelectual nesta arena é uma sova que levarei de bom grado, pois isso significará que têm uma explicação melhor.

1- Ciência, direito, e criacionismo.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Ao Acaso (parte 3 de 3).

Aqui a parte 1 e a parte 2.

Olhos, patas, asas, flores, antenas, cílios. Estas coisas não surgiram por acaso, e é por isso que queremos explicar como surgiram. Se fosse por acaso arrumava-se o assunto com um «olha, calhou». Antes de Darwin dizia-se que um deus tinha criado isto tudo, mas esta explicação deixava de fora o mais importante: como? Darwin e Wallace explicaram como.

Considerem os vossos antepassados. Pais, avós, bisavós, e assim por diante. Todos tiveram pelo menos um filho, sem excepção. E não foi por acaso, pois só tendo filhos é que se pode ser antepassado. Este é o poder da selecção natural como explicação. Porque é que tanta gente tem a capacidade de ter filhos? Porque herdamos características dos nossos antepassados, e todos os nossos antepassados tinham esta capacidade.

Então porque é que alguns não conseguem ter filhos? Isso já é por acaso. Ou seja, é por factores que não conseguimos incluir nesta explicação. Então a selecção natural não explica tudo, dirão os criacionistas. Pois claro que não, mas isso é bom sinal. Contrastem com o criacionismo. Porque é que a maioria consegue ter filhos? Porque um deus quis. E porque é que alguns não conseguem? Porque o mesmo deus quis. Isto nem é explicação. Mais vale dizer que sim porque sim, e poupar umas palavras.

Que os antepassados tiveram filhos não é muito informativo, mas outras características seguem o mesmo padrão. Os nossos antepassados foram mais saudáveis que a média nas suas gerações, e também por selecção natural. Era mais difícil ser antepassado quem nascia cego, surdo, sem braços, hemofílico, diabético, e tantas outras coisas. Os nossos antepassados que viveram expostos a certas doenças ou condições agrestes eram, em média, mas resistentes a estas adversidades que os seus contemporâneos. Nos tempos em que a inteligência era uma vantagem, os nossos antepassados eram, em média, mais inteligentes que outros das suas gerações.

Para cada antepassado o acaso teve um papel importante. Não é certo que o mais saudável ou mais inteligente se conseguisse reproduzir. Mas como vimos nas outras partes desta mini série, quando o número é grande muito do acaso se torna certeza. E nós tivemos muitos antepassados. Foi assim que Darwin explicou como surgiu o que ajuda a sobreviver o suficiente para ter filhos.

Mas ainda sobra muita coisa. Os nossos antepassados provavelmente tinham, em média, tantos pelos nas sobrancelhas como os seus contemporâneos e os olhos da mesma cor que os dos seus vizinhos. A nível molecular, onde muitas diferenças não trazem consequências, foi puro acaso se esta ou aquela variante de um gene ficou num antepassado. Ironicamente, e apesar do título da obra de Darwin, o acaso é um dos factores principais na origem das espécies. Populações isoladas vão acumulando diferenças por acaso. Numa é este gene que se espalha, noutra é outro que não dá qualquer vantagem mas que por sorte se propagou mais. Com o passar dos tempos as diferenças acumulam-se e os cruzamentos tornam-se menos férteis, estéreis, e eventualmente impossíveis.

Como o óleo na água e o sistema imunitário, também a evolução é um misto de acaso e de factores que a impelem numa direcção. O acaso introduz variantes, faz populações divergir, separa espécies, cria, inova. Para melhor e para pior, conforme calhe. Mas para ser antepassado também conta ter mais daquilo que é preciso para se reproduzir. Pode ser um corpo mais esguio ou mais parecido com uma rocha. Pode ser um veneno mais forte ou mais resistência a venenos. Pode ser uma barba rija ou uma cara macia. Fosse o que fosse, se dava vantagem os nossos antepassados tinham-no a mais que os outros.

É isto que explica porque há trezentas e cinquenta mil espécies de escaravelho. É isto que explica asas, patas, e olhos. É isto que explica porque somos tão diferentes em certas coisas e tão parecidos noutras. É isto que explica os fósseis, as árvores filogenéticas, a resistência aos antibióticos, a anemia falciforme, e inúmeros outros detalhes, desde a biologia molecular à ecologia. É uma teoria complexa, enorme, e sempre a mudar conforme aprendemos mais e temos mais para explicar. E neste momento não há nada que lhe chegue perto a explicar tudo isto.

Ciência, direito, e criacionismo.

O Jónatas Machado (JM) tem contribuído neste blog com a sua perspectiva criacionista, indispensável para compreendermos o conflito entre evolução e criacionismo. Uma das fontes de conflito é a ideia do criacionismo como verdade necessária, em oposição à ciência, que é contingente e provisória. Citando JM:

«Para o ser humano, enquanto ser moral, racional e cultural, o mais importante é construir a sua casa sobre a rocha da Verdade, infalível e definitiva, do que sobre a areia da especulação humana, pseudo-científica, falível e provisória. Jesus disse: os Céus e a Terra passarão, mas as minhas palavras não hão-de passar.»

O criacionismo é uma hipótese como qualquer outra, que também depende da se adequar aos factos para ser verdade. Quando os criacionistas o propõem como «a rocha da Verdade, infalível e definitiva» o diálogo acaba, torna-se num monólogo a duas vozes.

Mas num comentário mais recente JM apresenta uma lista do que considera ser factos que levariam a rejeitar o criacionismo a favor de outra teoria (1). Isto é excelente. Assim estamos de acordo que não há uma «Verdade, infalível e definitiva» mas apenas «especulação humana». Sobram outras fontes de conflito, mas já é um passo na direcção certa.

JM considera que seria evidência a favor da evolução algo como erros nas Escrituras ou «inexistência de testemunhos credíveis dos milagres e da ressurreição de Jesus Cristo». Compreendo que para um jurista como JM certos fontes tenham uma autoridade especial. E penso não ser coincidência que o criacionismo moderno tenha sido fundado por um professor de direito, e que tantos dos seus defensores sejam juristas ou teólogos. Mas a autoridade é convencional e arbitrária, pois é o que decidirmos e concordarmos que seja. Como não podemos convencer os átomos ou as estrelas da autoridade de um livro ou autor, o que serve para ditar leis não serve para compreender o universo. A Bíblia e a mitologia Cristã podem ser uma fonte de inspiração para novas hipóteses, mas a sua alegada autoridade é irrelevante. Não se considerar os relatos bíblicos como evidência a favor do criacionismo.

Outro problema é confundir o modelo com o sistema modelado. «A inexistência das leis da conservação da energia» ou «a total inexistência de aparência de design na natureza» são questões dos modelos que geramos. As leis são generalizações do que observamos, e a aparência de design está na nossa interpretação. Mais uma vez, algo que faz sentido em direito, onde o modelo é auto-referente (leis que dizem o que é legal), não faz sentido num modelo que explica algum aspecto da natureza. As evidências para este têm que ser exteriores ao modelo. São as observações e não as leis, teorias, ou pressupostos.

Finalmente, JM exige «capacidade científica para saber exactamente o que se passou no passado distante» ou «completa inexistência de fósseis polistráticos». Isto é razoável para decidir se é culpado ou inocente, se o pedido é deferido ou indeferido. Mas não estamos num tribunal, nem estamos a lidar com «a rocha da Verdade, infalível e definitiva». Estamos a procurar a melhor explicação para o que observamos, e o procedimento correcto é comparar as alternativas. Não é a explicação perfeita. Não é a explicação final, definitiva, ou infalível. Simplesmente a melhor até agora.

O criacionismo já foi a melhor, em tempos idos. Mas foi substituído, e a teoria que o substituiu foi por sua vez remodelada, alterada, aperfeiçoada, e ainda está a sê-lo. A moderna teoria da evolução é muito melhor que qualquer alternativa que surgiu até hoje. Terá certamente melhorias no futuro, mas não parece que volte a ser substituída pelo criacionismo.

1- A lista está neste comentário.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Só mais uma voltinha...

Em 1999 um adolescente quebrou a protecção dos DVDs. Em 2005 a Disney, Intel, Microsoft, Panasonic, Warner Brothers, IBM, Toshiba, e Sony juntaram-se para criar uma nova protecção para os DVDs de alta definição. O objectivo: que desta vez fosse preciso pelo menos meia dúzia de jovens, talvez alguns na casa dos vinte, para fazer o mesmo. Até incluíram o termo «Advanced» no nome do sistema, para verem que era a sério. Parece que o objectivo foi cumprido.

O sistema é sofisticado. Cada DVD de alta definição (HD DVD ou Blu-Ray) contém uma lista de chaves criptográficas com uma chave para cada modelo de leitor autorizado. Cada leitor de DVDs tem uma chave própria que combina com a chave que lhe corresponde no DVD. Com estas duas gera uma nova chave que usa nos passos seguintes. Esta parte é extremamente útil. Se alguém descobre como tornear a protecção com um certo modelo de leitor de DVDs os estúdios podem revogar a licença desse leitor alterando a chave para esse leitor nos próximos DVDs. Incapaz de gerar as chaves certas esse leitor deixa de ler. Acaba-se com a quebra de protecção, toda a gente que tinha um leitor desses tem que comprar um novo, e todos ganham. Todos menos o consumidor, que é o Jar Jar Binks deste filme.

Mas não ficam por aqui. A chave obtida no passo anterior é combinada com o identificador de volume, que está gravado numa parte do DVD onde só os DVDs de fábrica podem ter informação. Isto não vá algum criminoso querer evitar que os seus filhos risquem um DVD de dezenas de euros fazendo uma cópia por segurança. Juntando estas chaves o leitor obtém finalmente a chave final para descodificar o conteúdo do DVD (há mais umas tretas pelo meio, mas isto já é confuso que chegue...).

No inicio de Janeiro alguém conhecido como «muslix64» descobriu uma forma de obter esta chave final analisando a memória do computador quando o programa PowerDVD estava a ler um DVD. Mais tarde «LordSloth» fez o mesmo com o WinDVD, e neste momento há 97 chaves publicadas no site AACSKeys. Mas esta chave é específica de cada DVD, é preciso algum conhecimento para a encontrar na memória do computador, e se as versões correntes destes programas forem revogadas e os programas melhorados deixa de ser possível fazê-lo.

Mas no dia 11 «Arnezami» descobriu a chave do passo anterior, e uma forma simples e automática de obter o identificador do DVD. Como esta chave é igual para todos os DVDs publicados até agora, neste momento todo os DVDs de alta definição estão efectivamente desprotegidos.

No futuro o consórcio pode editar novos DVDs com listas de chaves diferentes, e esta chave já não servirá. Mas as novas chaves terão que permitir ler os DVDs de agora, e ter chaves diferentes para as mesmas mensagens aumenta as possibilidades de um ataque criptográfico que revele como estas chaves são geradas, terminando de vez com este sistema.

Com um esforço e investimento consideráveis, o consórcio das principais empresas de tecnologia digital colocou firmemente os testículos no torno. E os hackers já encontraram a manivela...

Agradecido ao JCD do Blasfémia pela referência à discussão no Doom9. A lista de chaves de DVDs está aqui: http://www.aacskeys.com/.

Informação e ovos cozidos.

Hoje vou começar por uma definição: informação é o número necessário de bits para especificar um elemento de um conjunto. Um bit é um digito binário, que pode ser 0 ou 1, sim ou não, ligado ou desligado, ou qualquer coisa com duas possibilidades. Especificar um elemento é fazer o que for preciso para que esse elemento possa ser seleccionado do conjunto.

Um exemplo. Imaginem alguém que não joga com o baralho todo tem e tem só 16 cartas. Para especificar uma carta entre as 16 precisamos de quatro bits: com quatro bits podemos fazer 16 combinações (2 x 2 x 2 x 2), e atribuir uma a cada carta. Isto no máximo; podemos precisar de menos bits.

Se repõe a carta e baralha cada vez que tira uma carta precisamos de 4 bits por carta para poder especificar a sequência. Sequências de dez cartas, quarenta bits. Sequências de dez mil cartas, quarenta mil bits. Este é o caso mais aleatório, em que as cartas são menos previsíveis, e em que é preciso mais informação para especificar quais saem.

Se não repõe depois de tirar, cada vez estão menos cartas no baralho. Quando só houver 8 bastam três bits. Com quatro só precisamos de dois bits. E a última é de graça; sabendo quais são as 16 e as 15 que já saíram já não precisamos de mais informação para saber a última. Neste caso precisamos de menos que quatro bits por carta para especificar a ordem em que saem (média de 2.8 bits por carta). E se o baralho está numa ordem predeterminada e só não sabemos onde começa a tirar basta quatro bits para especificar a primeira carta. O resto é à borla porque a sequência é sempre a mesma.

Ou seja, quanto mais aleatório mais informação. Baralhar as cartas aumenta a informação necessária para especificar a carta que sai. Ordenar as cartas reduz a informação. É por isso que quando escolherem uma password devem escolher algo como «Hei5IUnK» em vez de «12345». Sequências aleatórias são as que contém mais informação, e são por isso mais difíceis de adivinhar (e de memorizar...).

Passando ao ovo. A clara de ovo contem um grande número de moléculas de ovoalbumina, proteínas de estrutura bem definida que servem de alimento para o pinto (grande número é um 1 seguido de uns vinte zeros). Para especificar a clara do ovo cru é preciso muita informação, pois é preciso especificar esta estrutura e todas as pequenas variantes, bem como as posições relativas destas moléculas no ovo.

Ao cozer o ovo, o calor faz com que as proteínas se desenrolem e tomem formas ao acaso. O mesmo número de moléculas, mas agora todas emaranhadas e com formas diferentes. Para especificar o ovo cozido ao nível molecular é preciso muito mais informação do que para o ovo cru. Ao desmanchar as proteínas ao acaso o calor aumentou a informação no ovo. É como o espaguete: no pacote está tudo direitinho, arrumado, pouca informação. Cozido no prato é uma confusão, cada um com a sua forma, mais informação.

Para os criacionistas é importante repetir vezes sem conta que as mutações aleatórias destroem a informação, que só um deus pode criar informação genética, que é preciso inteligência para surgir informação. É tudo treta. Qualquer processo que baralhe as coisas aumenta a informação.

Na a evolução equilibram-se factores antagónicos. Processos aleatórios como mutações e recombinações aumentam a diversidade genética numa população. Por outro lado, a selecção natural vai eliminando preferencialmente variantes de menos sucesso, o que aumenta a aptidão da média reduzindo a informação genética. Mas disso falarei melhor na terceira parte da mini série sobre o acaso (quando calhar).

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

A Fúria do Pouco-Poderoso.

OK, mesmo sendo ateu admito que o sismo logo a seguir ao referendo pode não ser coincidência. Mas 5.8 na escala de Richter? O que virá a seguir? Meia dúzia de gafanhotos? Os filhos primogénitos ficarem ligeiramente indispostos?

Charles e o seu ismo.

Faz hoje 198 anos que nasceu Charles Darwin, e já lá vão quase 148 anos desde que foi publicada «A Origem das Espécies». Em ciência isto é muito tempo. Em religião é como se fosse ontem. Talvez seja por isso que os criacionistas insistem em criticar o Darwinismo, quando a biologia já não usa esta teoria há quae um século.

A ciência é um esforço colectivo, que progride pela troca de ideias, crítica mútua, e revisão constante. Alguns indivíduos geniais dão um enorme impulso ao nosso conhecimento, e o conceito de descendência com modificações e selecção natural foi uma ideia genial. Mas nem os génios têm a palavra final ou acertam em tudo.

A teoria de Darwin não explicava muito, nem muito bem. Sem se conhecer o mecanismo de hereditariedade era uma teoria muito incompleta. Sem os modelos matemáticos da genética de populações não era quantificável, apenas dava uma ideia vaga. Não mencionava sequer o que se passa ao nível molecular, como as mutações neutras ou o papel dos mecanismos de replicação do ADN. Nem dizia nada acerca da regulação dos genes ou do desenvolvimento. Muitas das ideias de Darwin são hoje uma parte importante da teoria da evolução, mas são apenas uma parte, muito longe de ser a teoria toda. A vantagem do Darwinismo foi explicar como as espécies surgem da modificação gradual de antepassados mais simples, e substituir com sucesso o antigo modelo de sete dias de abracadabra. Foi o princípio da biologia moderna, e não o fim.

Ao contrário da ciência, a religião vive de dogmas, profetas, e da palavra dos deuses, que é sempre verdade. Perdão, que é sempre Verdade. Para os criacionistas, principalmente os evangélicos, não pode haver revisões, críticas, hipóteses alternativas, ou explicações melhores. Os criacionistas criticam tanto o Darwinismo porque vêm Darwin como um profeta, e a ciência como uma religião. Não percebem que teorias com 150 anos já só têm valor histórico, e que a ciência vive de criticas, correcções, e novas ideias.

Darwin era um homem meticuloso, rigoroso, e de uma enorme capacidade de autocrítica. Grande parte de «A Origem das Espécies» é dedicada aos problemas da sua teoria e aos detalhes que a suportam. Se ainda estivesse vivo ficaria certamente satisfeito com o que corrigimos e acrescentámos ao Darwinismo. Exactamente o oposto do profeta com placas de argila debaixo do braço a falar de bichos com sete cabeças, nove cornos, e cinco narizes.

Parabéns Charles. E perdoa-os, que eles não sabem o que fazem.

E o mistério dos mafaguinhos.

O António Parente pediu-me para explicar porque é que a vida não é um mistério. Tentei fazê-lo no último texto (1): «vida» é uma categoria arbitrária, com critérios flexíveis que aplicamos de forma diferente a coisas diferentes. Tal como o grande, o pequeno, o liso, ou o aborrecido, a vida não é um fenómeno que tenha que ser explicado. É mais uma das formas como classificamos as coisas.

O António não gostou da explicação, mas não explicou porquê. Pior ainda, não esclareceu o que queria dizer com «vida» nem identificou o mistério que queria explicado. É esta a fonte dos mistérios de muitos crentes.

Espiritual. Sobrenatural. Sagrado. Divino. Ou usar palavras com maiúscula. Toda a gente tem uma ideia do que é a verdade, por isso falam da Verdade, que é para não se perceber exactamente o que é. Os mistérios da crença assentam na ambiguidade de termos que não são definidos. Sendo incompreensíveis, não admira que sejam misteriosos.

É o mistério dos mafaguinhos. É apenas o mistério de não se saber de que raio se está a falar. Se fizessem um esforço para definir os termos dariam o primeiro passo para substituir o mistério por compreensão. Mas talvez seja esse o problema... é mais fácil venerar o misterioso que o compreendido.

1- Eu, 11-2-07, O mistério da vida...

domingo, fevereiro 11, 2007

O mistério da vida...

...é como o mistério do grande. Uma formiga com um metro e setenta é enorme (e perigosa). Um homem adulto com um metro e setenta não é nada de invulgar. Um porta-aviões com um metro e setenta é minúsculo (e ridículo). Quando separamos o vivo do não vivo temos também critérios arbitrários, aplicados de forma diferente a coisas diferentes.

O sinistrado está morto se os médicos não conseguem pôr o seu coração a bater, ainda que muitas das suas células continuem vivas durante dias. Aqui a vida é o funcionamento ordenado do organismo como um todo. Uma célula como as nossas, com organelos, núcleo, e uma estrutura interna complexa, classifica-se como morta se essa estrutura se desagrega, embora prossigam inúmeras reacções químicas típicas do metabolismo celular. Bactérias como as do género Clostridium podem formar endoesporos. A bactéria copia o seu ADN, cobre-o com uma camada protectora de proteína e peptidoglicano, e morre. O endoesporo é um grão minúsculo e inerte, onde não se passa nada até que encontre um meio propício, germine, e recrie de novo a bactéria à sua volta. Pode passar milhões de anos nesse estado inanimado, mas mesmo assim chamamos-lhe vivo.

Antigamente pensava-se que a vida era uma propriedade de alguns seres. Até 1828 a química orgânica estudava os compostos que se julgava só seres vivos poderiam criar. Em 1828, Friedrich Wöhler sintetizou a ureia, um composto orgânico, e mostrou que não é preciso o élan vital para nada. Hoje em dia a química orgânica é simplesmente a química de compostos com carbono, venham lá de onde vierem, e o vitalismo acabou no caixote das hipóteses ultrapassadas.

A vida, em si, não é mistério nenhum. Há muitas coisas nos sistemas vivos que nos falta compreender, como a estrutura das proteínas, a origem dos primeiros replicadores, a regulação dos genes e do desenvolvimento embrionário. Mas o mistério vem da sua complexidade, e não de ser vivo ou não. A proteína sintetizada em laboratório ou na bactéria é a mesma coisa, e compreender uma é compreender a outra. Os vírus são igualmente fascinantes quer os consideremos seres vivos quer os consideremos seres inanimados.

A vida não é um mistério porque, tal como «grande», é apenas uma categoria que nós inventámos para ajudar a arrumar as nossas ideias. Não é uma propriedade das coisas. Não é nada que tenha que ser explicado.

sábado, fevereiro 10, 2007

Ao Acaso (parte 2 de 3).

(a parte 1 está aqui)

Diariamente somos atacados por bactérias, fungos, vírus, e outros parasitas. Nos últimos séculos começamos a compreender estes inimigos, combatendo-os com medidas (mais ou menos) inteligentes. Lavar as mãos, esgotos fechados debaixo do solo, agua desinfectada, vacinas, antibióticos, e assim por diante. Mas durante milhões de anos os nossos antepassados sobreviveram a estes perigos sem sequer saber o que eram, graças ao sistema imunitário. O mais interessante destas defesa são os linfócitos, os soldados do sistema adaptativo. Reagem especificamente a cada invasor e guardam memória das doenças que tivemos para reagir mais prontamente quando esses microorganismos voltarem a atacar.

Antes de continuar, pensem: como é que este sistema consegue atacar inúmeros agressores diferentes, sem atacar outras células do corpo humano, e sem qualquer inteligência? Impossível? Por acaso não é.

Todos os dias o nosso corpo cria centenas de milhões de glóbulos brancos (linfócitos) do tipo B. Durante a sua maturação, estas células baralham aleatoriamente o ADN que codifica proteínas (anticorpos) que vão ficar à superfície da célula. Assim, cada célula tem um tipo diferente de anticorpos, gerado ao acaso, e atacará tudo o que encaixe nos seus anticorpos. Mas uma arma apontada ao acaso é um perigo. Por isso estas células ficam retidas durante uns tempos na medula óssea e no timo, onde encontram muitas células e proteínas do corpo. Se os seus anticorpos se ligam a alguma coisa nesta fase a célula B suicida-se. Nove em cada dez morrem desta maneira, à nascença, evitando que sejamos destruídos pelo nosso sistema imunitário. Sem inteligência, apenas por processos bioquímicos de selecção.

Mesmo assim sobrevivem muitas, e a massa total de linfócitos que temos é semelhante á massa do cérebro ou do fígado. São muitas, muitas células, com muitos anticorpos feitos ao acaso. Nesta multidão é quase certo que haja a defesa para qualquer micróbio que aqui entre. É só questão de esperar que, por acaso, um dos invasores esbarre contra a célula certa. E com números tão grandes o acaso torna-se previsível.

Quando uma célula B encontra um alvo que encaixa nos seus anticorpos, começa a reproduzir-se. Cria muitas células parecidas, quase com o mesmo tipo de anticorpos. Parecidas porque já não baralha o ADN, mas não são iguais porque outros mecanismos induzem mutações nos genes dos anticorpos. Isto cria uma população de células B ligeiramente diferentes. Umas serão menos eficazes, mas outras serão ainda mais eficazes que a original. E estas vão se reproduzir mais, criando células potencialmente ainda mais eficazes.

Sem inteligência, há um grandes desperdício. 90% destas células têm que ser eliminadas à nascença, e a vasta maioria das restantes morre ao fim de uns dias sem qualquer utilidade. Tudo isto para que o acaso gere a ínfima minoria que nos salva a vida todos os dias. E nem sempre funciona bem. Diabetes, lupus, reumatismo, muitas doenças devem-se a erros neste processo que fazem o sistema imunitário atacar as células do corpo. Sem inteligência, também não distingue um invasor perigoso duma proteína de amendoim ou de um grão de pólen, e a reacção pode ser fatal para quem é alérgico.

Com inteligência faz-se melhor. Mesmo com uma compreensão limitada, nós já fazemos antibióticos que atacam apenas bactérias e não amendoins, sabemos treinar o sistema imunitário com vacinas, e conseguimos remediar cada vez melhor os erros deste sistema cego. Um ser omnisciente nunca criaria um sistema tão ineficiente. O extraordinário deste sistema é como a combinação de acaso, características herdadas e selecção criou uma solução milhões de anos antes de alguma inteligência compreender o problema.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

E as contas da Pro-Music, versão portuguesa.

Enquanto a RIAA aldraba, a sua congénere portuguesa dedica-se mais a revelar ignorância:

«A partilha de ficheiros através da Internet não pode ser equiparada à cópia de cassetes dum deck para outro em casa. Seria a mesma coisa que comparar alguém que copia manualmente uma carta a uma gráfica que imprime centenas de cópias por minuto da mesma carta - e depois disponibiliza-a absolutamente a todas as pessoas no mundo de graça.»
( ‘Música grátis?’ As respostas)

Um criminoso de 13 anos partilha ficheiros em casa. Tem uma ligação de banda larga e, assumindo que não lhe abafam o p2p com traffic shaping, transmite para outros a 10k por segundo. Um ficheiro mp3 de música tem à volta de 5MB. Demora 500 segundos para o transmitir. Quase dez minutos para uma musica de dois minutos.

Tem razão sim senhor. A partilha não pode ser equiparada à cópia de cassetes. É cinco vezes mais lenta...

E centenas de cópias gratuitas por minuto? Gostava de ter a ligação dele: 10MB/s só de upload, e de graça.

As contas da RIAA.

A associação americana de empresas discográficas tem uma página (aqui) onde explica porque é que os CDs são tão caros:

«Then come marketing and promotion costs -- perhaps the most expensive part of the music business today. They include increasingly expensive video clips, public relations, tour support, marketing campaigns, and promotion to get the songs played on the radio. [...] For every album released in a given year, a marketing strategy was developed to make that album stand out among the other releases that hit the market that year
(ênfase no original).

Ou seja, a maior fatia do que pagamos por um CD é o que eles gastam para nos convencer a comprar o CD.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Hmmm....

Parece que o convívio com o blinólogo Mário Neto deu para aprender bastante sobre este tipo de coisas.

You know the Bible 90%!
 

Wow! You are awesome! You are a true Biblical scholar, not just a hearer but a personal reader! The books, the characters, the events, the verses - you know it all! You are fantastic!

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(obrigado ao Helder Sanches pela referência).

Humor Criacionista.

O humor criacionista deixa muito a desejar, desde a banda desenhada do fundamentalista Jack Chick (1) à «hilariante» animação flash do julgamento de Dover (2), que continua infantil mesmo sem os sons de flatulência que tinha originalmente.

Mas esta rábula nem seria má, se não fosse durar dez vezes mais que o necessário. E se não fosse um vídeo a gozar com um programa de rádio (design inteligente, certamente...):



O Dawkins está bem imitado, e tem uma certa graça de inicio. Se não tiverem paciência de ouvir, o Dr. Terry Tommyrot defende que Dawkins não existe, que não se pode acreditar que ele exista só porque vem como autor dos livros, e que os livros se formaram naturalmente por rearranjo das letras, num processo natural e não guiado pela inteligência.

Mas o que tem piada é que os criacionistas não percebem a ironia desta rábula.

Ninguém duvida que os autores das histórias da bíblia existiram. O problema é o personagem principal, que cria o mundo em sete dias, faz dilúvios e chover sapos, entre muitas outras façanhas. Os criacionistas confundem o Stan Lee com o Homem Aranha...

E é óbvio que um livro é um objecto criado com inteligência. Não há outra forma evidente de fazer as folhas, encadernar, escrever as palavras. Mas uma mosca é diferente. Para fazer uma mosca basta duas moscas e poucos dias, e não é preciso inteligência nenhuma (são moscas, afinal).

Nem faz sentido perguntar quem fez a primeira mosca. Moscas são seres que herdam certas características dos pais, como um Português herdou estas palavras e expressões dos seus pais. Ninguém inventou a mosca tal como ninguém inventou a língua Portuguesa. Por duplicação, herança, e acumulação de pequenas variações, coisas como línguas e espécies vão se formando umas a partir das outras, e todas a partir de antepassados longínquos muito mais simples.

Esta rábula demonstra o contrário do que os criacionistas gostariam. Que lá porque alguém escreve um livro não quer dizer que o que está escrito seja a Verdade. E que as coisas criadas com inteligência e propósito são bem diferentes das que surgem por duplicação e acumulação de modificações.

1- Jack Chick Publications (um exemplo).
2- Overwhelming Evidence

Ao Acaso (parte 1 de 3).

Muitos criticam a teoria da evolução dizendo que o acaso não pode explicar a formação das espécies. Isto revela o maior problema para a teoria da evolução: a ideia que não é preciso perceber nada do assunto para poder criticar.

Nesta mini-série vou falar do acaso em processos físicos, químicos, e biológicos. No último episódio pretendo mostrar que a evolução é muito mais que o acaso, mas nos primeiros dois veremos que mesmo o acaso é capaz de muita coisa quando lidamos com o número de moléculas e átomos que há em sistemas macroscópicos.

Um pneu, por exemplo. Lá dentro há moléculas a deslocar-se aleatoriamente e a bater contra as paredes da câmara de ar. Mas com 10,000,000,000,000,000,000,000 moléculas, o acaso do movimento de cada uma torna-se numa pressão constante, regulável, e extremamente previsível.

Um fenómeno mais interessante é a gota de sumo ou de óleo a cair num copo de água. A gota de sumo é quase só água, e as moléculas da gota rapidamente se espalham pelo copo. Por acaso. Há muito mais configurações possíveis para as moléculas quando estão espalhadas do que há quando estão juntinhas numa gota. Se uma configuração é seleccionada ao acaso, o mais certo é cair no grupo das «espalhadas» que no grupo das «juntinhas em gota».

Curiosamente, passa-se o mesmo com a gota de óleo. Mais ou menos. As moléculas de água são como a cabeça do Rato Mickey, com um oxigénio na cara e átomos de hidrogénio nas orelhas. Como o oxigénio atrai mais os electrões, essa parte da molécula é negativa, cada hidrogénio tem uma carga positiva, e os átomos de hidrogénio estão mal presos. Podemos ver um copo de água como um grande número de átomos de oxigénio a roubar átomos de hidrogénio uns aos outros, como miúdos a lutar pelos brinquedos.

Uma molécula de água rodeada por outras moléculas de água pode-se orientar de muitas maneiras diferentes para interagir desta forma com as suas congéneres. Mas se está encostada a uma molécula do óleo, para esse lado já não se pode virar. Uma molécula de óleo restringe as possibilidades às moléculas de água que a rodeiam.

Se por um lado há mais configurações possíveis com as moléculas de óleo espalhadas pelo copo do que com as moléculas de óleo juntas numa gota, por outro lado as moléculas de óleo espalhadas reduzem as configurações possíveis das moléculas de água. O resultado é que há mais configurações acessíveis às moléculas todas com o óleo todo junto numa gota do que com o óleo espalhado pelo copo. Seleccionando aleatoriamente uma configuração o mais certo é calhar numa das «juntinhas em gota».

É o acaso com um cheirinho de interacções que regula todo o metabolismo, a formação de membranas celulares, a regulação dos genes, e tudo isso. Até a cozedura do ovo é principalmente por acaso. Quando aquecemos o ovo damos às moléculas a energia que precisam para aceder outras configurações. Como há muito mais configurações na categoria «ovo cozido» que na categoria «ovo cru», quando arrefece, e por acaso, vai acabar cozido. Tal como o acaso do pneu, são acasos extremamente previsíveis.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Web 2.0

Um pouco longo, mas vale a pena.



Via Sivacracy.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Adeus ao Aborto.

Foi um bom tema. Pejado de tretas, e que deu origem a muitas discussões interessantes. Tenciono voltar aqui às questões da ética, do que é ser pessoa, do valor da vida, e dessas tretas conforme me dê na gana. Mas parece que com o referendo tão perto o aborto perde interesse. Pelo menos para todos os que já passaram as 10 semanas e que, ganhe quem ganhar, já se safaram.

Durante a animada cavaqueira fui acusado de incoerência e hipocrisia, mas, citando Calimero, foi uma injustiça. Não é hipocrisia dar o mesmo valor ao feto e ao recém nascido. Nem um nem outro tem o discernimento ou riqueza subjectiva que torna a existência intrinsecamente valiosa. Não valem pelo que são, mas pelo que vão ser.

Nem é incoerente que a pena pelo aborto seja diferente de outras. Crimes diferentes, em condições diferentes, têm penas diferentes. É assim a lei, e acho bem que seja, mesmo quando a vítima vale a mesma coisa. Se a mãe mata o recém nascido é infanticídio, um a cinco anos de prisão. Se um estranho mata o mesmo bebé, é homicídio, oito a dezasseis anos de cadeia. Se o pai da criança o mata, é homicídio qualificado, doze a vinte e cinco anos de prisão. Não é incoerente defender que nesta tragédia toda a criança vale exactamente o mesmo. E se o matam às 10 semanas, de zero a três anos de prisão. Discutível, certamente. Incoerente, nem por isso.

E é preferível tratar como pessoa algo que não é do que ao contrário, tratar como não o sendo alguém que é pessoa. A errar, erremos por incluir mais seres nesta categoria. Se isso implica não comer bifes de vaca ou costeletas, ou se exige condenar por homicídio quem matar baleias ou gorilas, então que seja. A mim não precisam convencer.

Acima de tudo, isto é um problema complexo que não pode ser decidido de uma vez, por sim ou não, a contar as mãos no ar. Não me chocava experimentar-se a despenalização, como acto administrativo ou por um decreto lei. Penso que é uma solução pior que o problema, mas posso estar enganado, e só na prática é que se poderia saber ao certo. Mas tinha que ser de uma forma reversível, para que pudéssemos voltar atrás e tentar outra coisa no caso (provável) de ser asneira.

O que vamos fazer no dia 11 é um disparate. Quando a voz do povo proclama o aborto como um direito é quase impossível voltar atrás, mesmo que a asneira se torne evidente mais tarde. Há quem critique o não por deixar tudo na mesma. Mas é uma opção melhor que um salto de fé no sim.

Coisas e Categorias.

O problema dos universais é uma discussão metafísica antiga. Se eu tenho uma rosa na mão e digo «esta rosa» é fácil perceber o que «rosa» quer dizer nesta frase. Refere o objecto concreto que eu tenho na mão. Mas se falo numa grande vitória, na incompetência do governo, ou na raça humana, os termos «vitória», «incompetência», e «raça humana» não referem entidades concretas. São universais, e têm dado trabalho aos filósofos desde a Grécia antiga. As opiniões vão do realismo de Platão, que defendia existirem realmente coisas como a vitória e a incompetência – as Formas – até ao nominalismo de Roscelin, que chamava e estas palavras «flatulência vocal». Mas deixemos os filósofos entretidos. Na prática ninguém confunde as rosas com a incompetência do governo.

O problema surge quando a mesma palavra pode ser universal ou particular. A palavra «rosa» é diferente em «esta rosa na minha mão» e «a rosa é uma flor com espinhos». No primeiro caso refere uma coisa que existe, no segundo caso designa uma categoria. É uma abreviatura para um conjunto de critérios que separa coisas em dois grupos: rosas, e o resto. Esta diferença é importante porque enquanto que a rosa-coisa é um objecto real, a rosa-categoria é uma ficção, inventada por quem decidiu classificar certas coisas como «rosa».

E esta confusão tem efeitos sérios. Por exemplo, as pessoas são seres concretos com os quais interagimos todos os dias. Isto dá uma solidez ilusória ao termo «pessoa» quando dizemos que um chimpanzé não é pessoa. Aqui «pessoa» já não refere uma realidade objectiva, refere um critério que inventámos para classificar coisas. Pode ser injusto que o chimpanzé se lixe por causa disso.

Os programas de computador são outro exemplo. O padrão na superfície óptica de um CD é concreto e real. A magnetização do disco rígido ou a distribuição de carga na memória RAM, tudo isso é real. Mas quando decidimos agrupar estas entidades numa categoria e chamar-lhe «Microsoft Windows» já estamos a referir um conceito abstracto e arbitrário. Os critérios que classificam umas coisas como «Microsoft Windows» são uma ficção, não são coisas concretas e reais.

O mesmo para os filmes, textos, imagens, e músicas. A propriedade intelectual é uma confusão entre coisas e categorias. Faz sentido ser dono de uma rosa, mas não do que é ser rosa.

sábado, fevereiro 03, 2007

Vida a juros.

O debate sobre o valor da vida tem sofrido pela ambiguidade do termo. Imaginem que tenho duas contas no banco, cada uma com 5€. Uma das contas não dá juros, a outra dá juros altíssimos e os 5€ serão um milhão de euros num ano. Qual o valor de cada conta?

Se olharmos para o valor neste momento, valem 5€ cada uma. Mas um investidor sensato não venderia a segunda conta nem por mil euros. Cinco euros com aqueles juros valem muito mais que cinco euros.

Concordo com quem defende que o valor do embrião aumenta gradualmente com o desenvolvimento, tal como o valor em caixa aumenta com os juros. E cinco euros são cinco euros, seja em que conta for. Um embrião de humano tem, nesse momento, o mesmo valor que um embrião de cão. O embrião de cão até tem juros mais altos, inicialmente. Dez semanas depois da concepção já é um cachorro. Vinte semanas após a concepção, quando o feto humano nem sequer tem pulmões funcionais, já o cachorro brinca, pede, explora, sente, e, à sua maneira, pensa. Nesse momento o valor do cachorro é muito superior. Mesmo aos 9 meses o humano recém-nascido é muito inferior ao jovem cão, mas nos meses que se seguem começa a recuperar terreno e ultrapassa-o. Como investimento a longo prazo o humano é muito mais valioso.

E esse é que é o valor da vida. Não o dinheiro em caixa às 10 semanas, mas o retorno esperado pelos juros acumulados durante as décadas que dura o investimento. E ao contrário da analogia da conta a juros, a vida não vale para o investidor que decide se fecha ou não fecha a conta. A vida vale para quem a vive. É falso quando dizem que a despenalização não obriga ninguém ao aborto. O mais prejudicado por esta decisão insensata não participa voluntariamente.

Algoritmos e Consciência.

Nisto da mente e corpo há uma longa tradição de dualismo, a ideia de duas substâncias, uma física e a outra pensante. É atraente porque torna a mente algo independente do corpo. A sua encarnação mais recente é ver a mente como software a correr no hardware do corpo, a consciência como um algoritmo.

O termo «algoritmo» vem do nome do matemático árabe Al-Khowarizmi, que no século IX publicou um tratado sobre a resolução de equações. Aquilo que aprendemos na escola: mudar de sinal quando passa para o outro lado, o que multiplica passa a dividir, até isolar a incógnita de um lado da igualdade. Podemos estender o conceito a outras coisas, por exemplo ao algoritmo para bombear sangue, ou mesmo o algoritmo da consciência. Mas o algoritmo não é o processo; é a descrição do processo. Vejamos a diferença.

O algoritmo de bombear sangue é qualquer coisa como relaxar o átrio e o ventrículo, contrair o átrio, fechar a válvula tricúspida, e assim por diante. Mas é o coração que bombeia o sangue, não o algoritmo. Para curar um doente cardíaco precisamos de uma máquina capaz de fazer o que o algoritmo descreve, seja um coração transplantado ou um coração mecânico. Um algoritmo novo não cura ninguém.

Um dia vamos compreender o algoritmo da consciência como compreendemos o de bombear sangue, e poderemos construir máquinas conscientes como hoje fazemos corações mecânicos. Mas o que bombeia ou pensa são as máquinas; o algoritmo apenas descreve o processo. Não faz sentido separar o processo de consciência da máquina que o executa, por muito atraente que seja a ideia.

É atraente imaginar que eu sou um programa a correr no meu cérebro. Quando o cérebro estiver degradado eu posso transferir o programa para outro cérebro e continuar a existir aí. É a versão moderna da alma imortal. E é o mesmo disparate numa embalagem mais atraente. Quando substituo a bomba do poço por uma nova é disparate dizer que transferi o “bombear” de uma máquina para a outra. O bombear, tal como a consciência, é a acção da máquina. Não é uma coisa, nem faz sentido dizer que se transfere seja para onde for.

Dois clones perfeitos do António, que pensem da mesma maneira, com as mesmas memórias e ambos convencidíssimos que são o António, não são o António a viver em dois corpos. São dois Antónios. Um cérebro que funcione mal e às vezes pense que é a Ana, outras a Cassilda, e outras o Gervásio, não são três pessoas a habitar o mesmo corpo. É esquizofrénico.

A consciência é uma acção. O ser consciente é a máquina que executa a acção, seja uma máquina biológica ou outra qualquer. Era bom se o dualismo fosse verdade, mas não é. Nem sequer é falso. Simplesmente não faz sentido.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Palha a palha

Todos concordamos que é inaceitável que se mate por opção outro ser humano. A constituição Portuguesa até diz claramente: «A vida humana é inviolável.» (Art. 24º). Não é a personalidade jurídica, ou a pessoa, ou a actividade cerebral. É a vida humana, a vida de um organismo do género humano. Se a pergunta fosse despenalizar a morte do filho por opção da mãe, todos responderíamos não. Não era preciso argumentar sequer. O caso geral é universalmente condenado.

O que os apoiantes do «Sim» propõem é que o feto até às dez semanas é uma excepção. A sua vida, apesar de humana, não é inviolável. Neste caso a mãe já pode matar o filho se quiser. Mas isto é preciso argumentar, porque não é óbvio que assim seja.

Primeiro têm que justificar ser legítimo decidir que não é pessoa aquele que tem uma vida como a nossa pela frente e que está como todos já estivemos. Nisto tenho que ser muito exigente. Todos os exemplos em que uns decidiram que outros não mereciam direitos de pessoa foram injustiças terríveis. É difícil compreender como aceitaram a escravatura, a discriminação das mulheres, o infanticídio, o trabalho infantil, as castas sociais, e tantas injustiças destas. Provavelmente na altura fazia sentido. Era moderno. Era o progresso. Era pela liberdade (de uns, pelo menos). Não me dão razões para aceitar o seu juízo que às 10 semanas eu não valia nada. Como diria um dos meus filhos: «Eh! Grande lata!»

Depois (e só depois) de estabelecer que é legítimo decidir isto, têm que demonstrar que o feto com 10 semanas é mesmo uma excepção, e que é aceitável matá-lo por opção da mãe. Nisto também tenho que ser exigente. Querem que eu aprove a morte de vinte mil seres da nossa espécie por ano. Cinquenta por dia. Os argumentos da personalidade jurídica, da actividade cerebral, ou da dependência biológica são insuficientes para dar o meu aval a qualquer mãe que queira matar um filho que é como eu fui.

Palha a palha tentam desmontar um espantalho, vendo os argumento pelo «Não» como se o debate fosse simétrico. Como se à partida não se assumisse nada acerca da vida humana ou da legitimidade de a terminar por opção. É falso. Todos consideramos a vida humana um valor entre os mais altos, e só aceitamos e a liberdade de matar em casos extremos e nunca «por opção». Neste referendo não se pode votar para onde pende o argumento mais atraente. A assimetria da questão exige que só vote «Sim» quem tiver mesmo certeza, para além de qualquer dúvida razoável, que o feto de 10 semanas não conta e que é legítimo mata-lo só porque a mãe quer. Só com completa certeza é que se pode aprovar a morte de tantos seres humanos por opção das mães.