quinta-feira, maio 31, 2007

Crenças, crenças, e crenças.

Nas discussões de religião e ateísmo fala-se sempre de «crença». O que dá confusão, porque esta palavra pode significar várias coisas diferentes. Num sentido, a crença é ubíqua. Cremos em tudo o que sabemos, julgamos, ou opinamos. Esta crença é apenas aceitar uma proposição como verdadeira. Não precisa exigir certezas. É assim que creio que Deus não existe: se ele me tocar à porta com o Pai Natal e o Super-Homem estou disposto a rever várias crenças. Creio e descreio conforme a realidade se revela.

Esta crença não se opõe à dúvida. Inclui a dúvida, pois é sempre sujeita a revisão. Não é apenas dúvida, como o agnosticismo extremo que só responde «não sei», nem é a negação teimosa que diz mal de tudo, como os velhos dos marretas. É uma opinião que tomamos como correcta mas aceitamos que pode estar errada. A crença boa é a crença que dá margem para dúvidas e se ajusta às evidências. Muitos crentes religiosos argumentam que os ateus também têm crenças. Pois temos. Temos destas, como toda a gente tem.

«Crença» pode também ser uma opinião sem dúvidas. Esta não é boa porque é incorrigível. É comum em ideologias políticas, no futebol, ou nas tradições. Sempre que nos empenhamos totalmente numa posição, ou quando já nem nos ocorre que possa estar errada, caímos nesta crença teimosa que se entala num preconceito. Assume-se certa à partida, e daí já não sai.

Mas a crença teimosa não é a pior de todas. A pior de todas é a crença que se vê como virtude. Como o racismo extremo. É uma opinião (errada) acerca de algumas características humanas, é tida como certeza absoluta mas, mais ainda, é vista como uma virtude. Para o racista, o racismo é um dever moral. É assim que deve ser, e é moralmente errado não ser racista.

A crença religiosa também é assim. Não é a crença de todos os religiosos, porque há muitos religiosos com formas diferentes de crer. Mas a religião apregoa a virtude da certeza absoluta. Os crentes fieis são recompensados. Os que renegam a crença cometem o maior pecado. São traidores. A dúvida é má e condenável.

Esta crença é a pior por duas razões. Por um lado, confunde opinião com desejo, que tem o sentido oposto de ajuste à realidade. Vou dar um exemplo do filósofo John Searle. Vou às compras e levo uma lista do que quero comprar. O meu objectivo é ajustar a realidade à lista. Se ponho no cesto uma lata de feijão e vejo que na lista está «lata de ervilhas» não vou riscar a lista e escrever «feijão». Vou trocar de lata.

O espião que me segue anota tudo o que eu compro e cria uma lista igual à minha. Mas a lista dele tem o sentido inverso de ajuste à realidade. Se ele escreve «feijão» e repara que eu troquei o feijão por ervilhas, não vai mexer sorrateiramente no meu cesto. Vai corrigir a lista dele. O seu objectivo é que a sua lista se conforme a realidade. O meu objectivo é que a realidade se conforme à minha lista.

A religião confunde os dois. O querer crer não faz sentido. A crença deve-se ajustar à realidade, mas a fé religiosa não permite ajustes. E o desejo deve ser algo que tentamos realizar, mas não podemos fazer com que Deus exista. A fé é um impasse fútil do desejo que não se realiza e da crença que não se ajusta.

Mas o pior é considerar que esta confusão é uma virtude. Chamam-lhe uma realidade mais elevada. A Verdade, o Amor, e outras tretas. E consideram que é um dever manter este estado; a apostasia é sempre dos piores crimes em qualquer religião. E que é um dever educar os filhos desta forma, e entalá-los na mesma confusão.

É isto que me separa mais da religião. Não é a proposição «Deus existe». Acho que é falsa, mas mudarei de opinião se as evidências justificarem. Nem é o problema da certeza absoluta. Já me enganei vezes demais para ter certezas absolutas, mas como duvidar requer algum esforço pode ser que um momento de fraqueza ou aflição me faça esquecer a dúvida. Mas só com uma grande pancada é que consideraria uma virtude ter tal certeza sem qualquer evidência.

segunda-feira, maio 28, 2007

Treta da Semana: Kevin Trudeau

Veterano da publicidade enganosa, Kevin Trudeau é autor do livro «Curas Naturais que eles não querem que você saiba», vendido em Portugal pela gigashoping.tv (1). Há uns meses o mesmo canal anunciava outro produto de Trudeau, o Cálcio de Coral (2). Por causa deste último, em 2004 Trudeau foi processado pela Federal Trade Comission, pagou dois milhões de dólares e ficou proibido de anunciar mais produtos ou serviços excepto livros ou publicações informativas (3). É por isso que já não vende banha da cobra. Agora vende livros acerca da banha da cobra.

O veredicto de 2004 deveu-se à publicidade enganosa do Cálcio de Coral, anunciado como cura para todas as formas de cancro, esclerose múltipla, doença cardíaca e outras. Esta publicidade também violava uma ordem do tribunal de 1998 que proibia Trudeau de fazer afirmações infundadas acerca dos benefícios ou eficácia dos seus produtos. Cá em Portugal, o Cálcio de Coral vende-se sem problema, mesmo afirmando no site da gigashopping (2) que «Previne eficazmente o cancro, doenças cardíacas, Lupus e diabetes». É treta, e sai caro. €79.89 por três frascos de calcário em comprimidos não é bom negócio.

O cadastro de Trudeau começa em 1990, quando foi condenado a dois anos de prisão em 1990 por várias burlas, fazendo-se passar por médico e passando cheques falsos (4). Agora, Kevin Trudeau revela as curas naturais que «eles» não querem que se saiba. Ou melhor, diz que revela. No anúncio, Trudeau diz que há várias curas naturais para o herpes. Uma «erva do sudoeste americano», uma «alga marinha», e «duas outras misturas naturais que em 30 dias destroem o vírus do herpes». No livro a conversa é outra: «Mesmo que eu conheça uma cura para o herpes, não posso dizer» (página 69). Excelente conselho, por apenas €39.99. E na página 144 Trudeau explica ao leitor como ficar a saber o método que ele usou para deixar de fumar. É ir ao site www.naturalcures.com e inscrever-se. São só mais 9.95 dólares por mês.

Trudeau ganha milhões a vender curas que não funcionam, alegando que as curas que ele vende são suprimidas pela industria farmacêutica porque não dão dinheiro e, ao curar os doentes, estragam o negócio dos medicamentos. O livro amontoa seiscentas páginas de tretas numa história de conspiração em que «eles» fazem o impossível, o incrível, e até o ridiculamente idiótico, para impedir que heróis como Trudeau dêem ao mundo curas milagrosas e, é claro, 100% naturais. Tal é o poder desta conspiração que conseguiram forçar o desgraçado do Trudeau a vender os detalhes em separado. O livro são 600 páginas de publicidade.

Mas talvez as curas funcionem. Um dos comentários acerca do livro, na contracapa, é de Herbert Ley, médico, antigo comissário da FDA, e falecido três anos antes do livro ser publicado. Ou as curas são mesmo excepcionais, ou este Trudeau é um aldrabão de primeira.

1- Página do livro.
2- Coral Calcium.
3- Stephen Barrett, Analysis of Kevin Trudeau's "Natural Cures" Infomercial (2004).
4-Wikipedia, Kevin Trudeau

sexta-feira, maio 25, 2007

Reciprocidade.

Neste debate sobre a ética (1) houve quem propusesse que a ética tem que ser recíproca. Como, segundo dizem, os animais não têm deveres, nós também não temos deveres para com os animais. Que confusão. Dou como exemplo este parágrafo do Ricardo Alves (2):

«O Ludwig Krippahl insiste em que uma ética humanista implica deveres para com animais que não são obrigados a reciprocar deveres para connosco[...]. O exemplo que dá, o do cão, é mauzito: os cães não aderem a um dever, submetem-se ao dono. Enquanto não forem capazes de altruísmo desinteressado, ou de reparar um erro, sugiro que os deixemos de fora de qualquer humanismo. Não podemos reconhecer direitos a quem nunca os reconhecerá a nós.»

Nós exigimos que os animais cumpram certos deveres. O dever de não nos atacar, ferir, matar, e assim por diante. Os que não cumprirem são eliminados ou presos. É certo que os animais não reconhecem esses deveres da mesma forma que nós, mas um ladrão que não reconheça o dever de respeitar a propriedade alheia também vai para a cadeia. O direito que eu tenho que não me roubem nem me mordam é um dever que a sociedade impõe ao ladrão e ao cão, quer reconheçam quer não. Porque direitos e deveres são a mesma relação vista de lados diferentes.

É só esta a reciprocidade, do meu direito ser o dever dos outros para comigo e o meu dever ser o direito que outros legitimamente reclamam de mim. Mas não implica a reciprocidade do meu dever para com os outros ser igual ao dever dos outros para comigo. A reciprocidade do toma lá dá cá nem é ética, em geral. O suborno e o comércio são reciprocidade mas não comportamento ético. O Ricardo até nota isto ao salientar o «altruísmo desinteressado».

Pois é pela importância do altruísmo desinteressado que não se pode reduzir a ética ao comércio de direitos e deveres. Quando a velhinha se estatela à minha frente não é ético ponderar o que ela pode fazer por mim em troca do meu auxílio. Eticamente, o que importa é o que eu posso fazer por ela. É essa a consideração de um altruísmo desinteressado. O que o Ricardo chama ética é egoísmo interesseiro, dar aos animais apenas os direitos que eles nos derem a nós.

E até desta transação pouco ética quer excluir os animais: « os cães não aderem a um dever, submetem-se ao dono». Não me parece. Por muito inteligente que o animal seja, não sabe o que é propriedade privada. Para o cão, ele submete-se a um superior e não a um dono. Como fazem os lobos, os cavalos, os chimpanzés. E nós. A ética do rei manda é quase tão má como a ética do toma lá dá cá, mas tem também um rudimento do dever. O cão sente esse dever e o dono exige do cão esse dever, tal como nós sentimos quando obedecemos a uma autoridade ou exigimos quando usamos da nossa autoridade.

O segundo maior problema na proposta do Ricardo é «Não podemos reconhecer direitos a quem nunca os reconhecerá a nós». Claro que podemos. Ética é precisamente isso. Para reconhecer que a velhinha tem o direito que eu a ajude basta que eu reconheça o meu dever de a ajudar. Não é ela que tem que reconhecer, sou eu. Mesmo que ela esteja senil e incapaz de me reconhecer qualquer direito. É o tal altruísmo desinteressado de fazer o bem pelo bem em vez de fazer o que me dá mais jeito.

E o maior problema, normalmente implícito e disfarçado, sobressaiu numa resposta que o Ricardo deu a um leitor do Esquerda Republicana (2). Se só os humanos têm direitos porque têm capacidade de retribuir, de altruísmo, e essas coisas, como fazer com os deficientes mentais, perguntou o leitor. Simples, segundo o Ricardo: «os humanos com deficiências mentais pertencem à nossa espécie». Afinal, os outros animais só não têm direitos porque não são da nossa espécie. O resto do argumento é mera decoração.

1- Eu, 18-5-07, Olé! à ética humanista.
2-Ricardo Alves, 23-5-07,Reconhecer direitos sem reciprocidade? Nããã...

O meu ateísmo é:

You scored as Scientific Atheist, These guys rule. I'm not one of them myself, although I play one online. They know the rules of debate, the Laws of Thermodynamics, and can explain evolution in fifty words or less. More concerned with how things ARE than how they should be, these are the people who will bring us into the future.

Scientific Atheist

92%

Apathetic Atheist

67%

Militant Atheist

42%

Spiritual Atheist

42%

Angry Atheist

33%

Theist

25%

Agnostic

17%

What kind of atheist are you?
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É engraçado que tive mais pontos no teísmo que no agnosticismo. Acho que estou mais disposto a considerar a hipótese de haver um tal deus (mesmo que não o queira como meu deus) do que me ficar pelo eterno «não se sabe».

Obrigado ao Helder Sanches pela dica.

quinta-feira, maio 24, 2007

A dúvida como método.

«Truth is something that we can attempt to doubt, and then perhaps, after much exertion, discover that part of the doubt is unjustified.»

Niels Bohr



Muitas vezes vejo proposto que a realidade varia conforme o que acreditamos. Falam-me de coisas que existem só para os crentes, ou de verdades para uns que são falsas para outros. É um abuso dos termos e uma grande confusão.

Em certos casos «existe» e «verdade» parecem problemáticos: é verdade que Sherlock Holmes vivia em Baker Street, e existe o cargo de presidente da Republica. Mas o problema desaparece se percebermos o contexto. «Verdade» como concordando com uma ficção em particular no primeiro caso, e «existe» como convenção social no segundo. Mas os crentes não propõem a fé como ficção nem Deus como convenção social. Propõem algo mais substancial, que o seu deus existe mesmo, de verdade.

Mas é absurdo que a realidade seja uma para uns e outra para outros. Nunca foi verdade que a Terra é plana. O Pai Natal não existe. Nem para uns nem para ninguém, e quem acredita o contrário apenas se engana. A fé não dá ao crente uma realidade alternativa isolada da realidade dos restantes. Pode dar uma ilusão, mas a crença é independente da realidade. Só com esforço é que podemos fazer com que crença e realidade concordem.

Moldar a realidade às crenças dá para pouca coisa. Dá para inventar rituais, fazer estátuas e chamar-lhes deuses, ou desperdiçar tinta a escrever tratados teológicos, mas não faz com que exista um ser omnisciente e omnipotente. Impor a crença à realidade só cria deuses a fingir. Deuses de verdade, e tudo o que não conseguimos simplesmente inventar, podemos apenas tentar conhecer. E no saber é a realidade que manda na crença.

O caminho para o conhecimento é tortuoso e cheio de obstáculos. Quem vai a direito movido pela fé entala-se no primeiro buraco que encontrar. Para compreender a realidade temos que usar a dúvida em vez da crença. Como o cajado do caminhante, testando se o solo é firme, se o charco é fundo, se a pedra está solta. E sem medo que a descrença estrague a realidade. Pelo contrário. Quanto mais real, mais resiste à nossa dúvida. O Pai Natal é frágil; uma pergunta bem posta e desvanece-se. O dinheiro é pouco mais resistente. Se a maioria deixa de acreditar que papel com números tem valor lá se vai toda a riqueza. Mas podem duvidar à vontade da força da gravidade que não lhe faz diferença nenhuma. Até podemos definir realidade e verdade como aquilo que resiste à descrença.

Niels Bohr aconselhava os alunos a interpretar o que ele dizia como perguntas e não como afirmações. A melhor forma de compreender a realidade é mesmo fazendo perguntas. O agnóstico, convicto que não há respostas, não sai do ponto de partida. O crente, fiel à primeira ideia que lhe ocorre, lá fica no seu buraco a imaginar que a realidade dele é diferente da dos outros. E o céptico usa a dúvida como método para abrir caminho, questionando o que pensava ser verdade, descobrindo coisas novas, compreendendo cada vez melhor onde está e o que está a fazer.

É este método da dúvida que nos dá as vacinas, a agricultura moderna, os computadores, e toda a sociedade onde agnósticos e crentes podem insistir em conforto que não sabemos nada ou que temos certezas absolutas.

segunda-feira, maio 21, 2007

Ética e Humanismo.

Na sequência da questão da tourada (1), o Ricardo Alves propõe que numa ética humanista «é necessário explicitar quem são os sujeitos dos direitos e deveres resultantes. Mas concordo com o Ludwig que nenhuma ética humanista pode ser centrada em seres divinos imaginários, e portanto proponho que o humanismo seja centrado no animal humano, à exclusão de animais não humanos»(2). Infelizmente, esta proposta nem é ética nem é humanista.

É comum confundir «homocentrismo» com humanismo, mas regras centradas no ser humano já vêm desde as tentativas teístas de criar uma ética. Deus criou o Homem à Sua imagem e deu-lhe domínio sobre os animais. O humanismo não é apenas tirar Deus e deixar o resto. E, ao contrário do que o Ricardo propõe, a ética não começa tirando do chapéu os nomes dos que têm direitos e dos que ficam de fora.

A origem da ética é a percepção nem tudo é legitimo. Além das nossas capacidades, também os deveres limitam os nossos actos. A ética nasce neste constrangimento do posso mas não devo, ou do devo mas não quero. O direito vem depois, do outro lado do dever. Eu tenho um direito sempre que alguém tem um dever para comigo. O dever de não me matar, de me dar assistência médica, de me deixar tirar uns dias de férias por ano.

É isto que determina quem tem deveres e direitos. Tem deveres aquele que distingue entre o posso do devo. E tem direitos aquele em relação ao qual alguém tem deveres. O Ricardo comete outro erro ao assumir que direitos e deveres implicam uma relação recíproca e simétrica: «não podemos definir “direitos dos animais” da mesma forma que não podemos enunciar “deveres dos animais”». Não tem nada a ver. Podemos definir direitos dos recém nascidos pelos deveres que os adultos têm para com eles. E os recém nascidos não têm deveres porque não sentem a diferença constrangedora entre o que podem e o que devem fazer.

E outros animais têm deveres. Os cães, por exemplo. Quem chega e vê o cão de orelhas baixas a esconder-se num canto sabe logo que ele fez asneira, e que ele sabe que fez asneira. O cão não tem um conceito filosófico de dever, não é capaz de se exprimir ou argumentar sobre ética, mas sente a diferença entre posso e devo. E nós reconhecemos isso, tanto que o ensinamos, castigamos, recompensamos, e esperamos que obedeça. Que cumpra o seu dever. Quem tem uma tarântula ou uma cobra como animal de estimação trata-a de forma muito diferente. Essas não têm sequer a noção mais rudimentar de dever.

A ética humanista é ética porque parte desta pergunta do que devo fazer e procura uma solução que seja universal, respeitando a subjectividade de cada ser sem favoritismo. E é humanista porque percebe que o nosso constrangimento ético, esta sensação de dever, nos surge por sermos humanos e não por imposição divina. Mas isto não exige que a ética seja exclusivamente humana, nem nos livra de deveres para com outros seres. As baleias e os chimpanzés não fazem manifestações nem escrevem cartas de protesto nos jornais, mas não devemos ignorar que são tão capazes de sofrer como nós somos, e quase tão capazes de se reconhecer como indivíduos como nós nos reconhecemos.

Muitos animais têm o rudimento de ética que é sentir a diferença entre aquilo de que são capazes e aquilo que está certo. Os critérios que seguem são critérios intuitivos, instintivos ou aprendidos, que não conseguem explicar. Mas o mesmo se passa connosco, em muitos casos. Mesmo o nosso discurso ético é mais desculpas depois do facto que verdadeiras justificações racionais.

E alguns animais, como os chimpanzés, são capazes do passo seguinte, de considerar o que o outro sente. De se revoltar contra uma injustiça ou proteger os mais fracos. Nós temos estas capacidades mais desenvolvidas. Podemos abstrair, considerar regras éticas universais e independentes de um ponto de vista ou de discriminações arbitrárias. Podemos argumentar e trocar ideias, e temos mais possibilidades e mais poder. E, por isso, temos mais responsabilidade e deveres. Mas não é legitimo recortar da ética os outros animais só porque defendemos algo chamado «humanismo».

1- Eu, 18-5-07, Olé! à ética humanista.
2- Ricardo Alves, 21-5-07, O humanismo aplica-se aos bois?
Já agora, fica aqui o link para um artigo do Peter Singer, Taking Humanism Beyond Speciesism.

É racional ser agnóstico?

O Helder Sanches perguntou se o agnosticismo é mais racional que o ateísmo (1). A interpretação mais comum é de ser o problema da existência de alguém muito poderoso que criou o universo. Já abordei isto em Dezembro (2), e aqui resumo só o argumento: se o agnóstico exige mais evidência para rejeitar esta hipótese e se é consistente nas suas exigências, também não poderá formar opiniões acerca de quase tudo, desde o Pai Natal à eficácia das vacinas. Já sabemos mais que o suficiente para rejeitar as crenças religiosas com grande confiança, e não é por não ter certeza que ficamos impedidos de chegar a conclusões.

Mas o teísmo e o ateísmo não diferem apenas na numa proposição acerca da existência de deuses. Os deuses existe, de certa forma. Sempre que alguém se ajoelha e reza perante uma estátua, há um deus. Ou a estátua, ou a pessoa de quem fizeram a estátua, ou um pensamento na imaginação do crente, mas alguma coisa é objecto dessa adoração religiosa. Um deus.

E eu não tenho deuses. Objectivamente, acho que o tal ser todo poderoso não existe. Não me parece provável que tenha vindo á Terra morrer e ressuscitar para perdoar os nossos pecados. Tudo isso me parece uma grande treta. Mas tudo isso é circunstancial. Calhou o universo ser assim, ter surgido por si próprio e não conter seres divinos, mortos que ressuscitam, e coisas dessas. Mas pouca diferença fazia se fosse de outra forma.

O fundamento do meu ateísmo é que eu não tenho deuses. Não há nada que eu venere. Mesmo que esse ser existisse não era por ser todo poderoso ou criador do universo que me ia pôr de joelhos a pedir-lhe favores, perdão, ou a louvar o seu nome. Quem vive a minha vida sou eu. Quem é responsável pelos meus actos sou eu. Quem tem que corrigir as asneiras que eu faço sou eu. Quem tem que zelar pelo meu bem e pelo bem dos que me são queridos sou eu. Quem é o juiz dos meus actos sou eu.

É esta a diferença fundamental entre ser ateu ou crente. Seja o que for que exista por aí, cada um de nós tem que decidir se vai ter deuses a quem pedir, queixar-se, louvar e procurar aprovação, ou se vai viver a sua vida por si, pelos seus valores, à sua responsabilidade. E não me parece racional dizer, ah, não sei, nunca se tem a certeza...

1- Helder Sanches, 18-5-07, Debate Interblogues: Será o Agnosticismo mais Racional que o Ateísmo?
2- Eu, 20-12-07, Agnosticismo: possível, mas difícil

domingo, maio 20, 2007

Treta da semana: os direitos conexos.

A propaganda pelos direitos de autor baseia-se na imagem do autor martirizado pela partilha de informação. É disparate a vários níveis. Normalmente não é o autor que detém os direitos, a maioria dos autores contribui muito pouco de inovador, e não é por ter uma ideia que se tem o direito de proibir os outros de a usar. Mas a imagem de defensor do autor dá bom aspecto.

Com os direitos conexos nem isso. Os direitos conexos são os direitos «dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e de videogramas e dos organismos de radiodifusão» (1). Não tem nada a ver com criatividade ou inovação artística. São os direitos do que lê a pauta ou do que diz vá, toquem aí enquanto a gente põe isto a gravar.

A Passmúsica (2), criada para cobrar os direitos conexos, já cobrou meio milhão de euros, moveu acções legais contra dezenas de bares e restaurantes, e tem como objectivo atingir os doze milhões de euros de cobrança anual nos próximos cinco anos (3). Uma olhada pelos preçários do site da Passmúsica mostra como. Um bar com capacidade entre 50 e 100 pessoas deverá pagar anualmente €773,39 para música ambiente, ou €928,07 se passar telediscos. Isto se não tiver pista de dança, porque se for para dançar o preço sobe para €6.481,73. Protege-se assim o legítimo direito dos produtores de receber sete vezes mais se o pessoal abana o capacete em vez de ouvir sentado.

Saliento que isto não é para compensar o criador da obra. É discutível que o autor de uma canção tenha direito a uma percentagem do preço das bebidas, mas nem é isso que estes valores cobrem. Quem está a apanhar com esta factura já paga as licenças pelos direitos de autor. Isto é dinheiro para quem difunde, toca, ou grava a obra sem criar nada de novo.

Nem se restringe a bares e discotecas. Cobre centros de saúde e até supermercados. Querem levar a facturinha a qualquer lugar público onde haja um rádio ou um leitor de CDs. Encarece o leite e as batatas, mas dá décadas de rendimento ao tipo que juntou num estúdio meia dúzia de músicos com as pautas que outro escreveu. Ou, mais precisamente, aos tipos que organizam a Passmúsica, gerem a burocracia, apresentam as facturas e ficam com certeza com a maior parte do que cobram.

Não é este negócio que é treta. Este é chulice. Ou roubalheira. Ou vigarice. A treta é dizerem, na sua missão, que querem fazer «crescer na comunidade um sentimento de protecção dos direitos dos artistas e produtores». Deve ser. A cobrar ao público pela música que ouve nos bares ou supermercados só vão convencer ainda mais gente a descarregar os mp3 e ouvir nos fones. Doze milhões de euros daqui a cinco anos? Só se for a vender pilhas.

Mas este pessoal não é estúpido. Prejudicam os artistas ao alienar os fãs e limitar a divulgação da sua arte. Prejudicam os distribuidores acelerando o colapso da venda à cópia. Mas enquanto o morto não morre os burocratas e advogados enchem os bolsos com esta treta. Uma grande treta, mas muito bem metida...

1- Código de Direitos de Autor, Artigo 176º-1.
2- www.passmusica.pt/
3- Valkirias, 18-4-07, PassMúsica reclama judicialmente Direitos Conexos

sexta-feira, maio 18, 2007

Olé! à ética humanista.

No Esquerda Republicana, o Ricardo Alves manifestou-se contra o movimento anti-tourada (1,2). Ser contra anti não é ser pró, e o Ricardo explica que também não lhe agrada a tourada. Mas discordo do que o Ricardo entende por humanismo e, acima de tudo, ética. Para focar este ponto até vou deixar passar as duas falácias, a do declive escorregadio em (1) e a das más companhias em (2).

O Ricardo afirma que a oposição à tourada «é típica de correntes de pensamento anti-humanistas», porque, esclarece mais tarde, «Quaisquer «direitos» que se atribuam aos animais não humanos resultam do nosso desejo (legítimo) de nos sentirmos melhor com as nossas acções, e não de qualquer relação de reciprocidade com os animais não humanos». Isto não me parece humanismo. Parece-me egoísmo.

Ética não é o que nos faz sentir melhor ou o que nos traz benefícios. E humanismo é a responsabilidade de sermos éticos. De não fazer as coisas só porque um deus manda ou porque nos dá na gana, mas com consciência que a consciência que temos nos dá deveres além de direitos. É esta responsabilidade que legitima rejeitar éticas pré-fabricadas em placas de pedra. E esta responsabilidade não nos permite fazer o que quisermos das outras espécies só porque podemos.

Tal como o Ricardo não gosta de tourada, eu também não aprovo o Boxe como desporto. Andar ao soco a espapaçar o cérebro não é saudável nem um bom entretenimento. Mas se o praticam com consentimento informado não vejo justificação para o proibir. Diferente seria se amarrassem um cão e o espancassem até ficar inconsciente. Seria eticamente condenável, e seria de proibir. Não por me fazer sentir mal, nem tão pouco por qualquer benefício recíproco que o cão traria. Seria condenável pelo que faz sentir ao cão, e de proibir por ser mais condenável que a sua proibição.

Outro problema deste humanismo é demarcar á faca o humano dos outros animais. Foi um infeliz acidente que nos privou dos nossos primos Neandertais, uma espécie diferente da nossa que enterrava os mortos, produzia ferramentas e objectos de arte e cuidava dos feridos e dos doentes. Seriam a prova viva que é errado fundamentar a ética na taxinomia.

A nossa espécie é parte de um contínuo biológico. Temos certas capacidades mais desenvolvidas, como a de compreender o que o outro sente mesmo que seja de outra espécie. E, por isso, temos uma responsabilidade ética acrescida. Podemos desculpar o cão que morde porque não compreende a dor que causa. O tipo que espeta ferros no touro só para mostrar as lantejoulas não tem essa desculpa.

O Ricardo propõe um humanismo em que só os humanos têm direitos porque só os humanos interessam. É o contrário. Os humanos são os que têm mais deveres por ter maior capacidade de se interessar. De se interessar pelos humanos, pelos não humanos, e por aquilo que interessa a cada um. Temos direitos, mas em conformidade com as responsabilidades que assumimos. Porque a ética não é só ver o que me interessa a mim, à minha família ou à minha espécie. É o dever de considerar o que interessa a todos os que as minhas acções afectam, mesmo os que não o compreendem.

1- Ricardo Alves, 17-5-07, Grandes Touradas
2- Ricardo Alves, 18-5-07, O touro é sagrado (ou é a vaca?)

quinta-feira, maio 17, 2007

Liberdade de fumo.

É um feliz dois em um. O Helder Sanches no YouTube e uma oportunidade de discordar dele. Acerca da nova lei do tabaco, o Helder escreveu (1):

«Esta é uma lei que, a ser aprovada tal como proposta, anula toda a liberdade de escolha quer dos clientes, quer dos proprietários dos espaços.»

É verdade. Numa fábrica de tintas há partes da linha de produção que estão isoladas, quem manuseia os solventes tem que ter equipamento de protecção e a ventilação tem que ser adequada. Por lei. Isto anula a liberdade do proprietário, reduz os lucros, e prejudica o cliente, que tem que pagar estas medidas de protecção quando só quer a tinta. Mas sem esta lei os trabalhadores estavam tramados.

Esta lei do tabaco não é para os clientes, restaurantes, ou proprietários. É para evitar que quem trabalha respire o tabaco dos outros oito horas por dia. Não deve ser o cliente a decidir se exala fumo para os pulmões do empregado, nem o proprietário a pesar o valor da clientela contra o da saúde dos empregados,

Qualquer adulto tem o direito de fumar, mas não de incomodar ou prejudicar a saúde dos outros. Não é por gostarem do cigarrinho com a bica que se deve abrir uma excepção.

1- Helder Sanches, 17-5-07, Oh p’ra mim na radiotelevisão!

Crença e inteligência.

O leitor «Bizarro» fez dois comentários que merecem respostas mais elaboradas. Aqui dirijo-me ao primeiro, que critica os ateus que consideram os crentes menos inteligentes. Concordo com a crítica; a crença não indica menor inteligência. Mas vou começar por explicar o que quero dizer com «inteligência».

Proponho que é o conjunto de quatro aspectos mais fáceis de definir. Conhecimento, capacidade de relacionar o que se conhece, criatividade e espírito crítico. É uma definição muito abrangente, mas há inteligência em quase todas as actividades humanas. Do xadrez à poesia, da música à ciência ou ao atletismo, em quase tudo o que fazemos é bom saber coisas, conseguir relacioná-las, ser criativo, e ser capaz de criticar ideias para as melhorar ou rejeitar. Crente ou não crente, cada ser humano é inteligente em geral e muito inteligente naquilo para que tem «mais jeito», seja arte, ciência, desporto, ou outros.

Mas mesmo com uma definição tão abrangente a crença fica de fora. O crente é inteligente, mas a crença é das poucas actividades humanas (e talvez a única das que a sociedade eleva) que não beneficia da inteligência. Para ter fé de nada serve o conhecimento, o raciocínio, a criatividade ou a capacidade de crítica. Pelo contrário. Cada um destes ameaça a fé, e em conjunto são o seu pior inimigo. A crença não é inteligente. Mas há duas formas diferentes da crença não ser inteligente.

Pode ser como gostar de chocolate. Não é inteligente nem estúpido. É, e pronto. Eu reconheço que o chocolate me pode fazer mal, e não me ofende se me disserem que é melhor evitar comer chocolate ou que gostar de chocolate é como gostar de chupa-chupas. Muitos crentes encaram a crença desta forma. Reconhecem as críticas, são moderados na sua prática, não se ofendem com as comparações. E não andam a tentar convencer os outros a gostar de chocolate ou de um deus. A crença é parte do crente. É algo íntimo, e não tem nada a ver com inteligência ou com uma decisão pensada.

Mas outros apresentam a crença como sabedoria, como uma verdade, que é pública, objectiva e que todos devem reconhecer. Tentam convencer que a sua fé é verdadeira, ao contrário das outras. Ensinam os filhos a crer e batem-nos à porta a oferecer revistas ridículas. E são pessoas inteligentes. Desde a argumentação pela fé até à gestão dos fundos das igrejas há aqui muita actividade que requer inteligência. Mas não a fé. Essa continua a não ter nada a ver com inteligência. E quando se lhes aponta este problema refugiam-se na indignação, ou na condescendência (coitados dos descrentes que não vêem a luz...), ou no palavreado obscuro e alegações vagas. Exigem respeito. Não querem críticas. E é isso que os faz parecer menos inteligentes.

Ninguém vai achar que sou estúpido se disser está bem, o chocolate faz-me mal mas gosto à mesma. Mas se alegar uma verdade superior na qual o chocolate faz bem, ou que o chocolate leva à salvação eterna, ou se me indignar pelo desrespeito da minha crença no chocolate provavelmente vão achar que não jogo com o baralho todo. E com razão...

PS: Agora que ia pôr isto no blog reparei que o Helder Sanches se antecipou: Fé e Inteligência.
Deixo também o link para o post do «Bizarro» que catalisou este debate inter-blogs: Eu sou religioso, e então?

terça-feira, maio 15, 2007

Achincalho, e achincalharei.

Já me acusaram de achincalhar crenças, de ser agressivo, de ofender os crentes, de ser fundamentalista e intolerante. Declaro-me culpado da primeira. O resto é treta.

Como escreveu o Helder Sanches, há uma grande diferença entre escrever um blog e explodir autocarros (1). Eu não estou em guerra com os crentes. Nem sempre contenho as gargalhadas perante certos disparates, é verdade, mas não é intolerância dar uma boa risada se vos convido a rir comigo. Quanto ao resto, há que esclarecer umas coisas.

Não existe fundamentalismo ateu. Não existe nem se exige um fundamento para o ateísmo. Não há premissa que tenha que ser aceite incondicionalmente para fundamentar o ateísmo. O ateísmo é a posição de omissão, e até os crentes são ateus em relação à maioria dos deuses. Fazem excepção dos seus deuses favoritos, mas consideram o resto mera crendice ou superstição. Poucos católicos respeitam a crença num escaravelho gigante que rebola o Sol pelo céu ou num titã que segura a abóbada celeste. Nem vão dizer que estas crenças são uma Via para a Verdade. Vão dizer que são disparates. E com isso qualquer ateu concorda. O ateísmo não parte de um fundamento axiomático. É olhar para o céu, não ver escaravelho nenhum, e dizer «olha, mais um que é treta».

Fanático é aquele que julga que só as suas crenças injustificadas são verdadeiras, ao contrário das crenças injustificadas dos outros. O ateísmo explícito incomoda o fanático porque põe todas as crenças injustificadas ao mesmo nível. Seja o escaravelho gigante seja a sarça ardente. Do Super-Homem ao espírito santo é tudo o mesmo à partida, e só evidências objectivas podem determinar se algum é real. E com a descoberta da kryptonite (2) fica o Super-Homem em vantagem.

E tolerância. Bem, como todos, tolero umas coisas e não outras. Não tolero que fumem em minha casa, por exemplo. Mas tolero as crenças dos outros; o que cada um faz com os seus neurónios é lá consigo. Não condeno a apostasia nem acho bem que arda no inferno quem acredita no deus errado (até porque errados são todos). A crença privada é exactamente isso. Privada.

Mas achincalho, com certeza. Não achincalho a minha avó que, no máximo, espicaço um bocadinho, gentilmente. Mas os doutos teólogos ou os crentes condescendentes merecem que se troce das parvoíces que apregoam. Merecem uma boa gargalhada e merecem a oportunidade de rir também desses disparates.

Se não querem rir e preferem sentir-se ofendidos, paciência. Mas se houver algo aí de intolerância, fanatismo, agressividade ou fundamentalismo não será da minha parte.

1- Helder Sanches, 10-05-07, O Extremismo Ateu
2- Eu, 4-5-07, Kryptonite!

segunda-feira, maio 14, 2007

A carta que muda de cor.

Richard Wiseman é um psicólogo Britânico que investiga a psicologia da percepção. Vejam se conseguem perceber este truque.



Via JREF e Harris Online.

Página do Richard Wiseman

domingo, maio 13, 2007

Treta da semana: Nossa Senhora de Fátima.

O cérebro serve para o animal se orientar e prosperar no seu ambiente. Nisto não somos excepção, mas o nosso ambiente é peculiar. O nosso cérebro serve-nos para prosperar em sociedades complexas, e é uma máquina de processar intenções, parentescos, favores, amizades, inimizades, direitos, obrigações...

Com cem mil milhões de neurónios dedicados a identificar quem e para quê não é de admirar que esta espécie seja tão religiosa. Tudo julgamos ser obra de Alguém. E, é claro, o Grande Chefe tem que ter mulher, filhos, ajudantes e subordinados. Religião é projectar no universo a estrutura social que construímos aqui à nossa escala microscópica. E o nosso cérebro especializou-se nestas hierarquias, o que explica porque o monoteísmo é tão pouco popular na prática apesar de ser mais elegante em teoria.

Zeus é o chefe dos deuses, mas aqui adora-se Atena e ali Apolo. Não é bom incomodar o chefe; há que respeitar a hierarquia. Mesmo religiões nominalmente monoteístas têm um panteão de anjos, profetas, santos e familiares do tal deus único. Os Católicos têm um exército de mais de dez mil santos e beatos para encaminhar devidamente as preces dos fiéis. Deus pode estar em todo o lado, mas isso é longe. Preferimos pedir ao Seu colega ou amigo aqui da nossa zona que interceda por nós.

Mas nas Nossas Senhoras os Católicos exageram. Maria já tem um papel confuso no panteão cristão, uma amálgama de Hera e Ártemis. Casada com um homem, mãe e concubina de Deus, é também noiva virgem e tudo isto sem qualquer pecado. Mas o pior foi clonarem uma multidão de Nossas Senhoras (e nenhuma delas parece uma palestiniana de origem humilde).

Há Nossas Senhoras em Guadalupe, Lurdes, Fátima, Manila, Cuapa e Limantova, e muitos outros sítios. São gente, pessoas com quem se pode conversar. Hoje, a 13 de Maio, não se vai em procissão a Torres Vedras ou a Alcabideche. Esta Nossa Senhora é a de Fátima, e é lá que os fiéis vão. Vão falar com ela, oferecer-lhe velas e pernas de cera, e até andar de joelhos para a impressionar. Se fosse um ser imaterial presente em todo o mundo isto não fazia sentido.

Os teólogos dissertam acerca da omnipotência e omnisciência de Deus, infinito e único, presente em todo o lado. Mas este acaba por ser insensível aos nossos caprichos ou infortúnios. É o Deus racional e lógico de Einstein e Espinoza, perfeito e impessoal. Não se rala connosco, não vale a pena fazer-lhe promessas ou pedidos, e certamente não há nada que lhe possamos oferecer em troca dos favores que lhe pedimos.

Por isso não é treta ir a Fátima a pé ou queimar velinhas. É treta a crença numa deusa que aprecie estas coisas ou, pelo menos, é de mau gosto. Mas dado que se acredita é razoável e humano tentar negociar contrapartidas. Ajudas o meu filho e eu ando cinquenta quilómetros a pé, ou coisa do género. Se Maria tem esses poderes e se é em Fátima que os manifesta, vale a pena tentar. Deus é demasiado vago e distante para estas coisas.

Hoje celebra-se um exemplo da maior treta na religião. Não a crença. Por muito supersticiosa que seja, é a tendência natural de tratar o universo como pessoa. As pessoas relacionam-se com o universo como se relacionam entre si. Pedindo, oferecendo, bajulando, sacrificando-se, ajudando, trocando favores e amizades. É o que fazemos melhor. Quem não disse já uns palavrões ao computador ou nunca pediu desculpa ao cão se o pisou? A verdadeira religião, a religião dos crentes, é ligar-se dessa forma a tudo o que os rodeia.

A grande treta é a usurpação teológica da crença. O Infinito, a Verdade, o Transcendente. Os Três Segredos, tão importantes que a mãe de Deus vem à Terra revelá-los, tão assombrosos que só a liderança da Igreja os podia conhecer, mas revelados do alto de uma azinheira a uma miúda pastora (os outros dois não ouviram nada). E à revelia do Espirito Santo, que supostamente tem ligação directa ao Papa mas não lhe quis revelar nada disto.

É triste que milhões de pessoas levem tanto a sério as fantasias de uma criança. Mas o relato que bispos e papas teceram à volta deste acidente sociológicoo é que é uma Treta de se lhe tirar o chapéu.

sexta-feira, maio 11, 2007

De livre vontade.

Temos vontade livre? A resposta é simples. Sim. A pergunta é que é complicada...

Para muitos a pergunta é acerca de uma vontade que é livre por não haver causa que a determine, seja neurónio, gene, educação ou o que for. Se há uma causa para que a vontade seja exercida desta forma, uma causa para este acto, escolha ou decisão, então dizem que não é livre porque é apenas consequência da causa. Assim, quem procura este tipo de vontade livre não aceita que a mente seja uma actividade do cérebro. Isso reduz a vontade a uma cadeia de causa e efeito e essa, dizem, não é livre.

Mas isto não faz sentido porque algo que ocorre sem causa não é vontade. É acaso. Um acto de vontade tem causas. São causas de um tipo especial, a que chamamos razões, mas são causas. Quando decido, de livre vontade, levar o guarda chuva é por causa de prever que vai chover, por causa de não me querer molhar, por causa de não poder ficar em casa. Esta vontade livre sem causas é um conceito incoerente e disparatado. Se me der de repente para andar com o guarda chuva sem que nada cause essa decisão não é um acto de vontade. É parvoíce.

Concordo que não é vontade livre levar o guarda chuva porque um neurónio disparou sem mais nem menos. Mas levar o guarda chuva por julgar que é a melhor opção é um exercício de vontade livre, mesmo que este juízo seja uma actividade dos neurónios, e mesmo que a escolha seja causada por esta actividade. É vontade livre porque o acto é causado por uma razão.

A vontade livre só faz sentido num acto racional. Um doido não tem vontade livre, por muito que seja imprevisível ou que faça coisas sem causa nenhuma. E só faz sentido ao serviço de um objectivo que não é escolhido livremente. Um ser livre de escolher tudo o que sente, pensa, tudo o que se lembra ou prefere, acaba por não ter vontade. A vontade é livre quando há alguma liberdade de agir, mas só é vontade se houver algo que a motive. É de vontade livre que escolho o pequeno almoço porque posso escolher e porque tenho fome. Sem essa motivação não há vontade.

Em suma, a vontade livre é a capacidade de seleccionar racionalmente possibilidades de acordo com a nossa motivação. E a motivação é nossa simplesmente por provir de nós. É a minha fome, a minha paixão, a minha preocupação com tanta treta que há por aí, mesmo sem uma liberdade metafísica de escolher se me preocupo ou se sinto fome.

Esta combinação de motivos e razões é compatível com uma mente biológica. Podia ser a alminha a fazer milagres, mas não precisamos disso. Nem precisamos que tudo o que o cérebro faz seja vontade livre. Um ataque epiléptico causa uma acção que não é razão, por isso esta acção não é por vontade livre. Mas se um pensamento é razão para agir e causa um acto então é um acto de vontade livre. Foi causado pelos neurónios, mas como parte da selecção consciente e racional de alternativas.

Esta vontade livre não só é coerente como é útil ao organismo. Ajuda a sobreviver e reproduzir. À alma imortal de nada serve. Isto mostra que a vontade livre não precisa surgir por milagre nem faz sentido como milagre. É um atributo daqueles que a evolução aproveita. Além de ser útil, há uma gama contínua de vontades e liberdades entre alguns organismos que vivem agora e os seus antepassados. A complexidade das motivações, a capacidade de processar informação, a própria racionalidade, são atributos quantitativos dos quais se pode ter mais ou menos. Um longo período de pequenos incrementos gerou algumas linhagens especialistas nisto. Gostamos de destacar a nossa ao ponto de presumir que somos únicos nisto e fundamentalmente diferentes, mas não é verdade.

O processo que nos gerou foi natural e gradual, por mecanismos conhecidos da evolução. Para explicar a nossa origem não precisamos da feitiçaria dos deuses nem de plantar almas nos nossos antepassados primatas.

terça-feira, maio 08, 2007

Treta da semana: à imagem de Deus.

Com tanto que se exalta as virtudes da natureza é estranha a relutância em aceitar o humano como natural. Muitos preferem a humanidade criada pelo artifício de vontade alheia em vez de algo que evoluiu pelos seus atributos. Alegam que a maravilha da natureza testemunha a magnificência do seu deus, mas a maravilha não lhes chega. O Homem tem que ser melhor ainda. Tem que ter coisas que nem esse deus conseguiu incluir na natureza. E isso parece-me uma grande treta.

Por um lado, subestimam a natureza. O Homem não pode ser só átomos porque átomos são incapazes de pensar, sentir e ter vontade. A diversidade de comportamentos humanos refuta a nossa natureza biológica. Mas a diversidade é característica do ser biológico. Quem os tem sabe que até cães e gatos são indivíduos distintos e com personalidade. Aprendem, adaptam-se ao ambiente em que vivem, reagem, interagem, e agem por vontade própria.

Um ser vivo não é um boneco de corda com comportamento fixo. Este determinismo biológico que atacam é uma caricatura absurda. Mas sempre que treme o pedestal da origem divina do Homem lá dão mais uma paulada no boneco. O biológico é complexo, versátil e adaptável por natureza, sem precisar de intervenção divina. O morcego é guiado por estruturas biológicas que lhe dão uma possibilidade infinita de manobras e trajectórias. Os calos são uma resposta biológica da pele mas não temos todos os mesmos calos nos mesmos sítios.

Cada organismo é uma complexa interacção dos seus átomos e dos átomos que o rodeiam. Um átomo sozinho faz pouca coisa, mas com átomos a interagir há fotossíntese, o voo das aves, o sonar dos morcegos, alcateias de lobos. Há vida. Até recentemente, por ignorância, insistia-se que a matéria nunca poderia ser viva. Afinal, um átomo não é vivo. Pois um átomo também não é molhado e a água é. Um sistema complexo de átomos pode ser vivo. Agora é a vez de negar à matéria a liberdade, a ética e a consciência. Outra vez por ignorância.

Humildemente, assume-se que o intelecto humano domina por completo a natureza. Assim, tudo o que não compreendemos tem que vir de um ser supremo e sobrenatural. Com tantas provas que isto é falso já não se devia cometer este erro. Deve-se assumir o oposto. Se não compreendemos algo é porque a natureza é mais complexa do que pensávamos. Da nossa ignorância não podemos inferir limites para a natureza, e assumir que só por intervenção divina é que o ser humano tem estas características. E é preciso muita ginástica mental para ver um elefante a acariciar os ossos de um parente morto e achar que não há ali nada de consciente ou semelhante ao que nós sentimos. Ou talvez tenham sido criados à imagem de Ganesh...

E sobrestimam a nossa espécie. Muito. Dizem que somos livres, que temos vontade própria, e que a diversidade cultural o comprova. Treta. Se comprova alguma coisa é o oposto. A diversidade cultural não vem de cada um exercer uma vontade livre e independente. Vem de se conformar ao grupo em que cresceu, de aceitar as ideias dos pais e amigos, de se comportar «como deve ser», seja o que for. Não é por estar em vários rebanhos que as ovelhas são livres e independentes.

E que somos um ser ético e racional. E somos. Quando temos o frigorifico cheio e os filhos contentes. Mas se os miúdos choram de fome e não temos nada que lhes dar trocamos a ética pela Kalashnikov, ou a catana, ou o que vier à mão. Olhem bem para o mundo e para a história da nossa espécie. Não é o plano divino para um ser racional e ético. São os sucessos e fracassos de um animal que tem mais domínio sobre o que o rodeia que tem sobre si próprio.

O Homem é um mamífero esperto, mas com ilusões de grandeza. Tem um cérebro enorme, linguagem e capacidades que os outros animais não têm. Mas é normal na natureza que os organismos se especializem. Outros há que vêem, correm, nadam, mordem ou ouvem melhor que nós. E se a matéria faz tudo o que os outros animais fazem pode muito bem fazer o que nós fazemos.

sábado, maio 05, 2007

Mente e fisiologia, parte 5: Deus é Amor?

O melhor modelo da mente é materialista. Chamar alma ou espírito é disfarçar a ignorância com a troca de palavras. É a neurologia que descreve em detalhe aspectos da mente que antes nem suspeitávamos. A visão cega, por exemplo. Danos no córtex eliminam a percepção numa parte do campo visual. Mas apesar da cegueira nessa região o paciente consegue «adivinhar» que objectos lá estão porque a estrutura cerebral que identifica o objecto não foi danificada (1). São detalhes como este que o materialismo explica e as alternativas ignoram.

A conclusão: tudo o que somos é actividade da matéria. Físico, mental, emocional ou espiritual, vem tudo de órgãos que evoluíram por processos naturais. Pelas propriedades da matéria. Por aquilo que faz o Sol brilhar, que faz a chuva cair ou me faz digerir uma batata cozida. Não é acaso nem milagre. É física, química, biologia.

A melhor forma de compreender o amor é como parte da nossa evolução e destes processos naturais. E é revelador que o amor seja tão discriminatório. É difícil perder o amor pelos filhos, mas uma amizade só dura enquanto há um benefício recíproco, como um interesse comum ou colaboração. As diferentes formas de amar enquadram-se nas necessidades de um mamífero social inteligente: procurar parceiros, criar os filhos, e conviver em sociedade. Esta propensão para se apaixonar, fazer amigos, cuidar dos filhos, ou ajudar parentes próximos de nada serve a um deus omnipotente.

E o amor é involuntário. Não amamos quando, como, ou quem escolhemos. É mais um mecanismo que nos compele a agir, muitas vezes contra a vontade consciente. É absurdo que um ser omnipotente seja compelido, mas sem compulsão não é amor. Se Deus tem completa liberdade de escolher quando e como ama nunca saberá o que é amar. E se não tem essa liberdade não é Deus.

É claro que os crentes dirão que o amor de Deus é completamente diferente do nosso. Vão usar letras maiúsculas, chamar-lhe Amor Divino, e dizer que está para além do que podemos compreender. Mas então sejam honestos. Digam que Deus é X e que não fazem a mínima ideia do que estão a falar. O amor sabemos como é. E é coisa de humanos, não de deuses.

Finalmente, o ridículo de pensar que alguém criou este universo porque nos ama. Talvez se o universo fosse um pedaço de terra com uma lua e sol a andar à volta, e as estrelas luzinhas pintadas no céu. Mas não este universo. Oitenta mil milhões de galáxias. Mil biliões de estrelas. E só nesta parte que conseguimos ver...

E nada disto tem amor. O Sol liberta num segundo um milhão de vezes mais energia que a explosão de todas as armas nucleares do mundo. E sem se importar se causa chuvas ou secas, cancro ou bronzeado, se faz furacões ou plantas crescer. A Terra não se importa se sofremos ou prosperamos. A chuva não cai onde precisamos. Este universo é cem mil vezes mais velho que a humanidade. Nenhum planeta notou quando aparecemos. Nenhuma galáxia se importa com o que nos acontece. E nenhuma estrela vai dar pela nossa falta quando fundir o carbono e azoto de que somos feitos em elementos mais pesados.

Este universo não se importa. Não se preocupa. Não ama, não odeia, não perdoa nem vinga. Nem sente. Simplesmente é. Se existe deus, não é amor. É uma infinita indiferença.

1- Wikipedia, Blindsight

Série completa:
Mente e fisiologia, parte 1: o dualismo.
Mente e fisiologia, parte 2: Homúnculos.
Mente e fisiologia, parte 3: qualia.
Mente e fisiologia, parte 4: causas.

sexta-feira, maio 04, 2007

Número proibido.

Em Fevereiro foi revelada uma chave digital que permite descodificar todos os DVDs de alta definição publicados até agora (1). São 32 dígitos em hexadecimal. A semana passada a AACS, que controla este sistema de protecção, decidiu reagir. Ameaçou empresas como o Google e o Digg para que removessem de todos os blogs ou páginas que hospedam qualquer referência a esta chave, ao abrigo do «Digital Millenium Copyright Act», que pune a divulgação de formas para evitar as protecções digitais. Os administradores do Digg cederam e eliminaram alguns posts do seu site.

Foi um motim. Em poucas horas dezenas de milhares de pessoas respondiam publicando o número proibido em texto, desenhos e fotografias. Pouco demorou para que o Digg se rendesse à pressão da comunidade de que depende (1). Na quarta feira o Tiago Devezas escreveu que pesquisar esta chave no Google devolvia 288.000 resultados (2). Hoje, dois dias depois, devolve 1.330.000.

Esta chave já é conhecida há dois meses (3). Nem é notícia. Mas numa brilhante jogada pela «gestão de direitos», a AACS decidiu suprimir a bosta que fez saltando-lhe para cima de pés juntos.

Aqui vai o meu contributo, número 1.330.001:

09 F9 11 02 9D 74 E3 5B D8 41 56 C5 63 56 88 C0


1- Kevin Rose, 1-5-07. Dig This: 09-f9-11-02-9d-74-e3-5b-d8-41-56-c5-63-56-88-c0
2- Tiago Devezas, 2-5-07, Utilizadores do Digg revoltam-se contra o próprio site
3- Eu, 14-2-07, Só mais uma voltinha...

Menino ou Menina?

A empresa DNA Worldwide (1) comercializa um teste simples para determinar o sexo do embrião a partir das seis semanas. O teste detecta vestígios de ADN do cromossoma Y no sangue da mãe. Basta uma gota de sangue materno para saber se é menino ou menina.

Por enquanto o teste é caro (quase €300), mas o preço destas coisas cai rapidamente, e já há muitos que se opõem a estes testes por permitir escolher o sexo por aborto selectivo. À boa maneira Britânica, o Royal College of Obstetricians and Gynaecologists considera que abortar para seleccionar o sexo sem justificação médica é «inappropriate»(2). Mas o problema não é o teste.

Não há nada de errado em pôr uma gota de sangue no kit e saber se é menino ou menina, se tem olhos azuis ou castanhos, se vai ser míope ou atlético ou mil e uma possibilidades que irão surgir nos próximos anos. E é má ideia impedir o progresso e disseminação desta tecnologia. A mesma tecnologia permitirá o diagnóstico precoce da fibrose cística ou da mucopolisacaridose. Se alguma coisa justifica o aborto é poupar à criança uma morte arrastada e dolorosa nos primeiros anos de vida.

O problema é a ideia o aborto como um direito que a sociedade deve apoiar. Se é por questões económicas ou porque os pais não querem ter filhos podemos fingir que a decisão só afecta os adultos. Fazer de conta que ninguém perde nada com o aborto. Mas o truque falha se é por não ter o sexo certo ou as características que os pais querem. E é difícil aceitar o aborto quando não se consegue ignorar o visado.

O referendo já foi, mas agora há que decidir se era mesmo para acabar com os processos judiciais ou se era para oferecer este serviço incondicionalmente. E decidir depressa como responder ao avanço desta tecnologia.

1- DNA Worldwide
2- BBC, 4-5-07, Early baby sex test over the web

Kryptonite!

O António Parente deu-me uma notícia intrigante (1):

« O mesmo tipo de argumento se passa com Deus. Apesar do Ludwig considerar que Deus é um ser imaginário, isso não significa que não exista. Pegando também num exemplo de banda desenhada, todos pensávamos que a kriptonite, que retirava força ao Super-Homem, não existia. Entretanto apareceram uns cientistas que disseram "afinal existe".»

Discordo que a kryptonite seja relevante para o teísmo ou ateísmo, mas intrigou-me como a identificariam sem um Super-Homem à mão para testar os efeitos. O Google resolveu o mistério.

A companhia mineira Rio Tinto encontrou na Sérbia um mineral desconhecido e mandou uma amostra para análise. Determinada a composição, os analistas usaram também o Google para ver se alguém tinha descrito esse mineral. E sim. «Sodium lithium boron silicate hydroxide» era o rótulo da caixa onde o Lex Luthor guardou a kryptonite no filme «Superman Returns« (1).

Apesar da composição química ser quase idêntica (a do Super-Homem tem flúor e esta não), a «kryptonite» verdadeira é um mineral branco com a textura do giz. Desconhece-se o efeito que terá no Super-Homem, mas calculo que seja o mesmo que tem em Deus.

Além da coincidência, fascinou-me o paralelo com muitas crendices. Alguém inventa uma coisa. Por coincidência, ocorre algo semelhante. Louvado seja! Milagre!

Treta.

1-J. Micah Grunert, 24-4-07, Kryptonite Exists.

Mais detalhes sobre este minério: Jadarite

quarta-feira, maio 02, 2007

Parece que é, mas não é.

O Instituto de Investigação Criacionista inaugurou no dia 30 o International Journal of Creation Research (IJCR) (1). É suposto ser a primeira publicação criacionista com peer review, o tal processo que usam os cientistas a sério para garantir a qualidade dos artigos, promover a crítica aberta e a verificação independente de resultados.

Mas sendo uma publicação criacionista, quer-se review, e quer-se por peers, mas o resto dispensa-se. Por isso um dos critérios de aceitação dos artigos nesta publicação que se diz científica é:

«(f) Does this Paper provide evidence of faithfulness to the grammatico-historical/
normative interpretation of Scripture? (if necessary refer to Walsh, R.E., Biblical
Hermeneutics and Creation, Proceedings First International Conference on
Creationism, Creation Science Fellowship, Inc., Pittsburgh, PA, 1986, Vol. 1,
pp. 121–127).»


Pouco importa se a hipótese é testável ou se os resultados são reprodutíveis. O que interessa é ser fiel à interpretação normativa e gramático-histórica das Escrituras, de acordo com a hermenêutica Bíblica citada.

E ainda querem estes tipos que os levem a sério...

1- International Journal for Creation Research

Via Bad Astronomy e Hit&Run.

Mente e fisiologia, parte 4: causas.

Se rejeito o dualismo e assumo que isto tudo não é mera ilusão só me resta o materialismo. Existe matéria, é na matéria que está a mente, e volto ao problema de como é que a matéria pensa, e sente, e deseja. Vou deixar os detalhes para a neurologia e focar só um problema filosófico: se a neurologia revelar todos os mecanismos do sentir e do pensar o que vamos compreender com isso?

Parece trivial. Se sabemos tudo o que os neurónios fazem compreendemos as causas da mente. Mas não, porque temos problemas na percepção de causas. Especificamente, a tendência de ver causas onde não há e apenas ver como causa e efeito certos tipos de relação.

Vou começar pelo primeiro tomando como exemplo uma explicação do forno de microondas. A radiação agita rapidamente as moléculas e «esta agitação ao rubro causa uma tremenda fricção dentro dos alimentos e -- tal como esfregar as mão as faz aquecer – esta fricção produz calor» (1). É um disparate revelador. Revela tal apetência por causas que até aceitamos um relato causal que não explica nada. Afinal, como é que a fricção faz calor? A explicação correcta é que a agitação molecular e a temperatura são a mesma coisa. Nisto não há causa e efeito. Mas esta explicação parece batota. Quem tem a mente deformada pela física sente-se obrigado a aceitá-la pelo peso das evidências, mas que a temperatura seja apenas a agitação das moléculas é uma ideia sensaborona, decepcionante. A explicação da fricção é mais atraente e intuitiva.

Analogamente, defendo que a mente é a actividade dos neurónios. Não há causa e efeito. É decepcionante, mas são a mesma coisa. Pior ainda, além desta relação de identidade nos privar da satisfação de uma causa e um efeito, há ainda um fosso psicológico entre duas percepções de causalidade que não conseguimos conciliar.

Se acontece algo de desagradável o meu modelo materialista diz que esse acontecimento faz o meu cérebro produzir menos serotonina, a falta de serotonina causa uma preponderância de certos padrões de actividade neurológica, e esses padrões de actividade são a minha depressão. Mas eu vejo dois tipos diferentes de causalidade. Por um lado, que o acontecimento desagradável causou a minha depressão. Por outro lado, que a falta de serotonina alterou o meu cérebro. Não consigo ver a falta de serotonina como causa da depressão. Estou-me nas tintas para a serotonina! Se a serotonina não me interessa nunca a sua falta me vai causar transtorno. Intuitivamente, não consigo relacionar uma substância química que não me interessa com uma depressão que me afecta tão profundamente.

Tal como a percepção de cor é diferente da percepção de sabor, também tenho diferentes percepções de causa. Tenho a percepção de causas mecânicas, como a serotonina afectar neurónios. E tenho a percepção de causas intencionais, como estar triste por causa de algo que correu mal. É tão estranho à minha percepção que a serotonina cause depressão como seria estranho uma cor ter sabor.

A mente como actividade do cérebro é uma ideia estranha porque sai do que é intuitivo à nossa percepção, tal como a mecânica quântica, a relatividade, ou até o forno de microondas. Mas isso não é razão para rejeitar esta hipótese, que é a melhor que temos. Nem razão para considerar a mente um Mistério.

Todo estes problemas com cores, sabores, causas e intuições têm uma origem comum. Milhões de anos de evolução que adaptaram o nosso cérebro a um conjunto específico de tarefas. Encontrar comida e parceiro. Criar os filhos. Evitar predadores e vencer competidores. Nada nos preparou para compreender o decaimento radioactivo, a geometria do espaço-tempo, ou a mente como actividade neurológica. Quando nos aventuramos por estas coisas temos que abandonar a compreensão intuitiva e construir os modelos com cuidado, peça a peça, colando tudo com evidências e abanando de vez em quando para fazer cair as partes soltas.

Só assim podemos compreender o amor, se há um deus que é amor, e se o universo foi criado por amor. Mas isso fica para o último episódio.

1- How Do Microwaves Cook?

terça-feira, maio 01, 2007

Dá que pensar...

Há uns dias, o João Vasco, o Filipe Castro, o Ricardo Alves e o Ricardo Carvalho do Esquerda Republicana nomearam este blog para um Thinking Blogger Award (1), um dos cinco blogs que os faz pensar. Agradeço o gesto simpático. Uma notícia destas faz sempre bem ao ego. Pensar, por outro lado, faz mal ao ego. Vou explicar porquê.

Uma pesquisa rápida levou-me à origem da ideia, a 11 de Fevereiro (2). As regras são simples: quem for nomeado nomeia mais cinco, e inclui um link ao post no The Thinking Blog, que originou a cadeia. Curiosamente, a segunda regra foi rapidamente esquecida, e já quase ninguém refere a origem do prémio.

Como é que sei isto? Pois, essa foi a parte que fez mal ao ego. Como quase todos indicam quem os nomeou fui seguindo as nomeações. Ao fim de 16 passos, a 4 de Abril, perdi o rasto num blog de uma senhora da Califórnia. Neste trecho, isto dá um máximo de 516 nomeações. 152.587.890.625 blogs.

Extrapolando até à origem, seria uns 30 passos até 11 de Fevereiro. Assumindo que, em média, apenas duplica o número de blogs a cada passo fica apenas 1.073.741.824 blogs. Mil milhões de nomeados.

Até ficava contente se este blog fosse um de mil milhões de blogs que fazem pensar. Não me estorva a companhia. Mas nem é isso. É que o meu é o último desses mil milhões. Bolas.

Não é por maldade ou mau perder que termino aqui a cadeia. É que simplesmente já não há ninguém para nomear. Deixem estar que eu arrumo as cadeiras, apago as luzes, e fecho a porta quando sair.

1- Ricardo Alves, 26-4-07, Blogues que fazem pensar

2- Ilker Yoldas, 11-2-07, Thinking Blogger Awards