segunda-feira, julho 30, 2007

Copy Vai-te...

A Sun é um dos principais promotores do OpenOffice, um rival gratuito e open source* do Office da Microsoft. O OpenOffice foi o primeiro aplicativo do género a guardar os documentos em formato XML, um formato padrão de acesso livre. Em contraste o Office da Microsoft guarda os documentos em formatos proprietários que só a Microsoft oficialmente conhece, é caro, e alterar-lhe seja o que for é crime. Em 2003 a União Europeia solicitou à Sun que participasse na elaboração de normas para uniformizar o formato dos documentos electrónicos de escritório, como folhas de cálculo e documentos de texto. Uma norma destas deve ser aberta e em linha com os formatos padrão que já são usados.

Cá em Portugal o IPQ formou a Comissão Técnica de Linguagem de Normalização de Documentos para discutir as normas ISO. A Microsoft é representada por duas pessoas, uma das quais é presidente da comissão. Há representantes de empresas como Primavera e Jurinfor, parceiros da Microsoft em Portugal, e da ASSOFT, a associação Portuguesa de software comercial. Não há participantes de universidades, bibliotecas, ou outras organizações com interesses e conhecimentos em documentação estruturada. E agora recusaram a os pedidos da Sun e da IBM para participar na comissão técnica. A justificação foi que não havia mais cadeiras na sala.

Ser a Microsoft com os seus compinchas a decidir as normas ISO para a estrutura de documentos é um escândalo que dá brasa para muita sardinha, mas vou puxar só à minha. Não é por acaso que o encerramento do BTuga dá noticias em todos os canais de TV mas uma coisa destas não aparece em lado nenhum. Passou-se há duas semanas, mas só soube hoje pelo blog espanhol do Jorge Cortell (1). Foi seguindo as fontes de notícias espanholas que fui dar ao Abre-te Software, do Paulo Vilela (2). Nem é por acaso que as empresas que usam formatos fechados e proprietários conseguem controlar uma comissão cujo objectivo é criar padrões para todos usarem. É pelo dinheiro e poder que a lei lhes dá ao conferir monopólios sobre informação.

É ingénuo pensar que basta oferecer software e música por outras vias que não empunhando o copyright para resolver o problema. E é errado pensar que o direito de proibir os outros ou manipular mercados é de exercer ou não conforme se achar melhor. O facto é que este sistema está podre.

* open source: o código fonte é disponibilizado e pode ser alterado e distribuído com as alterações. Wikipedia.

1- Jorge Cortell, 30-7-07, Instituciones públicas se dejan y Micro$oft se aprovecha
2- Paulo Vilela, 16-7-07, Sun Microsystems "sem espaço" na normalização de documentos em Portugal

Treta da Semana: a Faniologia.

Já falei da ovniologia há uns tempos, mas volto ao tema por um convite irresistível que me lançaram dois leitores comentadores não identificados. Cito verbatim o leitor que assina Ufopt: «s não sabe do q fala mais vale estar caladow». É graças ao muito que aprendi com estes comentários que me atrevo a falar disto de novo.

Sei agora que a designação é errada. Os leitores Ufopt e S1LV3R_W0LF explicaram-me que o termo «ovniologia» ficou infelizmente associado a «discos voadores e homenzinhos verdes, quando na verdade não é assim». Em vez de OVNI devemos usar FANI, ou fenómeno atmosférico não identificado. Presumo que o seu estudo será a faniologia.

Não sei se o leitor que assina Ufopt está associado ao site UFOPT, o portal faniológico Português que ainda se apelida de ovniológico (2). Nesse site podemos ver um estudo do fenómeno atmosférico não identificado conhecido como mutilação do gado, e o número 4 da revista Ufopt Magazine dá a prova cabal que a faniologia não é só discos voadores e homenzinhos verdes:

«O conceito de mutilação de gado está relacionado com a descoberta de animais, em propriedades rurais particulares, aos quais foram retirados órgãos internos, através de cortes precisos com supostos instrumentos sofisticados. Nestes casos, os cadáveres apresentam indícios de não terem sido alvo de predadores. Uma das hipóteses que se levanta é a de que os animais foram alvo de mutilações por extraterrestres. Uma consideração sustentada não apenas nas evidências da mutilação em si (aspecto dos tecidos, das entranhas dos cadáveres), mas também pela inexistência de demais sinais físicos que apontem no sentido de uma causa menos misteriosa, como: ausência de pegadas, vegetação não pisada, ausência de marcas de veículos.» (UfoPt Magazine, nº4, p. 31)

Outra hipótese é que os furões, os corvos, e as larvas de mosca não usam veículos nem pisam muito a vegetação. Os órgãos retirados tendem a ser os genitais, olhos, ou tecidos moles mais susceptíveis de ser consumidos por insectos ou pequenos necrófagos. Os cortes com «supostos instrumentos sofisticados» são consistentes com os dentes afiados de pequenos animais e com a dessecação da pele e inchaço dos tecidos, que resultam em lacerações em linhas direitas. Os necrófagos também preferem consumir os órgãos internos penetrando pela boca ou ânus da vaca em vez tentar furar o couro resistente. Esta hipótese foi testada experimentalmente deixando num campo uma vaca morta e observando-a durante 48 horas. Mesmo sem se registar a presença de ETs a vaca ficou tal e qual aquelas cujo fim se atribuíra a caprichos de outro mundo (3).

Entrevistado nesta revista, o ufólogo/ovniologo/faniólogo Pepe Chaves explica o papel desta disciplina:

«Seria atuar como “um farol para a ciência” [...] Tal luz em si deverá atuar de forma a mostrar ao homem que segura a lanterna que a emana, quais deverão ser os aparatos que ele deverá usar para analisar ou tocar àquilo que sua lanterna clareou ali na frente»(UfoPt Magazine, nº4, p. 15)

É uma imagem bonita. Mas temo que, na longa lista de problemas que preocupam a ciência, o furão que roeu o ânus da vaca esteja longe dos primeiros. Mesmo sendo um fenómeno atmosférico intrigante.

1-Ovniologia
2- UFOPT
3- The Skeptic’s Dictionary, Cattle "mutilation"

domingo, julho 29, 2007

E fechou a mula...

Hoje os administradores da Mula da Cooperativa decidiram fechar o fórum (1). Não vendiam nada, não tinham conteúdos protegidos, nem sequer aceitavam donativos. A publicidade no site não era da sua responsabilidade, tendo sido imposta para compensar o tráfego e o alojamento. E era um fórum interessante porque reunia uma grande comunidade de pessoas. Havia discussões sobre series de ficção científica, arrefecimento de PCs, desenvolvimento de software, e assim por diante. Mas sobretudo era um índice organizado de identificadores de ficheiros da rede ed2k. Algo como isto:

ed2k://|file|The.Project.Gutenberg.DVD.December.2003.Edition.pgdvd.iso|4139646976|02CEB6E1E07A0CDC98757134B0678B14|/

A primeira parte indica que é um ficheiro ed2k. A seguir o nome do ficheiro, neste caso o DVD do projecto Gutenberg (2). O número a seguir é o tamanho do ficheiro em bytes, e finalmente o hash do ficheiro, o resultado de operações algébricas sobre os bytes do ficheiro (3). É este número que identifica o ficheiro mesmo que tenha um nome diferente.

Nada disto pode ser protegido por direitos de autor. O nome de um ficheiro, o seu tamanho, e um número grande em hexadecimal são informação de domínio público. No passado dia 24 terminou na Holanda o julgamento do site ShareConnector, um fórum semelhante ao Mula da Cooperativa. O site foi considerado legal, e o administrador ilibado, se bem que ainda há dúvidas acerca do que a lei permite fazer com esta informação (4).

Mas enquanto há dúvida, a polícia Portuguesa pode apreender material e revistar as casas de quem estiver envolvido nestas actividades. Quando encerraram o BTuga não apreenderam apenas o servidor. Foram a casa do administrador e levaram-lhe tudo o que tinha de material informático. Foi isso que assustou os administradores do Mula da Cooperativa e de outros sites. E com razão. Mesmo sabendo que ninguém é dono da informação que forneciam, uma a simples queixa pode dar-lhes muita chatice.

Enquanto a partilha intelectual floresce, do copyleft e open source à investigação científica e a todos os aspectos da arte que sempre foram partilhados, o negócio do copyright está cada vez mais atolado. Alguns propõem que seja o artista a decidir. Parece uma boa solução, em teoria. Mas na prática paga-se caro em ameaças e repressão.

1- Mula da Cooperativa
2- Project Gutenberg
3- Wikipedia, Ed2k URI Scheme
4- Slyck, 24-7-07, ShareConnector Trial Ends

sábado, julho 28, 2007

Treta da Semana: sites de partilha de ficheiros.

Esta semana a comunicação social revelou que não percebe a tecnologia de partilha de ficheiros. O «perito» que explicou a situação na SIC meteu os pés pelas mãos, a comentadora da TVI não sabia o que dizia. Pior ainda foi a entrevista com a coordenadora da PJ: «o site com maior número de partilhas em Portugal»(1). Ficou por explicar como é que um site tem partilhas. E provavelmente estão melhor informados que os magistrados ou o público em geral. O perito da SIC era o mais castiço. Devia ser mesmo perito, porque gesticulava muito e falava como para crianças de 3 anos. Com uma pilha de CDs ou DVDs à frente, explicou (1):

«é como se comprasse este disco, fizesse milhares de cópias, e colocasse à porta para quem quiser levar. É lógico que prejudicava os músicos e a indústria.»

Não vou discutir a lógica pela qual devíamos proibir a rádio e os gravadores de cassetes. Mas vou fazer as contas. Uns milhares de CDs e DVDs são uns mil gigabytes. Uma ligação de banda larga residencial permite enviar uns dez mil bytes por segundo. Cem milhões de segundos, ou mais de três anos de envio constante. Posto de outra forma, um miúdo fanático da partilha que nunca desligue o seu PC faz o equivalente a gravar uma cópia por semana. É como se comprasse este disco, e todas as semanas desse uma cópia a alguém. Mais honesto, mas menos alarmante.

O erro é confundir peer to peer (P2P) com o método mais conhecido de distribuição centralizada, ou cliente-servidor. A barraca da feira é um servidor onde os clientes vão às compras. A pilha de CDs à porta de casa é um servidor onde vão buscar cópias. O YouTube é um servidor de onde descarregam vídeos. Mas o YouTube transmite cem mil vezes mais que o «partilhador» residencial. A ligação P2P é de um para um, como o telefone. A analogia correcta seria tocar ao telefone a música que nos pedem do outro lado. Pode ser ilegal, mas está muito longe da pilha de milhares de CDs à porta de casa. Não é o utilizador individual que tem efeitos significativos, mas sim a acção distribuída de milhões de pessoas.

Obviamente, prender milhões de pessoas porque cada uma copia um DVD por semana não é prático. Por isso fecham os «sites de partilha». Segundo o perito da SIC, estes sites são como:

«uma barraca de feira onde as pessoas pagavam os discos e filmes mais baratos ou, em alternativa, tinham que fazer outras cópias ilegais e colocar à venda na tal barraca»

Não estou a defender sites como o Btuga, onde a cobrança de prioridades no descarregamento complica muito o assunto. Mas o problema desta analogia é que a «barraca da feira» não é o site. É uma rede, como a rede telefónica, por onde os utilizadores enviam ou recebem dados. Os ficheiros estão distribuídos por todos os utilizadores, e o site aloja apenas uma lista identificando alguns dos ficheiros espalhados pela rede. No site não há conteúdos protegidos.

E a até a transmissão de cada ficheiro é distribuída. Cada programa mantém uma lista de espera com os pedidos de outros utilizadores. Quando chega a vez de um, envia para esse uma parte do ficheiro que este pede e passa ao próximo da lista. Quem quer receber um ficheiro pede pedaços do ficheiro a centenas de outros utilizadores na rede, e fica à espera. Recebe um pedaço deste, outro pedaço do outro, e eventualmente junta os pedaços todos num só ficheiro. Um filme tipicamente é partido em centenas de pedaços que ninguém envia na totalidade. É como obter uma cópia de um poema telefonando a dezenas de pessoas, perguntando uma palavra de cada vez. Como apurar a responsabilidade desta violação de copyright?

Parte desta treta é ignorância, mas parte é aldrabice. O que cada pessoa faz na partilha de ficheiros é idêntico ao que já se fazia com os gravadores de vídeo, cassetes, ou fotocópias. A diferença não é o impacto de cada utilizador mas a organização da rede. Na internet, o vizinho do lado é o mundo inteiro, e é isto que assusta o distribuidor. Mas copiar um DVD por semana tem menos impacto que a treta dos milhares de DVDs à porta de casa, e preocupa-me que a probabilidade de um juiz perceber como o sistema funciona é ligeiramente inferior a nem penses nisso...

1- Jornal da Tarde, SIC, via Remixtures

sexta-feira, julho 27, 2007

Preço e valor.

Diz-se dos economistas que sabem o preço de tudo e o valor de coisa nenhuma. Faz sentido. Se alguém paga dois mil euros por um fato Valentino sabemos que o preço é dois mil euros. Não sabemos nada acerca do valor do fato, nem interessa. Normalmente não há confusão.

Excepto quando se discute o copyright. O João Vasco e o António apontam o preço dos filmes de cinema e da gravação de discos como factores a favor desta legislação. Um disco pode custar duzentos mil dólares e um filme de Hollywood custa em média sessenta milhões. Mas isto são preços, consequência dos monopólios que a lei confere. Não indicam o que devia ser. Apenas descrevem o que é, e não podemos justificar uma lei por fazer as coisas como são. Se assim fosse qualquer lei se justificava. Temos que justificar uma lei por tornar as coisas melhor que seriam com outra lei. Precisamos de valores.

O valor é subjectivo, mas numa negociação equilibrada podemos confiar num acordo justo. Podemos deixar o mercado decidir. Fatos a dois mil euros? Se há quem queira, não há problema. Problema é a transação assimétrica, como na saúde ou bens essenciais, quando um dos lados tem a faca e o queijo na mão. E como em tudo o que é coberto por direitos de cópia.

A exclusividade de cópia desequilibra o que seria uma negociação equilibrada. Se o cozinheiro não trabalha é despedido. Se não recebe vai cozinhar para a concorrência. Como ninguém é dono das receitas, o cozinheiro e o patrão negoceiam em igualdade. Mas o músico está tramado. Steve Albini, músico e jornalista, tem um artigo interessante onde relata a relação típica de uma banda com uma empresa discográfica (1). Feitas as contas, a banda recebe um adiantamento de 250 mil dólares, mais 50 mil da digressão, mais 40 mil de outras fontes. Disto descontam os custos de gravação e outros. Vendido um quarto de milhão de discos a discográfica tem um lucro de setecentos mil dólares, produtores e agentes recebem mais duzentos e cinquenta mil e a banda ainda fica a dever dinheiro, que será descontado no próximo álbum.

A possibilidade de privar o artista de todos os direitos sobre a sua obra permite ao distribuidor controlar o processo. A arte torna-se produção e promoção, uma fábrica de cópias onde o artista é matéria prima sem poder de negociação. É claro que o preço de produção é elevado. Com este sistema, gravar um disco vai ter sempre um preço igual à fatia que caberia aos artistas. É assim que industria recupera o adiantamento.

E não é verdade que os músicos só assinam se quiserem. O controlo da publicidade, das redes de distribuição, até do que toca na rádio torna quase impossível um artista vingar sem vender tudo a uma empresa discográfica, ou um filme ter sucesso sem o apoio de grandes estúdios e distribuidores. Só agora com os novos meios de distribuição é que isto começa a mudar, mas sempre contra a pressão constante da indústria.

O preço de produção não justifica a lei porque não é o valor do disco, da música, ou do filme. Não é o objectivo da legislação. É só a quantia que quem controla a obra consegue extorquir a quem a criou, e é a lei que o permite.

1- Steve Albini, The Problem With Music

quinta-feira, julho 26, 2007

Estranhamente!?

O Ricardo Pinho (obrigado ao João Vasco pelo aviso) escreveu no Ensaio Geral (1):

«...investigações conjuntas da PJ e da ASAE tem resultado no encerramento de sítios nacionais de partilha ilegal de ficheiros protegidos por direitos de autor.
As reacções na blogosfera nacional, estranhamente, são de indignação contra as autoridades. [...]
Não me compete a mim explicar agora as vantagens da propriedade intelectual, e em como os direitos de autor são o garante da cultura da nossa civilização.»


Não é assim tão estranho. É que a blogosfera depende de ideias que não são tratadas como propriedade. Os protocolos de transmissão. O HTML e CSS. A própria ideia de fazer um blog. O Justin Hall não recebeu um cêntimo dos milhões de pessoas que copiaram a ideia dele. Pela propriedade intelectual haveria meia dúzia de blogocantos, e só para quem pagasse.

A nossa civilização também assenta em ideias que não são propriedade. A ciência. A política. A ética. A nossa cultura é essencialmente ideias que não são propriedade. O rock and roll, o barroco, a comédia, o impressionismo, as obras de Shakespeare e Heródoto, a ficção científica, o cinema. E já havia civilização e cultura antes da convenção de Berna em 1886.

Finalmente, a propriedade intelectual não é propriedade. Nem pode ser. A ideia ou é segredo ou é de todos. A minha casa é propriedade. Não podem usar um bocadinho dela para citação, não a podem usar gratuitamente para fins educativos, não passa a ser domínio público ao fim de um período, e não a podem usar à vontade para crítica ou sátira. Mas a ideia da minha casa não é propriedade.

O termo é enganador porque «propriedade intelectual» não tem nada a ver com ser dono de uma coisa. É uma miscelânea arbitrária de restrições. Não se pode copiar, excepto para uso pessoal. Pode-se vender em segunda mão se for um livro, mas não se for software. Pode-se cantar no duche mas não na rua. Pode-se partilhar a música com os amigos numa festa em casa mas não no clube recreativo.

E não se confunda civilização e cultura com aquela minúscula fatia que os tais direitos de autor abrangem e que, felizmente, deixa livre o mais importante. Mesmo se nos restringirmos à arte vemos que a verdadeira inovação não é protegida. Ninguém fica dono de um estilo novo ou de uma forma de expressão artística inovadora. Um Robert Leroy Johnson, para a propriedade intelectual, não vale mais que uma Mónica Sintra.

O Ricardo fala nas «vantagens da propriedade intelectual», mas não diz em relação a quê. Certamente melhor que um pontapé nas partes baixas, é ainda assim pior que muitas alternativas. Como não considerar crime a partilha de conteúdo digital para uso pessoal. A arte floresce da liberdade de expressão e de inspiração, e tem pouco a ganhar prendendo quem dela quer usufruir. À lei podemos dar melhor uso, porque há por aí coisas mais perigosas que miúdos a gravar DVDs. E não se iludam com a treta de incentivar a inovação recompensando quem vende mais cópias.

1- Ricardo Costa Pinho, 25-7-07, PJ e ASAE chegam aos subterrâneos da Internet

Fechados «sites de partilha de ficheiros».

Por email ou comentário, várias pessoas avisaram-me desta notícia (1):

«Três sites portugueses que serviam de plataformas para pirataria informática e troca ilegal de ficheiros foram encerrados pelas autoridades nacionais numa operação que afectou 200 mil utilizadores, anunciou hoje a Polícia Judiciária (PJ).»

Não conhecia nenhum destes, mas pelo que se discute por aí parece que estes sites (pelo menos o Btuga) cobravam a alguns utilizadores uma conta premium, que, usando um cliente BitTorrent modificado, permitia descarregar informação da rede sem ter que contribuir para a partilha. Normalmente os programas de partilha de ficheiros tentam equilibrar a razão entre a informação descarregada e a informação partilhada com os outros utilizadores. O Btuga, por 5€, permitia descarregar 300Gb sem dar nada a ninguém. Possivelmente foi este negócio que levou à apreensão dos servidores.

Esta acção mostra o conflito entre o direito do autor e os direitos de todos. O que a notícia chama «sites de partilha» não são repositórios de conteúdo protegido. Ao contrário do que faz parecer, são apenas locais de discussão e indexação dos ficheiros. Toda a partilha é feita pelos utilizadores, entre si, um a um. São os utilizadores que têm e trocam os ficheiros. É por isso que o sistema se chama peer to peer.

Uma analogia menos informática seria um grupo de pessoas dispostas a fotocopiar livros uns para os outros, e um site listando os títulos, códigos ISBN, e uma forma de contactar quem tem o livro ou fotocópias. Fotocopiar livros pode ser ilegal na legislação vigente, mas considerar a lista de títulos uma violação de direitos de autor viola direitos bem mais importantes.

Neste momento não se sabe nada de concreto. A PJ cumpriu mandatos de busca e apreendeu os servidores como parte da investigação. O gestor do Btuga afirmou não haver nos servidores qualquer conteúdo protegido por direitos de autor. Além disso, nos mesmos servidores estavam alojados sites de outras empresas que não tinham nada que ver com partilha de ficheiros. Ao que parece, por uma queixa de violação de direitos de autor a PJ encerrou todo o serviço de alojamento da empresa Btuga, do qual o tal «site de partilha» era apenas uma parte. O Miguel Caetano tem mais detalhes no Remixtures (2) e várias pessoas do Btuga criaram um fórum de discussão sobre o assunto (3).

1- Lusa, 25-7-07 Encerrados três sites portugueses de partilha de ficheiros
2- Miguel Caetano, 25-7-07, BTuga: Polícia Judiciária faz rescaldo da operação
3- Fórum Btuga

quarta-feira, julho 25, 2007

Experiência... mas de quê?

Uma justificação para a fé religiosa é que não podemos ter evidências de algo que nos transcende, e por isso é necessário acreditar. Curiosamente, outra é precisamente o oposto: tem fé quem já sentiu a presença divina. O leitor que assina «NCD» comentou (1):

«ó Ludwig, o problema é que para quem viu os mamilos da lontra não vale a pena insistir na ideia que eles não existem.
Por muito estranho que isto possa parecer as pessoas que acreditam em Deus não o fazem porque os condicionaram a isso de uma forma ou de outra mas porque O experimentaram, [de] uma ou de outra forma.»


Mas a forma é quase sempre a que aprenderam em criança. A experiência dos Hindus não é Cristo, dos Muçulmanos não é Buda, dos Cristãos não é Allah. Mas há um problema mais fundamental. Para afirmar ter visto mamilos de lontra é preciso saber duas coisas: o que são lontras, e o que são mamilos. Por isso a quem diz ter tido uma experiência directa de deus pergunto: o que sabe desse deus para o reconhecer?

Não peço provas irrefutáveis. Peço apenas uma forma de distinguir entre sentir mesmo um deus ou julgar que se sentiu um deus mas ser engano, epilepsia no lobo temporal, ou outra coisa qualquer. E aqui costuma entrar a desculpa do amor: sentir deus é como estar apaixonado. Se estamos, sabemos o que é, e a quem não está não se pode explicar. É sempre comovente, esta explicação.

Mas não satisfaz. A paixão é um estado interno. Claro que senti-la diz-nos muito acerca do que sentimos. Mas considere-se tudo o que vem associado e que imaginamos acerca do objecto da nossa paixão. O seu carácter, a sua lealdade, a simpatia, como somos feitos um para o outro, e tantas outras coisas que, se nos fiarmos só na paixão, nos vão meter certamente em maus caminhos. Até a sua existência. Lembro-me, em miúdo, de estar apaixonado por uma princesa de um filme qualquer. A paixão era real. A princesa nem por isso.

«A experiência deles não lhe serve? O problema é seu. Não me verá tentar fazer nenhum ateu mudar de opinião. Já estive desse lado e sei que a mudança é pessoal. Mas não nos insultem.»

Mudar de opinião é pessoal. A questão é acerca do que justifica mudar ou manter uma opinião. Mas como não quero insultos proponho um acordo. Não me vou sentir insultado quando me disserem que por uma experiência pessoal se sabe que deus é Jahvé, teve um filho que era ele próprio, nasceu de uma virgem, morreu, ressuscitou, e entretanto o papa é infalível. Em contrapartida, não se ofendam se eu disser que isso é treta.

1- E se não for?

segunda-feira, julho 23, 2007

Lástima...

Um leitor anónimo comentou recentemente num post sobre o tarot (1);

«Que grande lastima! Cada vez que venho cá encontro uns artigos que dão lastima. Como alguém pode ser tão céptico, desta maneira. Não acredita que há qualquer coisa de bom neste universo? Tudo é mau? Não acredita em nada?
[...sinto p]ena de ver gente tão limitada.»


Agradeço a preocupação, mas é desnecessária. Acredito que há coisas boas, nem tudo para mim é mau. Acredito numas coisas e não noutras. E dou-me bem com as minhas limitações. Não é preciso ter pena ou lastimar a minha situação.

Acontece é que reconheço como modesto o impacto da minha crença ou descrença. Por crer numa mentira consigo apenas enganar-me; não tenho o poder de a tornar verdade só de acreditar. E se duvido de uma verdade não a torno menos verdadeira. A minha dúvida não faz mossa. Posso crer. Posso descrer. O universo não se importa.

Isto é libertador. É um alívio. Não tenho medo de pensar, de duvidar, de colocar perguntas ou tentar compreender as coisas por mim. Nem me sinto obrigado a acreditar. A realidade resiste à dúvida, e nunca vou estragar nada só por falta de crença. Posso ter a opinião que quiser sem que tudo fique uma lástima, e posso mudar de opinião sempre que encontrar uma melhor.

E as crenças dão-mas os outros. Só a dúvida é que é minha. É a dúvida que me diz que sou eu quem manda na minha mente. Não garanto que seja o segredo da felicidade. Se não acreditar em mim, óptimo. É mesmo isso. Mas é melhor que fiar-se nas cartas. Aproveito para citar novamente Niels Bohr:

«Truth is something that we can attempt to doubt, and then perhaps, after much exertion, discover that part of the doubt is unjustified.»

E o resto é treta.

1- Eu, 9-6-07, Treta da Semana: Tarot.

sábado, julho 21, 2007

Transcendência.

Um artigo de Dom Mário Neto, professor de Blinologia.

O jovem Krippahl insiste em usar critérios empíricos que não se adequam ao estudo da Religião, palavra que uso aqui no sentido estrito da adoração dos Blin e não no sentido despojado de profundidade com que hoje em dia refere qualquer superstição, seja Odin, bruxaria, Jahvé, ou o que for. E alguns comentadores já chamaram a atenção para este ponto: não se pode julgar a fé no Sagrado pelos mesmos critérios com que se procura mamilos na lontra. Mesmo sem ter alguma vez visto mamilos de lontra, parece-me evidente que não são a mesma coisa.

Infelizmente, invocam o argumento da transcendência. É uma falha compreensível, em quem não domina a matéria, pois a transcendência dos Blin fundamentou a Religião até meados do século XV. Os Blin, transcendentes, não eram visíveis ao olho empírico e essas coisas, pelo que se justificava em pleno a certeza absoluta da sua existência. Mas o aproximar do ano 1500 viu criar-se um clima de dúvida. Afinal, nenhuma mãe quer que o filho falte à escola alegando uma febre altíssima que transcende o termómetro empírico. Ao final do século XV a Europa estava ao rubro com estas profundas disputas Blinológicas. A tensão chegou a extravasar para vários cultos e seitas, num caso famoso dando até azo a 95 teses, um exagero mesmo para os padrões modernos, em que se escreve teses sobre tudo e mais alguma coisa.

A solução foi revelada por São Gervásio de Dornelas, na Beira Litoral. Como o ovo de Colombo, parece óbvia depois de vermos como é. São Gervásio notou que a transcendência era irrelevante, uma mera desculpa para não ir à escola. O que importa é a Transcendência. Notem o T maiúsculo. É essa propriedade dos Blin que os coloca totalmente à parte de qualquer refutação empírica. O efeito foi imediato, devolvendo aos crentes o fundamento da sua fé nos Blin e simplificando toda a argumentação Blinológica. Conta-se que São Gervásio, sempre pragmático, até fez um bom dinheiro vendendo cartões onde se lia, em bela fonte gótica:

«Esse argumento/exemplo (riscar o que não interessa) é completamente inadequado porque os Blin Transcendem _______________________________________.»

Mesmo as dúvidas mais profundas podiam agora ser dissipadas com um simples gesto da pena.

Evidentemente, com o passar dos séculos o argumento da Transcendência perdeu alguma força. Na Blinologia é aceitável que a argumentação tome qualquer rumo (desde que a conclusão seja sempre a mesma), e vários pensadores apontaram pontos fracos neste venerável argumento. Mas a mesma ciência e tecnologia que levanta dúvidas ao crente também o mune de argumentos cada vez mais fortes. Hoje em dia não temos apenas a letra maiúscula, mas também o itálico e até o negrito, que podem ser conjugados no que é certamente um argumento irrefutável pela existência dos Blin: a sua Transcendência.

O fim das damas.

Calma. É o jogo. E em Abril o Jonathan Schaeffer estragou-o. Autor do Chinook (1), o programa campeão de damas, andava há dez anos a ver se lixava a vida aos idosos. Finalmente conseguiu mapear todas as jogadas possíveis. Agora, quem seguir a receita correctamente garante o empate, ou a victória se o outro se enganar. Computacionalmente é um resultado interessante, pois teve que pesquisar 500,000,000,000,000,000,000 partidas. Mas incomodou-me o comentário (2):

«I think we've raised the bar - and raised it quite a bit - in terms of what can be achieved in computer technology and artificial intelligence."»

Concordo que sim em tecnologia da computação, mas isto não tem nada a ver com inteligência artificial. Criar uma enorme tabela com todas as combinações não é o que entendemos por inteligência, mesmo que, admitidamente, se saiba muito pouco acerca da inteligência. Mas provavelmente não era bem isto que Schaeffer queria dizer. Estas entrevistas os jornalistas tendem a condensar e perde-se os pontos mais subtis.

Seja como for, podem arrumar as damas. E não percam muito tempo a aprender xadrez...

1- Chinook
2- BBC, Computers crack famous board game

sexta-feira, julho 20, 2007

E se não for?

A reacção animada ao último post (1) trouxe novamente à tona a confusão entre dois tipos diferentes de crença. Eu nunca vi mamilos de lontra, mas creio que as lontras os têm. Alguns crentes dirão que isto prova que o conhecimento científico é igualzinho à fé religiosa. Uns crêem nos mamilos de lontra sem nunca os terem visto, outros crêem em deuses sem nunca os terem visto. É a mesmíssima coisa.

Só que não. Uma grande diferença é a atitude perante a possibilidade de erro. E se não for como eu penso? Se procurar na lontra toda e não vir vestígio de mamilos mudo de ideias. Não vou postular mamilos invisíveis, transcendentes, metafísicos. Nem mamilos omnipotentes a saltar para as costas da lontra quando lhe examino o ventre, testando a minha fé no Mamilo. Se não tem, não tem. Mudo de crença. Agora perguntem ao crente religioso como ele encara a possibilidade de se enganar. E se não existirem deuses? Como é que sabe? É mamilos invisíveis até onde a vista alcança...

A fé é uma forma imatura de saber. Partilha com o último a parte da crença, de aceitar uma proposição como verdadeira. Mas fica-se por aí. Falta-lhe o mais importante: razões e a capacidade de se corrigir. A fé é julgar que se sabe, mas sem se saber como e sem perceber que as coisas podem não ser como se julga.

1- 19-7-07, Ateísmo militante.

quinta-feira, julho 19, 2007

Ateísmo militante.

Copiado sem vergonha nem remorso do Pharyngula (1):

Crente fundamentalista: Tenho a certeza absoluta que 2+2=5 porque está Escrito.

Crente «moderado»: Normalmente considero que 2+2=4, mas admito que já tenha sido 5, possa vir a ser 5, e na minha dimensão espiritual e de realidade transcendente parece-me óbvio que 2+2=5.

Ateu «moderado»: Eu sei que 2+2=4, mas não ando por aí a dizê-lo porque pode ofender quem acredita que 2+2=5.

Ateu «militante»: Olhem lá. Tenho um, dois seixos. Junto mais um, dois seixos. Fico com um, dois, três, quatro seixos. Mas qual é o vosso problema?

1- P. Z. Meyers, 19-7-07, We all seem to be in an arithmetical mood today

quarta-feira, julho 18, 2007

Filmes.

Tenho que voltar ao tema do copyright para dar (alguma) razão ao João Vasco e ao leitor que assina «NCD» (1). Ao contrário do que eu julgava, os bilhetes de cinema são uma parte menor dos lucros dos filmes. O grosso das receitas está nos DVDs e na bonecada associada a um filme de sucesso.

Mas apesar (ou por causa) disso a sétima arte é uma boa razão para deixar morrer o copyright. O João Vasco defende que o copyright é necessário para financiar mega-produções cinematográficas, mas os números não o apoiam. Sete dos dez filmes mais caros de sempre (2) foram produzidos nos últimos 4 anos, em plena era p2p, mesmo ajustando os valores à inflação. E o público destes filmes, como Terminator, Spider-Man, King Kong, Pirates of the Caribbean, coincide bem com as dezenas de milhões de participantes nas redes de partilha.

Não é estranho. Para o jovem que considera ir ao cinema com os amigos importa mais o dinheiro que tem no bolso do que o filme que sacou da internet. As camisolas e os bonecos não perdem com a partilha, e o original é uma prenda melhor que a cópia em DVD gravável. Os números confirmam: mesmo o aumento exponencial das redes p2p tem um efeito pequeno e gradual na industria.

Terá certamente algum efeito. Mesmo não sendo tão devastador como o João Vasco defende, nenhum negócio escapa ileso à perda de um monopólio. Mas não é mau para a arte, porque pagar à cópia é uma forma muito idiota de incentivar a inovação. Como inovação, vinte milhões de cópias de uma música são dezanove milhões, novecentas e noventa e nove mil novecentas e noventa e nove cópias a mais. Com o copyright estamos a incentivar o oposto da inovação, e isso vê-se bem nos filmes.

Na região da grande Lisboa exibe-se hoje 38 filmes em cerca de 160 salas de cinema. Trinta com o Harry Potter, outras tantas com o Transformers, umas vinte para o Die Hard IV (3). Hollywood produz um décimo dos filmes do mundo inteiro e arrecada três quartos do valor das vendas. O cinema Europeu é um décimo do que era no início do século XX. Este é resultado de conceder monopólios sobre a cópia. Não é má ideia quando queremos uma aspirinas ou lâmpadas, mas é disparate quando queremos arte. A arte requer diversidade. Como na culinária. Há McDonalds e bitoques, mas estávamos mal se em 160 restaurantes houvesse apenas 38 sabores, e todos tão parecidos como os filmes de Hollywood.

A partilha pode reduzir as vendas do que tem mais publicidade e menos substância, mas aumentar as de obras mais inovadoras e menos publicitadas. Isto ajuda a reduzir a McDonaldização da música e do cinema. E nem é preciso alterar a lei de uma vez. Basta deixar a tecnologia evoluir sem estar sempre a inventar penas de prisão por gravar no cinema, obrigar os ISPs a filtrar transmissões ou proibir aulas de guitarra. A tecnologia reduz gradualmente o efeito do copyright até se poder deitar fora esta legislação com um mínimo de perturbação. Isto libertará a criatividade artística dos custos de um sistema de distribuição que está ultrapassado: a proibição de obras derivadas, o período interminável de monopólio, e até a proibição de citação na música ou no cinema, onde usar uns segundos de outra obra é caso para tribunal.

Mesmo que se ignore o mais importante, que é a violação da liberdade de expressão e da privacidade que o copyright obriga hoje em dia, e mesmo que se considere apenas o problema de incentivar a criatividade, ainda assim o copyright é uma treta.

1- 18-7-07, Copyright, direitos de autor, incentivos e mercado.
2- Wikipedia, List of most expensive films
3- Cinecartaz

Copyright, direitos de autor, incentivos e mercado.

Esta discussão levou-me a definir melhor a minha posição acerca deste assunto. Os próximos parágrafos são para quem o título não fez pensar «Chiça, mas este gajo agora só escreve acerca disto?!».

Por copyright entendo literalmente o direito legal de fazer cópias. É um legado de quando era preciso subsidiar as fábricas de discos, livros e filmes. Agora é um mal desnecessário. Copiar é fácil, e já não precisamos conceder monopólios para suportar o fabrico de exemplares. E é um erro confundir o copyright com um incentivo à criatividade. O escritor ou compositor recebe uma parte mínima de cada livro ou disco. Normalmente o que sustenta a sua actividade criativa são concertos, palestras, ou outra actividade profissional como o ensino. O monopólio do copyright serve a indústria de copiar e não a arte de criar.

Sou contra o copyright por não ser um bom incentivo à criatividade e por servir actividades cada vez menos necessárias, mas principalmente e pelo seu enorme custo social. Muitas leis para impedir que cada um faça cópias só para obrigar a pagar a cópia a outro que a faz por um preço muito maior. E o pior é o copyright sobre o conteúdo digital. Além de agravar as desvantagens é absurdo. A codificação digital é arbitrária, por isso para regular a cópia digital qualquer sequência de números tem que ser considerada cópia de qualquer outra sequência de números. O 24 é cópia do 12 se dividir por dois e cópia do 8 se dividir por 3. Que raio de coisa...

Por direitos de autor entendo o direito moral do autor de ser reconhecido e de não ter a sua obra deturpada enquanto obra sua. Faz parte de ser honesto, de não dizer que fui eu quando não fui ou que foi ele quando não foi. Se alguém copiar este texto deve indicar que fui eu que o escrevi e não deve mudar o sentido destas palavras sugerindo que eu disse outra coisa. E é isso. Quem divulga publicamente uma criação sua não tem o direito de limitar aos outros a liberdade e expressão, a troca de informação acerca dessa obra, a crítica, a sátira, a citação parcial ou integral, a obra derivada, ou o que mais seja. As ideias públicas são de todos.

Posto isto resta incentivar a criatividade e disseminação de ideias e garantir um comércio livre e competitivo. Mas sempre com o cuidado de procurar soluções só se houver problemas. Senão dá asneira. Muitos jogam futebol, alguns têm jeito e treinam com afinco durante a juventude, e uns poucos tornam-se futebolista profissionais ricos e famosos. O gosto pelo desporto e o sucesso de alguns é incentivo suficiente, e a ausência de restrições legais permite que muitos assistam aos jogos e recompensem os melhores jogadores. Não há problema, não é preciso solução. Não é preciso legislar incentivos ao futebol.

A música, os livros e os filmes são um caso semelhante ao da moda, da culinária e do desporto. São coisas que muitos apreciam, para as quais alguns são excepcionalmente dotados, e basta o contacto entre os dois grupos para que surjam os incentivos. Para isso já temos a internet, não é preciso intermediários protegidos por leis especiais e monopólios. Só atrapalham. Impedem a criação de modelos novos de negócio, prendem os artistas às empresas de distribuição, bloqueiam o desenvolvimento tecnológico, sobrecarregam o sistema de legal e chateiam muita gente. A única vantagem desta legislação era dar-me tema para o blog, mas já nem isso que o tema já aborrece.

Resumindo, penso que devemos eliminar copyright mesmo que prejudique a música e o cinema porque o custo de restringir a cópia é demasiado grande. Mas nem me parece que haja qualquer prejuízo para a criatividade artística. Porque é desnecessário em outras actividades semelhantes. Porque sempre que uns têm o que outros querem acabam por encontrar forma de o vender. E porque na prática o copyright já é tão ineficaz que têm que inventar leis todos os dias só para o manter vivo.

Dezenas de milhões de pessoas partilham ficheiros. Mais de metade do tráfego na internet é p2p. E não se nota qualquer redução na qualidade ou quantidade de música, literatura, ou filmes. Quem cria ganha o seu. Quem aprecia está disposto a pagar. Quem vive de fazer cópias é que se está a tramar. Quem se queixa são os distribuidores, que precisam do monopólio para subsistir porque não têm nada a oferecer num mercado livre.

terça-feira, julho 17, 2007

Treta da Semana: Centro Transdiciplinar de Estudos da Consciência.

Descobri esta no Ciência ao Natural, onde o Luís Azevedo Rodrigues (1) há duas semanas apontou vários disparates deste Centro Transdiciplinar de Estudos da Consciência (CTEC) (2). Esta treta incomoda-me porque o CTEC é um centro de investigação da Universidade Fernando Pessoa (3). Mesmo uma universidade privada devia exigir um mínimo de rigor nestas coisas. Recomendo que leiam o que o Luís escreveu, mas há aqui treta que chegue para vários blogs. A introdução é genial:

« A história do Conhecimento tem mostrado, repetidamente, que muitas das mais relevantes descobertas científicas foram ignoradas e refutadas na sua época pelos contemporâneos. [...] Em universidades de reputação inquestionável, como as de Stanford, Harvard, Princeton,[...] começaram a acolher no seu interior grupos de académicos, cientistas e professores, de diferentes áreas e sensibilidades, para coordenar, analisar e testar toda a informação relativa a domínios inexplorados da experiência e da consciência humana»

Resumindo: não só estão sozinhos a lutar corajosamente contra a falta de visão da comunidade científica, como estão acompanhados das melhores universidades do mundo. Se não fosse a contradição era impressionante. A seguir explicam a motivação para este centro, de uma forma que já foi tema neste blog (4):

«O CTEC surgiu da necessidade, inevitável e natural, da evolução e complexidade dos saberes, de se atender à emergência de novos objectos e novos "limites" ao alcance do conhecimento científico contemporâneo, resultado da convergência entre disciplinas consolidadas e outras em desenvolvimento.»

Um dos fundadores do centro é Joaquim Fernandes, historiador e co-autor com Fina d’Armada de uma série de livros sobre as aparições de Fátima. Não foi nossa senhora. Foram OVNIs. Mas esse é um novelo de tretas para outro dia. Hoje vou-me ficar por uma das linhas de investigação destacadas pelo CTEC, o Efeito Biefeld-Brown. É o que faz levitar estruturas leves de folha de alumínio quando se aplica uma diferença de potencial na estrutura. Os ovniólogos dizem que é antigravidade. Na página do CTEC apontam como objectivos deste estudo:

«a- estabelecer uma teoria Física que explique o fenómeno;
b- determinar se a força produzida pode ser aumentada;
c- experimentar dispositivos de aplicação prática para orientação de satélites no espaço e propulsão de sondas espaciais.»


Após um protótipo em 2003, um encontro em 2004 «serviu para traçarmos planos de investigação mais promissores e avançados». Espero que esses planos incluam consultar a wikipedia (5). É que desde os anos 50 que se sabe exactamente o que é este efeito. Um dos eléctrodos é fino e afiado, o que aumenta o gradiente do campo eléctrico. Isto ioniza o ar neste eléctrodo, cria moléculas carregadas que são atraídas pelo outro eléctrodo, e as colisões destas com as restantes moléculas do ar criam uma corrente de ar que levanta o leve aparelho. Não é preciso «estabelecer uma teoria Física que explique o fenómeno». O Sr. Maxwell já tratou disso. Nem vai dar para orientar satélites no espaço, a menos que levem a atmosfera atrás. E não aconselho a tentarem aumentar a força produzida sem que peçam ajuda a um adulto, não vá a brincadeira pegar fogo à UFP.

Concluo com duas sugestões para investigações futuras. Uma estrutura rígida circular para facilitar a locomoção em superfícies planas, e um método de converter substâncias combustíveis em luz e calor na presença de oxigénio. Estou certo que uns anos depois dos primeiros protótipos terão planos promissores e avançados de investigação, e até se podem entreter a estabelecer teorias Físicas que expliquem estes fenómenos. Fica também aqui o apelo à direcção da UFP. Dêem uma olhada nisto, a ver se é o que entendem por um centro universitário de investigação.

1- Luís Azevedo Rodrigues, 30-6-07, Qualquer dia prefiro os criacionistas…se calhar não!
2- Página do CTEC.
3- Centros de investigação da UFP
4- 18-6-07, Treta da Semana: A verborreia.
5- Wikipedia, Biefeld–Brown effect

segunda-feira, julho 16, 2007

O mercado de ideias.

Vários comentários ao meu último post (1) merecem uma resposta mais elaborada. Vou começar pelo António, que diz:

«Se para o Ludwig a musica gravada vale 0 Euros, e a musica é vendida a 10 Euros, então não ouve, pois a audição está avaliada pelo mercado em 10 Euros.»

Não é avaliada pelo mercado. É um preço artificial, fruto de uma lei que confere um monopólio e torna escasso algo que não o é. Se fosse pelo mercado, o preço da sequência de números que codifica uma canção era o mesmo das sequências de caracteres que codificam a receita da mousse de chocolate, a fórmula resolvente ou as leis da termodinâmica. Zero. É só informação. É de graça. O Mário Miguel deu um bom exemplo (2):

«Ok vamos a um jantar em que tu e eu estamos incluídos, divide-se a conta por n-1, eu não pago, claro. Reclamas comigo? É justo que o faça sempre?»

Não é justo. A comida é um bem escasso; a que eu dou já não posso comer. Mas não fico ignorante por ensinar os outros. Se calculo quanto calha a cada um pelo jantar é justo que os outros usem esse valor sem que tenham que repetir as contas. Uma vez obtida a informação todos podem beneficiar sem qualquer custo adicional.

O último computador que comprei é mil vezes melhor que aquele que os meus pais me compraram há 15 anos. E foi metade do preço. O material é o mesmo; plástico, alumínio, silício. Só mudaram as ideias. Hoje sabe-se fazer computadores melhores e mais baratos. Essa inovação teve que ser paga, mas foi paga durante a segunda grande guerra, foi paga pela exploração espacial, e até foi paga pelos meus pais. Quem compra um computador agora goza sem encargos os benefícios de meio século de desenvolvimento. Essa inovação já está paga, e é assim com tudo. Os livros eram um bem de luxo há uns séculos, mas da prensa à impressão computadorizada foram ficando melhores e mais baratos. Os transportes, a agricultura, as comunicações. A própria civilização. Os direitos do Homem, a democracia e a liberdade são ideias que tiveram que ser pagas. Mas depois de desenvolvidas podem ser aproveitadas por todos sem custos adicionais. Devem ser aproveitadas. O progresso é aproveitar os benefícios daquilo que os antepassados pagaram.

A arte não é excepção. Mais de 99% de uma música moderna tinha sido inventado antes. Instrumentos, notas, ritmos, acordes, melodias, temas, rimas. É certo que o 1% que resta requer esforço, e esse esforço deve ser compensado. Mas uma vez feito esse esforço pode-se usufruir da informação sem custos adicionais. Como em tudo o resto, das receitas à matemática, da física à medicina. O que é preciso é incentivar a inovação. Infelizmente, convenceram-nos que a inovação em certas áreas só pode ser incentivada cobrando à cópia. Chega-se ao ponto de ver a partilha de informação como o problema. O João Vasco diz (1):

«Até recentemente não era fácil reproduzir as criações alheias, pelo que o problema não se colocava.»

Não é o problema. É a solução. A ciência, a educação, a democracia, a ética, mesmo a arte, dependem da reprodução de ideias alheias. O maior problema sempre foi o de disseminar a informação. A empresa distribuidora de discos e filmes foi uma solução que teve que ser paga à cópia. Facilitava a reprodução das criações alheias, mas pagava-se caro. Felizmente, é uma solução ultrapassada pela rede digital. Agora que disseminar ideias é tão fácil, o copyright já não serve para nada. O difícil é ter ideias, por isso temos que incentivar o autor e não o distribuidor. Pagar ao autor para ter as ideias em vez de pagar ao distribuidor para fazer cópias.

Maria Shneider é o exemplo mais famoso deste novo modelo (3). Propõe um projecto aos fãs, e se eles pagam ela grava o disco. E faz um dinheirão, porque mesmo vendendo relativamente pouco o lucro é todo dela. Contra o bom senso e contra o que a realidade demonstra, muitos insistem que isto é impossível. Não admira muito. Também há quem insista que a Terra é plana. Mas só teremos um verdadeiro mercado de ideias deixando a criatividade artística competir pelo dinheiro dos fãs. Sem monopólios e sem restrições disparatadas à disseminação de informação. Os artistas oferecem a sua criatividade, os fãs pagam aos que preferem, e o que se cria beneficia todos.

1- 15-7-07, À borla é maldade.
2- 13-7-07, Tudo doido...
3- Maria Schneider, e ver também o site da ArtistShare

domingo, julho 15, 2007

À borla é maldade.

A ideia que ninguém deve ter um benefício sem pagar polui sempre a discussão do copyright. É injusto. É free riding. É pecado. É violação de direitos.

É treta. E é irónico numa sociedade tão dependente da ciência e da educação, que alguns pagam e dos quais todos beneficiam. Duplamente irónico, pois a função do copyright devia ser mesmo alguns pagarem agora para mais tarde todos beneficiarem. Na prática, a Disney nunca deixa o que quer que seja entrar no domínio público, mas em teoria era suposto haver um prazo para essas coisas.

Até aos últimos cento e poucos anos arte como poesia, literatura e música foi sempre à borla. Os trovadores e os poetas cobravam por actuação, mas não cobravam royalties por cada música ou poema. O dono da taberna não pagava à SPA por ter lá gente a tocar tamborim e flauta. E quem quisesse tocava e cantava em público. A arte era distribuída de pessoa a pessoa. Peer to peer. E era criada da mesma forma. Não há criatividade isolada, e até os génios dependem de criações anteriores. A criatividade sempre se assumiu como um esforço colectivo. Até recentemente.

Com a industrialização surgiu uma nova forma de distribuir, com uma arquitectura cliente-servidor. Livros, filmes e discos fabricados em massa e vendidos por todo o mundo. Leva cultura a muita gente, o que é um grande benefício. Mas dá demasiado poder a quem faz as cópias e o custo vai sendo cada vez maior. Mata a arte popular, suprime a liberdade de muitos artistas, e dá-nos este admirável mundo novo em que a AOL Time Warner é dona do parabéns a você, o Paul McCartney é dono de todas as canções do Buddy Holly e o Michael Jackson de todas as canções que o Paul McCartney compôs com o John Lennon. As fábricas do suporte tornaram-se em fábricas do conteúdo, e a arte passou a negócio.

E esta indústria treinou gerações a ver a arte como algo que se compra na Valentim de Carvalho, e se a loja fecha ficamos sem arte. Ouvir música à borla é roubo. Tem que se pagar o artista (leia-se «gestor de direitos»). Treinou-nos a ver Àgatas, Quins Barreiros e Backstreet Boys como seres especiais. São Autores. Têm Direitos. Tudo treta. Não são mais que os trovadores. Ouvem umas coisas aqui e ali, dão-lhes uns toques, e repetem com pequenas variações. Fazem o que muitos outros podiam fazer.

Há muito mais gente com talento do que com contractos de edição. A revolução digital não nos dá apenas mais capacidade de distribuição sem o custo de criar monopólios. O mais assustador para a industria é que dá a qualquer pessoa com talento a possibilidade de criar e distribuir a sua arte, e de juntar à sua a criatividade dos outros. Nem tem que ser sempre o Pachelbel. Os direitos de autor proíbem as obras derivadas, conferem monopólios, restringem a criatividade. Durante um século foi este o preço de um sistema de distribuição em massa. Mas agora até a distribuição restringem. São só custos sem benefícios.

Relaxar estas restrições iria estragar muitos negócios, mas como sociedade só temos a ganhar. Quanto maior o acesso à cultura mais artistas haverá, e quanto mais fácil for divulgar e criar arte mais e melhor arte teremos. Se queremos incentivar a criatividade temos que investir nas pessoas e não nos negócios. E a melhor forma de o fazer é dando-lhes o máximo de liberdade de criar e apreciar arte.

sexta-feira, julho 13, 2007

Tudo doido...

Inicialmente concebido para incentivar a criatividade, o copyright tornou-se numa forma de proteccionismo, uma ferramenta legal de supressão da inovação e, finalmente, numa doidice pegada.

Nos EUA cinco pessoas foram presas por tentar gravar o filme Transformers no cinema (1). Com telemóveis. Até um ano de prisão e multas até 2,500 dólares. Dan Glickman, director da MPAA (Motion Picture Association of America), disse que isto servia para lembrar os criminosos que serão presos sempre que tentarem «roubar filmes do ecrã». Antigamente o homem civilizado ria-se da superstição de julgavar que a fotografia roubava a alma. Agora prende quem rouba o filme com um telemóvel.

Na Austrália os bares e discotecas vão pagar pela música €0.7 (1 dólar australiano) por dia por cada cliente (2), um aumento para mais de dez vezes o valor anterior. Além disso esta taxa será calculada pela capacidade do estabelecimento, e não pela ocupação. Quem organizar uma bailarico tem que pagar €2 por pessoa, quinze vezes mais que o valor anterior. A indústria discográfica não se quer afundar sem primeiro chatear o máximo possível.

Também nos EUA, a You Tube apagou cerca de 100 vídeos de um professor de guitarra, David Taub, porque uma editora se queixou que num desses vídeos o criminoso ensinava a tocar a música Brown Sugar dos Rolling Stones (3). Com estas coisas tem que se cortar o mal pela raiz. Se o pessoal se põe a cantar e a tocar deixa de comprar discos e deixa de haver música. É o fim da civilização.

E, já agora, Portugal. O site Português da Pro-Music, sempre fonte de humor e boa disposição, tem uma secção na primeira página onde nos dá as últimas «notícias sobre música online». A mais recente tem quase oito meses, e intitula-se «Evadido do EP de Alcoentre detido na sequência de queixa da AFP»(4). Evadido. Detido. Isto da música online é muito perigoso. Ou talvez não. Além de dar poucas notícias (em 8 meses não terá acontecido mais nada com a música online?) esta é acerca de um tipo que tinha sido preso por contrabando de droga, fugiu da cadeia, e foi apanhado com outro a fazer contrafacção de CDs e DVDs. Fica aqui a lição aos jovens. Muito cuidado. Se fizerem contrabando de droga, forem presos, fugirem, arranjarem 59 gravadores de DVD e começarem a vender filmes na feira a Lei há de vos apanhar. Provavelmente. Pensem bem nisto quando fizerem o download da última música da Britney Spears.

1- Zeropaid, Theater employees and PATRONS team up to help bust pirates across the country.
2- The Australian Nation, Royalty enters nightclubs to pay for play
3- Miguel Caetano, 10-7-07, Professor de guitarra obrigado a retirar vídeos do YouTube
4- Pro-Music, 6-12-06, Evadido do EP de Alcoentre detido na sequência de queixa da AFP.

quinta-feira, julho 12, 2007

Treta da Semana: em nome da biologia.

Devo este post ao Pedro Sette Câmara e à Patrícia Lança, d’O Insurgente, que há umas semanas apelaram à biologia para criticar o sexo anal e as práticas homossexuais (1):

«Faço apenas a ressalva à questão de o heterossexualismo não poder ser considerado “em si” moralmente superior ao homossexualismo. Como o próprio Olavo já escreveu em algum outro lugar, o heterossexualismo é uma questão de vida ou morte, de perpetuação da espécie, e o homossexualismo, bem, não pode ambicionar tanto.» (Pedro Sette Câmara)

«Nós progredimos um pouco desde a antiguidade. Sabemos muito mais sobre o corpo humano. Sabemos muito bem que o sistema digestivo, ingestão e excreção, não deve ser confundido com o sistema generativo.»(Patrícia Lança).

Como alguns comentadores apontaram, o pénis também tem uma função excretora. Só um homem muito sortudo, ou quase cego se acreditarmos na Igreja Católica, é que o utilizará com mais frequência para outro fim. Mas a canalização é a mesma. E mesmo que se condene também o sexo oral pela tal confusão que «não se deve» fazer, ainda assim é má educação passar à actividade generativa sem, pelo menos, uns beijinhos primeiro. Só a reprodução in vitro resolve as coisas sem «confusões».

A maior confusão aqui é assumir que o sexo tem apenas um papel generativo. Quando um peixe fêmea expele uns milhares de ovos, o macho ejacula-lhes para cima e cada um vai à sua vida podemos dizer com confiança que foi um acto meramente generativo. Mas a nossa espécie é diferente. Se querem apelar à biologia ao menos olhem para a biologia.

A mulher está fértil uns dias por mês, ninguém sabe bem quando, mas a actividade sexual não varia significativamente com a fertilidade. Sem leite em pó ou papas as mulheres amamentam as crianças durante alguns anos, e isso inibe a ovulação. Mas a actividade sexual persiste apesar da infertilidade temporária. Em vez de gerar milhares de filhos por acto reprodutivo, os nossos antepassados tinham tipicamente um filho para cada dez ou vinte actos sexuais. E sem contraceptivos. O que a biologia mostra é que a sexualidade humana é muito mais que fazer bebés.

Agora o Pedro, com a treta da reprodução para a propagação da espécie. Na biologia a sério, em oposição à biologia cortada à medida dos preconceitos de cada um, esta ideia foi enterrada em 1964 pela teoria de selecção por parentesco (kin selection) de Hamilton. O que conta são os genes. «Espécie» é só o nome que damos ao conjunto de populações de indivíduos que estimamos poder reproduzir-se entre si. E não é para. Não há «paras» na biologia. É porque. Certos genes prevalecem numa população porque organismos com estes genes tiveram mais sucesso reprodutivo no passado, e nunca (nunca!) para ter mais sucesso reprodutivo no futuro. Os genes não pensam no futuro.

Mas o pior de tudo nem é enganarem-se na biologia. O pior é o juízo de valor do «moralmente superior» e do «não deve ser confundido». A biologia não tem nada a ver com o que deve ser. É uma descrição do que é. Descreve a saúde e a doença, o nascimento e a morte, o bom e o mau. Pelo raciocínio da Patrícia e do Pedro não se devia jogar à bola, escrever, pintar o cabelo, escovar os dentes, ou fazer qualquer coisa que não seja uma função biológica das partes envolvidas.

Que se enganem na biologia ainda vá. Toda a gente se engana. Mas do é para o deve ser não se vai por engano. É preciso escolher com cuidado só algumas partes de tudo o que é, e depois defender que estas devem ser porque são mesmo sabendo que há muitas que são e não devem ser e outras que não são mas deviam ser. Isto não é enganar-se. É enganar os outros. E é treta.

1- Pedro Sette Câmara, 26-6-07, Bem no alvo.

quarta-feira, julho 11, 2007

O melhor é estar preparado...

Na Austrália a polícia já está a considerar o problema da nova tecnologia ao serviço do crime. Segundo Mick Keelty, comissário da polícia federal Australiana, os desafios no futuro serão a fraude online e «potencialmente um clone parte pessoa parte robô» (1).

É bom saber que por todo o mundo as forças policiais se preparam para o futuro. Consultando revistas do Homem Aranha...

1- The Age, 6-7-07, Top cop predicts robot crimewave

Via Schneier on Security

terça-feira, julho 10, 2007

Ao contrário.

Um leitor anónimo indicou um artigo no Sol sobre uma proposta para se ensinar criacionismo na Alemanha (1). A politiquice do costume. E esta treta mais uma vez, citando o deputado Norbert Geis:

«Ao chamar a atenção para o facto de que a bíblia atribui a criação do mundo a uma instância superior, é possível transmitir aos jovens que a ciência não pode garantir a última verdade»

Nada pode garantir isso. Durante mais de mil e quinhentos anos julgava-se que sim. A autoridade determinava a verdade. A Bíblia, Aristóteles, o Papa, os doutores da Igreja. Para saber alguma coisa consultava-se a autoridade. Uma vez que a autoridade desse a verdade última podia-se deduzir consequências com a lógica aristotélica, mas observações eram só a título de exemplo e de pouca importância. Aristóteles disse que as mulheres eram seres inferiores e tinham menos dentes. Se ele disse, era verdade. Ir contar só baralhava e era perda de tempo.

E foi a consultar livros bolorentos e senhores de idade que o Cristianismo fez avançar o conhecimento na Europa. Em 1586 trouxeram para a praça de São Pedro um obelisco que estava soterrado a poucas centenas de metros dali. Uma demonstração impressionante da tecnologia ao serviço da Igreja. Mil homens, dezenas de cavalos, gruas, e um Domenico Fontana nervosíssimo porque se aquilo corresse mal faziam-lhe a folha. Uma façanha sem igual desde o tempo dos romanos, que tinham trazido o obelisco do Egipto dezasseis séculos antes. Era o progresso.

Depois a coisa começou a dar para o torto. Afinal nem tudo orbitava à volta da Terra. Os planetas tinham órbitas elípticas e não circulares. Surgiam cometas e estrelas onde a autoridade afirmava ser tudo imutável. Cada vez era mais óbvia a treta da autoridade. Os descobrimentos e o lento progresso tecnológico por tentativa e erro (nunca a autoridade revelara como construir pontes ou caravelas) permitiram uma nova forma de compreender as coisas. Que tal virar o sistema ao contrário, perguntaram alguns como Galileu. Para ver se algo é verdade, experimentamos. Rolamos bolinhas, contamos o tempo, medimos os ângulos, e em três séculos temos internet e já fomos à Lua.

A maior descoberta foi que o mundo que nos rodeia tem muito mais informação que o umbigo. Mesmo que seja o umbigo de um santo ou de um filósofo. Mas alguns ainda insistem nesta treta da verdade última e na teologia como forma complementar de compreender. Não é. Usar a vassoura ao contrário não é uma forma complementar de varrer. É asneira. O cabo não varre nada e as cerdas só espalham pó. Derivar o conhecimento da autoridade é fazer as coisas ao contrário. É o conhecimento que obtemos por observação que nos dá autoridade para dizer o que é e o que não é.

Mas têm razão numa coisa. A ciência nunca dará a sensação de termos a verdade última. Essa sensação só vem da ignorância.

1- Sol, 8-7-07, Políticos indignados com mistura de ciência e religião nas escolas

sábado, julho 07, 2007

O que ando a ler.

A Palmira Silva, do De Rerum Natura, escreveu sobre as suas leituras presentes (1) e propôs que fizéssemos o mesmo. Primeiro pensei que não seria um tema de interesse aos leitores deste blog. Mas depois ocorreu-me que isso nunca me impediu antes. Portanto, cá vai.

O Consciousness Explained, do Daniel Dennett, é o livro que ando a ler. Literalmente. É o que levo comigo quando ando de Metro, a pé, ou nas paragens do autocarro. Já tem mais de quinze anos (a obra, o livro comprei-o recentemente), mas é uma obra importante na filosofia da mente, e qualquer estudioso sério deste tema tem a obrigação de o ler. O que não é o meu caso. Eu é mais porque gosto do que ele escreve e de como o escreve. Mas o livro é bom.

Outro filósofo favorito é Bertrand Russell, e já ando há uns tempos a mastigar o History of Western Philosophy. Os outros que li do Russell devorei rapidamente, mas este é ideal para ler um bocadinho entre livros só para o ver desancar filosofias da treta. E como sou naturalmente desorganizado na leitura, já comecei o End of Faith do Sam Harris várias vezes, mas tenho metido outros à frente e continua no inicio.

Há uma conspiração entre a Amazon e a minha faculdade. A primeira alicia-me com livros enquanto a segunda me enterra em trabalhos e exames para corrigir. Eu faço o que posso. Leio um bocadinho de cada um conforme chega, baralho-me completamente, começo várias vezes cada livro, desarrumo tudo pela casa, e estou sempre a ouvir sermões da esposa. Mas não é culpa minha. É uma conspiração. São «eles» que me estão a tramar. Neste momento andam por aí o Primates and Philosophers do Frans de Waal e o Freedom and Neurobiology do John Searle a ver se me apanham a jeito.

E tenho o leitor de mp3. Se é leitor é leitura, certo? Não tenho paciência para ouvir música e como não consigo ler no autocarro aproveito para ouvir aulas de coisas que podem ser engraçadas. Normalmente não são. Mas de vez em quando... Agora estou a acabar uma série sobre psicologia clínica. Antes julgava que a psicanálise é treta, apesar de ser muito usada. Agora já sei um pouco mais sobre o assunto. É mesmo treta. Mas a parte da psicologia cognitiva é interessante.

Se pensam por isto que sou um bocado geek, enganam-se. Sou totalmente geek. É que agora que acabou o Stargate SG1, e o Heroes e o Atlantis estão de férias, para relaxar leio banda desenhada da Marvel. O Ultimate Spiderman, e os Ultimates em geral, estão bem porreiros. E nem leio em papel. É tudo digital, que não ocupa espaço nas prateleiras e é mais fácil encontrar quem me... empreste... as revistas*.

E a ver se despacho o Homem Aranha até dia 24. Segundo a Amazon, é quando deve chegar cá o novo do Harry Potter. Woohoooo!

* Para uso estritamente pessoal, sem prejuízo do seu valor comercial, e de acordo com a lei vigente. Não quero a Associação Portuguesa de Comerciantes e Autores de Livros aos Quadradinhos e Obras Associadas a vir cá pedir dinheiro.

1- Palmira Silva, 6-7-07, Leituras

sexta-feira, julho 06, 2007

... e paternalismo.

Uma pessoa escolhe chocolate, outra escolhe baunilha. Se uma prefere chocolate e a outra prefere baunilha, é deixá-las escolher. Mas se ambas preferem chocolate e uma escolheu por engano ou porque não sabia que havia chocolate já se justifica intervir. Paternalismo? Talvez. Como pai não me compete decidir o que os meus filhos gostam, mas se vejo que se enganam escolher ao contrário do que preferem sinto-me no dever de os corrigir.

Pode ser paternalista restringir os ingredientes das bebidas. Uma alternativa seria apenas obrigar o fabricante a enumerar os ingredientes, e cada um que decidisse se queria dicloro-difenil-tricloroetano ou N-L-alfa-aspartil-L-fenilalanina-1-metilester na gasosa. Mas podemos assumir que ninguém no seu perfeito juízo vai querer beber insecticida, enquanto alguns podem preferir adoçante por ter menos calorias. Proibir o DDT na gasosa e permitir o adoçante elimina erros com consequências sérias e não impõe preferências a ninguém. Paternalismo, provavelmente, mas no bom sentido.

Obrigar o motociclista a usar capacete justifica-se, em parte, pelos que a falta de capacete prejudica os outros. Sem capacete um toque ligeiro pode ser fatal ou incapacitante, aumentando os prémios dos seguros e problemas legais. Mas também se justifica obrigar a usar capacete pela nossa dificuldade de tomar certas decisões de forma informada e racional. Não estão em causa diferenças de preferência. Podemos assumir que ninguém no seu perfeito juízo quer espatifar o cérebro no asfalto. O problema é que estamos mal equipados para este tipo de decisão.

A maioria de nós julga ser um condutor acima da média. É impossível, mas revela um dos problemas. Sobrestimamos a nossa capacidade. E racionalizamos as más decisões. Se não morrer disso é doutra coisa, há quem ande a vida toda sem capacete e morra de ataque cardíaco, e assim por diante. Evitamos considerar consequências desagradáveis e não somos naturalmente dotados para avaliar riscos que estão para além da nossa experiência directa. O resultado de permitir andar de mota sem capacete seria muita gente escolher o contrário daquilo que prefere. Como quem escolhe baunilha por não se lembrar que há chocolate, escolhiam andar sem capacete por não considerar devidamente os riscos.

O tabaco levanta os mesmos problemas. O adolescente que começa a fumar não dá importância ao risco de cancro ou de doença cardíaca. Ninguém aos 18 se preocupa com o que lhe vai acontecer aos 50. Sobrestima a capacidade de deixar de fumar, racionaliza a decisão, e acaba por escolher de forma contrária aos seus interesses. Daí o enorme mercado de livros com técnicas para deixar de fumar, pastilhas e remédios, terapias, consultas, hipnose e patetices alternativas. Tanta gente comprar tanta coisa que não funciona mostra bem o desespero de quem quer deixar de fumar e não consegue.

Fumar um cigarro não é um acto voluntário informado. Quando começa a fumar o fumador não tem a informação mais importante: quanto é que lhe vai custar deixar o tabaco. Alguns têm sorte na roleta bioquímica e deixam o vício sem problema. Mas outros só tarde demais descobrem que não é só uma questão de «força de vontade». O que não justifica que se proíba o tabaco na vida privada de cada um. A saúde dos fumadores vale menos que a nossa privacidade. Até a saúde dos cães, gatos, e filhos dos fumadores, que não têm culpa nenhuma, vale menos que a nossa privacidade. Sou contra que se ande a espreitar para as casas das pessoas só para ver se alguém fuma.

Mas esta situação justifica o paternalismo nas restrições à publicidade, na proibição do tabaco nas escolas, na proibição da venda a menores, e em todas essas coisas que se pode fazer sem invadir a privacidade de ninguém e que compensam em parte os erros sistemáticos que levam muitos a começar a fumar mesmo contra os seus interesses.

O que não tem nada a ver com a lei proposta, que apenas proíbe que fumem para cima dos outros. Só me deu para falar disto porque o chavão do «paternalismo» é muito usado por quem defende o direito de partilhar o seu cancro mesmo com quem não o quer.

quinta-feira, julho 05, 2007

Liberdade...

Apesar de concordarem que ninguém deve estar sujeito ao tabaco dos outros, muitos discordam da proibição de fumar em estabelecimentos comerciais. É paternalismo, dizem. É uma violação dos direitos do fumador. É o primeiro passo para nos tirar toda a liberdade. Treta.

Nesta lei não está em causa o direito de fumar em prejuízo da própria saúde. Está em causa o direito de prejudicar os outros. Está em causa o dono de um restaurante poder ignorar o artigo 25º da nossa Constituição no seu estabelecimento: A integridade moral e física das pessoas é inviolável. Se quer ter o estabelecimento aberto ao público é razoável exigir-lhe que respeite a Constituição a bem dos empregados e dos clientes.

A solução dos estabelecimentos para fumadores e não fumadores ignora o fundamental. Somos cidadãos de direitos iguais. Se um estabelecimento está aberto ao público temos todos o mesmo direito de o frequentar, e todos o mesmo dever de não prejudicar os outros. O respeito pela liberdade dos outros faz parte do exercício da nossa liberdade, e os vícios ou hobbies não têm nada a ver com o assunto. Quem pratica boxe não tem mais direito de agredir os outros, o tarado sexual não tem mais direito de violar, e o cozinheiro não tem mais direito de envenenar a comida dos outros. Ou o ar que respiram. Não se justifica fazer do tabaco uma excepção. O vício da nicotina tem sido uma autorização para incomodar e prejudicar, mas isso nem é justo nem é liberdade.

Fumar para cima dos outros não é um exercício de liberdade. É abuso. Proibir que o façam nos locais de trabalho e de acesso público serve apenas para colmatar uma lacuna no bom senso. Concordo que não devia haver lei nenhuma. É uma tristeza que seja necessária. É como precisar de uma lei a proibir que se urine para os copos dos outros. Mas é a sociedade que temos, e enquanto não mudar tem que se ir empurrando aos poucos. Talvez com as multas o pessoal perceba que causar cancro aos outros não é um direito.

Treta da Semana: o custo do tabaco.

Tem corrido por ai a ideia que o tabaco até é uma coisa boa. No Crónica do Migas, o fumador é «apoiante do bem comum e da vontade geral, sacrificando-se abnegadamente em prol dos seus concidadãos»(1), porque os impostos do tabaco rendem 1.3 mil milhões de euros ao estado, mas os fumadores apenas custam quatrocentos milhões de euros ao Serviço Nacional de Saúde. No Blasfémias, o João Miranda explicou-me que a perda de produtividade por causa do tabaco não deve ser contabilizada no seu custo para a sociedade porque «a produtividade individual não é pública. É privada. É o próprio que perde e não a comunidade»(2). Não me parece.

O primeiro problema é louvar o fumador porque o tabaco só consume em recursos de saúde um terço dos impostos que paga. O que dizer então da papa, do leite em pó, ou das bolachas de água e sal. O IVA rende dez vezes mais que o imposto sobre o tabaco, na maior parte dos casos sem causar cancro. O tabaco só sobressai como «apoiante do bem comum» se ignorarmos tudo o resto.

O segundo problema é considerar que os impostos são o bem comum. Não são. Os impostos são uma forma de redistribuir parte do bem comum, mas o bem comum é a riqueza da economia. É o PIB. É o que produzimos. São os transportes, as consultas do médico, as televisões, as bolachas, os computadores, essa tralha toda. A produção e troca desses bens faz circular dinheiro e parte desse dinheiro escorre pelo estado para (em teoria) ajudar quem mais precisa. Mas não é verdade que ficamos mais ricos por pagar mais impostos.

E é precisamente na produtividade que o tabaco custa a todos. Os quatrocentos milhões que o SNS gasta apenas mudam de mão. O dinheiro, por mais voltas que dê, acaba sempre na mercearia ou reinvestido pelos bancos. O custo real é o que esses médicos e medicamentos podiam ter feito por outras pessoas se não fossem os fumadores, e o que os fumadores podiam ter feito se não estivessem doentes. Ou mortos. O dinheiro circula em circuito fechado. O que se gasta ou aproveita é o tempo e esforço de cada pessoa. Os fumadores têm mais tempo de baixa, maior mortalidade, e usam mais recursos médicos. Os impostos não resolvem o problema, nem têm nada a ver com isto.

O João Miranda afirma que a produtividade é um bem privado. Já foi, em tempos, quando cada um vivia das couves que plantava. Numa sociedade moderna a produtividade vem da sinergia de muitos e não da mera soma do que cada um faz em separado. Os dias de baixa, os trabalhadores doentes, a redução na esperança de vida, as reformas antecipadas e o que mais o tabaco cause tem um custo para todos nós além do impacto no rendimento individual de cada fumador.

Isto não quer dizer que se proíba o tabaco. As férias, os feriados e os fins de semana também têm custos de produtividade. Produzimos para viver melhor; não vamos perder as coisas boas da vida só para ter mais produtividade. O que quero dizer com isto é que é treta contabilizar o custo do tabaco comparando os impostos com o preço dos medicamentos.

Mas este custo económico é tangencial ao mais importante. Fumar é mais vezes consequência de uma asneira de adolescente do que a escolha informada de um adulto. E nem sempre quem apanha com o fumo é quem quer fumar. É por isto que sou a favor de uma legislação mais restritiva. O modelo do mercado assume agentes livres e racionais, mas fumar raramente é uma decisão livre e racional. Especialmente quando se tem que fumar o cigarro dos outros.

1- Migas, 25-6-07, Thank you for smoking
2- João Miranda, 2-7-07, Fumar e o PIB (nos comentários)

quarta-feira, julho 04, 2007

Empregos, bolachas, e insulina.

O João Miranda no Blasfémias (1) e o João Vasco aqui (2) propõem que não se deve legislar para proteger trabalhadores dos malefícios do tabaco. Argumentam que o trabalhador é livre de escolher o emprego e por isso deve ser o mercado a regular o equilíbrio entre o ordenado e o risco. Um problema é a tendência de ver a eficiência do mercado como um objectivo. Não é. É um meio. É uma ferramenta para obtermos o que desejamos, seja produtividade, saúde, bens para todos, ou felicidade. O mercado só vale pela sua capacidade de nos dar estas coisas. Em certos casos é excelente, noutros nem por isso.

Se as bolachas são fáceis de produzir e só as compra quem quer o mercado livre é a melhor forma de encontrar o preço ideal. Se demasiado caro o consumidor não compra ou começa a produzir mais barato. Se está muito barato os produtor sube o preço. A legislação é só necessária para impedir abusos como falta de higiene ou bolachas de serradura.

Com a insulina o mercado livre não presta. Se os poucos que a produzem exigirem o preço que quiserem os que precisam vão-se tramar. O mercado livre encontra o preço de equilíbrio, mas sendo uma questão de vida ou de morte para o consumidor não é o preço de equilíbrio que queremos. Esse é alto demais. Neste caso o mercado livre não é a melhor ferramenta.

Em geral, o mercado livre dá-nos o que queremos se as partes negoceiam em igualdade. Quando «não vendo» e «não compro» são igualmente ameaçadores. Se eu digo que as bolachas estão caras demais e assim não compro, o vendedor vai pensar mudar o preço. Mas se uma das ameaças tem muito menos força não funciona. Se sou diabético e digo que a insulina está muito cara, vou esperar que o preço baixe o vendedor ri-se de mim. Olhe que amanhã por esta hora o preço ainda vai ser o mesmo.

No mercado de trabalho o problema é idêntico. Um piloto de testes, um astronauta, ou um director de uma empresa arriscam a saúde mas estão numa boa posição para negociar com o empregador. Aqui concordo que podemos deixar que negoceiem entre si os riscos e benefícios. Não vamos legislar limites de stress para administradores ou normas de segurança para naves espaciais tripuladas. Podemos confiar na capacidade de negociação dos interessados porque estão todos a jogar com os mesmos trunfos.

Os empregados de mesa não estão na mesma situação. Se um se despede o patrão arranja outro. O patrão nem tem interesse económico na saúde do empregado. Se um piloto de testes fica doente é uma chatice. Se o empregado de balcão adoece a segurança social paga, e arranja-se outro facilmente. Se a escolha é entre os clientes ou a saúde dos empregados o dono do estabelecimento escolhe sempre a segunda. Foi o que aconteceu em Espanha. A assimetria e as consequências desta negociação justificam legislação que proteja o empregado.

Mas o problema do tabaco é mais profundo. É um problema social, de educação. Quando estamos num restaurante ou bar temos o cuidado de não incomodar os outros. Não berramos, não libertamos flatulência malcheirosa, não atiramos comida aos clientes ou empregados. Nem é preciso legislação para isto. Basta o bom senso. Quem é minimamente sociável não incomoda os outros só porque lhe apetece. E não toleramos comportamentos prejudiciais à saúde. Cuspir para cima dos outros ou urinar para o chão, por exemplo. Fumar é a excepção. Por um infeliz acidente histórico, quem fuma acha-se no direito de incomodar e prejudicar os outros só porque lhe apetece. Toma o seu café, puxa do cigarro, e quem não quiser fumar que se vá embora. Se levar com uma cadeira na cabeça, o que pensará do argumento do «só lá vai quem quer»...?

Este problema de atitude não se resolve com legislação. A longo prazo, será resolvido pelo cancro. Mas a curto prazo esta lei é um bom princípio. Quem não tem a decência de ter cuidado com o que faz aos outros teria a multa para o ajudar a lembrar-se. Ou a cadeira na cabeça. Por mim, ambas serviam, desde que dentro da lei.

1- João Miranda, 2-7-07, Liberdade vs. inimputabilidade, Liberdade vs. inimputabilidade II
2-Sodoma e... a treta do costume

domingo, julho 01, 2007

Ecumenismo Blínico.

Pelo Doutor Mário Neto, blinólogo.

Certas pessoas, relutantes em abraçar a sua riqueza espiritual, insistem apontar alegadas inconsistências e contradições entre a Verdade revelada e o nosso conhecimento do mundo material, ou entre diferentes variantes dessa revelação do Transcendente. Mas não há, de facto, qualquer contradição. Apenas revelam a limitação do método empírico com que compreendem o reino material.

Por exemplo, o relato Blínico da criação fala-nos da Papa de Aveia primordial de onde foi criada toda a Terra. Do leite que sobrou foi formado o Coalho, que os Blin, na Sua sabedoria, transformaram em Queijo Fresco, criando assim a Lua. De Galileu ao início do século XX isto era apontado por muitos como contradizendo o conhecimento científico, pois observava-se que a Lua seria composta por rocha e cinza mineral, não por queijo fresco.

Com o advento da mecânica quântica a ciência teve que recuar e admitir a viabilidade do relato Blínico. Sabemos agora que toda a matéria é composta por partículas sub-atómicas, e que a rocha e o queijo fresco são apenas arranjos diferentes dessas mesmas partículas. Deixa de haver contradição, pois a Lua é assim precisamente rocha e queijo fresco em simultâneo, num sentido quântico e metafísico transcendente. E alguns cientistas até admitem a incapacidade de provar categoricamente que o núcleo da Lua não contenha queijo fresco. Sendo que o relato Blínico não contradiz a ciência, justifica-se depositar nele a nossa fé absoluta. E justifica-se rejeitar a ciência caso seja novamente contrária a este relato metafísico revelado. Afinal, a ciência muda, mas o relato Blínico é sempre o mesmo.

Muito sucintamente, podemos dizer que a ciência não produz qualquer argumentação sólida e substanciada no sentido de refutar os alicerces fideísticos desta quadratura interpretativa que a Blinoligía e a revelação Blin nos fornecem. Os fósseis não são espécies extintas, mas sim as Formas criadas pelos Blin a partir das quais novas espécies surgirão no futuro. Os trilobites não são espécies do passado, mas espécies futuras, e a prova é que nenhum cientista jamais viu um trilobite vivo. E todas as formações geológicas atestam a sua origem na Papa de Aveia; não é razoável defender que montanhas e vales, oceanos e lagos, surgiram puramente ao acaso. A ciência não refuta a Revelação Blin. Pelo contrário, confirma-a.

Também no domínio do conhecimento mais elevado os detractores da espiritualidade tentam apontar inconsistências nos relatos das diferentes religiões. Mas também neste domínio a Blinologia dá um quadro interpretativo dentro do qual podemos harmonizar todas as forma humanas de venerar o Sagrado. Ao criar a Humanidade, os Blin compreendiam plenamente a diversidade de atitudes e capacidades espirituais dos seres humanos. Na Sua sabedoria, decidiram adaptar a revelação a estas diferenças. A alguns deram a Sagrada Blínia, o relato exacto e verdadeiro da criação. Aos outros deram versões adaptadas, para iniciá-los nos mistérios metafísicos da forma mais adequada às suas personalidades e culturas. Nem todos nascem preparados para aceitar a sua origem na Papa de Aveia primordial e na Palavra, Frase, e Parágrafo dos omniverdes Blin.

Por isso, do relato Blínico surgiram inúmeras adaptações. A criação em sete dias, o mundo eterno, múltiplos deuses, deuses que são três em um, e assim por diante. Mas segundo este quadro intepretativo podemos compreender todas as religiões humanas como sendo a veneração dos Blin. As diferenças devem-se apenas a diferentes graus de iniciação ao Mistério Revelado, consequência da imperfeição do ser humano.

Importa assim apelar para um espírito ecuménico, no verdadeiro sentido do oikoumene Grego, abarcando todo o mundo habitado pelo ser Humano. Porque todas as religiões, na sua diversidade a aparente contradição, não passam de formas particulares e culturalmente distintas da adoração Blínica. Até os ateus e materialistas, pela sua crença religiosa na ausência de deuses e pela veneração espiritual do mundo material, participam nesta comunidade de adoradores da Criação e dos Criadores. Todos sem excepção, e muitos sem o saber, adoram os Blin. Um mundo em que todos abrissem o coração ao amor dos Blin seria um mundo muito melhor, de partilha em vez de conflito, de abundância em vez de escassez, e de felicidade em vez de perdição.