quinta-feira, janeiro 31, 2008

Treta da Semana: Bento XVI

O prémio desta semana vai para Joseph Alois Ratzinger, agora conhecido como Bento XVI, pela sua ofuscante carreira a confundir superstição e ciência. Um exemplo é a lição de 2006 na universidade de Regensburg (1), onde Ratzinger alerta para a “auto-limitação” da razão moderna porque a ciência «pressupõe a estrutura matemática da matéria, a sua racionalidade intrínseca, que torna possível compreender como a matéria funciona e usá-la eficientemente »

A matemática na ciência é consequência do conhecimento que a ciência produz. Não é pressuposta. Antigamente não era preciso matemática na ciência. Para dizer que as plantas são verdes basta a linguagem corrente. Mas quanto mais rico e detalhado é o conhecimento mais expressiva e rigorosa tem que ser a linguagem que o codifica. Para descrever uma proteína, um avião a jacto ou uma sinfonia é preciso uma notação própria. Pode ser com equações, desenhos, zeros e uns no computador ou qualquer outra coisa, mas o significado dos símbolos tem que ser tão preciso como a informação que transmitem.

Segundo Ratzinger, porque a ciência depende deste pressuposto e se fundamenta na experiência «este método exclui a questão de Deus, fazendo a parecer uma questão não científica ou pré-científica. Consequentemente, estamos frente a uma redução do âmbito da ciência e da razão, uma redução que tem que ser questionada»(1). Mas este método não exclui deus nenhum. Pelo contrário.

Se existissem deuses a melhor forma de os descobrir seria estudando a realidade com rigor. A teologia natural, mais antiga que o Cristianismo, visava conhecer o criador do universo através do universo que ele criou. Eventualmente tornou-se ciência porque enquanto método de estudar o universo funciona bem. É enquanto teologia que só faz sentido se o tal deus existir, e tudo indica não haver tal coisa neste universo.

É o truque de pintar a ciência como se fosse mais um sistema axiomático assente numa crença inquestionável. A teologia assume que existe um deus, a ciência assume que não há deuses. O criacionismo, a astrologia, a homeopatia e tantas outras tretas fazem exactamente a mesma coisa. Tentam repartir o conhecimento entre os que assumem uma coisa e os que assumem outra. Mas a ciência não se amarra a axiomas. A ciência põe hipóteses que a qualquer momento podem ser trocadas por outras. A hipótese de haver deuses já lá esteve, mas como se pode ver pelos resultados práticos da teologia não leva a lado nenhum.

Este truque serve sempre para vender alguma treta, e é nisso que a teologia é rainha:

«O homem constitui algo que vai muito além do que se pode ver ou do que se pode perceber pela experiência. Descuidar a questão sobre o ser humano leva inevitavelmente a negar a busca da verdade objectiva sobre o ser em sua integridade e, deste modo, à incapacidade para reconhecer o fundamento sobre o que se apoia a dignidade do homem»(2)

É banha da cobra por excelência. Não estica, não dobra e nem sequer se pode perceber pela experiência. Mas não a podemos descuidar. A teologia não se limita ao universo todo. Enfiando o barrete da fé consegue ver muito além. Vê o fundamento da dignidade. Vê a verdade objectiva. Vê Deus que é amor e é pai e é filho e é três e é um. E se esfregar os olhos com força até vê luzinhas.

1- Bento XVI, 12-09-06, Lecture of the Holy Father
2- Bento XVI, 28-1-08, Por uma ciência com consciência

quarta-feira, janeiro 30, 2008

Respeitinho...

Free Image Hosting

Don Addis, no Freethought Today, via Sandwalk

ASAE

Tem havido muita discussão acerca da ASAE. Uns criticam abusos e incoerências, outros defendem que é preciso fazer cumprir a lei. Ambos têm alguma razão. A ASAE faz cumprir a lei e qualquer organização examinada em detalhe revela problemas. Ninguém é perfeito. O que me preocupa é que a discussão ignora o mais importante.

A polícia deve zelar pela nossa segurança, que inclui a segurança alimentar e económica. Apanhar uma gastrite com um croquete estragado ou um choque eléctrico com uma torradeira pode ser pior que ser assaltado. Mas não vejo como as t-shirts da feira ou os mp3 possam ser um problema de segurança.

Os feirantes estão a concorrer com as marcas que vendem dez vezes mais caro. Não me oponho à política de preços, ao direito das marcas de vender como quiserem e nem a leis que protejam o uso da marca. Mas isso é entre a marca e o feirante e é para decidirem entre eles em tribunal. O contribuinte não tem interesse em pagar à polícia para investigar e prender quem vende t-shirts ou DVDs. Como política de segurança é um tiro no pé. Há problemas mais importantes e multar o feirante ou apreender-lhe os trapos não o torna um comerciante honesto. Ele não vai abrir uma papelaria ou arranjar emprego por causa disso.

Criminalizar actos inofensivos acaba por incentivar crimes piores, sacrificando a nossa segurança para proteger interesses de quem não precisa da ajuda da polícia. Um condutor embriagado que ponha em perigo a vida de outra pessoa pode ter até três anos de prisão. A lei que temos vê os CDs pirateados ou as camisolas na feira como merecendo igual castigo. Isto não é zelar pela nossa segurança. É fabricar criminosos.

Muitos vêem estes problemas como interessando apenas a alguns. Como se a liberdade de trocar informação digital apenas interessasse a quem descarrega músicas, a liberdade de criar obras derivadas só fosse relevante para o Hip-Hop, as patentes informáticas só afectassem os programadores e prender feirantes fosse só azar deles. Mas faz tudo parte de um problema de fundo que nos toca a todos. O quê, e como, é que se regula por leis?

A questão é importante porque temos recursos limitados, e cada polícia a ver se a Ginginha do Rossio tem casa de banho é menos um polícia a zelar pela nossa segurança. Porque é um perigo para a sociedade tratar como criminoso quem não representa perigo nenhum. E porque as leis de um país não devem ser determinadas em função de vantagens profissionais, económicas ou políticas de alguns.

Isto não é um problema novo, mas hoje temos mais possibilidade de participar discutindo, manifestando opiniões, e exigindo que os nossos representantes nos representem adequadamente. E o muito anda por aí acerca da ASAE mostra que a opinião pública faz ouvir nestas matérias. Mas penso que se aproveitava melhor a oportunidade discutindo a lei em vez de discutir a ASAE.

segunda-feira, janeiro 28, 2008

Portal Ateu, teologia e lorem ipsum.

Aceitei de bom grado o amável convite do Hélder Sanches (1) para participar no Portal Ateu. Não sei bem quanto é que vou poder contribuir, mas pelo menos um artigo pequenino já lá está. Ainda não está tudo operacional mas já podem dar uma olhada, deixar comentários, e até já nos deixaram o primeiro insulto. A coisa está a andar bem.

Como ainda está em construção, alguns textos estão com o famoso «Lorem ipsum dolor sit amet...», um texto usado por tipógrafos há cinco séculos. É composto de pedaços do «de Finibus Bonorum et Malorum» de Cícero (2) e não faz muito sentido, mas serve para ajustar o tipo e tamanho de letra e a composição gráfica das páginas.

Parece-me que a razão principal para se ter mantido constante durante cinco séculos é precisamente não fazer sentido. Como não se percebe, o texto é copiado letra a letra de geração em geração. Tal como a doutrina religiosa, cuja longevidade também me parece dever-se à falta de sentido. Vejam lá se isto não parece um argumento teólogico comprovando a existência de Deus.

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1- Blog do Hélder Sanches, Penso, logo sou ateu
2- www.lipsum.com

Criacionismo já é ciência.

A equipa de Hamilton Smith (1) sintetizou o genoma completo do Mycoplasma genitalium, uma bactéria simples com cerca de 400 genes e um genoma de meio milhão de pares de bases. Isto é muito menos que os três mil milhões de pares de bases do genoma humano, mas é um feito considerável tendo em conta que foi tudo sintetizado a partir dos nucleótidos. A síntese química de sequências de ADN permite criar trechos de cerca 100 bases. Estes depois foram reunidos em sequências cada vez maiores num longo processo de manipulação e correcção de erros.

Foram anos de trabalho e milhões de dólares, mas a técnica certamente se tornará mais barata e mais simples quanto mais for usada. E, pela primeira vez, o genoma de um ser vivo foi criado artificialmente por um ser inteligente. Agora os criacionistas já podem dizer que o criacionismo é ciência. Só precisam deitar fora essas tretas de deuses e milagres.

Via SciGuy
1 Prémio Nobel da medicina 1978

domingo, janeiro 27, 2008

Cientologia. Mais ou menos...

Há uns tempos mostrei aqui o vídeo onde o Tom Cruise relata a maravilha que é ser cientólogo (1). Agora é Jerry O'Connell que nos conta como é ser actor.



Link para o vídeo. Via Zeropaid

1- 16-1-08, Fala, fala, fala...

PCR

A Polymerase Chain Reaction (PCR) é a técnica mais usada para copiar um trecho de ADN. A imagem abaixo esquematiza o processo (1).

Image:PCR.svg

No passo 1 a cadeia dupla de ADN é separada aquecendo a solução. No passo 2 arrefece-se a solução e os primers agarram o ADN nas extremidades da região a amplificar. Os primers são pequenos trechos de ADN com cerca de 20 a 30 nucleótidos sintetizados com a sequência do ADN nos pontos onde queremos que encaixem. Em seguida a polimerase começa a alongar os pequenos primers catalisando a ligação de nucleótidos à cadeia em crescimento. Como cada tipo de nucleótido (A, T, G, C) apenas encaixa num tipo específico da cadeia complementar (A com T e G com C), a cadeia gerada é complementar à original.

Depois é repetir isto vinte ou trinta vezes. O aquecimento separa (desnatura) as cadeias, o arrefecimento faz encaixar (hibridar) os primers nas extremidades e a polimerase sintetiza uma cadeia complementar a partir de cada primer. Cada ciclo duplica a quantidade de ADN da região a amplificar e basta umas dezenas de ciclos para obter milhões de vezes a quantidade inicial. É isto que permite isolar trechos de ADN a partir de uma amostra biológica e obter quantidade suficiente para sequenciar um gene, identificar um indivíduo e assim por diante.

Esta história toda é só para ajudar a perceber o vídeo abaixo, um vídeo publicitário da Bio-Rad que está muito engraçado mas é um bocado para nerds. Obrigado ao Mário Miguel pelo link.



1- Wikipedia, Polymerase Chain Reaction

sábado, janeiro 26, 2008

Para baixo. Para cima.

A dedução é a forma de inferência preferida dos teólogos. Parte-se da Verdade e aplica-se a Razão. Para o teólogo, a conclusão tem que se pendurar na verdade certa, sólida, inatacável. Raciocina de cima para baixo, da autoridade para o subordinado, do perfeito para o imperfeito, do criador omnipotente para a pobre criatura. É natural. É como os nossos pais nos ensinam, é como se organiza uma tribo ou um bando de guerreiros, um reino ou uma religião. De cima para baixo. O cérebro humano evoluiu para lidar com situações destas e a nossa tendência é ver tudo desta forma.

Por azar o universo funciona ao contrário. Não é um deus poderoso que agita nuvens e vento numa tempestade. O vento é o movimento de moléculas microscópicas, algumas que condensam em gotas que se juntam e encharcam os homens assustados que rezam a um responsável que não existe. O Big Bang, as estrelas, os seres vivos, foi tudo de baixo para cima. Neste canto só ao fim de treze mil milhões de anos é que surgiu algo suficientemente complexo para tentar perceber o que se passava. A ciência é o truque que inventámos para pôr o cérebro a trabalhar ao contrário daquilo que a evolução favoreceu. Custa, e o Bernardo Motta mostra que muita gente ainda se engana.

«sem o cristianismo [...] não haveria qualquer razão intelectual para supor que o Mundo seria ordenado, inteligível, que permaneceria o mesmo independentemente do observador, que não seria um Mundo enganador, ou que os nossos sentidos não seriam enganadores ou subjectivos. Sem o cristianismo, o que nos faria supor que o João vê o mesmo que a Maria ou que o Manuel? Ou que o ferro do século XIV exibiria uma resposta mecânica semelhante à do ferro do século XIX?»(1)

Este raciocínio é de cima para baixo. Assume um deus todo poderoso e benévolo de onde deduz que os sentidos não nos enganam para, finalmente, concluir que há mesmo pedras, o ferro é duro e assim por diante. Que exagero. Como explicou David Hume, se o saco num prato da balança levanta os cinco quilos no outro prato não dizemos que o saco tem um peso infinito, nem que pesa quinhentas toneladas, nem sequer que pesa cem quilos. Dizemos apenas que pesa mais que cinco quilos. O deus Cristão é um exagero igualmente insensato. Para explicar pedras, ferro e humanos não é preciso postular omnipotência, omnisciência, benevolência e uma inexplicável aversão a preservativos. Não se justifica esse exagero nem é razoável a premissa.

Para explicar temos que fazer o percurso inverso deste raciocínio. Em vez de deduzir consequências de um postulado abduz-se hipóteses cujas consequências incluam o que se quer explicar. Explico a sensação de calor com a hipótese que estou ao Sol. Ou que há um incêndio. Ou que estou a sonhar. Tem a vantagem de partir do que se quer explicar, que é melhor do que partir dos confins da imaginação. E mostra que qualquer coisa pode ser explicada de infinitas maneiras, por isso não nos podemos fiar na primeira que aparece. Temos que procurar entre muitas a mais informativa e menos especulativa.

Eu gosto da metáfora com que Daniel Dennett expõe esta diferença. A ciência constrói gruas sobre dados empíricos, hipóteses que ajudam a erigir teorias onde se pode apoiar gruas mais altas e assim por diante. O conhecimento científico ergue-se gradualmente e de baixo para cima como os edifícios. A religião quer fazer o contrário. Postula um gancho mágico no céu onde pendura um enleado de especulações que vêm por ai abaixo. Quando toca no chão qualquer semelhança com realidade é pura coincidência.

Essa «razão intelectual» é desnecessária. Não precisamos assumir à partida que a realidade é estável ou previsível. Essa hipótese surge depois, como explicação para algumas coisas e nem serve para todas. Um prego é estável e previsível mas o átomo de Urânio 235 não é, e nem o deus do Bernardo pode prever o instante do decaimento radioactivo de um átomo.

Mais uma coisa na qual o Cristianismo não ajudou nada. Durante séculos andou tudo a pendurar especulações em ganchos no céu em vez de construir conhecimento sólido.

1- Bernardo Motta, 23-1-08, O paradoxo do ateu.

sexta-feira, janeiro 25, 2008

Treta da Semana: Professor Bambo.

Esta semana estou de folga. O Google deu-me logo a ligação para este excerto do programa As Teorias do Nilton (1). Não é preciso dizer mais nada.



Quem não conseguir ouvir pode tentar na página do ESnips.

Editado, 13:17: Penso que a voz que ouvimos não é a do professor Bambo, mas apenas de um dos seus funcionários. Parece que ele tem vários consultórios pelo país. Mas dá para perceber o nível do serviço...

1- http://www.teorias-nilton.te.pt/

quinta-feira, janeiro 24, 2008

O Papa e a universidade.

O reitor da universidade La Sapienza convidou o Papa Bento XVI a proferir o discurso de abertura do ano académico no passado dia 17. Vários professores protestaram que o Papa seria uma má escolha por imiscuir a fé na ciência (1) e pelos seus comentários acerca da condenação de Galileu pela Igreja Católica (2). A carta de protesto enviada ao reitor foi divulgada à comunicação social e coincidiu com a «Semana Anticlerical», uma acção de protesto organizada por alguns alunos. Por isso o Papa cancelou a visita. O contra-protesto dos crentes foi imediato. Censura. Intolerância. Silenciaram o Papa. O editorial de José Manuel Fernades no Público de dia 17 começou assim:

«Quando se fecham a Bento XVI as portas de uma universidade, impedindo-o de falar, é sinal de que alguns praticam tudo o que no passado criticaram à Igreja. E ainda se orgulham disso...»(3)

É treta. Ninguém impediu o Papa de falar e se lhe tivessem feito «tudo o que no passado criticaram à Igreja» o desgraçado tinha sofrido bastante mais que ter que enviar o discurso pelo correio. Galileu ficou preso, proibido de escrever e os outros proibidos de ler o que ele tinha escrito. Giordano Bruno e milhares de outros sofreram pior.

Se fosse um debate ou uma palestra noutro contexto estou certo que estes professores teriam aproveitado a oportunidade de fazer algumas perguntas ou comentários ao Papa. Mas a alocução inaugural do ano académico é uma ocasião diferente. Sugere que o convidado exprime o espirito da universidade. E, como salientou Marcello Cini, a teologia não tem lugar numa universidade pública moderna como La Sapienza (1). Não faz sentido ser um Papa, um Ayatollah, um Rabbi ou um Mullah a proferir este discurso.

Os Católicos, como o Bernardo Motta (4), dirão que a universidade foi inaugurada por um Papa e é legítimo que seja o Papa a inaugurar o ano académico numa universidade porque foi a Igreja que inventou as universidades e assim por diante. Mas isto apenas confunde duas coisas com nome igual mas que são muito diferentes.

A Igreja Católica criou sítios onde pessoas de um sexo e de uma fé aprendiam uma religião e mais umas coisas. Onde veneravam o deus da Igreja Católica, proibiam ideias que não fossem aprovadas pela Igreja Católica e aceitavam aprisionar, torturar ou matar quem se atrevesse a discordar da Igreja Católica. Antigamente chamavam-se «universidades» mas na Europa de hoje seriam crime. Os edifícios são os mesmos, o nome é o mesmo, mas o espírito de uma universidade como a de La Sapienza é o oposto daquilo que os Católicos criaram e de muito do que a Igreja Católica tenta ainda hoje justificar e defender.

Em 1990 Ratzinger citou Feyerabend para dizer que «A igreja na altura de Galileu foi muito mais fiel à razão que o próprio Galileu, e também considerou as consequências éticas e sociais da doutrina de Galileu. O seu veredicto contra Galileu foi racional e justo». Cientificamente, Galileu devia ter esperado por mais evidências antes de defender com tanto afinco o modelo de Copérnico. Cientificamente, isso justificava que o revisor do seu primeiro trabalho lhe pedisse que apresentasse mais dados. Mas não há nada de racional, científico, ou sequer minimamente aceitável em pôr o homem na prisão por causa disso. É isto que Ratzinger e os Católicos que o defendem varrem para debaixo do tapete, mas é isto que importa. A Igreja Católica tinha o direito de discordar de Galileu mas não tinha o direito de o prender por isso.

Ninguém quer fazer o mesmo ao Papa. O espírito académico de abertura e diálogo faz-me opor que ponham Ratzinger na prisão ou o torturem pelas tretas que diz. Mas é um disparate que o representante de uma religião inaugure o ano académico de uma universidade séria. A universidade não tem nada a ver com religião, não deve ter, e tinha-se poupado muito sofrimento a muita gente se nunca tivesse tido.

1- Marcello Cini, 14-11-07, Carta de Marcello Cini ao reitor
2- Corriere Della Sera, 15-1-08, Sapienza Academics Reject Pope’s University Address
3- Companhia dos Filósofos, O caso Sapienza
4- Bernardo Motta, 16-1-08, Jovens Obscurantistas, continuado em 22-1-08, Ratzinger, eu e o discurso do Papa

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Ah, "trouxe"...

O Bernardo Motta respondeu à minha crítica acerca do Cristianismo ter trazido a ideia que «o verdadeiro é o adequado ao real»(1). Na boa tradição teológica, o Bernardo esmiuça a palavra «trouxe», evita a questão e esquece as alegações que o Cristianismo teria também trazido a confiança nos sentidos, o amor pela investigação e conhecimento (em grego diz-se filosofia) e o «primado da razão» (2). Mas seja. Vejamos então o que diz o Bernardo.

«É certo que São Tomás [...] recuperou todas as coisas boas que o aristotelismo tinha, e também descartou as más.[...] Aristóteles nunca conheceu Cristo, mas amou a Verdade. E quem ama a Verdade acima de todas as coisas (rigorosamente acima de todas), ama a Cristo. Aristóteles não sabia nada de Cristo, mas amava-O sem o saber.»

Aristóteles afinal era mesmo Cristão. O Bernardo continua: «Dito por outras palavras, o cristianismo dos homens de fé não criou nada: Cristo é que criou tudo.» Eu diria ao Bernardo para não ser tão modesto acerca da sua criatividade. «A vasta obra de Aristóteles seduziu algumas mentes medievais persas, judaicas e islâmicas, que o traduziram e estudaram. Por via dos cordoveses do Al-Andaluz, sobretudo o judeu Maimónides e o muçulmano Averróis, mas sem esquecer o grande antecessor persa Avicena, a obra de Aristóteles entra “a matar” na Europa, primeiramente sob a forma de traduções em árabe, divulgadas a partir do Califado de Córdova. E o mérito da verdadeira redescoberta do aristotelismo [...] deve-se sobretudo [a] São Tomás».

Resumindo. Aristóteles diz que a verdade corresponde ao real, os muçulmanos e judeus preservam isso durante um milénio e reintroduzem as obras de Aristóteles na Europa. Conclusão? O Cristianismo trouxe a verdade objectiva para a Europa. Pena que a lógica tenha ficado pelo caminho...

Mas isto é pouco relevante porque quando Aristóteles definiu "verdade" como dizer que é aquilo que é e que não é aquilo que não é estava só a formalizar o que já todos sabiam. Sempre foi óbvia a falsidade de dizer que é aquilo que não é. E é absurdo que este conceito de verdade fosse desconhecido dos Celtas, dos Romanos pré-Cristãos, dos Gregos antes e depois de Aristóteles, dos povos nórdicos, de todos os povos da Europa que se foram convertendo ao Cristianismo e de todos os Cristãos antes de Tomás de Aquino. O Cristianismo não trouxe isto de lado nenhum. Isto já estava em todo o lado.

O Bernardo perguntou-me «se, quando tem amigos a jantar em sua casa, e algum traz uma garrafa de vinho, o Ludwig deduz imediatamente que o seu amigo seja produtor de vinho…». Não. Mas se o vinho já estava na minha cozinha* e ele diz que foi ele que o trouxe eu digo bebe mas é um copo e deixa-te de tretas.

* Vinho é improvável, que não bebo isso. Mas fui recentemente desencaminhado para os licores artesanais açorianos. Isso já é outra coisa.

1- 18-1-08, O que o Cristianismo nos trouxe.
2- Bernardo Motta, 23-1-08, O paradoxo do ateu.

terça-feira, janeiro 22, 2008

Correlação e causalidade.

A série de posts sobre a Europa e o Cristianismo surgiu da confusão que João César das Neves fez entre correlação e causalidade (1), afirmando que a Europa democrática, capitalista e tecnologicamente desenvolvida surgiu por causa do Cristianismo. É por isso estranhamente apropriado que a crítica do Tiago Luchini assente na mesma confusão:

«Os principais argumentos variam entre “se o Cristianismo não tivesse existido, não teríamos isso” a “se Aristóteles não tivesse existido, não teríamos aquilo”. Nesta brincadeira o mais óbvio é que se eu não tivesse comido repolho, não estaria com gases e que brincar com “se” é simplesmente isso: uma grande e infantil brincadeira.»(2)

O “se” é a diferença entre causa e coincidência. Imaginemos que o Tiago come sempre repolhos no mesmo prato. A correlação entre o prato e os gases seria a mesma que entre os repolhos e os gases. Dizer que a causa dos gases são os repolhos e não o prato é dizer que se não tivesse comido repolhos não teria gases mas se tivesse comido repolhos noutro prato teria gases à mesma. É este “se” que distingue a mera ocorrência conjunta de uma relação entre causa e efeito.

Concordo que «isolar uma ou duas variáveis como fundamentais para o atual mundo ocidental é praticamente impossível.» Até os gases são produto de várias causas. Os repolhos, os intestinos, o tempo de digestão, os microorganismos no intestino, a temperatura do corpo e assim por diante. Não podemos isolar uma. Mas podemos comparar a importância dos factores e até eliminar alguns que são irrelevantes.

A maioria das descobertas científicas nos últimos séculos foi feita por pessoas com bigode e acesso à melhor educação da sua época. Não podemos isolar uma destas como causa única mas podemos perceber que não são igualmente importantes. A física moderna perderia mais se Einstein fosse analfabeto que se ele tivesse rapado o bigode.

É isso que estamos a discutir aqui. É fácil perceber o mecanismo que fez o telescópio ser uma causa da descoberta das luas de Júpiter. Sem telescópio não se vê as luas de Júpiter, por isso se não tivesse telescópio Galileu não as tinha descoberto. A interacção da tecnologia com a ciência, a influência das ideias da antiguidade clássica recuperadas no Renascimento e os efeito sociais das riquezas obtidas nos descobrimentos mostram mecanismos que justificam propor relações causais.

O Cristianismo não dá nada disso. Darwin estudar para padre foi tão relevante na altura como hoje tirar a carta de condução. Adam Smith e Jeremy Bentham se inspiraram no poder redentor de Jesus Cristo, nem a doutrina ou teologia Cristã foi relevante para as revoluções na América e na França. O Cristianismo foi, e é, o grande bigode da história da Europa. Qualquer bigode tem o seu efeito, mas não na democracia, no capitalismo nem no progresso tecnológico.

1- João César das Neves, Como a Igreja criou a Europa

2- Tiago Luchini, 20-1-08, Grécia, Cristianismo e Europa.

domingo, janeiro 20, 2008

Treta da Semana (passada): BioStabil.

A Gigashopping apresenta-nos o BioStabil(1). É um colar com um íman que «funciona como um íman», o que não parece nada de especial. Mas é. Custa €240 e é um «sistema biomagnético holandês patenteado que equilibra as energias do seu corpo, quer você tenha demasiada energia negativa ou demasiada energia positiva.» Por afirmarem sem evidências ser «um tratamento natural excelente e a solução para muitos problemas do organismo, como stress, depressão, insónias, ansiedade, arritmias, entre outros» os anúncios a este produto foram proibidos pela Comissão Holandesa de Código Comercial. A Gigashopping mantém-se fiel à sua missão de vender em Portugal aquilo que os outros países condenam como publicidade enganosa.

O fundamento científico da medalha milagrosa é evidente nas palavras do inventor, Bruno Santanera: «As mulheres, quando começam as aulas de condução, a primeira vez que entram no carro começam a hiperventilar. É o resultado de carga positiva excessiva que desenvolvem.» Mas esta maravilha não elimina apenas as cargas positivas. Também elimina as negativas e o que mais calhe. «Aumenta a energia de forma incrível, melhorando a saúde, activando a circulação do sangue e estimulando a sensibilidade de alguns nervos». Melhor que isto só com os ímans de frigorífico.

O BioStabil é «o único sistema patenteado no mundo» de medalha giratória que orienta o íman da melhor forma para descarregar as energias. Não explicam como é que um íman descarrega seja o que for, e a física do Sr. Santanera é algo estranha. O nosso corpo é «composto de energia positiva e negativa» e se apanhamos um choque ao tocar em algo ou alguém isso não é electricidade estática a descarregar. É «sinal de incompatibilidade de energias». Mas o mais estranho é ser um íman de 24,000 gauss por ter 12,000 gauss de cada lado. Gauss é uma unidade de densidade de fluxo magnético e esta soma é como dizer que os dois passageiros do carro se deslocam ao dobro da velocidade do carro por somar as velocidades dos passageiros.

O sucesso do BioStabil está na forma de o usar. No anúncio recomendam que se ponha o colar sempre que se sentir pior e que se pare a “terapia” apenas quando se sentir melhor. Resulta quase sempre. Este método de aplicação garante que o BioStabil só falhe da última vez e torna-o imune a qualquer reclamação que não seja a título póstumo.

Termino com uma citação que dispensa comentários.

«- O BioStabil não é contra nem a favor de nenhuma religião, pois não?

- Porquê? É magnetismo, e o magnetismo é um grande dom que Deus nos deu, porque nós somos ícones do magnetismo. Somos seres do magnetismo. Nós estamos na Terra e a Terra é o maior íman que o homem conheceu. Se eu sou católico, por respeito a todo o mundo e a todas as religiões. O BioStabil não pode agradar a todos, e somente com a graça de Deus é que pode ajudar.»


Mais informações sobre esta treta das terapias magnéticas no artigo Magnet Therapy, do Stephen Barrett.

1- Gigashopping.tv, BioStabil
2- SWIFT, 15-6-07, Let’s do something.

sábado, janeiro 19, 2008

Como a Europa criou a ciência.

Nos últimos séculos a Europa destacou-se do resto do mundo pelo progresso social e tecnológico. Até recentemente era comum explicarem-no pela superioridade da raça. Da raça de quem propunha a explicação, claro. Agora há quem o explique pela superioridade da religião de quem assim o explica. Eu rejeito ambas as explicações e mais ou menos pelas mesmas razões.

Durante os mil anos que seguiram o colapso do império Romano a Europa esteve atrás do Médio Oriente e de grande parte da Ásia. Foi só por volta de 1300-1500 que as coisas mudaram. A peste negra dizimou parte da população e, mais importante a longo prazo, o sistema feudal. A redescoberta dos clássicos lembrou os europeus que havia mais que um livro. A navegação, o contacto com outros povos e as riquezas trazidas de outras terras mudaram as sociedades da Europa. A religião e a raça eram as mesmas. Foi o resto que mudou. E talvez o mais importante tenha sido a combinação de três factores, dois dos quais uma ciência com aplicações tecnológicas e uma tecnologia útil à ciência. Hoje parece estranho, mas antigamente a tecnologia e a ciência não tinham nada a ver uma com a outra. Os Gregos e os Romanos são um bom exemplo.

Os Gregos tinham uma filosofia sofisticada, investigavam as coisas com o espírito crítico da ciência e acumularam imenso conhecimento teórico. Que não servia para nada. Foi essencial para o que veio mais tarde mas, naquela altura, não tinha utilidade prática. Não há tecnologia baseada nas quatro causas de Aristóteles ou nas formas de Platão. Os Romanos eram o contrário. Tinham pouco de ciência mas a sua tecnologia era extraordinária. Tudo descoberto pela prática, por tentativa e erro e passado de mestre para aprendiz sem alicerce teórico. Faz-se assim porque funciona, e durante muito tempo não houve outra forma de melhorar a tecnologia. Mas isso mudou no Renascimento.

Galileu usou tecnologia para fazer experiências cientificas e quantificar os resultados, e usou a ciência para criar nova tecnologia. Novas formas de apontar canhões, lunetas, microscópios e termómetros e até uma maneira de calcular a longitude usando as luas de Júpiter como um relógio. Enquanto a ciência era apenas filosofia especulativa e a tecnologia tentativa e erro o progresso era quase imperceptível. Dois mil anos do trirreme à caravela. Mas desde que a ciência e a tecnologia se desenvolveram o suficiente para cada uma empurrar a outra foram cinco séculos até à Lua.

O terceiro factor foi a burguesia. Durante muitos séculos o poder pertenceu ao clero e à nobreza, que queriam sempre manter o status quo. No Renascimento o comércio deu muito dinheiro, e poder, a quem se interessava por inovar. Com estes três factores em conjunto a inovação explodiu, e o Cristianismo não ajudou nada. A versão Católica até atrapalhou, deixando a Europa do Sul ficar para trás da Europa Protestante em ciência e tecnologia apesar de ter começado à frente.

Mas também não digo que o Cristianismo tenha atrapalhado muito. Até ao Renascimento seria difícil acelerar o processo. Mesmo que houvesse melhor clima para a especulação filosófica, até a tecnologia permitir uma abordagem experimental quantitativa a ciência não ia produzir muito de útil. E desde que a ciência e a tecnologia se aliaram que a escolha das religiões tem sido entre recuar, cair no ridículo ou, mais frequentemente, ambas.

Em 1992 a Igreja Católica perdoou Galileu, mostrando-se, mesmo antes de começar o século XXI, aberta à possibilidade de alguns astros não orbitarem a Terra. Mas este gesto teve pouco impacto na astronomia moderna, à parte de algumas gargalhadas.

sexta-feira, janeiro 18, 2008

O que o Cristianismo nos trouxe.

Segundo o Bernardo Motta (1), sem o Cristianismo estávamos tramados. Jesus, ao morrer na cruz e ressuscitar, trouxe a todos os homens a

«1. Verdade objectiva: o verdadeiro é o adequado ao real»

Antes do sacrifício do Deus encarnado em homem ninguém se tinha lembrado de separar a verdade da mentira conforme o que se adequava ao real. Foi um período de grande confusão, como devem imaginar. Era ventiras e merdades e ninguém se entendia. O que safou foi São Aristóteles, aquele grande Cristão, escrever que «Dizer do que é que não é ou dizer do que não é que é, é falso, enquanto dizer do que é que é e do que não é que não é, é verdadeiro». Graças a Deus.

Outra coisa que o Cristianismo nos deu foi:

«2. Confiança nos sentidos: o mundo é cognoscível e estável, com leis boas porque feitas por um Deus bom»

Foi um alívio. Desde o paleolítico inferior que o pessoal andava atrapalhado com isto. Cada vez que se atirava uma pedra ninguém sabia se ia cair, ficar no ar ou transformar-se num burro falante. Andava tudo com úlceras só dos nervos. A crucifixão de Jesus deu logo a todos uma grande confiança nos sentidos e mostrou como o mundo é cognoscível e estável («always look on the bright side of life...»). Excepto a Santíssima Trindade. E os milagres, claro. E os Mistérios. E a fé, a Verdade transcendente, o supra-empírico, o... enfim, o facto é que desde que Jesus morreu que as pedras têm caído para baixo, e é assim que deve ser.

«3. Amor à investigação natural: o mundo não é uma criação maligna de uma entidade gnóstica, mas sim a criação boa de um Deus bom»

Muito melhor que a regra antiga. Ninguém ligava a «3. Amor à investigação natural: saber que as bagas são venenosas é mais útil antes de as comer», e é por isso que antes do nascimento milagroso do Salvador ninguém se tinha incomodado a descobrir seja o que fosse. Podem imaginar o frenesim naquele primeiro Natal, com tudo a correr a inventar a pedra lascada, como fazer fogueiras e trabalhar o bronze e o ferro, a domesticar animais, construir pirâmides e assim por diante. Até os desgraçados dos reis se atrasaram quase duas semanas porque tiveram que descobrir a mirra, o ouro e o incenso pelo caminho. Felizmente, tudo acabou bem («always look on the bright side of life...»).

«4. Primado da razão: Deus não é irracional, porque o irracional é uma violação do intelecto, e o intelecto humano é feito à imagem e semelhança do intelecto divino»

O primado da razão ficou demonstrado quando Deus fez um filho a uma virgem, encarnou no seu próprio filho e deixou-se torturar até à morte para ressuscitar ao fim de três dias e desaparecer outra vez, sendo esta a única forma de perdoar aos homens os pecados dos seus antepassados. O comércio de drogas psicotrópicas e o sucesso das religiões comprovam que o intelecto humano é feito à imagem e semelhança do intelecto divino.

O António Parente aconselhou-me a preceder todas as afirmações com «eu penso que», não vá alguém julgar que isto se escreveu sozinho ou coisa que o valha. Lamento, mas não posso escrever o que penso destas quatro proposições num blog acessível a menores.


1- 18-1-08, O cristianismo e a Europa.

O Cristianismo e a Europa.

A aparente importância do Cristianismo na cultura europeia vem de confundir a história com o presente. O Cristianismo foi muito importante na história da Europa. Mas também foram importantes o colonialismo, a escravatura dos povos africanos, o extermínio das civilizações da América, as guerras religiosas, o genocídio e o fascismo. Tal como estes factores que marcaram o nosso passado, também a fé na salvação por Jesus Cristo morto e ressuscitado ao terceiro dia não caracteriza a cultura europeia de hoje.

Os valores que distinguem a cultura europeia não são valores Cristãos. Pelo contrário. Na Europa ocidental o estado soberano da Cidade do Vaticano é o único que não respeita os princípios da democracia, da igualdade de direitos para ambos os sexos e da liberdade de expressão e crença religiosa. É verdade que a Europa foi assim mas agora já não é. A ditadura, a intolerância religiosa e a discriminação sexual já não são aceites na cultura Europeia.

Até na atitude perante a religião não é o Cristianismo que mais distingue a Europa. Na América, em África, e até em partes da Ásia leva-se o Cristianismo muito mais a sério que aqui. Niste aspecto a Europa distingue-se mais pelo ateísmo, pela indiferença à prática religiosa e pela condenação de todo o fundamentalismo religioso. Fora da Europa é mais comum condenar-se todos os fundamentalismos excepto o favorito regional.

Concordo que o Cristianismo foi muito importante na história da Europa. Mas hoje em dia destaca-se mais por chocar com os valores fundamentais da cultura europeia.

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Como a Maratona criou a Europa.

No post sobre o artigo do João César das Neves a Abobrinha comentou que «A guerra foi sempre um grande motor de grandes desenvolvimentos tecnológicos. Podemos dizer então "como a guerra criou a Europa"»(1). É verdade que muitas guerras conduziram a desenvolvimentos tecnológicos e a alterações sociais. Mas se é pancada para criar a Europa eu nomeio a batalha de Maratona, em 490 AC.

O rei da Pérsia estava furioso com os Atenienses por terem ajudado os Gregos da Jónia a revoltar-se. Depois de suprimir a revolta enviou um exército com uns trinta ou sessenta mil homens para castigar Atenas, conquistar o resto da Grécia e dar cabo dos Gregos. Os Persas levavam estas coisas a sério. Se tivessem conseguido nunca haveria democracia, nem Platão ou Aristóteles, nem Sófocles. Nem o Renascimento. Para a Europa de hoje foi mais importante o Renascimento que a Ressurreição.

Ao contrário do que propõe César das Neves, o que marca a Europa como europeia é a cultura da Grécia antiga. O Cristianismo é uma importação do Médio Oriente, e o pouco que tem de europeu foi influência Grega. Quatro séculos antes de Cristo já Platão propunha julgar homens e mulheres pelo mérito em vez do sexo. Passaram dois mil e quinhentos anos e o Cristianismo ainda não chegou lá. Esta é uma das ideias que mais separa a cultura Europeia do resto do mundo. Por seu lado, o Cristianismo é das coisas menos Europeias que a Europa tem.

A democracia, a liberdade de expressão, a tolerância religiosa, a ciência, o pensamento crítico e a abertura à crítica. Nada disso veio do Cristianismo ou por causa do Cristianismo. Veio tudo dos Gregos e apesar do Cristianismo. Se um tal Yeshua Ben Yosef tivesse sido mais um profeta esquecido pela História a Europa ainda seria a Europa. Mas se aqueles dez mil Atenienses não tivessem dado uma coça ao exército Persa nem sequer tinha chegado a haver Europa.

1- 15-1-08, Como a cerveja criou a Europa.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Fala, fala, fala...

Este vídeo esteve brevemente no YouTube, mas foi retirado por pressão dos cientólogos. Pelo que percebi, o Tom Cruise ganhou uma medalha da cientologia, e este vídeo fazia parte da cerimónia, mas não era para ser visto por quem não seja cientólogo. Especialmente SPs (supressive persons).



Penso que Tom mostra bem o que é a cientologia. Mas mesmo assim acho que o Ricardo diz mais, melhor, e com muito mais graça.



Via Et Cetera, e obrigado ao António Parente pelo email.

terça-feira, janeiro 15, 2008

Como a cerveja criou a Europa.

No Diário de Notícias de ontem, João César das Neves explica como a cerveja «gerou a liberdade, os direitos do homem, o capitalismo e o milagre económico no Ocidente.»(1) De facto, como se pode ver na imagem abaixo, o consumo de cerveja é maior nos países influenciados pelos ideais Europeus de democracia, livre comércio e respeito pelas liberdades individuais (2):

Image:Map of world by beer consumption.png

Como aponta César das Neves, «seria muito estranho não existir uma relação estreita entre esta origem e aqueles efeitos», pelo que é evidente que tudo isto se deve à cerveja. Bem, César das Neves não diz exactamente «cerveja». Ele prefere o termo «igreja». Mas o argumento é o mesmo. É partir de uma correlação e inferir uma relação causal. Até tem um nome em latim e tudo, de tão famosa que é a falácia. Post hoc, ergo propter hoc. César das Neves acrescenta:

«Os avanços conseguidos na chamada Idade das Trevas são impressionantes, todos dirigidos a melhorar a vida concreta (op. cit. c. II): ferraduras, arado, óculos, aquacultura, afolhamento trienal, chaminé, relógio, carrinho de mão, etc. A notação musical, arquitectura gótica, tintas a óleo, soneto, universidade, além das bases da ciência, a separação Igreja-Estado e a liberdade dos escravos (c. III) são também criações medievais. Em todos estes avanços, e muitos outros, têm papel decisivo mosteiros, conventos e escolas da catedral, bem como a confiança da teologia cristã no progresso, contrária à de outras culturas.»(1)

As bases da ciência e a separação de Estado e Igreja datam dos Gregos, pelo menos. Os avanços tecnológicos não têm muito a ver com a Igreja Católica. O primeiro relógio mecânico de que há registo foi oferecido a Carlos Magno pelo califa de Bagdade, Harun al-Rashid (3). Há imagens de carrinhos de mão em murais do século II na China (4). Quanto às coisas que foram mesmo inventadas na idade média, tanto a Igreja como a cerveja tiveram o mesmo papel "decisivo". Estavam lá.

1- João César das Neves, Como a Igreja criou a Europa
2- Wikipedia, List of countries by beer consumption per capita
3- Wikipedia, Clock
4- Wikipedia, Wheelbarrow

domingo, janeiro 13, 2008

Devíamos copiar isto.

Vários deputados do Partido Moderado Sueco assinaram dois artigos na revista Expressen a defender a proposta do partido para descriminalizar a partilha de ficheiros. No primeiro artigo expõem o problema principal. A única forma de proteger o mercado pela força da lei é controlar tudo o que se faz na Internet:

«Decriminalizing all non-commercial file sharing and forcing the market to adapt is not just the best solution. It’s the only solution, unless we want an ever more extensive control of what citizens do on the Internet [...]

The simple truth is that almost all communication channels on the Internet can be used to distribute copyrighted information. If you can use a service to send a message you can most likely use the same service to send an mp3-song. Those who want to prevent people from exchanging of copyrighted material must control all electronic communication between citizens.»
(1)

O segundo artigo responde às críticas de Horace Engdahl, secretário da Academia Sueca, e representantes dos distribuidores de músicas e filmes. Salienta que os interessados em usar a lei para controlar a distribuição de conteúdos não são os criadores, mas os distribuidores, e que a implementação exige dar aos fornecedores de serviços de ligação deveres e direitos que ultrapassam o razoável para o sector privado:

«Making broadband suppliers watch what their customers download on the Internet would be like making postal services open every package. Those who defend creators’ rights should also defend everyone’s right to communicate without surveillance.»(2)

Isto já tenho defendido aqui muitas vezes, mas é bom ver que há países onde os políticos põem a liberdade de expressão e o direito à privacidade acima das vendas de CDs.

Também achei interessante esta forma de discutir as coisas. São artigos assinados colectivamente por vários deputados. Não é um programa eleitoral que ninguém lê nem um artigo de opinião em nome individual. É o partido a responder a críticas, a debater com os eleitores e a enfrentar publicamente as opiniões contrárias. Parece-me bastante melhor que um debate de vez em quando na televisão e dilúvios de discursos demagógicos quando se vota qualquer coisa.

1- Karl Sigrifrid, 7-1-08, Decriminalize File Sharing
2- Karl Sigfrid, 10-1-08 Horace Engdahl pushes for Internet Control

sábado, janeiro 12, 2008

Propriedades e existência.

Uma das «provas» que Deus existe assenta em confundir a existência com uma propriedade. Anselmo (1033-1109) disse que Deus é aquilo que é mais perfeito que qualquer outra coisa. Como um Deus que não existe será menos perfeito que um Deus que existe, segundo Anselmo, Deus tem que ter a propriedade de existir. O problema é que existência não é uma propriedade.

Imaginem um Ludwig idêntico a mim em tudo. Mesmo tamanho, forma, pensamentos, e que até está no mesmo sítio que eu ao mesmo tempo que eu a fazer o mesmo que eu. Evidentemente, não pode ser outra coisa senão eu. Se a existência for uma propriedade e esse Ludwig não existir então pode ser outra coisa porque já tem uma propriedade diferente. Um é o Ludwig que existe, o outro é exactamente igual só que não existe. Mas isso é absurdo. É igual a mim e está onde eu estou a fazer o mesmo que eu mas não existe? Não faz sentido.

Faz mais sentido considerar a existência como sendo a instanciação de propriedades em vez de uma propriedade em si. Isto não resolve o problema de saber o que é a realidade, pois continua por definir o que é isso da instanciação. Mas torna o conceito de existência mais claro. Por exemplo, mostra que não faz sentido falar em dois Ludwig exactamente iguais em tudo excepto que um existe e outro não. Se todas as propriedades estão instanciadas então existe. Se não estão, então não existe. Seja como for, se é igual em tudo é o mesmo e não dois.

Também é útil para sair de labirintos retóricos como os do leitor JC, que entre muitas outras coisas escreveu:

«Você cai numa flagrante contradição negando ao imaginado a condição de existente só porque o imaginado pode não existir na realidade empírica, fora da mente. Mas, afinal, mesmo que apenas na mente, o imaginado existe ou não existe?»(1)

O Homem Aranha existe? Se «Homem Aranha» designa um personagem fictício de banda desenhada, então sim. Todas as propriedades de tal personagem estão instanciadas, tais como estar desenhado em livros, ter sido inventado por alguém, fazer parte de histórias e assim por diante. E se as suas propriedades estão instanciadas então essa coisa existe. Existe um personagem de banda desenhada chamado Homem Aranha. Mas se «Homem Aranha» designa um ser humano com poderes de aranha então não existe. As propriedades dessa coisa não estão instanciadas num ser.

O mesmo se passa com Deus ou o bicho papão. Em muitas cabeças há cérebros a instanciar as propriedades de ideias acerca de tais entes. São pensados, sentidos, temidos, e assim por diante. As ideias existem. Mas as propriedades de um bicho que rapta as crianças que se portam mal ou de um deus que criou o universo não estão instanciadas. Essas coisas não existem.

Isso da realidade empírica e não empírica é só para baralhar. Há uma realidade. Os cérebros existem, os pensamentos existem, a fantasia existe. A confusão também existe. Aos montes. Mas fazer confusão e pensar que existe aquilo acerca do qual se tem fantasias não justifica inventar uma “realidade” à parte só para disfarçar a confusão.

1- 9-1-08, Ciência e as outras coisas.

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Referendo.

Vários leitores manifestaram-se de acordo com o Ricardo Alves e criticaram a minha crítica (1). Defendem, como escreveu a Ana, que não fazer um referendo é «pouco democrático» e «aquilo que se está a criticar foi o facto de não nos terem permitido tomar essa decisão, e não o facto de terem tomado a decisão errada.» Exacto. É mesmo por isso que acho o referendo, neste caso, uma treta. Mas é melhor explicar.

Quando a democracia funciona, nós, eleitores, não decidimos nada disto. Mal de nós se assim fosse. Elegemos, dentro do que se arranja, quem consideramos mais capaz de resolver os problemas e delegamos o poder e a responsabilidade de o fazer da melhor forma para todos. Dos impostos à lei do tabaco, da defesa ao Alcochete, é assim que a coisa funciona. Normalmente.

Quando o processo falha a democracia tem vários mecanismos de excepção. Greves, manifestações, a dissolução do Parlamento, eleições antecipadas e assim por diante. E referendos. O referendo é uma excepção ao funcionamento normal da democracia. Como os outros, só se justifica quando o sistema de decisão por representantes eleitos não funciona.

Como o referendo também é uma forma de ganhar protagonismo, é sempre atraente aos partidos da oposição ou como promessa eleitoral. Mas isso é que é pouco democrático, pois perturba o funcionamento normal da democracia em benefício de alguns partidos e em detrimento dos eleitores.

Se for verdade que este tratado é mau para nós então mudo de ideias. Se há um problema no processo normal temos que retirar o poder que delegámos nos nossos representantes. Mas isso é que é pouco democrático. É uma medida excepcional para remendar uma falha da democracia. E é um risco. O resultado pode depender pouco da análise objectiva das alternativas e ser determinado por uma frase infeliz ou um vídeo dos Gato Fedorento.

Eu estou disposto a correr esse risco se me mostrarem que há necessidade de o fazer. Mas é insensato interromper o funcionamento normal da democracia alegando que isso é mais democrático.

1- 10-1-08, O tratado.

Revelação.

Fui enganado. Durante anos. E os meus filhos também. Só tendo visto em vídeo, pensava que a primeira estrofe da canção Arabian Nights no início do filme Aladdin era:

«Oh I come from a land, from a faraway place
Where the caravan camels roam
Where it's flat and immense
And the heat is intense
It's barbaric, but hey, it's home»


É a versão oficial agora. Mas não era a original.



Na verdade, «Where they cut off your ears if they don’t like your face» é muito mais barbaric e faz mais sentido na música, mas a Disney mudou a letra na versão em vídeo por pressão da comunidade Árabe.

Podia ter sido pior. Podia ter sido o Star Trek turco.



Chamo especial atenção para a entrada do Kirk aos 50 s e para o rabo da Uhura meio minuto mais tarde.

Mais sobre o racismo nos personagens da Disney em The 9 most racist Disney characters. E mais sobre cópias de filmes americanos em Ridiculous Overseas Rip-Offs of American Films.

Via Sivacracy

quinta-feira, janeiro 10, 2008

O tratado.

No Esquerda Republicana, o Ricardo Alves lamenta que não haja referendo acerca do tratado de Lisboa. No post «Esperemos que haja democracia» o Ricardo escreve que «Há mais de vinte anos que os cidadãos aguardam que os deixem dizer uma palavra sobre a União Europeia» (1). A hipérbole perdoo. O resto não.

A democracia é muito mais que votar. É a independência dos ramos do estado, a aplicação imparcial da lei, a protecção das minorias e dos direitos fundamentais, a liberdade de expressão e associação, e assim por diante. E, quando se vota, normalmente elege-se quem represente os eleitores. Há mais de vinte anos que os cidadãos elegem quem organiza a União Europeia. Quem assinou o tratado de Lisboa foi eleito democraticamente para representar os cidadãos. A afirmação do Ricardo não é apenas exagerada. É falsa.

A partir de 2014 as votações no Conselho Europeu serão decididas por maioria dupla de 55% dos estados membros que incluam 65% da população da União Europeia, excepto se as medidas forem opostas por menos de 4 países, caso esse em que se dispensa o requisito da maioria da população para impedir que poucos estados mais populosos bloqueiem as decisões. É este o tipo de coisas no tratado de Lisboa, e é por isto que a democracia tem que ser representativa. Não se consegue pôr centenas de milhões de pessoas a decidir estas coisas por referendo. Tem que se eleger representantes que negoceiem os detalhes. Se os eleitores não gostam do resultado, pois que elejam outros representantes que façam tudo de novo. O processo é reversível.

Além da ineficácia, os referendos também são uma forma irresponsável de decidir. Para que o eleitorado exprima a sua opinião sincera ninguém pode ser responsabilizado pelo voto, que tem que ser secreto e livre de consequências. Mas não é isso que queremos numa decisão que afecta todos. Quem decide deve ser responsável e responsabilizável. A decisão de cujas consequências ninguém tem culpa é asneira garantida.

A falta de responsabilidade faz os partidos aproveitar para fazer do referendo um concurso de popularidade. Quem ficar do lado que teve mais votos, seja pelo que for, fica mais popular. Se referendarem a questão «Devemos dar todos um tiro no pé?» há de haver quem fica do lado do sim só a ver se ganha votos. Porque se ficar tudo a coxear ninguém é responsável. Ganhámos. Fez-se a vontade dos eleitores.

Finalmente, o problema que o Ricardo ilustra. A razão principal para não haver referendo acerca disto, independentemente do que os políticos prometeram. Uma questão técnica complexa com uma grande rede de consequências para centenas de milhões de pessoas vai ser reduzida a meia dúzia de chavões demagógicos e enganadores. Pela democracia! Abaixo a pobreza! Qualquer coisa com soberania e identidade nacional! E assim por diante, até uma data de gente votar sem saber no quê. Isso não é democracia. É treta.

1- Ricardo Alves, 8-1-08, Esperemos que haja democracia

quarta-feira, janeiro 09, 2008

Ciência e as outras coisas.

Nesta discussão com o Desidério concordamos numa coisa importante, mas como interessava mais discutir o que discordamos isto ficou para trás:

«há uma acepção de “ciência”, que é até prévia à revolução científica e que corresponde ao sentido de “episteme” usado pelos gregos, segundo a qual a filosofia, a história e outras disciplinas deste género são tão científicas quanto a física ou a matemática.»(1)

Os comentários do António e do Francisco Saraiva de Sousa (2) trazem-me de volta a este ponto para explicar o que me motiva a discutir isto (além do prazer de discordar). Isto não é apenas uma acepção de “ciência”. Isto é o fundamental, ao contrário do que escreve o Desidério a seguir: «Não concordo com a ideia de que isto invalide distinções iluminantes entre diferentes ciências».

Não há ciências. Há ciência. Dizer que a química é uma ciência e a astronomia ou filosofia outra ciência é como dizer que a base é uma pizza, a cobertura é outra pizza e cada fatia é uma pizza. Estas disciplinas são partes da ciência, colaboram na procura sistemática do conhecimento e têm em comum a forma cíclica de observação e manipulação de conceitos que caracteriza a ciência. A física, a matemática, a psicologia e até parte da filosofia são formalmente idênticas neste aspecto. Dentro de cada uma e entre todas adquire-se informação por observação e usa-se essa informação para criar modelos conceptuais.

Há quem considere a matemática uma excepção porque demonstrar teoremas não exige observação, mas é um erro. Há uns séculos os matemáticos calculavam tabelas de logaritmos, resolviam equações à mão, fartavam-se de fazer contas. Hoje é o computador que faz contas, que não tem nada que saber. Demonstrar teoremas é mais complexo, mas também não passa de aplicar regras para substituir símbolos, e isso os computadores fazem cada vez melhor. Em breve os matemáticos farão tantas demonstrações à mão como hoje fazem contas de dividir, e poderão dedicar mais tempo a compreender o significado do que demonstram e como isso corresponde à realidade. Porque isso é que interessa, e nisso a matemática é como qualquer outra parte da ciência.

A unidade da ciência também é evidente no conteúdo. Todo o conhecimento está interligado. A filosofia não pode contradizer a física nem a matemática contrariar a biologia. Se o biólogo diz que um rebanho mais um rebanho dá um rebanho e o matemático diz que não pode ser porque um mais um é sempre dois temos um problema que tem que ser resolvido. O matemático George Boole inventou uma álgebra em que um mais um dá um. Não é usada para contar rebanhos mas é importante na lógica e fundamental na informática.

Interessa-me focar este aspecto porque ajuda a separar a ciência (e o conhecimento) de outras coisas. Como a ética, estética e política, por exemplo, que também dependem de conhecimento mas vão além deste, incluindo escolhas, actos e expressões. O que sabemos e o que fazemos são coisas diferentes.

Mas especialmente porque compreender a coesão do conhecimento e da forma de o obter revela logo muita da treta que há por aí. A teologia, que diz conhecer pela fé; as “ciências ocultas”, que se apoiam na intuição; as inúmeras patetices da nova era, cada uma com o seu “método”. Nada disso serve. Não é assim que se obtém conhecimento. E, ao contrário do que acontece entre as partes da ciência, estes não se importam com contradições. Os homeopatas não se incomodam se a sua doutrina contradiz a acupunctura. A medicina tradicional chinesa, o tarot da Maia e a reflexologia podem contradizer-se à vontade. Os astrólogos até têm orgulho nas várias astrologias incompatíveis entre si. E as religiões é o que se vê...

A ideia que há várias formas de conhecer, como a ideia que há várias realidades, é errada e enganadora. Para conhecer algo temos que o examinar e pensar racionalmente acerca do que observamos. Não adianta ficar a olhar para o umbigo, ajoelhado a rezar ou sentado na poltrona com o cachimbo no canto da boca.

1- Desidério Murcho, 27-12-07, “Ciência” na acepção ampla
2- 6-1-08, Conhecimento

terça-feira, janeiro 08, 2008

Treta da Semana: Despertai!

Não costumo ler isto, mas ontem encontrei abandonada num banco do Metro a edição deste mês da Despertai!, a revista das Testemunhas de Jeová. O título da capa é «violência contra as mulheres». Pensei que se eles fossem contra já era uma coisa que teríamos em comum. Enganei-me. Dizem que são contra, claro. Mas...

Começam por mostrar como Jesus tratava bem as mulheres. Numa ocasião veio uma Samaritana buscar água ao poço e Jesus disse-lhe «Dá-me de beber». Explicam que deve ser interpretado como um gesto de respeito e simpatia porque naquele tempo era escandaloso falar com mulheres em público. Deve ser do meu ateísmo, mas não consigo ver a coisa dessa maneira. Depois dão o exemplo de Carlos e Cecília. Ele era agressivo, o que é obviamente mau. Mas ela não era melhor. Era «exigente e orgulhosa». Não admira que levasse na cara. Felizmente as coisas mudaram com os ensinamentos de Jesus. Cecília tornou-se «mais humilde e compreensiva», enquanto que Carlos «aprendeu a ser mais tolerante e a ter mais autodomínio». Excelente. Presumo que agora não só ela lhe dá menos razões para bater, como ele deixa passar algumas sem levantar a mão e quando lhe dá é com menos força. Ainda dizem que não há milagres...

Mais à frente há um artigo sobre «O que a chefia no casamento realmente significa?». A foto mostra um casalinho radiante e a legenda alega que «Exercer a chefia de acordo com o exemplo de Cristo resulta na alegria e satisfação do marido e da mulher». Não é o que pensam. Eu também julguei que era ele dizer que faz mundos e fundos e acabar pregado a uma cruz. Mas não. É que «o marido deve tomar a liderança na família e a esposa deve seguir essa liderança e respeitar a sua chefia». Como está na epístola aos Efésios, 5:33.

Eu até percebo que haja homens religiosos. Foram os homens que inventaram esta treta e é óbvio que lhes traz vantagens. Mas não percebo como é que as mulheres caem nisto. É assim em todas as religiões. Têm que obedecer ao marido. Na Igreja só podem ser freiras, porque quem manda e dá missas são os homens. Até a recompensa por morrer virgem é passar a eternidade com mais setenta e uma mulheres e um tipo barbudo a cheirar a chamusco. Minhas senhoras, se querem religião inventem uma nova. Deixar isto por conta dos homens só dá porcaria.

E a Despertai! não é Despertai! sem uma dose de criacionismo. A teia da aranha. Mais forte que o aço, e se tivesse o tamanho de um campo de futebol podia parar um avião. «O que você acha? A aranha e a sua seda tão resistente como o aço surgiram por acaso ou foram projectadas por um Criador inteligente?». Nem uma nem outra. Foi a evolução. Mas vejamos essa hipótese do criador inteligente.

E a traça. Se fosse do tamanho de um campo de futebol, a traça também conseguia parar um avião. Na verdade, há poucas coisas que não conseguiam parar um avião se fossem do tamanho de um campo de futebol. Uma maçã cozida. Até um monte de algodão doce dava logo cabo dos motores. E uma traça desse tamanho dava um trabalhão ao Godzila, coisa que uma teia nunca fez. Mas mesmo no tamanho normal as asas das traças estão cobertas de minúsculas escamas, presas de forma a não cair durante o voo mas que se soltam quando se colam à teia da aranha. A traça perde umas escamas mas de resto escapa ilesa.

Se um criador fez a aranha, também um criador fez a traça. Mas a menos que seja esquizofrénico ou muito distraído, é óbvio que não foi o mesmo criador que criou ambas.

São só 32 páginas, mas é treta concentrada e praticamente pura. Recomendo vivamente a quem ainda tiver a ilusão que a nossa espécie é um animal racional.

segunda-feira, janeiro 07, 2008

Desculpe, tem lume?

A minha irmã Cristy mandou-me uma notícia do Público que ilustra o conflito entre a educação tradicional e os interesses das crianças. O título é «Por ser festa de Reis, Gonçalo, com oito anos, fumou 23 cigarros em dois dias.»

A notícia pode ser lida no Brutális ou no Público online (para assinantes). Infelizmente, muita gente ainda está longe de compreender que as crianças também são pessoas.

«"Isto vem de tempos antigos e é um orgulho ver a garotada a dar seguimento à tradição", argumentava José Ferreira, com 73 anos. "À minha neta de oito anos dei-lhe dois cigarritos e mete graça vê-los ali de cigarro na mão a chupar", acrescentava, mostrando um certo orgulho neste estranho incentivo.»

domingo, janeiro 06, 2008

Conhecimento.

Nesta última rodada o Desidério deixou-me um pouco confuso. Começa por afirmar que «Uma verdade é analítica se, e só se, podemos saber a priori que é verdadeira.»(1) Fiquei surpreendido mas estou de acordo. É isso mesmo. Só é verdade a priori se for analítica, e vice versa. Mas baralhou-me que o parágrafo seguinte afirmasse «Pode ser que todo o conhecimento a priori seja conhecimento de verdades analíticas, mas tal coisa não se segue dos conceitos de a priori e de analiticidade.» Parece-me contradizer o «se, e só se».

Mas deixo ao Desidério explicar na próxima rodada se há proposições sintéticas cuja verdade seja justificável a priori, e aproveito para resumir a minha posição e tentar esclarecer as dúvidas do António e do Francisco Saraiva de Sousa (2). Eu proponho que o conhecimento diz respeito* à adequação do modelo simbólico** àquilo que se quer conhecer. Para conhecer X temos que criar um modelo que descreva adequadamente X, e quanto mais adequado for o modelo melhor conhecemos X. Para isto precisamos de raciocínio, porque é preciso lidar com o modelo simbólico, e precisamos de observações (experiências, dirá talvez o Desidério) para que o modelo de X não acerte ou falhe só por sorte. Todo o conhecimento é uma conjunção destes dois aspectos.

A primeira objecção, a que o Desidério levantou, é que há frases cuja verdade é justificável por mais nada que o seu significado. «Nenhum casado é solteiro», por exemplo. E há outras que exigem algo mais, como «nenhum casado é feliz». Eu concordo com a distinção, mas em ambos os casos precisamos de conhecimento para decidir. Precisamos saber o que é solteiro, casado, feliz, ser, e assim por diante. E todo esse conhecimento é do mesmo tipo. Ser a priori ou a posteriori apenas caracteriza a frase conforme o seu significado é suficiente ou insuficiente para determinar a sua verdade. Mas isto não sugere que haja tipos diferentes de conhecimento. Afinal, o conhecimento do significado da frase é do mesmo tipo que qualquer outro conhecimento.

Outra objecção é a matemática. Uma demonstração matemática é uma sequência de passos que substituem expressões por expressões sinónimas. É tudo a priori, no sentido de que a expressão final é equivalente à inicial. E é evidente que a matemática nos dá conhecimento. O erro é pensar que a matemática é só isto.

Imaginem que um génio louco inventa um conjunto de símbolos e regras para os manipular. Dedica a vida a demonstrar complexas transformações, propriedades de famílias de sequências e combinações de regras duma complexidade mirabolante. Por si só, isto não é conhecimento. É tudo a priori, é tão complexo quanto quisermos, mas se não tem significado nenhum não é conhecimento.

É óbvio que a matemática não é assim. O “2” e o “+” e o “=” não são apenas símbolos mas têm significado. E esse significado depende de algo empírico. De contar coisas ou agrupar coisas em conjuntos ou de palavras que se referem a coisas e acontecimentos. A matemática é conhecimento porque é raciocínio e observação, senão era como o jogo do génio maluco. O conhecimento matemático é conhecimento porque é tão empírico como qualquer outro.

Este é um ponto importante, e recorrente, nesta discussão com o Desidério. No último post ele afirma «Por exemplo, não se consegue tornar verdade por estipulação que dois mais dois é sete. O que podemos tornar verdade por estipulação é que a palavra “sete” quer dizer quatro, e nesse caso dois mais dois é sete, mas isto é uma confusão entre linguagem e referência porque "sete" agora quer dizer quatro.»(2). Não é confusão nenhuma. É isso mesmo. Sem o aspecto empírico dos símbolos (o seu significado) não há conhecimento. Nem sequer verdade no sentido que interessa.

Em suma, estes dois aspectos, a observação e a manipulação dos símbolos e conceitos, são indissociáveis no conhecimento. São aspectos diferentes e podemos distinguir exemplos de um e de outro, mas não há dois tipos de conhecimento porque não há conhecimento sem a conjugação de ambos.

* Este “diz respeito” é propositadamente vago. Podemos discutir se o conhecimento é o modelo adequado, se é a adequação do modelo ou se é a informação que nos permite tornar o modelo adequado. Por enquanto não me interessa esmiuçar isto porque, para este efeito, tanto faz.

** Simbólico porque estamos a falar apenas daquele conhecimento explícito que codificamos em palavras, equações, etc. Não estou a falar de saber digerir uma maçã ou saltar à corda. Peço desculpa pelas notas de rodapé, mas na filosofia um tipo tem que ter muito cuidado com o que diz.

1- Desidério Murcho, 5-1-08, Linguagem e a priori
2- A priori, só depois...

As crianças e a regressão à média.

A regressão à média é fácil de perceber em teoria, mas engana muito na prática. Dado um conjunto em que a maioria dos está próxima da média e cada vez menos elementos têm valores mais extremos, se nos calha um elemento com um valor extremo o mais provável é que a seguir venha um mais próximo da média. Uma pessoa excepcionalmente alta pode ter filhos mais altos que a média mas é quase certo que serão mais baixos que ela. Se uma prova corre excepcionalmente bem a um atleta é provável que a seguinte não seja tão boa. E assim por diante.

Também é fácil perceber como isto pode enganar. Uma pessoa com uma doença crónica terá dias piores e outros melhores. Se toma as gotinhas homeopáticas ou espeta umas agulhas nos dias em que se sente excepcionalmente mal vai notar que é frequente uma melhoria a seguir a estes “tratamentos”. Não que a coisa funcione, mas pela regressão à média.

Isto vem a propósito dos comentários do Bizarro e da Abobrinha defendendo que «umas chapadas como forma de castigo, não é necessáriamente mau», e que «Disciplinar uma criança por um tabefe dado na hora certa e com um propósito não chega a entrar na violência». Eu discordo de ambos. O tabefe e afins servem de castigo precisamente pela violência e porque fazem mal. Mas prefiro abordar um aspecto mais preto no branco e com menos cinzentos que esta alegada diferença entre bater numa criança e a violência má.

Os pais que elogiam os filhos quando se portam excepcionalmente bem e lhes dão tabefes quando se portam excepcionalmente mal vão notar que a seguir aos elogios o comportamento tende a ser um pouco menos bom, ao passo que a seguir aos tabefes tende a ser menos mau. A regressão à média dá a ilusão que os tabefes são mais eficazes que os elogios para alterar o comportamento da criança. Mas na verdade é o contrário. Qualquer pessoa que ensine mamíferos sabe que as recompensas dão melhores resultados que a dor.

A dor actua sobre mecanismos de aversão primitivos e inconscientes. É o que faz ter medo de cães a vida toda por uma dentada em pequeno, mesmo contra o que a pessoa sabe ser racional. Um treinador que ensine os leões ou cães à pancada vai se dar mal. É claro que temos com os nossos filhos um grande capital de afecto que só com muita estalada se gasta mas, mesmo assim, é má ideia educá-los recorrendo a um mecanismo de aversão inconsciente e pouco fiável.

É preferível tirar partido dos mecanismos mais sofisticados de interacção social. Uma treinadora de golfinhos recompensava-os com peixes sempre que faziam o que ela pedia. Quando não colaboravam castigava-os virando costas à piscina e afastando-se deles durante um bocado. Mas há um aspecto ainda mais importante que a eficácia do método.

Um dia, à pressa, não tinha limpo e descamado os peixes como de costume. O golfinho não gostou. Nadou para o outro lado da piscina e ficou lá um bocado, de costas para ela. Tanto quanto sei ela aprendeu a lição (1). Os animais mais inteligentes aprendem pelo exemplo. Quando ensinamos qualquer coisa aos nossos filhos estamos sempre a ensinar a forma como os educamos, independentemente do conteúdo que queremos transmitir. Na educação das crianças os meios contam tanto ou mais que os fins.

A minha amostra é limitada a dois durante seis anos. É ainda trabalho em curso. Mas os resultados preliminares são bons. Foi fácil ensinar-lhes muitas coisas pelo exemplo. Não os interrompemos quando falam e eles não interrompem os outros. Nunca lhes batemos e eles não são violentos. O castigo foi sempre ficarem sentados durante um bocado. Hoje em dia é raro castigá-los. Basta um ralhete de vez em quando se andam a chatear um ao outro. Na fase terrível dos 2 aos 3 anos houve dias em que ficavam dezenas de vezes de castigo mas até se riam e era o suficiente para quebrar o ritmo aos disparates. Eventualmente esgotaram as possibilidades para disparates diferentes, aprenderam os limites e a coisa acalmou.

É claro que as crianças são todas diferentes, e não posso generalizar a partir de uma amostra de duas. Mas considerando este teste experimental no contexto da teoria, penso que é razoável afirmar que sempre que alguém bate numa criança podia (e devia) ter feito melhor.

1- Não me lembro ao certo onde li isto, mas julgo que foi no The Ape and the Sushi Master do Frans de Waal.

sábado, janeiro 05, 2008

Baptizados.

Há umas semanas o António Parente honrou-me com o prémio de melhor blog do ano (1). E há uns dias, com uma crítica (2) ao meu post sobre os direitos dos pais (3). Veio mesmo a calhar. Ainda ontem estive a discutir com um amigo o problema de baptizar os filhos. Mas primeiro o António:

«Os pais são livres de dizer muita coisa aos filhos [...] porque necessitam de os educar proporcionando-lhes as melhores condições para o seu desenvolvimento [...]. Os pais têm o direito de educar os filhos de acordo com as suas convicções morais e religiosas, tendo em atenção o ambiente cultural da sociedade em que vivem e como fundamentos o bem estar e a dignidade das crianças.»

Os pais “necessitam” de educar os filhos. Obviamente, não é uma necessidade fisiológica. É uma “necessidade” moral. Ou seja, é um dever. O que o António quer dizer é que os pais têm o dever de zelar pelo desenvolvimento e bem estar das crianças, a bem das crianças. Este dever não é compatível com o direito de educar as crianças como os pais entenderem. Por isso proponho que esse direito não existe. O António continua a confusão:

«Uma educação religiosa dirigida para crianças [...] debruça-se sobre conceitos como amor, amizade, ajuda ao próximo e deve desenvolver uma atitude de não-violência. Nada disto é errado e tem aspectos muito positivos porque permite que a criança se integre harmoniosamente na sociedade em que vive e adquira valores que são comuns a pessoas que não têm educação religiosa.»

É evidente que os valores comuns a pessoas que não são religiosas podem ser transmitidos sem educação religiosa. Nem é preciso a história de um deus torturado até à morte para ensinar amor, amizade, ajuda ao próximo e não-violência. Até porque a melhor maneira de ensinar crianças é pelo exemplo. É amando-as que elas aprendem a amar, ajudando-as que elas aprendem a ajudar, e a receita para filhos que não sejam violentos é simples. Não lhes batam. O pai que castiga aos tabefes o filho que bateu num colega está, no mínimo, a baralhar a criança com a contradição.

E isto traz-me à conversa que tive ontem. Argumentou o meu amigo que baptizar ou não é apenas uma diferença de crença e, seja como for, não faz mal nenhum à criança. Engana-se. Baptizar a criança como hindu, católica, protestante ou muçulmana difere realmente apenas na crença. Mas deixar que a criança decida quando se sentir capaz de o fazer é fundamentalmente diferente.

E faz mal porque é importante ensinar-lhe que todos têm o direito às suas opiniões. Sem aprender que é legítimo os outros discordarem de nós será difícil amar, ter amigos, integrar-se na sociedade e ser uma pessoa decente. E sem aprender que é legítimo ter uma opinião própria, mesmo que discorde dos outros, será difícil aprender a ser uma pessoa autónoma. Como tudo o resto, as crianças têm que aprender isto pelo exemplo.

Marcar um recém-nascido como pertença de um deus ou de uma igreja é um mau exemplo. As palavras dos pais dirão à criança que tem que respeitar a liberdade de consciência dos outros, mas o exemplo diz-lhe que a liberdade de consciência é treta. As palavras dos pais dirão à criança para aprender a pensar por si e ter as suas opiniões, mas este exemplo diz à criança que as opiniões importantes são fornecidas por alguém com mais autoridade. E quando crescer fará o mesmo aos seus filhos. Vai repetir as mesmas palavras, e dar o mesmo exemplo.

É verdade que há rituais religiosos bem piores que deitar água na cabeça. Admito que a minha oposição a baptizar crianças é uma questão de princípio. Mas são os princípios, estes valores fundamentais, que temos que transmitir aos nossos filhos. Pelo exemplo.

1- António Parente, 18-12-07, Blogue do ano: Que Treta! de Ludwig Krippahl
2- António Parente, 3-1-08, Pais, filhos e crenças
3- Eu, 22-12-07, O direito dos pais

sexta-feira, janeiro 04, 2008

Tantos anos para isto...

Um comentador anónimo repreendeu-me pelas críticas que teci ao Paulo Cardoso e à astrologia (1). No comentário lê-se: «eu estudo astrologia há muitos anos,....e posso garantir que é extraordinário!!». Seria de esperar que eu aceitasse a afirmação sem reservas. Afinal, é há muitos anos e ainda por cima com dois pontos de exclamação. Mas sou céptico até ao tutano e fiz o curso de Teimosia Avançada da Abobrinha (por correspondência). Nem com meia dúzia de pontos de exclamação me convencia.

Mas o defensor (defensora?) da astrologia recorre a uma táctica pouco usada neste meio. Suporta a sua posição com uma afirmação concreta e testável. «Podem verificar que existem mais nascimentos na lua cheia, a taxa de suicídio também aumenta nessa altura...e estou a falar apenas da lua, e de 2 exemplos comprováveis!». Infelizmente, há uma razão forte para os astrólogos evitarem esta táctica. É que invariavelmente lixam-se com isto. É treta. A Lua não faz nada disso, como já referi em Agosto (2).

Talvez este comentador anónimo estude astrologia «há muitos anos» como eu. Foi já há muitos anos a primeira vez que me ri destes disparates. Mas se foi com mais dedicação, a confiar nestas coisas da Lua e afins, parece-me que desperdiçou o seu tempo.

Mesmo assim, no espirito de abertura à critica, deixo aqui um pedido. Urano, Neptuno e Plutão foram descobertos nos últimos dois séculos, aproximadamente. Deve haver bons registos do trabalho dos astrólogos para determinar as influências destes planetas na nossa saúde, romance e vida profissional. Agradecia que partilhasse a sua sabedoria e explicasse o método que os astrólogos usaram e os resultados em que se baseiam para estimar os efeitos destes planetas. Já agora, podia também esclarecer porque é que os astrólogos consideram Plutão importante mas ignoram Eris, que é maior, e Ceres, que está muito mais próximo de nós. Ou Titã, a maior lua de Júpiter, que tem mais do dobro do diâmetro de Plutão e é maior que Mercúrio.

Finalmente, outra coisa curiosa... Compreendo que quem bebe urina ou anda com sabonete na micose prefira o anonimato (3). Mas se eu escrevesse aqui uma asneira acerca da física (já aconteceu), astronomia, biologia ou algo do género, o perito que me viesse pôr nos eixos não o faria anonimamente. Porque será que os peritos do criacionismo, astrologia, e ciências paratrêticas afins, têm tanta vergonha de dizer quem são?...

(só para que não haja dúvidas, a pergunta é retórica)

1- 11-12-07, Treta da Semana: Paulo Cardoso na Praça da Alegria.
2- 7-8-07, Treta da Semana: O Efeito da Lua.
3- 30-12-07, O post do ano de 2007.

Treta da Semana: Shigeru Ishiba

Para quem não reconhece logo o nome, Shigeru Ishiba é o ministro da defesa do Japão. Decidi galardoá-lo com o prémio desta semana pelo seu espírito visionário (e porque tenho pouco tempo para uma treta mais elaborada). Shigeru Ishiba está preocupado com as restrições que a constituição pacifista do Japão impõem ao exército. Se extraterrestres pousarem no Japão, o exército só poderá intervir se for um ataque «urgente e injusto»(1). Salientou também que «pouco se tem discutido acerca das bases legais» para a actuação do exército Japonês nos filmes da Godzila, o que é obviamente preocupante.

Eu gostava que o governo nipónico esclarecesse este problema, mas confesso que há outro que me preocupa mais. Como é que a Godzila vem a nadar debaixo de água mas quando se levanta tem a água pelos tornozelos? Penso que investir neste problema poderia trazer grandes avanços para a física moderna, revelando o acesso a espaços transdimensionais paralelos ou o que seja.

Aqui vai o meu obrigado ao site UFOpt.com, onde encontrei esta notícia e onde encontro muitas vezes razão para sorrir.

Editado às 18:41. Devia ser O Godzila, claro. Peço desculpa pela forma pouco cuidadosa com que abordei este tema tão sério.

1- Inquirer, Japan's defense minister braces for aliens

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Comparações

O Mário Miguel enviou-me esta comparação do volume de pesquisas por “evolucionismo” e “criacionismo” no Google. Os termos parecem acompanhar-se mutuamente em surtos de interesse, mas suspeito que os picos se devem ao baixo volume de pesquisas, provavelmente próximo do mínimo para o Google guardar essa informação. Esta imagem foi tirada quando eu segui o link que o Miguel enviou, mas com um click na imagem podem ver a informação actualizada.

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Como esta ferramenta do Google (1) permite comparar o volume de várias pesquisas acrescentei o termo “evolução”, que deve ser mais usado do que “evolucionismo” mesmo nesse sentido. Assim o gráfico já fica com um ar um pouco mais saudável. Os criacionistas falam alto e barafustam muito, e por isso parecem mais do que o que são.

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Mas é preciso ver este problema no devido contexto e em relação ao verdadeiro propósito da internet.

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1- Google Trends

quarta-feira, janeiro 02, 2008

A priori, só depois...

No seguimento da nossa conversa sobre o conhecimento, a realidade, a ciência e o que mais calhar, o Desidério apresentou duas frases para ilustrar dois tipos diferentes de conhecimento. O empírico e outro em que «basta raciocinar» (1):

«1) Se Sócrates era um ser humano, era um ser humano.
2) Sócrates era mais pesado do que Platão.»


A verdade da segunda tem que ser determinada pela experiência, de forma empírica. Eu prefiro “observação”, no sentido de «examinar com atenção e minúcia». Uns têm ideia que “empírico” ou “experimental” é só no laboratório, e outros que “experiência” pode ser uma mera sensação. Isto atrapalha a discussão com criacionistas (não se pode criar a vida em laboratório) ou malta new age (eu sinto que funciona e assim está provado por experiência). O conceito de exame atento e minucioso é fundamental nestes casos. Mas numa companhia mais sã aceito o termo “experiência”, e concordo que é necessária para saber se Sócrates pesa mais que Platão.

O problema é a distinção entre as duas frases: «a partir do momento em que as pessoas aprendem a pensar e falar português, basta pensar para saberem que a afirmação 1 é verdadeira.» Sim, mas a partir do momento em que saibam que Sócrates pesa 75 kg e Platão 62 kg também basta pensar para saberem que a afirmação 2 é verdadeira. Em ambos os casos têm que saber algo sobre o qual possam pensar, e esse algo, seja o que for, vem da experiência.

A experiência pode vir muito antes do raciocínio, e até sem conhecimento. Foi a ideia mais revolucionário do século XIX. Talvez de sempre. Antes de Darwin assumia-se que o pensamento vinha primeiro. A Palavra tinha criado tudo, e essas coisas. Darwin mostrou que primeiro foi um processo experimental de tentativa cega e muito erro, mas capaz de aproveitar o que, por acaso, acertava. A evolução não é conhecimento mas gera, testa, experimenta e produz mecanismos que têm conhecimento e discutem conhecimento em blogs.

Em última análise a evolução é a base experimental da minha afirmação que não há conhecimento sem experiência. O a priori do Desidério deve-se a décadas de aprendizagem, à sua experiência, e a quatro mil milhões de anos de experiências cegas que produziram o cérebro humano. Mas isso é irrelevante:

«O que Ludwig afirma é que mesmo para saber que 1 é verdadeira, tenho de saber o significado das palavras, conhecimento este que é claramente empírico. Pois é. Só que isso é irrelevante. Seria como afirmar que para fazer matemática temos de beber biberão.»

O biberão não faz parte da matemática, enquanto que o Português inclui forçosamente o significado das palavras. Mas percebo a ideia. A verdade de uma proposição é determinada a priori se segue do que está na proposição, sem precisar de mais nada. Aceito a definição de bom grado. Mas isto não é acerca do conhecimento. É acerca das proposições e da linguagem.

Imaginem uma língua na qual “Sócrates” refere um filósofo com 75 kg e «Platão» outro filósofo com 62 kg. A verdade da frase 2 é a posteriori em Português mas a priori nessa língua. Qualquer pessoa que saiba essa língua sabe o peso dos seres que as palavras referem, pois faz parte do sentido das palavras. E em Português a verdade de «Um filósofo com 75 kg é mais pesado que um filósofo com 62 kg» podia ser determinada a priori. Mas o conhecimento é o mesmo. Só muda o que está incluído em cada afirmação ou o que fica de fora.

A distinção que o Desidério defende é útil, e determinar o que é verdade a priori pode ser difícil ou até impossível, como Gödel provou (a priori). Mas “verdades” a priori é o que os computadores calculam. As linguagens de programação, a lógica e a matemática destacam-se porque, nestas, o que se prova a priori prova-se seguindo regras simples de manipulação de símbolos sem exigir conhecimento. O conhecimento só vem quando damos significado aos símbolos ligando-os à realidade. E isso é sempre a posteriori.

Se o “Sócrates” da frase 1 for o meu cão a frase 1 é à mesma verdadeira a priori. Mas é inútil enquanto conhecimento porque não corresponde à realidade.

1- Desidério Murcho, 2-1-08, Conhecimento não empírico

Toca a roubar!

Mas no bom sentido. Chama-se Steal This Film, e é um filme em duas partes (1) sobre os problemas das cópias e distribuição de conteúdos. A primeira parte já vi há uns meses, e gostei. Mas gostei especialmente da segunda parte, que saiu recentemente. Quem tiver banda larga e um cliente bittorrent (ou um browser que suporte o protocolo) pode descarregar os filmes gratuitamente.

Há duas ideias importantes nesta segunda parte. Uma é que partilhar ficheiros é exactamente o propósito da internet. A distribuição centralizada, na qual um fornecedor serve cada um dos seus clientes, é conveniente para alguns negócios mas não é natural na internet, e é ilusória. Por exemplo, quando eu envio um pedido de pesquisa ao Google tenho a sensação de «estar» no site do Google a falar com este prestador de serviços. Na verdade, cada pacote de dados passa por 13 nós intermediários. Uns são máquinas da Netcabo, outros da Marconi, outros não faço ideia do que sejam, e cada um recebe a informação e copia-a para o próximo. Exactamente o que se faz na partilha de ficheiros.

Mas a ideia mais importante é da cultura como cópia. A inovação é necessária ao progresso mas uma ideia só se torna cultura quando a copiamos entre nós. Quando a partilhamos. É um erro infelizmente comum associar a restrição de cópia à cultura. É o contrário, e no filme dão como exemplo o dos «piratas» do século XVIII que copiavam livros proibidos e os distribuíam pela França, partilhando ilegalmente a ideia que não devia ser o rei a mandar só porque era rei.

Recomendo este filme aos que se interessem por este tema. E aos outros também. A forma como comunicamos, como partilhamos ideias e como construímos a nossa cultura está a mudar bastante, e penso que isto interessa a todos.

Via Remixtures.

1- Steal This Film, Parte 1, Parte 2