quarta-feira, abril 30, 2008

Os malefícios da trigonometria.

A segunda guerra mundial matou setenta milhões de pessoas e a trigonometria foi instrumental nessa tragédia. Usaram-na para projectar armas, construir tanques, apontar artilharia, guiar bombardeiros e enviar ordens por rádio. Sem a trigonometria milhões de pessoas teriam sobrevivido. Mesmo assim é razoável culpar os governos e as ideologias dos dirigentes em vez da trigonometria. A razão é simples. As ideologias foram escolhidas mas o quadrado da hipotenusa não pode ser senão a soma dos quadrados dos catetos.

É isto que muitos esquecem quando apontam os malefícios da ciência. O investigador pode ser imoral, os resultados da ciência podem ser usados para fins imorais e a tecnologia em si, bombas ou instrumentos de tortura, pode ser imoral. Mas a realidade não é à nossa vontade. Há modelos que correspondem aos dados e há outros que não correspondem. Isto não escolhemos. O máximo que podemos fazer é tentar descobrir quais são quais.

Criacionistas e afins entretêm-se a associar a teoria da evolução ao nazismo, a Hitler e aos movimentos eugénicos e a apontar o racismo de Darwin. Como se isso fosse relevante para a teoria da evolução. A trigonometria não seria menos válida se Pitágoras violasse crianças nem a química passa a estar errada quando uma bomba mata inocentes. A teoria da evolução diz que se os hemofílicos morrerem haverá menos hemofílicos nas próximas gerações e a medicação poderá aumentar a incidência desta doença. Isto descreve a realidade, não é imoral. Imoral seria matar os hemofílicos em vez de aumentar a produção dos medicamentos ou ignorar os factos por nos parecerem desagradáveis.

O curioso é que são crentes religiosos quem alega que há modelos científicos imorais. Os modelos científicos são o que a realidade os força a ser, dentro do que conseguimos descobrir, e moralmente neutros como o teorema de Pitágoras. Os preceitos religiosos é que são os que se quiser. Escolha não falta e quem não encontrar uma religião a gosto pode fazer como o Jorge Tadeu, o Joseph Smith ou o David Koresh e inventar a sua. É a religião que pode ser imoral porque podemos criá-la à nossa vontade.

Aceito que, pela mesma razão, a religião também possa ser moralmente boa. Em teoria. O problema aqui é de ordem prática. Escolher por escolher é arriscado porque há muito mais maneiras de fazer mal do que de fazer bem. Na prática, só escolhe preceitos religiosos moralmente bons quem já é capaz de agir moralmente bem sem eles.

Religiões acusarem modelos científicos de serem imorais é um disparate porque ninguém tem culpa que haja gravidade, triângulos ou evolução, porque conhecer a realidade é um requisito para agir moralmente e porque as religiões só não são totalmente imorais porque muitos crentes são moralmente superiores às religiões que têm.

terça-feira, abril 29, 2008

Associação Ateísta Portuguesa

Daqui a cerca de um mês será a escritura de constituição da Associação Ateísta Portuguesa. Quem quiser estar presente pode seguir os desenvolvimentos no Random Precision ou no Diário Ateísta.

O que une os associados é não confiar em coisas do outro mundo, pelo que no resto haverá muita diversidade de opiniões, atitudes e formas de estar. O que é bom. Enquanto os crentes se identificam pelos preceitos da sua religião, cada ateu tem que mostrar o ateísmo apenas na sua maneira de ser e pode ser útil mostrar uma referência mais desligada das idiossincrasias de cada um. Por outro lado, uma associação ateísta é como um rebanho de gatos e a predisposição para o pensamento independente não é uma cola forte.

Mas porque concordo com os objectivos vou-me fazer sócio. E porque não deve haver referendos sobre o aborto nos próximos anos talvez a minha participação até seja pacífica.

«A Associação tem por objectivos:
1. Fazer conhecer o ateísmo como mundividência ética, filosófica e socialmente válida;
2. A representação dos legítimos interesses dos ateus, agnósticos e outras pessoas sem religião no exercício da cidadania democrática;
3. A promoção e a defesa da laicidade do Estado e da igualdade de todos os cidadãos independentemente da sua crença ou ausência de crença no sobrenatural;
4. A despreconceitualização do ateísmo na legislação e nos órgãos de comunicação social;
5. Responder às manifestações religiosas e pseudo-científicas com uma abordagem científica, racionalista e humanista.»


Os estatutos estão disponíveis aqui

segunda-feira, abril 28, 2008

Porquês.

Segundo alguns, a ciência diz-nos como as coisas acontecem e a religião diz porquê. Não me parece, mas antes de elaborar quero esclarecer como entendo esta alegada diferença: os porquês são razões e propósito; os “comos” são causas e efeitos. Na pedrada que parte o vidro vemos uma relação entre causa e efeito que explicamos com um como. É a isso que querem restringir a ciência. No homem a correr para a casa de banho vemos um acto motivado por razões que se explica com porquês. A proposta é que mesmo que a ciência explique todas as relações de causa e efeito que originaram o universo ainda resta à religião dizer o porquê. Porque é que isto existe, qual é a razão, motivação e propósito disto tudo.

Eu proponho que razões e causas são fundamentalmente o mesmo. A quem discorda peço paciência, já passo à justificação. Mas primeiro quero explorar a hipótese que nós inventamos porquês para simplificar relações causais que não compreendemos. A pressão da urina activa nervos nos músculos da bexiga, os sinais chegam ao cérebro e causam padrões de actividade que constituem aquela sensação desconfortável e alteram o comportamento do homem. Falta-nos os detalhes do como e por isso simplificamos a coisa com um porquê. Correu para a casa de banho porque estava aflito.

Esta hipótese explica o desaparecimento de muitos porquês. Antigamente procurava-se porquês para a chuva e para a seca, para as doenças, os sismos, até para uns serem reis e outros escravos. A vontade dos deuses e o destino explicavam por razões aquilo cujas causas se desconhecia. Mas com a compreensão os porquês deram lugar aos comos. Não há razões e propósitos nas doenças ou no clima. Há causas e mecanismos. Até as desigualdades sociais deixaram de ser justificadas com porquês e passaram a ser descritas como efeitos de inúmeras causas.

Esta hipótese também explica a origem dos porquês. O desafio principal aos cérebros dos nossos antepassados era modelar os cérebros dos seus contemporâneos. Prever o que eles iam fazer e como iam reagir. Mas as relações causais no cérebro humano são tão complexas que nem hoje as compreendemos e um modelo mental de causas e efeitos não ia longe. A solução foi inventar os porquês, uma ilusão útil para simplificar problemas demasiado complexos. Não precisamos saber a anatomia da bexiga ou a fisiologia dos neurónios para perceber o porquê da pressa do homem, mas só com os detalhes é que poderemos compreender o como.

Uma justificação para a hipótese que os porquês se reduzem a causas e efeitos quando bem compreendidos é precisamente o seu poder explicativo. A hipótese alternativa não explica porque é que os porquês desaparecem assim que se compreende o como. Outra justificação é a incoerência de uma razão sem causa. O homem tem razões para ter pressa, mas essas razões são efeito de causas fisiológicas sem as quais não haveria razão para pressas. Uma razão por acaso parece contraditória. Por isto proponho que os porquês são uma questão falsa. São apenas uma invenção do nosso cérebro para cortar caminho por problemas complexos.

Mas admitamos que algures há porquês verdadeiros. Talvez no comportamento humano ou na criação divina do universo. Mesmo assim é incorrecto expulsar a ciência desse problema porque a ciência lida bem com porquês. Os arqueólogos tentam inferir as razões e propósitos por trás dos artefactos e construções. Os psicólogos lidam com porquês constantemente e a neuropsicologia tem feito grandes progressos na unificação de modelos de comos e modelos de porquês.

Finalmente, discordo que a religião seja apropriada para resolver este problema. É verdade que a religião ajuda a criar porquês. No fundo, inventámos os deuses para poder aplicar à natureza o mesmo modelo com que prevemos as acções do vizinho. Com razões, intenções, propósitos e todos esses atalhos mentais que evitam os detalhes de causas e efeitos. No entanto, os porquês que as várias religiões continuam a defender parecem tão ilusórios e desnecessários como os muitos que estas criaram no passado e que já ficaram pelo caminho.

Em suma, sou contra a ideia de dar os porquês à religião porque não é claro que o porquê sobreviva ao esclarecimento do como, porque a ciência também pode lidar com esses modelos e porque nada indica que a religião seja um método fiável para responder a estas questões.

XX Jornadas Teológicas: o rescaldo.

Alfredo Dinis, o moderador do debate, escreveu no Companhia dos Filósofos algumas considerações sobre o criacionismo e o debate do dia 23 (1). Em geral concordo com as suas críticas ao criacionismo. O Jónatas Machado frisou várias vezes que a palavra do deus dele é infalível mas eu só ouvia as palavras do Jónatas Machado. Mesmo que o deus fosse infalível não segue que a interpretação do Jónatas também seja, e não vi nada que justificasse a premissa. No entanto, argumentar que o criacionismo interpreta incorrectamente a Bíblia levanta o problema de determinar a interpretação correcta. O Alfredo escreve que:

«a narração cristã tradicional sobre a origem do universo e da vida não poderá continuar a ignorar os progressos da ciência e necessita, por conseguinte, de ser substituído por uma nova narração que seja credível e compreensível pela cultura contemporânea.»

De acordo, mas na prática omite-se o mais importante no progresso científico. Esta abertura do catolicismo à ciência limita-se ao corpo de teorias que a ciência propõe e deixa de lado o método. A maior descoberta científica nestes últimos séculos foi a necessidade de considerar hipóteses alternativas e distingui-las pelo exame meticuloso dos dados, e neste momento não há dados que justifiquem a extrema confiança que o catolicismo deposita na existência daquele deus em particular, na inexistência de qualquer outro deus e num grande número de milagres que fundamentam esta religião. Ter em conta o progresso científico exige admitir que a hipótese cristã é, no máximo, uma questão em aberto e muito especulativa. Mas como isto é discussão para vários posts passo a estas frases:

«Tive o prazer de moderar o debate, no qual intervieram os Profs. Ludwig Krippahl, da Universidade Nova de Lisboa, e. Jónatas Machado, da Universidade de Coimbra. O primeiro defendeu o evolucionismo, o segundo o criacionismo.»

Eu não quis defender um ismo. Há uma diferença fundamental entre a ciência e a fé numa interpretação literal do Genesis. Chamar evolucionismo à primeira é como chamar martelismo à carpintaria. A teoria da evolução é uma ferramenta conceptual integrada na ciência moderna. É constantemente aperfeiçoada, testada e aplicada onde demonstra ser apropriado, estimula avanços noutras áreas e é guiada por essas descobertas. Martelismo é dar martelada a tudo só porque se tem um martelo, seja prego ou parafuso, e isso é o que os criacionistas fazem com a Bíblia.

1- Alfredo Dinis, 27-4-08, XX Jornadas Teológicas em Braga

domingo, abril 27, 2008

Modelação estrutural por homologia.

Isto vem a propósito de uma afirmação e pergunta do Mats, «Nada no criacionismo vai contra a bioquímica. Talvez o Ludwig possa dar um exemplo?» (1). Posso sim. Há vários, mas este é simples de explicar, está dentro do que eu faço profissionalmente e já tenho uma imagem feita de um post anterior (2).

As proteínas são moléculas grandes formadas pela ligação de aminoácidos em longas sequências. A imagem abaixo mostra três estruturas de mioglobina, uma proteína que armazena oxigénio nos músculos. As estruturas são da mioglobina de humano, foca e tartaruga, e são muito semelhantes.

mioglobina

A laranja estão marcados os aminoácidos que diferem da mioglobina humana. A mioglobina de foca é cerca de 85% idêntica e a de tartaruga cerca de 70% idêntica à nossa. Com esta semelhança química pode-se usar uma estrutura para modelar a outra porque são estruturalmente quase iguais. Este método de modelação por homologia é muito usado em bioquímica estrutural e pode funcionar até quando as proteínas têm apenas 25% dos aminoácidos em comum.

O interessante é que a estrutura de uma proteína é muito sensível à sequência de aminoácidos. Alterar um ou dois pode alterar profundamente a estrutura. Se alterarmos 48, que é a diferença entre a mioglobina humana e a de tartaruga, é quase certo que a estrutura seja completamente diferente. Para explicar porque se pode modelar por homologia proteínas que diferem em tantos aminoácidos é preciso a teoria da evolução.

As diferenças de aminoácidos entre a mioglobina de tartaruga, foca e humano resultam da acumulação gradual de mutações nestas linhagens que originaram num ancestral comum. Neste longo processo as mutações que alteraram significativamente a estrutura da mioglobina afectaram a sua função, tornando esses organismos inviáveis. Todas essas mutações foram eliminadas pela selecção natural. Só passaram o crivo da selecção aquelas mutações que preservaram a estrutura quase sem alterações. É por isso que a modelação por homologia funciona.

Este é um exemplo entre muitos de como a teoria da evolução é fundamental na ciência moderna. E é um exemplo entre muitos de como a ignorância dos detalhes é fundamental para o criacionismo.

1- Mats, 21-4-08, Jornadas Naturalistas - Ludwig - Parte 4
2- O que as proteínas nos dizem.

Dados e pressupostos.

Supomos que o carro não anda sem combustível. Podíamos supor o contrário, supor que se move a bolachas, a pensamentos positivos ou por obra e graça do espírito santo. Mas embora seja necessário assumir alguma coisa e embora se possa assumir o que quer que seja, o facto é que sem combustível o carro não anda.

“Facto” não implica que seja totalmente objectivo. Extrapolamos que o carro não anda sem combustível baseando-nos na nossa experiência e no que sabemos acerca do carro, o que é quase um raciocínio circular. O comportamento do carro é interpretado assumindo que ele não anda sem combustível e daí se infere que é um facto que ele não anda sem combustível. Mas este raciocínio não é inteiramente circular porque parte do círculo está fora do raciocínio. Está no carro. Se o carro se comportasse de forma diferente o raciocínio seria outro.

O facto também não é definitivo nem irrefutável. É possível que a natureza tenha mudado ou que alguém tenha substituído o motor por um reactor nuclear e o carro agora ande sem combustível. Mas este vestígio de incerteza não elimina a diferença entre as alternativas. Não deixa de haver boas razões para abastecer de vez em quando.

A ciência tem pressupostos destes. Assume que se tem que observar o objecto de estudo, que se tem que quantificar os dados e que as explicações são naturais. Não são pressupostos arbitrários. Inferem-se de experiências passadas. As premissas das próximas iterações são as conclusões das iterações anteriores. Aristóteles tentou fazer uma física qualitativa e não teve sucesso, a especulação sem observação deu sempre mau resultado e o carro do conhecimento anda melhor quando há menos sobrenatural no combustível.

Por ser sempre preciso assumir alguma coisa há quem proponha que é igualmente legítimo partir de outros pressupostos. Enquanto a ciência sabe por observação, defendem, a teologia sabe por outras vias. Enganam-se. Tirar pressupostos do chapéu torna tudo o que se segue num mero reflexo do ponto de partida, torna o raciocínio verdadeiramente circular e torna o alegado conhecimento independente do objecto de estudo.

Isto é evidente quando se considera o que acontece à ciência e à teologia se a realidade não corresponde a uma premissa fundamental. Na ciência isto levou a alterações profundas. Quando se descobriu que a lógica não chegava e era preciso a matemática para quantificar os dados e a estatística para lidar com erros e incertezas. Quando se descobriu que o tempo não é medido da mesma forma em todos os referenciais, que há efeitos sem causa, que não é preciso um criador inteligente nem milagres e assim por diante. A ciência hoje é fundamentalmente diferente da ciência há quinhentos anos atrás e é quase certo que daqui a quinhentos anos seja fundamentalmente diferente da que temos hoje.

A teologia é imune à realidade. Tanto faz se Cristo ressuscitou, se Maria era mesmo virgem ou se existe Deus porque estes pressupostos são tidos como irrefutáveis e não carecendo de justificação. É verdade que os crentes tentam justificá-los apelando à revelação, à fé ou a à experiência pessoal. Dizem ser lógicas diferentes, outras verdades, que Deus é amor e salvação e assim. Mas não são justificações necessárias. À teologia de hoje basta que não se prove a inexistência de Deus, e suspeito que se um dia ficar provado que Deus não existe até desse requisito irão prescindir.

Em suma, a ciência é uma criação intelectual humana. É subjectiva e tem falhas mas gera conhecimento interagindo com os seus objecto de estudo. Os seus pressupostos dependem de como o universo funciona e não reflectem apenas a imaginação humana.

A teologia é uma criação intelectual humana. É subjectiva, também tem falhas mas não interage com o seu presumido objecto de estudo. É auto-contida, circular e arbitrária. Podemos escolher os pressupostos à vontade, mas reconhecer ou ignorar as dicas que o universo nos dá é a diferença entre seguir viagem ou ficar empanado.

sábado, abril 26, 2008

XX Jornadas Teológicas, the movie.

A pedido do público, aqui vai a adaptação cinematográfica da minha apresentação. Não sei se eventualmente será possível publicar o debate todo.

Parte 1:


Parte 2:


E parte 3:


Se quiserem descarregar o vídeo, está aqui um avi (Xvid, MP3) com 18Mb.

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sexta-feira, abril 25, 2008

Treta da Semana: Fósseis frescos.

No debate (1) do dia 23, o Jónatas Machado contou como os paleontólogos deixaram cair um osso de Tiranossauro, o osso partiu-se e «Mary Schweitzer da North Carolina State University» exclamou que o osso estava tão fresco que parecia não ter mais de nove dias. Qualquer semelhança com pessoas ou acontecimentos reais é pura coincidência.

A experiência não foi atirar o osso ao chão. No laboratório da Mary Schweitzer verdadeira, mais competente que a protagonista da história do Jónatas, trataram amostras do osso fossilizado com soluções alcalinas durante uma semana para dissolver todo o conteúdo mineral. Como se julgava que um fóssil com esta idade estaria totalmente mineralizado o resultado esperado era não sobrar nada, razão pela qual não se tinha ainda feito buracos em fósseis valiosos para testar esta hipótese. A surpresa foi que, afinal, sobraram vestígios de tecidos orgânicos com estrutura preservada e proteínas.

A personagem do Jónatas exclamou que o osso parecia ter «nove dias». A Mary Schweitzer verdadeira sabe que os ossos não fossilizam em nove dias e explica que a descoberta dela não põe em causa a idade deste fóssil (3). O “homem de gelo” de Bolzano tem cinco mil anos, há mamutes perfeitamente preservados com vinte mil anos de idade e já foi possível extrair e sequenciar fragmentos de ADN de um fóssil de Neanderthal com 38 mil anos. O trabalho de Schweitzer não mostra que a Terra tem seis mil anos. Mostra que substimámos a resistência da matéria orgânica e dá-nos uma técnica promissora para estudar espécies antigas (4).

Não quero acusar o Jónatas de ter mentido deliberadamente porque não tenho provas disso, e a mera suspeita não justifica a acusação. Mas defendo que o Jónatas foi irresponsável ao afirmar este disparate num debate público sem ter confirmado a história. A caricatura dos paleontólogos a deixar cair o osso é ridícula e denigre um trabalho sério de grande qualidade científica. As imagens que o Jónatas mostrou, sem escala, davam a ideia falsa que os fragmentos de alguns milímetros eram grandes nacos de carne. E o osso parecer ter nove dias é simplesmente mentira. Era um fóssil.

É por causa destas coisas que muitos recomendam não debater com criacionistas. A audiência assume que os participantes falam do que sabem e que são honestos e responsáveis nas suas alegações. Por isso acusar o outro de mentir dá a impressão de recorrer a ataques pessoais por falta de argumentos. Quando o Jónatas disse que os cientistas agora põem o chimpanzé a descender do Homem em vez do Homem a descender do chimpanzé eu contrapus que era um mal-entendido. É apenas o bipedalismo nos primatas que parece ser mais antigo do que se julgava e isto não altera o consenso acerca de um ancestral comum aos humanos e chimpanzés. Mas no caso do osso calei-me porque não conseguia desmontar a patranha em poucas frases.

Como a Abobrinha notou, sou menos agressivo nos debates que nestes textos. Aqui posso dar referências, explicar as coisas e ter confiança que uma pessoa razoável vai ficar satisfeita com as evidências que apresento. Num debate posso ser interrompido a qualquer momento, não posso dar material adicional para as pessoas lerem e uma acusação mal fundamentada é sempre vista como um ataque injusto. Mas isso não justifica recusar o debate. Apenas exige que se debata os criacionistas de forma selectiva, tentando explicar o que se pode explicar no debate e deixando para outros meios a refutação detalhada das patranhas que eles despejam.

Este é o 52º post desta rubrica. Um ano seria causa de celebração se não tivesse a sensação de ter que rolar novamente a pedra até ao cimo do monte.

1- XX Jornadas Teológicas, XX Jornadas Teológicas, actualização, XX Jornadas Teológicas, como correu?
2- Science News, Old Softy: Tyrannosaurus fossil yields flexible tissue
3- Nova, Ask Mary Schweitzer
4- Biology News Net, Protein fragments sequenced in 68 million-year-old Tyrannosaurus rex

quinta-feira, abril 24, 2008

Humilde é bom. Honesto é melhor.

No debate de ontem várias pessoas sugeriram que a ciência deve ter a humildade de admitir que Deus é possível. Mas humildade é a «virtude que nos dá o sentimento da nossa fraqueza»(1). Fica bem, mas nem é dever (é virtude) nem útil para a ciência. Por isso proponho deixar a humildade ao critério de cada um e invocar, em vez dela, o dever de ser honesto. Esse cabe a todos.

Ninguém honesto se considera infalível, na ciência ou fora dela, e admitir a possibilidade de erro exclui certezas definitivas. Há sempre questões em aberto. Mas apesar da resposta honesta ser provisória a dúvida não precisa paralisar-nos. Na prática, podemos suspender as questões até que se justifique o contrário. Temos a certeza que a casa não está a arder e estragava os nervos a qualquer um questioná-lo a todo o momento. Mas esta certeza é provisória e basta o cheiro a fumo para a desfazer.

A opinião honesta admite que as nossas crenças podem estar erradas, que o que parece às vezes não é e que todas as certezas são questionáveis. A opinião honesta não se baseia em premissas inabaláveis mas sim em perguntas pertinentes. Há quem critique a ciência por ser questionável, por não responder a tudo, por levantar dúvidas ou mudar de ideias mas isso não é defeito. É o preço da honestidade.

E a ciência justifica certezas provisórias acerca dos deuses. Não há Zeus no monte Olimpo nem um escaravelho gigante a rebolar o Sol pelo céu. Alguns dirão que isto é diferente do Deus católico porque podemos olhar para o monte Olimpo e para o Sol e ver que não estão lá estes deuses. Mas não é isso. Podemos não ver os outros deuses por erro nosso e se calhar até existem. Não temos uma certeza definitiva. O que justifica suspender a dúvida é a existência destes deuses levantar mais questões sem resposta que a hipótese contrária. Se estão lá porque é que não os vemos? O que é que estão a fazer? Para que servem a hipótese e o que é que explica? Se os rejeitarmos há menos perguntas em aberto.

O Deus transcendente sofre do mesmo problema. É como a possibilidade da casa estar a arder com um fogo invisível e inodoro. Não a rejeitamos por ter provas em contrário mas porque o fogo invisível deixa mais questões em aberto que a hipótese de não haver fogo nenhum. Neste momento passa-se o mesmo com Deus. Pode não ser humilde, mas é honesto da ciência rejeitar Deus por deixar em aberto mais questões que a sua inexistência. A hipótese de Deus não responde a nada que a sua negação não responda igualmente bem e levanta muitas questões acerca do que Ele é, do que faz, porque o faz, qual o seu propósito e assim por diante.

E pode ser humilde acreditar em Deus. Talvez venha daí a virtude que dá a cada um o sentimento da sua fraqueza. Mas o mais honesto é concluir que Ele não existe. A certeza é provisória, admito, mas também não vou gritar “Fogo!” sempre que faltar prova irrefutável do contrário.

1- Priberam, Dicionário

XX Jornadas Teológicas, como correu?

Eu gostei. Gostei de conhecer em pessoa alguns comentadores aqui do blog, o Jónatas Machado, o Marcos Sabino e o Pedro Romano. Gostei da conversa ao jantar e a organização foi excelente. Pelas perguntas da audiência, relevantes e interessantes, penso que o debate foi esclarecedor. Entre o Jónatas e eu não houve surpresas, visto já andarmos nisto há uns tempos, mas fiquei agradavelmente surpreendido com a recepção aos nossos argumentos.

Em retrospectiva faz sentido. Eu estava com algum receio por ser o ateu no meio dos crentes mas como falei de ciência a minha falta de crença não incomodou. E parece-me que, para o crente moderado, enquanto o ateu está apenas fora da religião o fundamentalista deturpa-a. Penso que foi por isto que a tarefa do Jónatas foi mais difícil.

Não sei quando vão disponibilizar a gravação, nem com que restrições, mas eu gravei a minha apresentação e quando chegar a casa cozinho um vídeo com os slides e a voz. Aproveito para agradecer o convite, o jantar, a moderação e toda a organização, com um obrigado especial ao João Paulo Costa pela sua simpatia e pela paciência de responder aos muitos emails que lhe enviei. Mas o objectivo principal deste post é convidar os comentários de quem assistiu e tinha uma perspectiva menos enviesada do que a minha. Como correu?

segunda-feira, abril 21, 2008

Mitos, erros e evolução

A New Scientist tem uma série porreira de artigos sobre mal-entendidos acerca da teoria da evolução e alguns mitos criacionistas:

Evolution: 24 myths and misconceptions

Via Sandwalk

domingo, abril 20, 2008

XX Jornadas Teológicas, actualização.

Já confirmei alguns detalhes com os organizadores. A entrada vai ser livre, por isso se estiverem em Braga sem nada para fazer na próxima quarta feira à noite dêem um salto à Faculdade de Teologia e venham assistir ao debate entre evolução e criacionismo.

Se não vierem perdem o espectáculo ao vivo mas o debate vai ser gravado. A publicação da gravação depende da autorização dos intervenientes mas penso que pelo menos a minha apresentação poderei disponibilizar.

O debate vai ser moderado pelo director da Faculdade de Filosofia da UCP, que nos sugeriu elaborar uma página resumindo os três pontos principais dos nossos argumentos. Achei a ideia excelente e deixou-me mais optimista. Apesar de violar o meu limite auto-imposto para o tamanho dos posts, decidi pôr aqui o meu resumo na integra.

Teorias e Evolução


Há séculos que a descoberta de explicações naturais tem criado conflitos entre a ciência e religiões que propõem explicações sobrenaturais alternativas. Saliente na nossa sociedade é o conflito entre a ciência e o criacionismo evangélico cristão, que defende uma interpretação literal da Bíblia. Esta doutrina alega que o “Darwinismo” é uma filosofia naturalista e propõe substituí-la pelo criacionismo ou design inteligente. O criacionismo assenta num entendimento incorrecto da ciência enquanto método, enquanto corpo de conhecimento e da forma como a teoria da evolução se insere na ciência moderna.


O naturalismo científico.


Não foi por dogmatismo ou premissa que a ciência rejeitou as explicações sobrenaturais. Pelo contrário, no passado a intervenção divina foi a explicação fundamental para muitos fenómenos e a teologia era a “rainha das ciências”. O criacionismo bíblico foi aceite pela biologia até ao século XIX e Newton explicou a gravitação universal pela acção de Deus. Sem esta, defendia Newton, a matéria inanimada nunca poderia atrair-se à distância.


Quando a relatividade de Einstein substituiu a teoria de Newton fê-lo por explicar fenómenos que a última não cobria e por fazer previsões correctas onde a teoria de Newton falhava. E, ao mesmo tempo, fez desaparecer o mistério que Newton explicava pela acção de Deus. Esta tem sido a norma na ciência dos últimos séculos. Novas teorias científicas vingam por prever melhor e com mais rigor gamas mais abrangentes de fenómenos e por se integrarem melhor umas com as outras. E sempre, até agora, as teorias melhores são as que têm menos de sobrenatural.


Nada obriga a ciência a rejeitar Deus a priori. Foi a sistemática demonstração que as teorias naturalistas são melhores modelos deste Universo fez cair da ciência o sobrenatural.


A evolução da teoria.


Darwin deu um contributo importante à biologia. A teoria da selecção natural elucidou o mecanismo que guia a variação de características numa população tornando os organismos mais aptos a prosperar no seu meio ambiente e substituiu a ideia de espécie como um arquétipo fixo pela noção de espécie como conjunto fluido de populações.


Mas em século e meio muito mudou. A selecção natural de Darwin é hoje uma pequena peça numa teoria da evolução que inclui genes, efeitos moleculares, deriva, mutações neutras e modelos matemáticos detalhados. Darwin não podia imaginar os enormes avanços na microbiologia, genética, bioquímica e biologia molecular que confirmaram e expandiram a sua teoria. Enquanto o criacionismo opõe um mito com vinte e cinco séculos a uma teoria com 150 anos, a teoria da evolução cresceu muito para além da ideia inicial e continua a expandir-se, a revelar novas questões e a desvendar novos mistérios.


A unidade da ciência moderna.


O progresso científico não tem dado apenas explicações melhores e mais detalhadas. Igualmente importante tem sido a unificação das várias áreas do conhecimento. A teoria atómica juntou a química à física. A síntese de compostos orgânicos e a biologia molecular mostraram que a matéria viva se rege pelas mesmas leis naturais que a matéria inanimada. A descoberta da radioactividade resolveu os conflitos entre a astronomia, a geologia e a biologia. São apenas alguns exemplos do encaixe firme entre as teorias científicas modernas. O criacionismo não se opõe apenas à teoria de Darwin mas a toda a biologia moderna, à bioquímica, à física que determina a idade das rochas, à geologia, até à astronomia que nos mostra estrelas cuja luz viaja à milhares de vezes o tempo que o criacionismo permite.


Este conflito desigual põe de um lado a interpretação literal de um mito antigo e, do outro, todo o edifício da ciência moderna, um edifício construído ao longo de séculos de investigação cuidadosa, análise crítica e testes rigorosos às hipóteses propostas.



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sábado, abril 19, 2008

Treta da Semana: O contrato.

Esta semana o Parlamento aprovou uma lei do divórcio que ignora a culpa e facilita a dissolução a pedido de um dos cônjuges. Muitos se opõem, por diversas razões. Para César das Neves isto foi asneira porque a «lei só existe para proteger os fracos» e «as garantias que a lei [...] concede são importantes» para a solidez do casamento (1). Segundo o porta-voz da conferência episcopal, Carlos Azevedo, o «Estado tem obrigações para com [o casamento]» e «deve defender a união entre as pessoas». No Blasfémias o João Miranda escreve que o «problema é que alguém que esteja imune a processos judiciais não é um parceiro de negócios credível. Ninguém estaria interessado em fazer contratos com alguém que tem o poder para violar contratos mas que não pode ser processado por isso.»(3)

Eu acho que esta gente anda baralhada.

O divórcio levanta o problema moral da quebra de uma promessa, mas nem isso justifica uma lei nem é necessariamente condenável pois a promessa é feita num momento de optimismo que pode desculpar quem mais tarde se arrepende. E impedimentos legais ao divórcio não vão tornar mais realistas os jovens que acreditam que vão sentir aquilo para sempre.

O cristianismo vê o divórcio como um problema sério porque é um compromisso perante Deus, sagrado e para sempre. Mas se admitimos o direito de mudar de religião isto deixa de ser um problema. O casamento é “para sempre” só enquanto a pessoa quiser essa religião, e não se justifica legislar essas opções.

Quanto aos contratos há que distinguir três aspectos. Os deveres parentais não são deveres contratuais nem têm que ver com o casamento. Quem faz um filho tem obrigações tenha ou não assinado os papéis e independentes do seu direito de terminar o matrimónio. Esta lei do divórcio contempla isso.

A relação afectiva, a fidelidade, o companheirismo, todos os aspectos emocionais e sexuais do casamento são fundamentais mas não se admite obrigações contratuais desta natureza. A lei não deve reconhecer cláusulas de exclusividade sexual, de amizade ou empenho afectivo. O que sobra para a lei é a gestão do património e do investimento na vida em conjunto. Para isso é legítimo haver contratos e intervenção legal que obrigue o seu cumprimento, mas isto também está contemplado nesta nova lei.

Em conclusão, criticam a lei por não legislar aquilo que não deve ser legislado, que é o aspecto afectivo e privado da relação. A lei deve proteger o investimento na vida em conjunto, reconhecer os parceiros como herdeiros do património comum e fazer cumprir obrigações financeiras e parentais. E mais nada. Não tem o dever nem a legitimidade de castigar quem se apaixona por outra pessoa ou quem já não sente o amor que sentia, nem se pode tornar o casamento numa obrigação legal.

Naturalmente, a Igreja preocupa-se com esta distinção. Se a sociedade reconhece que os aspectos privados do afecto e vida sexual do casal estão fora do âmbito da lei já não se justifica restringir estes contratos a duas pessoas do sexo oposto.

1- João César das Neves, DN de 14-4-08, Por miopia, capricho, a reboque e a pressa.
2- DN, 28-3-08, Divórcio abre nova guerra entre maioria PS e Igreja
3- João Miranda, 11-4-08, Nova lei do casamento II

Bom e barato

As obras completas de Charles Darwin. Em textos e imagens digitalizadas dos originais, inclui obras publicadas, manuscritos, diários e correspondência.

LibriVox. Uma organização de voluntários que gravam leituras de livros em domínio público. Tem mais de 1300 obras disponíveis, a maior parte em Inglês mas também algumas noutras línguas.

sexta-feira, abril 18, 2008

Só em filmes?...

all your base

O Pirate Bay é um site de indexação e repositório de torrents, pequenos ficheiros que identificam pedaços dos ficheiros partilhados na rede BitTorrent. Sendo o mais popular tem sido alvo de várias queixas por parte das associações de empresas discográficas e estúdios de cinema. Mas como só contém ficheiros de indexação e não tem material protegido por copyright ainda não o conseguiram fechar.


Em Maio de 2006 a polícia Sueca fez uma rusga ao ISP que albergava o Pirate Bay e confiscou os servidores. Como se limitaram a levar as máquinas, fecharam também cerca de duas centenas de sites pertencentes a empresas e organizações que não tinham nada a ver com o assunto. A incompetência policial e notícias que a rusga tinha sido motivada por pressão dos EUA criaram uma forte oposição política. Uns dias depois o site estava novamente online e agora está “espelhado” em vários países diferentes.


A investigação policial continuou e o caso está prestes a ir a tribunal. A notícia hoje é que Jim Keyzer, o inspector chefe responsável pela investigação, está empregado na Warner Brothers desde 16 de Março. Uma advogada da Warner Brothers explica que isto apenas mostra apreciação pelo trabalho do investigador e não indica nada de impróprio durante a investigação. Há quem discorde que seja assim tão próprio o queixoso recompensar o polícia que lidera a investigação. Não só põe em causa a imparcialidade e honestidade da investigação como os direitos dos acusados, porque a lei exige que apenas seja comunicado aos queixosos e ao tribunal o que é relevante para o caso em julgamento. E se houver evidências de que a contratação foi proposta antes do final da investigação isto pode invalidar toda a acusação.



Fontes:
Wikipedia, Pirate Bay,Pirate Party.
Zeropaid, Chief Swedish Police Investigator in Pirate Bay trial on Hollywood's Payroll.
Blog do Pirate Bay, comunicado
Um exemplo engraçado de como este caso está a ser conduzido: Music industry dealt Pirate Bay blow
E uma ajuda a quem o boneco não diz nada: All your base are belong to us
Quando alguém nos monta a bomba é hora de gritar “por grande justiça!”.

Como sabemos.

O António Parente questionou se sabemos que Jesus não ressuscitou. Eu sei. Tal como sei que o António não tem 38 narizes. Não conheço o António, nunca vi fotografias dele e não posso provar que não tem 38 narizes. Admito que é possível que tenha 38 narizes, se admitirmos a possibilidade de milagres e afins. Mas, na prática, se me perguntarem “o António tem 38 narizes?” eu não vou encolher os ombros e dizer sei lá, se calhar até tem. Justifica-se afirmar que não, no máximo tem um.

Sei isto por um processo de inferência e revisão. A inferência permite tirar umas pelas outras. Dos axiomas “o António é pessoa” e “cada pessoa tem um nariz” deduz-se que o António tem um nariz. Esta inferência é garantida, mas a conclusão depende da verdade dos axiomas e não é a postular que se faz verdades. Por isso sozinha não vai longe. Com a indução podemos encontrar os axiomas mais fiáveis. Calculo a média de narizes por cabeça nas pessoas que conheço e posso extrapolar com alguma confiança que cada pessoa tem um nariz ou menos.

Mas isto não satisfaz porque as médias de braços, pernas, olhos, dedos e narizes são dados independentes e não explicam nada. Prefiro unificar esta informação e perceber porquê. Ou seja, quero proposições das quais deduza o que foi observado na amostra. Este passo é uma abdução, o inverso da dedução porque procura as premissas que levam a uma conclusão. É um passo arriscado porque há infinitas possibilidades mas, felizmente, não são todas iguais.

“Porque Deus quis” não serve porque daqui não deduzo nada. “Porque Deus quis que cada um tivesse um nariz” já implica um nariz por cabeça mas não unifica os dados por exigir uma premissa diferente para as pernas, outra para os braços, cabeças e assim por diante. “Porque Deus tem um nariz, dois braços, duas pernas, ..., e nos fez à Sua imagem” unifica todas estas observações numa só explicação mas deixa-nos a perguntar como é que ele fez isso. Era melhor se tivesse mais detalhe. Então acrescenta-se “moldando Adão com barro, bafejando-lhe vida e fazendo Eva a partir de uma costela”. Mas mais detalhe levanta mais questões. Foi uma costela, uma pestana ou uma unha? De barro, de folhas secas ou de cascas de laranja? Como é que sabemos que foi assim e não de outra forma? É preferível optar por explicações que assentem em dados observados e que se possam justificar pela sua correspondência à realidade.

É este processo interminável de revisão que põe em causa cada passo, exige justificações, corrige erros e vai aperfeiçoando as explicações para as unificar num corpo coerente e detalhado de onde se possa inferir informação nova. É isto que a ciência tem feito e o resultado permite-me afirmar com confiança que o António Parente não tem 38 narizes e que Jesus não ressuscitou. Há um grande conjunto de dados e explicações detalhadas que suportam esta conclusão. Não é 100% garantido, mas porque as explicações estão interligadas e unificam muitos dados só se justifica admitir o contrário se houver evidências tão fortes que ponham em causa toda esta estrutura interdependente. E para isso é preciso muito mais que um testemunho.

Os religiosos fazem batota de duas maneiras. Guardam um cantinho de milagres onde tudo o que convém à fé pode acontecer isolado do resto. Isto é contrário ao objectivo e à justificação principal do conhecimento, que é o encaixe das explicações umas nas outras. E saltam para os axiomas ignorando o laborioso processo de os justificar. “Cada pessoa tem um nariz” e “cada pessoa tem 38 narizes” são dois axiomas de um conjunto infinito, cada um levando a conclusões diferentes. A escolher ao acaso não nos safamos.

Isto também dá uma resposta ao Timshel e ao Luís. Se queremos saber o que houve antes do universo ou o que acontece depois da morrermos temos que seguir o mesmo processo. Não se justifica afirmar que Deus criou tudo ou que nos vão ressuscitar o cérebro putrefacto só porque há axiomas que suportam estas conclusões. As conclusões que deduzimos são só tão fiáveis como os axiomas em que se baseiam e, parafraseando, axiomas há muitos.

Post relacionado: Inferências

quarta-feira, abril 16, 2008

Nota acerca das verdades

para tentar esclarecer uma dúvida do Timshel em relação ao post anterior. Há uma diferença entre proposições como “x é um número par” e proposições como “Deus criou o universo” ou “a Lua é feita de queijo”. A verdade das duas últimas depende da sua correspondência ao estado real das coisas. A verdade da primeira não depende de haver um objecto “x” que seja um número par porque esta proposição não se refere a um aspecto da realidade. Temos assim duas noções de verdade. A verdade por correspondência, aplicável a qualquer proposição que refira um aspecto da realidade, e a verdade por coerência, aplicável a qualquer proposição no contexto da teoria em que se insere. Para que “a Lua é feita de queijo” seja verdade a Lua tem mesmo que ser feita de queijo. Para que “x é um número par” seja verdade basta que nada na teoria o contradiga.

Se olharmos apenas para a coerência das proposições estou de acordo com o Timshel: «Uma qualquer proposição alternativa à origem do Universo está no mesmo plano (o de um axioma).» Seja qual for a proposição. Seja “Deus criou o universo”, “o Snoopy criou o universo” ou “o universo surgiu por processos naturais sem intervenção divina ou canina”. Se as considerarmos desligadas da realidade, como “x é um número par”, então só interessa se encaixam nas respectivas teorias.

Mas estas proposições só são verdadeiras se corresponderem à realidade. Ou foi Deus, ou foi o Snoopy, ou não foi nenhum deles. Não basta postular uma teoria coerente para que sejam verdade. E para determinar a verdadeira é necessário confrontá-las com os dados e eliminar alternativas. É o que a ciência faz. A axiomática apenas constrói modelos para se ir experimentando, e destes só uma fracção ínfima está minimamente de acordo com a realidade.

terça-feira, abril 15, 2008

Axiomas e verdade.

O Dragão conta que os axiomas são «proposições absolutamente intuitivas e indiscutíveis»(1) e dá dois exemplos. Um da matemática, «Se x é um número e y é um número, então x+y é um número», e outro “da religião”, «Deus criou o universo». Deixo para outro post a mania de assumir que “a religião” é só a dele (noutras o universo não foi criado por deus nenhum) e vou só comentar a confusão nos axiomas.

Os axiomas não têm que ser intuitivos nem indiscutíveis. O 5º postulado de Euclides diz que, num plano, dada uma recta e um ponto fora da recta há exactamente uma recta que passa pelo ponto sem intersectar a primeira. É intuitivo mas podemos negá-lo e postular que há infinitas rectas nestas condições ou que não há nenhuma, deduzindo daí geometrias diferentes. Não está em causa se é intuitivo ou discutível. O que importa é que a teoria seja coerente e que corresponda à realidade, o que nos leva a duas noções diferentes de verdade.

O axioma “x=2” não é verdadeiro nem falso por si, mas em conjunto com “x só pode ter um valor” e “x=3” resulta em contradição. Nesse caso podemos dizer que um deles é falso e retirá-lo para resolver a contradição. Esta noção de verdade é importante na lógica e na matemática porque se aplica a conceitos abstractos que não correspondem a algo real, como “x=2” ou “a soma de dois números é um número”. Neste sentido as geometrias euclidianas e não-euclidianas são todas verdadeiras por coerência. Mas esta noção de verdade é só uma parte da história.

Se eu propuser o axioma “a Lua é feita de queijo”, por muito coerente que a teoria seja terá sempre o problema da Lua não ser feita de queijo. É por isso que os axiomas normalmente servem para definir conceitos e não para afirmar algo acerca da realidade. Postular que “a soma de dois números é um número” quando se define a operação “soma” é muito mais seguro que afirmar «Deus criou o universo». O primeiro axioma não depende de qualquer correspondência à realidade e pode ser considerado verdadeiro apenas por coerência com os seus parceiros na teoria. O segundo axioma depende de Deus ter mesmo criado o universo, senão é logo falso.

Os axiomas não precisam ser nem intuitivos nem indiscutíveis. Precisam ser compatíveis, porque da contradição tudo se deriva e uma teoria que só diz sim não serve para nada. A doutrina que Deus é um e Deus é três é exemplo de uma teoria incoerente de onde se deriva resmas de teologia mas só gasta papel.

E se a teoria é coerente temos que determinar em que circunstâncias a podemos aplicar, o que depende dos axiomas. Por exemplo, se um dos axiomas é “a Lua é feita de queijo” a teoria resultante só é aplicável se a Lua for feita de queijo. Caso contrário não se aplica. Ou seja, os axiomas exprimem as condições necessárias para que a teoria se aplique, e é por isso que normalmente não vale a pena discutir os axiomas em si. Ou correspondem à realidade e a teoria aplica-se ou não correspondem e a teoria não serve. O que vale a pena discutir é se os axiomas corresponderem à realidade e em que condições isso acontece.

Muitos crentes confundem isto. Pensam que por postular “Deus criou o universo” se justifica tirar alguma conclusão. Como axioma o seu papel é demarcar as condições em que se pode aplicar a teoria que dele deriva. É errado dizer que «se aceitarmos o axioma ou axiomas basilares, tudo o resto se extrai com perfeita lógica e acompanhado das devidas justificações.»(1) O resto é consequência lógica dos axiomas quer se aceite quer não. Não é uma escolha pessoal. Mas esse resto só corresponde à realidade se os axiomas também corresponderem, e não é por serem postulados ou aceites que se tornam mais verdadeiros.

A melhor forma de compreender um sistema axiomático é pondo um “se” à frente. “Se só uma recta for paralela à outra...”, “se a Lua for feita de queijo...”, “Se Deus tiver criado o Universo...”, “Se a soma de dois números for um número...” e assim por diante. Dessa forma percebe-se logo que o axioma não é algo que se escolha aceitar ou que «uma vez assumido, é inquestionável»(1). O axioma é a condição necessária para que a teoria se aplique.

Se o sinal estiver verde pode avançar. Inferir daqui que o sinal está verde é incorrecto e arriscado.

1- Dragão, 14-4-08, Fratricídios e axiomaquias

segunda-feira, abril 14, 2008

Roníldo Peçanha

é um homem extraordinário. Extra ordinário. É pastor, cristão, já esteve em 256 países*, o que não é fácil num planeta só com 193, ressuscitou 14 mortos e curou 749 “alejados”. Até já fez milagres nas finanças. Suponho que tenha sido alguma coisa com a declaração do IRS.

Roníldo Peçanha

Além do dom da cura tem o dom da palavra. Qual palavra ainda se está para saber e, infelizmente, o dom da pontuação ficou pelo caminho. Mas como a vivência religiosa passa pela apreciação espiritual da paradoxal boa nova testemunhada por homens como este, deixo-vos aqui com as palavras do próprio, o grande Pastor Roníldo Peçanha.

«a biblia diz que nem o proprio jesus não escapou dos zombadores e das perseguições e foram esses zombadores que levou jesus para ser condenado e nos dias de hoge não ta sendo diferente continua mas todo homem que tem vida no altar de deus ele sofre esta perseguição mas a biblia diz ai daquele que tocar em um ungido de deus em primeiro lugar ele e pastor e segundo ele não faz nada quem faz e deus, deus usa ele de uma forma sobrenatural milagres acontece mesmo porque jesus disse quem crer em mim farão obras maiores que eu faço lembre-se disso vcs que criticam e zombam do pastor ainda poderão precisar das oraçoes do pastor outra coisa ele ja esteve em varios paises e o brasil quase todo e não como dis 256 paises isso são criticas para denegrir a imagem do pastor mas lembre-se que vcs vão pagar muito caro por isso porque vcs não sabem o que e tocar na unção de um homem de deus e muito facil jogar pedra criticar mas procurem o fundamento das coisas para vcs saberem o que estão falando porque vcs podem se queimar com fogo porque deus e amor e justiça e fogo consumidor pastor ronildo peçanha ja orou para muita gente e tem todos testemunhos de milagres e curas divinas e que vcs todos que zombarao serao envergonhados porque deus ta de olho em vcs cuidado vcs nao sabem oque e uma consagraçao de jejum e oração do pastor ronildo peçanha e melhor vcs zombadores ficarem calados porque a justiça de deus ela pesa forte e o preço e alto não toque num ungido de deus pastor ronildo e perseguido desde quando se converteu no evangelho e si tornou evangelista mundial esse cartazes que criaram e montagem mas deus vai cobrar caro porque vcs nao sabem o que e denegri a imagem de um profeta de deus (deus ta de olho como chama de fogo em vcs»

* Na verdade esteve em paízes, que pode ser uma coisa diferente...

Fontes:
Papo de Teólogo, Melhor do que cogumelo do sol! [2]
Kibeloco, Seus Problemas Acabaram (parte 2)
E obrigado ao Mário Miguel por me indicar esta preciosidade.

Saber o impossível.

Tentando conciliar o milagre da ressurreição com a ciência*, o Timshel cita o Luís:

«Cientificamente, qualquer cadeia de acontecimentos tem uma probabilidade não nula de acontecer. Inclusivé os milagres.»(1)

Isto não resolve o problema por várias razões. Primeiro, porque é falso. Por exemplo, a relatividade e a mecânica quântica excluem a possibilidade de ir a Marte e voltar em menos de dois minutos ou que este universo tenha sido criado de forma a garantir o meu nascimento. Estas teorias impõem limites que não podem ser ultrapassados. Se bem que a ciência admita a possibilidade de erro, invocar essa possibilidade para permitir milagres é afirmar que a ciência está errada, resultando num conflito.

Isto pode acontecer mesmo quando o acontecimento é teoricamente possível. O modelo do Euromilhões diz que os vencedores são escolhidos à sorte e que é teoricamente possível que alguém ganhe o primeiro prémio dez semanas consecutivas. Mas é tão improvável que, se acontecer, justifica-se rejeitar o modelo e investigar a marosca. O mesmo com a ressurreição. Não é por ser “cientificamente possível” que se resolve o conflito quando o alegado acontecimento é tão improvável que exija rever os modelos que temos.

E o “cientificamente possível” não satisfaz os crentes. Vamos supor que Jesus tinha sido injectado com robôs microscópicos que repararam os tecidos e o reanimaram. Seria compatível com a física mas não seria milagre. Seria um truque. Ou se o movimento aleatório dos átomos de Jesus tivesse sarado todas as feridas e o tivesse ressuscitado por pura sorte. Se bem que teoricamente possível, é tão improvável segundo os modelos que temos que teríamos que os substituir à mesma. Comparado a isto ganhar mil vezes o Euromilhões não é nada. E mesmo assim não chegava a milagre porque o milagre não é meramente improvável. Por definição, o milagre é impossível de ocorrer naturalmente. Ressuscitar por sorte, por muita que fosse, não seria milagre.

Mas o problema principal é afirmar que Jesus ressuscitou. Eu posso desejar de toda a alma que o Timshel seja a Jessica Alba. Esta fé** pode ser tal que eu até acredite que o Timshel é a Jessica Alba. Não é razoável justificar a crença pela fé, mas uma crença pessoal, se não passar disso, é pouco problemática. O conflito com a ciência surge principalmente se eu afirmar que o Timshel é a Jessica Alba ou, pior ainda, se afirmar saber que o Timshel é a Jessica Alba. Isto seria intelectualmente desonesto porque a fé não justifica tais afirmações. E entra em conflito com a ciência porque esta exige que eu aceite as evidências e admita que o mais provável é o Timshel não ser a Jessica Alba. Por muito que me entristeça.

Resumindo, nem tudo é compatível com os modelos científicos que temos. Há coisas impossíveis de acordo com estes modelos, há coisas tão improváveis que a sua ocorrência justificaria rejeitar os modelos e há os milagres que, por definição, são aquilo que nunca poderá ser compatível com qualquer modelo científico. E o método da ciência exige que as afirmações sejam devidamente fundamentadas. Assim, é difícil arranjar conflito maior com a ciência que afirmar saber que Jesus ressuscitou por milagre quando a única coisa que o fundamenta é a fé.

* O Timshel estava a falar principalmente do argumento antrópico, mas isso fica para a próxima.
** Pode não ser consensual, mas eu chamo fé ao desejo de acreditar.

1- Timshel, 13-4-08, A propósito da Ressurreição

domingo, abril 13, 2008

1+1=2 (outra vez)

O Dragão traz-me de volta a este tema quando afirma que «Toda a pretensa objectividade da Santa Ciência e respectiva Igreja das Certezinhas Beatas é construída em cima dum andaime puramente metafísico: a matemática»(1) e pergunta «Porque é que 2+2=4?»(2). A discussão acerca da pergunta também inspira o desabafo.

Se juntamos uma laranja e outra laranja ficamos com duas laranjas. 1+1=2 é uma boa maneira de descrever isto pondo de parte a “laranjeza” do problema. Se juntamos um monte de areia a outro monte de areia ficamos com um monte de areia. 1+1=1 é uma boa maneira de o descrever de forma abstracta, e é tão razoável como 1+1=2. 1+1=1 é parte da álgebra de Boole e fundamental na lógica e na computação. E se juntamos uma laranja e um amendoim e queremos manter esta diferença na descrição, em vez de 1+1=2 definimos a soma como a união de conjuntos, {laranja} + {amendoim} = {laranja, amendoim}. Porque é que 2+2=4? Porque em certos casos dá jeito. É um dado empírico que juntar duas laranjas a duas laranjas dá quatro laranjas, desde que não se exagere na força. 2+2=4 é uma forma conveniente de exprimir isso.

A Zazzie comentou que «Segundo o professor Ludovico [devo ser eu] era tudo simbólico, bastaria decorar.» Em parte tem razão. É por isso que a álgebra é tão fácil de mecanizar em ábacos e computadores. Em parte são só regras para manipular símbolos. Mas só em parte, porque também queremos saber o que os símbolos significam e até onde as regras podem levar. É aí que a coisa se complica. Por exemplo, considerem a soma de dois nímeros (3):

a + b = mex( {a’ + b : a’ < a} U {a + b’ : b’ < b} )

Isto dá regras fáceis para uma máquina usar mas perceber o que é um nímero, que raio de coisa se pode descrever com isto e compreender as propriedades formais destas definições é mais difícil. Os nímeros correspondem a jogos imparciais em teoria de jogos e formam uma classe própria (uma colecção de conjuntos que não um conjunto) com propriedades que fascinam matemáticos e me ultrapassam por completo.

O que eu quero dizer com isto é que a matemática não é totalmente metafísica. Como qualquer linguagem, pode ser usada para dizer infinitas coisas mas restringimo-la a um subconjunto finito que serve os nossos propósitos. Mesmo que sejam coisas estranhas como nímeros, acabam por ser conceitos com alguma utilidade para descrever o que observamos. Matematicamente é indiferente definir a operação “+” de forma a que 2+2 seja 4 ou 53.8. A diferença é que 2+2=53.8 não corresponde a nada de interessante.

Ao contrário do que o Dragão defende, o fundamental na ciência é esta correspondência. A ciência assenta nos dados empíricos que prendem à realidade a matemática, o Português ou qualquer outra linguagem. Podemos falar de unicórnios e dragões e calcular hiperesferas a 200 dimensões, mas a ciência filtra essas partes e ocupa-se daquelas que correspondem à realidade que observamos. O subconjunto que a ciência aproveita é mais físico que metafísico porque o objectivo é criar descrições da realidade. E a matemática não é a linguagem preferida por ser mais metafísica que as outras mas por ser mais rigorosa e exprimir melhor modelos quantitativos.

Finalmente, as certezas beatas estão mais no usufruto da ciência que no seu desenvolvimento. Enquanto método, a ciência procura sempre erros para corrigir. A dúvida é o motor do processo. É quem vive em prédios de betão, usa electricidade, toma medicamentos e viaja a alta velocidade em caixas de metal que demonstra pelos seus actos a enorme confiança que tem na ciência. Mesmo que tente negá-lo por palavras.

1- Dragão 8-4-08, A Santa Ciência é uma Crença
2- Dragão, 10-4-08, Pausa lúdica nos confrontos
3- Wikipedia, Nimber

Mais do mesmo:
1+1=2
Senhoras e senhores, a realidade

sábado, abril 12, 2008

Treta da Semana: O acordo ortográfico.

Já estive indeciso acerca disto. À partida pareceu-me que regular a ortografia era um disparate mas o acordo ortográfico de 1911 (1) foi, em retrospectiva, uma boa ideia. Da comissão fazia parte a Carolina Michaëlis, mas não havia telemóveis nessa altura e a coisa correu bem. E esse acordo livrou-nos de pharmacia, lyrio, orthographia, phleugma, phthysica e outras aberrações. Por isso, pensei eu, se calhar este acordo de 1990 até pode ser bom (2). Mas um post do Desidério (3) levou-me a olhar novamente para isto. O “Hã?” surgiu-me logo aqui:

«Actualmente o português é a única língua do mundo ocidental falada por mais de cinqüenta milhões de pessoas com mais de uma ortografia oficial. [...] A língua inglesa por sua vez apresenta variações ortográficas nacionais significativas, mas não conta com uma regulamentação oficial.»(2)

Parece que uma boa parte do mundo que usa o Inglês se entende bem sem doutos linguistas a regulamentar cada palavrinha. E o “Aha!” veio de seguida:

«Até ao início do século XX, tanto em Portugal como no Brasil, seguia-se uma ortografia de cariz etimológico que se tinha vindo a impor desde o século XVI, baseada nas directrizes dos principais gramáticos da língua. Era uma escrita complicada que, por regra, buscava a raiz latina ou grega para escrever cada palavra [...]. No entanto, quer em Portugal, quer no Brasil, abundavam as críticas à ortografia em uso e não faltava quem recomendasse a adopção de escritas mais simples e mais próximas da fonética.»(2)

Ou seja, o acordo ortográfico de 1911 foi precisamente por causa dos «principais gramáticos da língua» andarem a meter o bedelho e a chatear o pessoal com regras que ninguém queria cumprir. As normas não correspondiam à forma como as pessoas queriam escrever. A reforma de 1911 justificou-se pela remoção do bedelho. Segundo o texto oficial, é preciso reintroduzi-lo porque «constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa e para o seu prestigio internacional»(4), justificação que se resume com dois tês, um erre, um é e um á.

Concordo com Vital Moreira que não são «procedentes os argumentos que têm sido lançados contra a reforma ortográfica. Não existe nenhuma ortografia sacralizada pela tradição[...]. Não faz sentido acusar a reforma de ser uma cedência do "português" ao "brasileiro"[...]. Não é convincente o argumento sobre a dificuldade de adaptação das pessoas a uma nova ortografia [...]. Tampouco tem razão o argumento de que algumas alterações, como a eliminação das consoantes mudas (de "projecto" para "projeto", por exemplo), cria o risco de provocar uma mudança na respectiva pronúncia, ensurdecendo a vogal associada...» (5).

A língua evolui, muda constantemente e não vale a pena sequer tentar travar esse processo. Os diferentes dialectos vão se distanciando e acaba por ser uma decisão arbitrária se os classificamos na mesma língua ou em línguas diferentes. Quando estive em São Salvador da Baía os Brasileiros de lá pensavam que eu falava Espanhol. A minha objecção a este acordo ortográfico não é nenhuma das que o Vital Moreira rebate. Eu sou contra porque não faz sentido haver normas oficiais de ortografia, tal como não faz sentido normalizar a pronúncia, o vocabulário ou as expressões idiomáticas.

Deve haver dicionários e documentos oficiais com nomes sonantes e aspecto importante onde estejam as palavras na forma “correcta” de as escrever. Mas esses documentos devem ser descritivos e não normativos. Não são para nos dizer como devemos escrever mas para nos informar como normalmente se escreve. E quando, como é inevitável, se começar a escrever de forma diferente aí sim devem alterar os documentos oficiais. Algo que pode ser feito discretamente por quem compila dicionários e que não precisa de protocolos internacionais, como demonstram muitos milhões de pessoas que escrevem Inglês como o falam. De várias maneiras diferentes.

Editado a umas horas da publicação para corrigir a ortografia...

1- Wikipedia, Ortografia da Língua Portuguesa
2- Wikipedia, http://pt.wikipedia.org/wiki/Acordo_Ortográfico_de_1990
3- Desidério Murcho, 10-4-2008, Para quê o acordo ortográfico?
4- Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa — 1990
5- Vital Moreira, Público de 18-12-07, Uma língua, uma ortografia

Carneiro.

«Palavras-chave: Iniciativa/ Liderança/ Actividade.
Planetas Regentes: Marte e Plutão.
Elemento: Fogo.
Corresponde ao primeiro signo do Zodíaco. É um signo de fogo, de novos inícios, iniciativa, actividade e empreendimento.»
(1)

Este é o signo da astróloga Cristina Candeias. Na noite do passado dia 7 a astróloga deixou uma vela de cheiro acesa no seu escritório e passado umas horas tinha a casa entregue ao elemento do seu signo (2). Em casa de ferreiro...

Felizmente ninguém se magoou, mas é uma coisa chata e até me sinto um pouco mal por vir aqui gozar com ela. Mas não muito. Quando fui ao site da Cristina à procura do signo dela vi lá isto

«NOVO SERVIÇO: Consultas de Astrologia para Crianças»(3)

e fiquei com a consciência muito mais aliviada.

1- Cristina Candeias, Signo Carneiro
2- Diário de Notícias, 8-4-08, Vela em casa de astróloga provoca incêndio em prédio de oito andares
3- www.cristinacandeias.pt

sexta-feira, abril 11, 2008

O conflito.

O Dragão perguntou «Se, por essência, o domínio da ciência é epistemológico e o da religião é moral donde surge, então, o litígio?»(1) O António Parente exclamou «A Biologia fala-nos na teoria da evolução. So what? Isso contradiz o Génesis para quem o lê literalmente mas para quem aceita o método crítico-histórico não causa problema nenhum.»(2) O Anselmo Borges afirmou «Nem os crentes podem demonstrar que Deus existe nem os não crentes que não existe. Deus transcende a razão científica objectivante.»(3) São exemplos da ideia que não devia haver conflito entre ciência religião. São também exemplos dos erros que conduzem a essa ideia.

Quando o conflito é estritamente moral não é entre ciência e religião. É entre pessoas e religiões. A ciência não diz se algo é moral ou imoral mas cada pessoa pode fazer esse juízo, e os cientistas também são pessoas. E nenhuma religião demonstra ser a única autoridade nesta matéria, por isso muitos discordam do que propõe a fé. As fés, na verdade, e cada fé sua sentença. Este conflito entre cientistas e religiosos é semelhante ao conflito entre cientistas e políticos, políticos e economistas, economistas e médicos, etc. São divergências entre indivíduos acerca de prioridades e preferências.

Só que as religiões não se restringem aos valores e entram sempre no domínio dos factos. Afirmam a existência de deuses, alegam conhecer os poderes e opiniões desses deuses e até derivam os seus preceitos morais deste alegado conhecimento. A quem diz que algo é pecado por ser contrário à vontade divina deve-se perguntar como é que sabe que é essa a vontade divina. E este é um problema epistemológico. No meio disto acabam por contradizer modelos científicos bem estabelecidos. Na ciência moderna não cabem almas, milagres ou deuses omnipotentes e omnisciencientes. É claro que estes modelos são provisórios e não provam em definitivo que as religiões estejam erradas, mas não se pode defender só pela fé que um deus é excepção à física. Isso carece de evidências mais sólidas.

O que nos traz ao cerne do conflito. O método. O problema principal não é a verdade de certas proposições. Nasceu de uma virgem? Ressuscitou? É omnipotente e embirra com os preservativos? Talvez sim, talvez não. O problema está em justificar a confiança depositada nessas proposições, e todas as religiões defendem com confiança absoluta proposições como estas, sem fundamento. Daí o conflito, que não é só com a ciência.

Os cientistas têm as suas divergências mas o método para as resolver é consensual. Nullius in verba é o lema da Royal Society. Ou, como diríamos por cá, não vamos em conversas. Os modelos têm que ser testáveis e corresponder ao que se observa, e é assim que se resolvem disputas em ciência. É um caso extremo de sucesso mas não é o único. Os filósofos discordam de quase tudo mas concordam que é com argumentação lógica e racional que se resolve divergências. Na política há a democracia, no direito os tribunais e a lei e até nos mercados há as vendas para decidir quem “tem razão”. Com mais ou menos sucesso, uma boa parte do progresso da civilização tem sido encontrar métodos consensuais para resolver divergências. Observação, argumentos, votos, julgamentos ou até dinheiro.

As religiões são a excepção. Os dogmas estão fechados e não se fundamentam nem em observação, nem em argumentação racional e nem sequer na vontade da maioria. Fundamentam-se na fé, mas a fé é apenas o desejo que assim seja e se um tem fé e o outro não, não há nada a fazer. É isso que gera conflitos. Conflitos entre religiões porque têm fés diferentes. Conflitos com os valores da sociedade moderna porque a fé não aceita a falta de fé como opção pessoal. E conflitos com a ciência porque a fé afirma coisas que a fé não justifica.

A educação religiosa é um sintoma revelador. Nas outras disciplinas há uma matéria consensual que se ensina a todos os alunos. Da biologia à economia e da física ao desporto o que se ensina aos alunos não depende da profissão dos pais, da religião, do partido político ou clube de futebol. Mas as religiões nem entre os religiosos reúnem consenso. Cada um quer a sua, toda a sua e nada que não seja a sua. Cada criança que seja ensinada de acordo com a fé dos pais. E ______ (preencher conforme apropriado) nos livre de conhecerem outras religiões.

Depois admiram-se que haja conflito.

1- Dragão, 7-4-08, A ciência e a moral
2- Comentário a Miscelânea Criacionista: O código genético.
3- Anselmo Borges, DN 5-4-08, Do transcender ao transcendente.

quinta-feira, abril 10, 2008

Miscelânea Criacionista: O código genético.

A minha afirmação que o ADN não tem código nenhum causou um aparente transtorno a alguns criacionistas. Para ver se isto não fica confuso no calor da conversa quero deixar claro o sentido com que uso a palavra “código”:

«conjunto de sinais convencionais e, por vezes, secretos para comunicações;
conjunto de regras que permite a combinação e a interpretação desses sinais;»
(1)

Quando as patas do cão deixam marcas na lama ou a chave alinha os pinos da fechadura podemos quantificar a informação contando a redução do número de possibilidades. Não é preciso que o processo seja simbólico ou tenha sinais convencionais. Informação, neste sentido estatístico, não implica código nenhum. E se dissermos que a pata codifica a marca na lama ou que a chave codifica a posição correcta dos pinos estamos a usar o termo em sentido figurado. É como se, mas não é mesmo. As interacções da pata com a lama e da chave com a fechadura não são mediadas por «sinais convencionais» nem por «regras que permitem a interpretação desses sinais». Estritamente, não é código nenhum.

O código está nas nossas descrições, essas sim compostas de regras e sinais convencionais. Os números no chaveiro indicando a porta correspondente a cada chave. Ou a expressão abaixo que representa a reacção de auto-dissociação da água:

2 H2O ⇔ HO- + H3O+

Os símbolos representam moléculas, átomos e processos, e os químicos desenvolveram um código para representar reacções usando estes sinais convencionais. Mas o que se passa num copo de água não envolve sinais convencionais nem código nenhum. São moléculas a reagir.

É o mesmo com o ADN e o código genético. Há um código para referir cada nucleótido por uma letra, como A, T, C ou G. Há um código semelhante para os aminoácidos. E há o código genético que faz corresponder sequências de três símbolos representando nucleótidos a cada símbolo representando um aminoácido. São códigos no verdadeiro sentido do termo, pois são conjuntos de sinais convencionais e regras para a sua interpretação. Mas os códigos estão na descrição.

Nem o ARN nem o ADN são sinais convencionais nem o ribossoma segue regras de interpretação para os descodificar. Estas moléculas interagem como a chave na fechadura, a pata na lama ou as moléculas de água. Sem nada de convencional ou simbólico a molécula de ADN só pode ser um código em sentido figurado. É uma metáfora. O verdadeiro código está nas descrições que os humanos inventam.

Normalmente não há problema em falar do código genético, tal como não há problema em falar do nascer do Sol. Em geral, percebe-se que não é para levar à letra. Mas se alguém se convence que a mãe do Sol entra em trabalho de parto todas as madrugadas ou que um ser inteligente escreveu um código no ADN é preciso esclarecer as coisas. Espero que isto tenha ajudado.

1- Priberam, Língua Portuguesa On-Line

quarta-feira, abril 09, 2008

Moralidade e transcendência.

Muitas vezes defende-se que a moralidade é domínio da religião. A justificação é assentar a moralidade num deus transcendente para que não dependa de factores culturais variáveis. Qual deus? O de quem defende a ideia, claro.

É má escolha. Há pouca coisa que varie mais com a cultura que a religião e os seus preceitos morais. Pior ainda, é muito difícil aos crentes religiosos resolver as suas divergências. Sempre que alguém sugere a religião como fundamento da moral refere-se apenas à sua. As outras, deus me livre. E se calha ser uma religião adepta de bombas, mártires, amputações e coisas que tal só dá chatice.

Outro problema é que fundamentar a moral em algo transcendente é um projecto imoral. Se eu não roubo por medo de ser apanhado estou a agir apenas por interesse próprio. Se não roubo porque os meus pais me ensinaram a não roubar estou a agir por hábito, treino ou costume. É um acto moral porque eu decido e sou responsável por agir desta forma. Mas é uma moralidade defeituosa porque os valores não são responsabilidade minha. São me dados pelas circunstâncias ou pelos outros.

Só é plenamente moral não roubar se eu decidir que não é aceitável fazê-lo nessas circunstâncias. Só assim é que sou responsável tanto pelo acto como pelos valores que o classificam. O fundamento da moral é esta responsabilidade individual por actos e valores, e o outsourcing da moralidade religiosa priva-nos duma parte importante. Deus decide os valores e nós apenas escolhemos se fazemos o que já vem rotulado de “bem” e “mal”. Moralidade light, com metade da responsabilidade. O mesmo se aplica ao sentido da vida, outro valor que a religião nos quer fornecer pré-fabricado. Felizmente, há uma coisa melhor que a religião para resolver estes problemas.

A ciência resolve bem o problema da variação cultural e individual. A física daqui é igual à da China. Mas uma parte importante da ciência é testar hipóteses por observação e isso não se pode fazer com questões de valor. A menos que se reduza todas as questões de valor a questões de facto, o que me parece impossível, nunca poderemos testar por observação se algo se deve fazer ou se deve evitar, se é bom ou mau. Por isto, e apenas por isto, a ciência não serve como método para resolver problemas morais.

Mas não é só por isto que a ciência é um método fiável que reúne tanto consenso. É também por ser um processo aberto à crítica e ao diálogo, por exigir rigor e coerência nas hipóteses, por não aceitar argumentos de autoridade ou afirmações infundadas e por visar o progresso corrigindo os erros do passado. E isto é o que faz a filosofia. A ciência, no fundo, é o que acontece à filosofia quando encontra maneira de testar as hipóteses.

Por isso eu rejeito a ideia de pôr a religião a cargo da moral. Mesmo polidos por séculos de demagogia, não são rituais e superstições que nos vão dizer o que deve ou não deve ser.

Nota pedante: eu prefiro distinguir a moral, o conjunto de valores e normas, da ética, a análise crítica do fundamento da moral. Com essa distinção devia dizer que a religião dá moral à custa da ética. Mas prevejo que quem discordar deste post não vai implicar com isso, portanto corri tudo a “moral” e pronto.

terça-feira, abril 08, 2008

Miscelânea Criacionista: Informação, significado e inteligência.

O Jónatas Machado tem insistido na confusão criacionista que a informação só pode ter origem inteligente. Não é verdade. A informação apenas instancia uma possibilidade de entre alternativas. Uma formiga deixa um rasto de odor e outra formiga segue-a guiada pelo odor da primeira. Recebe da primeira formiga informação que lhe limita o percurso àquele caminho. Uma molécula de ARNt liga-se a um sítio específico do ARNm porque é aí que a interacção entre as duas moléculas permite uma ligação forte. As pontes de hidrogénio e a complementaridade das formas incorporam a informação que selecciona esta possibilidade de entre as alternativas. O sulco que a chuva escava na ladeira limita as possibilidades para a água que escorre a seguir. A luz do Sol guia o crescimento das folhas e a orientação do girassol. São exemplos de informação sem inteligência.

Nós conseguimos traduzir pensamentos em sequências de símbolos, e vice-versa, e isso exige inteligência. Essa inteligência permite-nos comunicar por email em vez de só pelo cheiro. Mas dar significado aos símbolos é apenas uma de muitas formas de trocar informação. Por exemplo, este texto tem significado para mim e para quem o lê mas não tem significado para os computadores que o reproduzem pela Internet. Eu transmito informação ao computador para instanciar esta sequência de símbolos e o leitor interpreta essa sequência como frases e ideias. Esses passos exigem inteligência. Mas entre os nossos computadores circula a informação necessária para reproduzir no vosso computador a sequência de caracteres que está no meu. Essa informação é passada sem inteligência e sem qualquer compreensão do significado do texto.

Mais, se alguém inserir caracteres espalhados pelo texto pode destruir o seu significado mas vai aumentar a informação necessária para o reproduzir porque o texto ficou maior. A informação não depende do significado, e será a mesma quer esses caracteres sejam lixo aleatório quer formem uma mensagem secreta.

Os criacionistas cometem o mesmo erro dos videntes e os astrólogos que “lêem” as posições dos astros como se fossem símbolos e mensagens. Não são. É pura imaginação humana. O ADN também não simboliza nada nem é uma linguagem. Transmite informação, sim, mas informação não é o mesmo que significado. Quando o ar frio faz ligar o termostato ou a interacção das moléculas de água formam um floco de neve também há transmissão de informação. Algo instancia uma possibilidade de entre várias alternativas. O ADN faz o mesmo interagindo com proteínas e ARN e não por simbolizar seja o que for.

O símbolo “ADN” é outra coisa. Refere a molécula de ácido desoxirribonucleico, é um substantivo, pode ser usado em frases, é independente do meio que o transmite. Pode ser uma imagem no ecrã, lido em voz alta, escrito no papel ou desenhado com palitos. O símbolo “ADN” codifica uma mensagem inteligente e tem que ser interpretado com inteligência para se conhecer o seu significado, aquilo a que se refere. A molécula de ADN não refere coisa nenhuma. Não é um símbolo, não tem significado, não codifica mensagens e só pode desempenhar a sua função se for mesmo feita com aqueles átomos, naquela configuração, interagindo com aquelas outras moléculas. Confundir o ADN com uma mensagem é como confundir um barco com Os Lusíadas.

Os criacionistas como o Jónatas Machado dizem que a «informação do DNA contém um código. Um código supõe sempre uma inteligencia.»(1) O código supõe a inteligência mas o ADN não tem código nenhum. É uma molécula que reage com outras. E se alguma inteligência escreveu uma mensagem em código no ADN da cebola ou do percebe perdeu tempo para nada porque ninguém está cá que a saiba ler. Nem os criacionistas. Ao menos os astrólogos ainda julgam saber o que os astros dizem.

1- É isso mesmo.

segunda-feira, abril 07, 2008

É mesmo isso.

O Mats citou este trecho do livro The Origins of Genome Architecture, de Michael Lynch:

«The uncritical acceptance of natural selection as an explanatory force for all aspects of biodiversity (without any direct evidence) is not much different than invoking an intelligent designer»

E comentou: «Certamente que os darwinistas vão dizer que está descontextualizada.»(1)

Não sei quem são os darwinistas. Deve ser, na biologia, o equivalente aos newtonistas da física ou aos pasteuristas da medicina. Bicho raro, com certeza. Mas se o trecho citado é o que parece tem toda a razão. A aceitação acrítica de uma explicação é um erro. Por uma crença religiosa, por exemplo. E hoje em dia conhecemos vários mecanismos que contribuem para a biodiversidade. A deriva genética, a transferência horizontal de ADN, a propensão molecular para certas mutações, etc. Propor a selecção natural como o único mecanismo seria contrário às evidências que temos e deixaria muito por explicar. Exactamente como o tal design inteligente.

1- Mats, 6-4-08, Fora do contexto?

Perguntas ou respostas?

O Timshel perguntou há dias:

«Porque é que a matéria tem condições que permitem a vida?
É assim porque é assim?
Tem algum interesse colocar a questão?»
(1)

Tem interesse, e vamos supor que o interesse é obter a resposta. Para isso precisamos compreender a pergunta. Precisamos saber o que quer dizer “vida”. Se é o conjunto de actos e experiências a que chamo “minha vida”, se é a propriedade de um sistema organizado que se desenvolve, reproduz e responde a estímulos ou se é apenas a mais elementar capacidade de replicação. Podemos escolher só uma ou dividir a pergunta em várias, mas para obter resposta precisamos de uma pergunta bem definida.

Também temos que especificar o que queremos dizer com “condições”. Se considerarmos que a vida surgiu com a primeira célula, as “condições” podem ser os factores que organizaram os constituintes da célula. Ou pode designar a causa última de tudo o que levou à célula, da química, da física, da matéria e assim por diante. No primeiro caso podemos identificar uma resposta se a encontrarmos, mas no segundo não. Mesmo que encontremos a causa última não vamos saber se é mesmo a última ou se há mais alguma. Se for essa a pergunta ficamos sem poder saber se já a respondemos.

Em suma, se nos interessa a resposta temos que formular a pergunta de forma a saber o que estamos a perguntar e de forma a poder identificar uma resposta se a encontrarmos. Sem isso não tem interesse colocar a questão. A menos que nos interesse perguntas sem resposta, como sugere o Dragão: «a propaganda ciêntifica, como literatura, é paupérrima; como religião, é excessivamente supersticiosa»(2).

Mary Shelley escreveu Frankenstein em 1817, quando a electricidade era adequadamente misteriosa. Se fosse em 1940 tinha que ser radioactividade e hoje só animava o monstro com manipulação genética ou dimensões paralelas. Os electrões do candeeiro que ligamos com o interruptor já não têm o efeito literário que tinham em 1817. Esta literatura precisa de perguntas que aparentem mistérios profundos, o tal “inexplicável”, que sirvam de metáfora para isto ou aquilo e que empilhem significados onde o leitor encontre o que mais lhe agrade. Perguntas claras com respostas concretas não servem.

Na religião o contraste é ainda maior porque a religião já deu respostas. Que a lepra era castigo, que Deus tinha feito montanhas e escaravelhos, que a Terra tinha poucos milhares de anos e os planetas andavam à nossa volta colados a esferas de cristal. Hoje isso é superstição e, vista de fora, a ciência também parece ser só respostas vindas sabe-se lá de onde. Parece «excessivamente supersticiosa». Mas a ciência e a religião divorciaram-se precisamente porque fugiram da superstição em direcções diferentes. A ciência adoptou um método de validação e revisão das respostas. A religião mais esclarecida do ocidente desistiu das respostas e dedicou-se à literatura. Ao mistério das perguntas vagas. Do mal o menos; noutros países e entre fundamentalistas a religião continua tão supersticiosa como antes.

Por isso à terceira pergunta respondo sim. Seja como for, tem interesse. À segunda, depende. Se interessa a resposta então a pergunta tem mesmo que fazer sentido e admitir resposta, senão não vale a pena. E a ciência já tem boas respostas para muitos casos particulares da primeira pergunta, conforme o que se queira dizer por “vida” e “condições”. Mas se só interessa o gostinho a mistério então nem dá jeito que a pergunta faça sentido e é de evitar qualquer possibilidade de resposta.

1- Timshel, 29-3-08, Man's Search for Meaning
2- Dragão, 4-4-08, Kentucky Fried Cience

domingo, abril 06, 2008

Dragão e algodão doce.

Não me consegui fazer entender nesta conversa com o Dragão do Dragoscópio. Gosto pouco de nevoeiro nas ideias e ele tem gostos diferentes. Talvez por isso interpretou a minha afirmação que «inferir que é inexplicável só por não se conhecer a explicação tem embaraçado muitos crentes» como querendo dizer precisamente o contrário: «desconhecer a explicação ocasiona o inexplicável.»(1) Desconhecer a explicação é falta de conhecimento, e não é por ignorância que se sabe se é possível ou não obter esse conhecimento. A tese que «em qualquer teoria o fundamento é inexplicável»(2) é falsa porque apesar da teoria não explicar o seu próprio fundamento isso não impede que outra teoria o explique. Normalmente é o que acontece. A ciência é maior do que muitos julgam.

E por eu ter escrito que umas explicações são melhores que outras o Dragão fingiu-se baralhado: «Pensava eu que o âmbito da ciência era essencialmente epistemológico. Mas aprendo consigo, em boa hora, que é moral»(1). Digo que fingiu porque logo a seguir mostrou perceber que “melhor” não tem que ser um juízo moral. «Mas “melhores”, já agora, porquê? Porque vosselência gosta mais delas? Porque são as do laboratório que delega e representa? Porque estão mais na moda? Porque têm mais eleitores?». A resposta já o Dragão a tinha dado. O âmbito da ciência é epistemológico. É nisso que umas explicações são melhores que outras. As explicações mais detalhadas são melhores porque nos dão mais conhecimento. As que correspondem ao que se observa são melhores porque têm menos erros. As que dependem de menos factores desconhecidos são melhores porque têm mais fundamento no que conhecemos. Se o objectivo é compreender, as melhores explicações são as que nos dão mais compreensão.

Finalmente, os malefícios da ciência. «Por fim, certifica, vossência, que «não foi a teologia que nos deu os antibióticos, nem a oração que revelou o motor de combustão nem a fé que pôs satélites em órbita.» Quer dizer, insinua que foi a ciência. Portanto, autoriza-nos daí a concluir que foi também ela que colocou a bomba atómica em Hiroshima. Ou os submarinos nucleares nos oceanos. Ou as armas bacteriológicas sabe-se lá onde. »

Sim. A ciência dá-nos conhecimento, e o conhecimento traz responsabilidades e problemas. Mas não é com ignorância que os resolvemos. Por um lado porque a ciência não vem em credos separados. Não podemos escolher conhecer as coisas boas e ignorar todas as más. Por outro lado porque não é preciso conhecimento para criar problemas. A fome, as doenças, um milhão de mortos à catanada no Ruanda, isso não precisa de ciência. O que a ciência nos dá é mais opções. Matar e estropiar foi sempre uma possibilidade, fosse com pedras ou com bombas. Mas só com a ciência é que temos a opção de curar doenças, alimentar esfomeados e reduzir a ignorância. Se quisermos.

Por isso reitero a minha crítica ao seu estilo enevoado. Não é que não aprecie o sabor, mas fica a faltar substância. O Dragão diz que esta crítica «vale zero» porque «a propaganda ciêntifica, como literatura, é paupérrima; como religião, é excessivamente supersticiosa ; e como filosofia, chega a ser hilariante.» Mas a ciência visa ideias claras que correspondam à realidade. A literatura tem outros objectivos, a religião visa o contrário e na filosofia há de tudo, desde os filósofos que têm algo a dizer aos que apenas têm de dizer algo.

Ser poeta, dar sermões ou ser difícil de entender está no direito de todos. Mas para discutir ideias é preciso clareza. E é interessante que critique a “propaganda científica” por ser pobre literatura e má religião mas que não a acuse de ser falsa.

Editado a 9-4-08. Obrigado ao Zarolho por me corrigir o «têm que dizer algo.»

1- Dragão, 4-4-08Kentucky Fried Cience
2- Dragão, 30-3-08, O neo-evangelismo estagnado

sábado, abril 05, 2008

Treta da Semana: Karuna Reiki®

«A palavra Reiki contém duas palavras Japonesas – Rei, que significa “A Sabedoria de Deus ou o Poder Superior” e Ki que é a “energia da força vital”. Por isso Reiki é na verdade “energia da força vital guiada espiritualmente”»(1). Perfeito. E o tratamento é simples. Segundo a Wikipedia:

«O tratamento decorre com o praticante colocando as mãos sobre paciente em várias posições. No entanto, os praticantes podem usar uma técnica sem contacto, na qual as mãos ficam a alguns centímetros do corpo do paciente [...]. No geral, as posições das mãos percorrem a cabeça, frente e costas no torso, os joelhos e os pés. Entre 12 a 20 posições são usadas, com o tratamento durando de 45 a 90 minutos»(2)

Também não há problema se o paciente não puder deslocar-se ao consultório. O mestre de Reiki envia “energias” à distância sem qualquer perda de eficácia recorrendo a uns símbolos especiais. «Cada símbolo guarda uma energia, representa uma verdade, e pode ser usado para invocar o seu significado; portanto, o seu efeito»(3). Tal como o criacionismo e a astrologia, também o Reiki aproveita a confusão entre os efeitos de algo e o significado que nós lhe atribuímos. Por exemplo, o símbolo Hon Sha Ze Sho Nen «viaja sem impedimento pelo tempo e pelo espaço». Para um símbolo não está mau. Queria ver uma vogal fazer o mesmo.

O estilo de Reiki de que gosto mais é o Reiki da compaixão, o Karuna Reiki®. Gosto especialmente do ®. «Energia da força vital guiada espiritualmente com compaixão» merece bem um ®. E os requisitos mínimos para ensinar o Karuna Reiki® mostram o que é mais importante na canalização das energias cósmicas:

«1- Usar os símbolos Karuna Reiki® ensinados pelo International Center for Reiki Training e que aparecem nos manuais ICRT de Karuna Reiki®.
2- Usar as mesmas sintonizações Karuna Reiki® [...] que aparecem nos manuais ICRT de Karuna Reiki®[...]
3- Usar os manuais Karuna Reiki® fornecidos pelo Centro como manuais de ensino e fornecer um a cada aluno. Você terá que comprar estes manuais ao Centro ou a um dos nossos representantes – não é permitido fotocopiá-los.»


É justo. Quem inventa estas tretas não quer que um Chico esperto fotocopie os livros e guie espiritualmente e com compaixão a energia da força vital sem pagar a quem de direito.

Eu ia dizer que o próximo passo era patentear o Yoga, só que já é tarde para isso (5). Mas alguns seguidores do Reiki defendem o direito de partilhar a superstição sem cobrar direitos de autor. Há quem diga que isto é uma mentalidade borlista criada pela Internet e que põe em risco a própria superstição. Eu não sou tão optimista. Infelizmente, mesmo com o Open Source Reiki (6) há de haver muita gente a ganhar dinheiro com esta treta.

1- Reiki.org, What is Reiki?
2- Wikipedia, Reiki
3- Reiki Living, Reiki Symbols
4- Reiki.org, New Karuna Reiki® Registration Program
5- Times Onlines, 31-5-2007, American attempt to patent yoga puts Indians in a twist
6- Open Source Reiki

sexta-feira, abril 04, 2008

Realidade e Fantasia

O Jónatas Machado comentou que «A Bíblia é um livro do mundo real. A teoria da evolução é pura fantasia naturalista.»(1) Não é uma atitude confortável.

Quando inventaram este criacionismo Deus tinha criado um universo pequenino. Os céus e a Terra, com ênfase na Terra. Os poucos animais, plantas e pessoas que se conhecia. Os astros eram meros acessórios, Sol e Lua para iluminar e umas luzinhas para enfeitar a noite. E o principal da criação era, evidentemente, quem inventava o relato, escolhidos e criados à imagem de Deus. A criação tinha sido há muito tempo, mas muito tempo nessa altura era uns milhares de anos. Mais que isso não era imaginável e, por isso, não o imaginaram.

Hoje isto é difícil de engolir. A nossa galáxia tem cem mil anos luz de diâmetro. A luz da Via Láctea saiu daquelas estrelas, que não são meras luzinhas, há várias vezes o tempo de vida do universo criacionista. E muitos pontinhos que julgávamos estrelas são outras galáxias, aglomerados imensos de estrelas a milhões de anos luz que nunca poderíamos ver num universo com poucos milhares de anos.

A ciência é consensual nisto. O universo é muito maior e muito mais antigo do que imaginaram os autores do criacionismo. A física demonstra-o pelo decaimento radioactivo dos minerais, pelas reacções nucleares nas estrelas e pela formação dos planetas. A geologia concorda, nos movimentos das placas tectónicas, na elevação de montanhas e na erosão. Também a paleontologia e a arqueologia contradizem o criacionismo e a biologia conhece organismos vivos mais velhos que o universo criacionista (2). Se é pura fantasia é uma grande sorte concordar em tanto detalhe e dar tanta informação útil. E é um grande azar que o «livro do mundo real» ainda não tenha dado benefícios práticos.

Os criacionistas gostam de dizer que não têm nada contra a ciência e só opõem a “fantasia naturalista” da teoria da evolução. Mas esta teoria é consequência inevitável da física e da química dos seres vivos e é fundamental para compreender a complexidade de formas e comportamentos destes seres. É uma pedra sólida no edifício da ciência que não se pode tirar sem afectar o resto.

Perante este grande edifício o criacionista fecha os olhos e investe, movido pela fé, com passo rápido e determinado. Uma vez, e outra e outra, alegadamente insensível às mazelas que sofre, à figura que faz, e à ironia. Ironia de usufruir dos benefícios que a ciência lhe traz enquanto incita outros a tentar demoli-la com o nariz.

1- Pedido aos criacionistas
2- Oldest Living Thing

quinta-feira, abril 03, 2008

Pedido aos criacionistas.

No dia 13 de Fevereiro do ano passado, Jónatas Machado escreveu que «Sabemos que as mutações são cumulativas e degenerativas. As mesmas não criam informação genética nova que codifique novas estruturas e funções.» Em resposta a mais de um ano de conversa e vários exemplos em contrário, Jónatas Machado decidiu adoptar o pseudónimo de Perspectiva e afirmar à mesma que «As mutações e a selecção natural diminuem a quantidade e a qualidade da informação genética disponível.»(2)

Peço então aos criacionistas que expliquem como se avalia esta diminuição da quantidade de informação num caso concreto. Abaixo estão cinco sequências de rubredoxinas de bactérias dos géneros Clostridium, Desulfovibrio, Geobacter e Thermoanaerobacter. Segundo a teoria da informação formalizada por Shannon, sendo do mesmo comprimento e usando os mesmos 20 símbolos é preciso a mesma informação para as codificar (225 bits, aproximadamente)*.

MEKYVCTACGYIYDPEKGDPDGGIAPGTAFEDIPDDWVCPICGVGKDMFEKE
MEKWQCTVCGYIYDPEEGDPSQGIEPGTPFEELPDDWVCPDCGVGKDMFEKM
MERWRCTICQYEYDPEAGDPENGIDPGTPFEELPDDWVCPICGAGKDLFEPA
MDIYVCTVCGYVYDPEEGDPDGGIAPGTAFEDIPEDWVCPLCGVGKDLFEKQ
MDIYVCTVCGYEYDPAKGDPDSGIKPGTKFEDLPDDWACPVCGASKDAFEKQ

Mas segundo os criacionistas estes descendentes da bactéria perfeita criada por Deus sofreram mutações aleatórias que reduziram a quantidade de informação, umas mais e outras menos. Peço que calculem as diferenças e que expliquem o cálculo.


Também gostava que avaliassem a qualidade da informação com este outro exemplo. Apresento abaixo duas sequências de 24 bits. Uma é uma mensagem codificada por mim e a outra é o resultado de atirar uma moeda ao ar 24 vezes. Novamente, de acordo com a teoria da informação que eu conheço isso não faz diferença nenhuma. 24 bits são 24 bits. Mas se há diferenças na qualidade da informação gostava que explicassem como é que medem essa qualidade para distinguir a sequência criada com inteligência e da outra criada por processos físicos sem inteligência.


000110100011100100110100
010110110111111000111110

Finalmente, se uma mutação altera um nucleótido num gene e reduz a informação genética, pedia que explicassem porque é que a mutação inversa não aumenta a informação genética, visto que restaura a sequência original.


Não exijo que respondam a tudo. Se não souberem, aceito que não saibam. Mas nesse caso admitam que isso das mutações só reduzirem informação e da informação ter mais ou menos qualidade é treta.



*Em média. Podemos codificar algumas sequências com menos bits e outras com mais, mas se tivermos que enviar qualquer sequência com este comprimento, em média precisamos de 225 bits para cada uma e qualquer diferença será só devido à codificação e não à sequência só por si.

1- 13-2-07, Charles e o seu ismo
2- 2-4-08, O neo-nãoseiquê.