quinta-feira, julho 31, 2008

Razões para crer. 3- E para descrer.

«[O] pensamento claro e o respeito por indícios concretos – especialmente os indícios inconvenientes que contrariam os nossos preconceitos – são cruciais para a sobrevivência da espécie humana no século XXI»
Alan Sokal, «O que é a ciência e porque é que isso interessa?»(1)

«Deus que Se dá a conhecer na autoridade da sua transcendência absoluta, traz consigo também a credibilidade dos conteúdos que revela.»
João Paulo II, «Fides et ratio»(2)

Alguma da filosofia do último século ajudou a compreender a ciência, especialmente pela demarcação entre o que é e não é ciência. Popper propôs a falsificabilidade como característica fundamental; a hipótese científica tem que admitir que algo observável a possa refutar. Assim o criacionismo fica de fora porque o que quer que se observe é compatível com um criador omnipotente, e a hipótese que permite tudo não serve para nada. Mas Kuhn apontou que falsificar é pouco vulgar na ciência. O mais comum é resolver problemas. Quando um astrólogo falha numa previsão encolhe os ombros e segue para a próxima. Mas um astrónomo, quando falha, tem mecanismos para verificar os cálculos, reconsiderar premissas e confirmar observações até encontrar o problema e resolvê-lo. E só quando o problema é muito profundo é que há uma «mudança de paradigma».

Lakatos tirou a ênfase da hipótese isolada e mudou-a para as hipóteses em conjunto, o «programa de investigação». A biologia tem hipóteses centrais acerca da evolução e parentesco de todos os seres vivos. Estas não costumam ser postas à prova. São as hipóteses periféricas como a existência daquela forma intermédia ou a classificação deste organismo que são normalmente sujeitas a testes directos. Como se pode sempre proteger as hipóteses centrais sacrificando as periféricas, a questão principal não é a falsificação da hipótese isolada mas o desempenho do programa como um todo. Ou seja, se as revisões permitem prever melhor e resolver novos problemas ou se, pelo contrário, apenas disfarçam os falhanços com desculpas retrospectivas.

Isto é um resumo grosseiro de um tema complexo mas serve os objectivos deste post (até porque incluem não adormecer o leitor). Um é mostrar que a ciência é o caminho para o conhecimento. A verdade tem que ser claramente distinta da treta e o conhecimento só o é se resolve problemas ou responde a perguntas. E as hipótese que não se conformam ao que observamos devem ser corrigidas de maneira que permita compreender cada vez mais e cada vez melhor. No conhecimento, e na ciência, não há lugar para mistérios insondáveis, verborreia confusa ou desculpas teimosas em nome da fé.

Outro objectivo é desmascarar o truque de qualificar este conhecimento de “científico” para, enquanto o público olha para essa mão, a outra tirar do bolso o “conhecimento” teológico, transcendente, revelado, a priori ou o que mais calhe. Esses não são conhecimento. A premissa que um Deus perfeito escreveu a Bíblia permite inferir que a Bíblia é a verdade revelada. E as regras do Xadrez permitem inferir que o cavalo anda em L. Nem uma nem outra dizem o que quer que seja acerca da realidade. São meros jogos de lógica abstracta, e o conhecimento tem que ser mais que isso. Tem que confrontar o que observamos, responder a perguntas e levar-nos a compreender coisas que desconhecíamos.

Principalmente, quero contrapor a ideia que não podemos afirmar não haver deuses. Segundo a Enciclopédia Católica, «que tal afirmação é irrazoável e ilógica não precisa de demonstração porque é uma inferência injustificável pelos factos ou pelas leis do pensamento». É exemplo típico de duplicidade de critérios, de terminologia vaga (nunca explicam que “leis” são essas) e um erro flagrante se “leis do pensamento” se referir à atitude crítica e de respeito pelos factos que nos conduz ao conhecimento.

Há uma razão forte para descrer dos deuses. Muito mais forte que qualquer prova deduzida de axiomas tirados do chapéu. É que as hipóteses da existência de deuses só atrapalham. Ou contradizem a realidade ou não dizem nem sim nem não e, quer num caso quer noutro, não servem para compreender nada. Tal como não é preciso uma demonstração matemática para tirar a pedra do sapato, também não é preciso uma prova irrefutável para deitar fora os raciocínios circulares, a retórica obscura e as hipóteses inúteis que dificultam a caminhada. É que mesmo que nunca cheguemos ao conhecimento perfeito só temos a ganhar com os avanços na direcção certa.

1- O texto completo está aqui (em pdf). Recomendo.
2- Texto integral aqui.
Episódios anteriores:
Razões para crer. 1- Conhecimento.
Razões para crer. 2- Dois é companhia.

quarta-feira, julho 30, 2008

(Mais um) milagre do Sol.

Maria gosta de aparecer no Sol. Pelo menos, é o que disseram em Fátima e em Erumeli, na Índia. Em Fátima tiveram mais sorte, com o dia nublado. Em Erumeli já cinquenta pessoas ficaram cegas com danos irreversíveis na retina por tentar ver a aparição milagrosa no Sol.

Telegraph, Dozens blinded in India looking for Virgin Mary

terça-feira, julho 29, 2008

Adenda ao post anterior.

Tenho mais medo de quem me ameaça com uma faca do que de quem me possa mandar prender por eu ameaçar alguém com uma faca. Mas tenho menos medo de quem diz mal de mim do que de quem me possa mandar prender por eu dizer mal de alguém. É verdade que preferia que ninguém ameaçasse, ninguém dissesse mal e ninguém mandasse prender ninguém. Mas não podemos escolher leis na ilusão que vão pôr o mundo tal e qual nós preferimos. Temos que as escolher conscientes que trocamos o risco de ser vítima do crime pelo risco de ser vítima do castigo.

segunda-feira, julho 28, 2008

Actos e expressão 1: da ameaça ao insulto.

A minha irmã sugeriu que trouxesse para um post mais recente a discussão sobre calúnias, injúrias e liberdade de expressão (1). E ocorreu-me que um problema desta discussão é confundir a regulação de actos com a restrição da liberdade de expressão. Isto também se aplica à propriedade intelectual, mas vou fazer um esforço e deixar esta de lado por enquanto.

A liberdade de expressão é um direito fundamental na nossa sociedade. Em teoria. No entanto, não hesitamos em condenar quem grita “Fogo!” para lançar o pânico num cinema cheio de gente, quem mente no tribunal ou até quem vende bolacha Maria em pacotes marcados “Bolacha de Chocolate”. E isto dá a sensação de, na prática, a liberdade de expressão ser menos importante que as bolachas. Mas não é verdade.

O que se passa é que comunicar pode ser mais que exprimir ideias ou dar informação. Promessas, ameaças, pedidos ou aldrabices visam influenciar os outros e é essa influência que queremos regular. O direito de influenciar os outros tem que ser limitado pelo direito dos outros à sua autonomia. O mais importante é distinguir o acto e a expressão da ideia, e é isso que fazemos. Não censuramos a ideia do cinema a arder. Punimos apenas o uso dessa ideia para provocar pânico. Não censuramos a expressão da bolacha Maria no pacote das de chocolate ou da ideia de mentir no tribunal. O que fazemos é punir quem usa estas ideias para prejudicar os outros.

Por isso concordo que a lei intervenha em casos de ameaça, quebra de contrato ou publicidade enganosa, porque é fácil punir o acto de coagir, manipular ou enganar o outro sem restringir a liberdade de expressão. Por outras palavras, não se censura a ideia de apontar uma faca e exigir o dinheiro. Castiga-se o assaltante. Mas, pela mesma razão, discordo que a lei intervenha nos insultos, injúrias ou “atentados ao bom nome”. O que ofende nestes casos é a própria expressão da opinião. Aqui o conflito é entre o direito de exprimir uma opinião e o direito de impedir os outros de dizer o que não gostamos de ouvir. Claramente, o primeiro deve prevalecer. O segundo até é ridículo. Infelizmente, a nossa lei padece desta confusão, e o artigo 252º do Código Penal Português é um exemplo.

«Impedimento, perturbação ou ultraje a acto de culto
Quem:
a) Por meio de violência ou de ameaça com mal importante impedir ou perturbar o exercício legítimo do culto de religião; ou
b) Publicamente vilipendiar acto de culto de religião ou dele escarnecer; é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.»


A primeira alínea é razoável. Entre o direito à prática religiosa e o “direito” de ameaçar ou bater nos outros a escolha é fácil. Mas a segunda alínea é um disparate porque pune a expressão de uma opinião. O conflito entre a liberdade de expressão e o alegado “direito” de não dizerem mal das minhas crenças nunca devia ser resolvido em favor do último. Alguém confundiu bolachas com direitos.

Mas estes casos extremos são os mais simples. A calúnia, a alegação falsa para prejudicar alguém, é um problema mais complexo porque está no meio. Em teoria, devia-se poder separar a expressão da ideia e o acto de caluniar mas, na prática, é muito difícil punir a alegação sem castigar a opinião, e a lei não serve para trabalhos delicados. Não é com leis que se castiga calúnias sem atropelar o direito à opinião. É como fazer ponto cruz com uma escavadora.

A solução é restringir o âmbito da lei a casos bem delimitados. Denúncias à polícia, testemunhos em tribunal e actividades económicas ou profissionais, por exemplo. Punindo a calúnia apenas nestes casos resolve-se o problema maior sem eliminar o direito à opinião pessoal. Concordo que era bom que não espalhassem opiniões falsas ou mentiras maldosas. Mas mesmo isso não vale a censura, que só me parece justificar-se para proteger a privacidade. O direito de manter algo no foro íntimo é mais importante que o direito de revelar intimidades alheias. Mas, de resto, restringir a liberdade de expressão para combater opiniões que nos desagradam é escolher o mal maior.

1- Simetria

domingo, julho 27, 2008

Treta da Semana: Kryon.

Recebi um email da Casa Índigo a anunciar que a passada sexta feira foi um dia fora do tempo e que ontem começou o Ano Tormenta Eléctrica Azul (1). Agora estamos na Lua Magnética do Morcego, que dura até 22 de Agosto. Depois começa a Lua Lunar do Escorpião. O adjectivo «Lunar» é para distingui-la das de Azeitão, Cabra Transmontana, Rabaçal ou Tipo Serra.

À frente da Casa Índigo está Tereza Guerra, que além de licenciada em filosofia é «Kin 212: Humano Auto Existente Amarelo» e está a tirar um doutoramento em «Educação de Crianças Índigo». É pena não dizer onde nem com quem porque eu gostava de fazer umas perguntas ao seu orientador (nomeadamente, WTF?!?)*

Mas a fonte desta sabedoria é Lee Carroll, que, segundo o próprio, «canalizou» Kryon, uma «entidade extra-física [...] do "Serviço Magnético", oriunda do Sol Central». Não é o que estão a pensar. Quando li isto também imaginei um ser invisível com milhões de braços espalhados pelo mundo a segurar bonequinhos aos frigoríficos. Mas não. A missão de Kyron é «alterar o alinhamento magnético do nosso planeta» e «elevar o planeta a um nível vibratório superior» (3). Caro senhor Kryon, isto não me parece boa ideia.

O campo magnético da Terra é gerado por correntes de magma no interior do planeta. Como a espessura da parte sólida que habitamos é apenas umas milésimas do total eu preferia que o Sr. Kryon deixasse tudo como está. Porque se se descuida a mexer nas correntes de magma ainda ficamos todos a nadar em lava. E, já agora, também prefiro que não ponha o planeta num nível vibratório superior. A isso chamamos sismos e não nos dão jeito nenhum.

E porquê “Kryon”? «Se você pega as letras do meu nome em TOM – KRYON, e assinala os números a cada letra do alfabeto ocidental – A=1 B=2 Z=26 etc., depois soma estes números, você terá como resultado 83, o qual também somado resulta 11.[...] Este número 11 dirá a você mais do meu caráter. Quando você multiplica este número pela força vibratória 3, o resultado é 33 que lhe dará o insight de meu serviço. Eu vou lhe dar uma importante fórmula de poder: 9944. Seu discernimento e intuição eventualmente o levará ao significado dela, mas ela é importante na transmutação de energia.» (4). Ah... OK...

Como o cozido à portuguesa está para as couves, carnes e enchidos, assim as “canalizações” de Kryon estão para os disparates, parvoíces e tretas. E na Casa Índigo também há muitos ingredientes. A Marta Modas (5), além de formada em psicologia e «Kin 214, Mago Rítmico Branco», tem o 2º nível de «Reiki Galáctico e MultiDimensional» e faz «Meditação Galáctica» regularmente. A Susana Pinho (Kin 160: Sol Auto Existente Amarelo) lê auras e descobriu que a Cristina Gonçalves (Kin 238: Espelho Auto-existente Branco) «tem energia índigo.» Licenciada em Engenharia Física, a Cristina é também formada em Reiki e Programação Neurolinguística, Tai-Chi, Chi Kung e pratica «Meditação Galáctica» frequentemente.

Se forem a esta página podem calcular o vosso Kin, a vossa assinatura galáctica e onda encantada e até ver o aspecto tridimensional do tempo (num ecrã a duas dimensões, tal é a façanha...). Presumo que isto seja útil para quem tiver o campo magnético alinhado num estado vibracional superior. E com mais um euro já dá para uma bica.

*O Carlos Fiolhais também escreveu sobre isto no De Rerum Natura: Grandes Erros: Dia Fora do Tempo.

1- Casa Índigo, agenda
2- www.terezaguerra.com
3- Loja Índigo, Kryon - Livro I
4- Luz de Gaia, Quem é Kryon?
5- Casa Índigo, Marta Modas

sexta-feira, julho 25, 2008

Legal.

Chamam-se SPECS, da empresa Speed Check Services Limited, e são câmaras de vídeo que identificam automaticamente matrículas (1). Colocadas em vários pontos das estradas, enviam esta informação a um servidor central que calcula a velocidade média do veículos que passam por dois pontos de vigilância. Se a velocidade média ultrapassar o limite estipulado a multa segue automaticamente.

É uma boa ideia multar quem conduz depressa demais. O problema é que nada obriga a eliminar estes dados depois de medir a velocidade. E toda a gente fica registada, seja infractor ou não. Este passageiro foi fotografado a mostrar o traseiro e a fotografia divulgada mesmo sem o condutor ter cometido qualquer infracção.

Este tipo de vigilância é cada vez mais comum e, por cá, teremos em breve carros da GNR equipados com reconhecimento automático de matrículas. A notícia diz apenas que «De cada vez que o sistema lê uma matrícula, inicia-se automaticamente uma pesquisa na ou nas bases de dados o que, como é fácil imaginar, acontece em milésimos de segundo.»(2) Não menciona o que acontece com a informação da hora, local e matrícula depois da pesquisa. Mas podemos assumir que, a menos que venha uma lei obrigar a apagá-la vai ser tudo guardado indefinidamente. É o que todos fazem.

Os mais optimistas confiam no sistema judicial para proteger esta informação e evitar abusos. E só confiaria se o sistema fosse muito melhor que o nosso. Com o que temos ficava mais descansado se dessem o equipamento de identificação aos criminosos. Eles vão acabar por ter acesso às bases de dados de qualquer maneira, que assim sempre ficavam fora das mãos da nossa justiça. Um exemplo recente: Bernardo Macambira, segundo a noticia um «Conhecido relações públicas»(3), foi preso porque usou um CD copiado na sua discoteca. Foi julgado à revelia e sentenciado a quatro meses de prisão substituíveis por multa. Como toda a documentação foi enviada para uma morada antiga, quando soube da situação já era tarde demais para se defender e até para pagar a multa. Agora vai preso quatro meses por causa de um CD. Mostra como a justiça é severa*, ajuda a indústria a cativar clientes (literalmente) e incentiva a criatividade. Milhares de artistas vão agora sentir-se mais inspirados para compor graças a esta decisão do tribunal.

E, por falar do assunto, termino com mais dois exemplos de incentivos legais à criatividade. A Comissão Europeia estendeu de 50 para 95 anos o período de “protecção” dos discos (3). Podemos pensar que isto só serve para as discográficas ganharem mais dinheiro mas a justificação oficial é o tal incentivo. Assim qualquer músico que tenha um êxito aos 25 anos já sabe que tem só até fazer 120 para compor outra música senão acaba-se a mama. Outra justificação é que ser artista exige muitos sacrifícios da família, ao contrário das outras profissões todas (para ser artista é preciso ter mais ego que talento, e isso nem sempre é difícil).

Finalmente, a patente concedida em 2005 à empresa Channel Intelligence, por um «Método para configurar uma base de dados para armazenar uma pluralidade de listas contendo informação acerca de uma pluralidade de itens»(4). Proprietários desta arrojada e inovadora invenção, estão agora a proteger o seu investimento processando mais de uma dúzia de pequenas empresas que permitem aos clientes criar listas do que gostariam comprar (5). Só processam as pequenas, é claro. Empresas como a Amazon e a Ebay têm as mesmas listas mas essas têm advogados caros, e esta patente é idiota demais até para um julgamento. Por isso ameaçam só quem prefere pagar o acordo que pagar advogados.

É uma questão de semântica. Uns dizem “propriedade intelectual” e outros “incentivo à criatividade”, mas o que querem todos dizer é “extorsão legalizada”.

SPECS via Schneier on Security, e obrigado ao Leprechaun pela notícia do desgraçado do CD.

* Nem sempre a justiça é tão severa. Um amigo meu foi agredido à porta de um bar por um tipo que lhe bateu e lhe roubou uns trocos do bolso. Fez queixa à polícia e foi chamado uns anos mais tarde a depor em tribunal. O julgamento era só pelo furto porque a agressão tinha prescrito. E o acusado foi ilibado porque a intenção dele era bater e não roubar. Mas agora o meu amigo pode dormir descansado porque há menos um tipo à solta a copiar CDs.»

1- Wikipedia, SPECS
2- Económico.com, Veículos da BT vão ter sistema de identificação de matrículas
3- Miguel Caetano, Remixtures, Comissão Europeia decidida a apoiar os artistas para além da morte
4- Google Patent Search, «Method and apparatus for creation and maintenance of database»
5- Tech Crunch, Channel Intelligence Sues Just About Everyone Who Offers Wishlists

quinta-feira, julho 24, 2008

Prova irrefutável.

Esqueçam os desenhos de dinossauros que os criacionistas usam para provar que a Terra tem menos de dez mil anos de idade, como estas gravuras do século XV.

Dinos

Agora temos provas irrefutáveis que a Terra afinal foi criada em 1956. Os auto-intitulados “peritos” alegam que esta figura tem cerca de dois mil anos de idade e que fazia parte da decoração de um caixão “Romano”. Esta é uma de muitas "civilizações" que inventaram para defender a premissa naturalista de uma Terra mais antiga que o Rock ‘n’ Roll. Um absurdo. Que propósito serviria criar isto tudo sem Rock ‘n’ Roll? E não disse o Rei claramente, no lado B de Heartbreak Hotel: «I was the One»?

As provas estão aqui. Só não vê quem não quiser. Devemos aceitar o Rei no nosso coração, abraçar o Rock ‘n’ Roll e redimir a Humanidade do pecado do Disco e das abominações que se seguiram.


O Rei

Está aqui um relato naturalista e ateu desta magnífica descoberta.

quarta-feira, julho 23, 2008

Bom e barato, V

Com estes vídeos podem perder quase duas horas, mas se tiverem em conta o que costuma dar na televisão penso que este investimento é melhor.

O primeiro é uma palestra da Jane Goodall na Universidade de San Diego, Reason for Hope. O tema é mais biográfico e pessoal que científico, mas esta mulher tem uma personalidade e uma vida tão interessantes como o seu trabalho (via Conta Natura).

O segundo é a palestra do Torsten Reil no TED Talks, Using biology to make better animation. A palestra é de 2003, por isso se quiserem ver como esta tecnologia está agora o melhor é ir ao site da Naturalmotion, ver o o vídeo do sistema Euphoria ou descarregar gratuitamente o Endorphin 2.7.1, uma aplicação para simular movimentos e comportamentos.

Eles usaram algoritmos evolutivos para treinar as redes neuronais que controlam estes comportamentos. Os criacionistas costumam apontar como os engenheiros se inspiram nas maravilhas da natureza mas esquecem que os engenheiros também se inspiram no processo que criou essas maravilhas. A evolução.

segunda-feira, julho 21, 2008

Vou estar

no 6º Encontro Nacional de Professores de Filosofia, em Évora, no dia 5 de Setembro, às 11:30 para falar sobre pensamento crítico. A participação no encontro custa 30€, 15€ para estudantes da Universidade de Évora.

Cartaz ENPF

E no dia 18 de Outubro vou estar novamente em Braga, na Jornada Fé e Ciência, onde vou falar sobre «A hipótese de Deus perante a ciência». A entrada é livre.

Jornada Fe Ciencia

domingo, julho 20, 2008

Treta da Semana: outra vez o propósito...

É comum entre religiosos defender que tudo foi criado de propósito excepto um certo deus, apesar de discordarem, por vezes com demasiado zelo, acerca de qual deus é a excepção. Já discutimos aqui vários aspectos desta hipótese. O porquê de ser tão popular (1), inferior às alternativas (2) e ineficaz como explicação para as características dos seres vivos (3). Só faltava discutir porque é que é treta. O Senhor Arquitecto Anónimo Pereira (SAAP) deu o mote notando alguns aspectos importantes desta hipótese (4).

Segundo o SAAP, falta «prova científica» de não termos sido criados para um propósito. Não é claro o que entende por «prova científica», mas não deve ser aquilo que os cientistas procuram (5). E enquanto a falta de «prova científica» é um defeito nas outras hipóteses, aparentemente é virtude na sua. Um post não chega para tanta treta, por isso tenho que me restringir a esta parte da discussão:

«A minha "crendice", como lhe chama, é a Verdade. Pura, simples e perfeita. Por isso resiste a todos os modelos científicos. Sem Deus os seus modelos científicos nunca existiriam, Doutor. Porque foi Deus que fez a ciência e permite ao senhor Doutor efectuar as suas pesquisas e modelos.» (4)

É difícil distinguir os comentadores anónimos interessados mas coibidos por pressões familiares ou profissionais daqueles que defendem desonestamente uma posição que percebem ser ridícula ou que só querem chatear. Os internautas recomendam não alimentar estes últimos, os trolls, mas eu penso que vale a pena se esclarecer algo relevante. E a premissa que deuses e seus propósitos são questões fora da ciência que compete à fé responder é suficientemente comum para não me ralar com o que motiva o SAAP.

Podemos perguntar se uma lasca de sílex é artifício propositado ou se é fruto de um processo natural. Arqueólogos e paleontólogos lidam regularmente com estas questões, e a ciência permite-lhes inferir propósito em alguns casos. Mas é verdade que, formuladas desta maneira, estas hipóteses não são científicas. É preciso detalhar os processos naturais, propósitos e métodos de fabrico que possam ter criado a lasca para poder comparar as hipóteses, confrontá-las com o que observamos e avaliar o mérito relativo de cada uma. E assim já são científicas. Mas se for para dizer que a lasca foi criada para um propósito insondável e por um método misterioso mais vale dizer «não sei». Adianta-se o mesmo poupa-se a má figura.

Tenho insistido, insisto, e voltarei a insistir. As hipóteses saem do âmbito da ciência apenas se não é possível determinar a sua verdade. Por serem mera consequência da definição dos termos (mafaguinhos, ver 5), por serem demasiado vagas (Deus é Amor) ou por permitirem tudo. O SAAP dá um exemplo: «Eu acredito na teoria da evolução. Se o Deus em que acredito é omnipotente, então tenho de olhar para a Natureza e pensar que se todas as coisas foram criadas desse modo então foi porque Deus assim o quis.»

Se eu sou omnipotente então tudo o que acontece é porque eu quero. Se a mosca que está aqui a voar é omnipotente então tudo o que acontece é porque ela quer. Há infinitas hipóteses que não podemos testar porque não dizem nada relevante. São indiferentes à realidade, nenhuma é científica e são todas disparate. Para disfarçar propõem a fé como “teste” da hipótese, mas a fé não tem nada a ver com a verdade da hipótese: «Depois de uns anos com uma vida de total devoção a Deus - sabe que isto dos testes são coisas muito demoradas - volte aqui para conversarmos e indique-me as suas conclusões.»(4)

Podemos também sugerir ao SAAP uns anos de devoção total à mosca até acreditar que a mosca é omnipotente. Um teste perfeitamente inútil porque, qualquer que seja o resultado, não indica nada acerca da omnipotência da mosca.

O SAAP propõe que a sua hipótese está fora do âmbito da ciência e deve ser testada pela fé. A treta é que a hipótese está fora da ciência apenas por não ter ponta por onde se pegue e o teste só testa a credulidade humana, não a hipótese.

Editado: por excesso de zelo na revisão apaguei uma virtude que não devia. Obrigado ao João Vasco pelo aviso.

1- Conspiração, religião, e intenção.
2- Evolução: Como se fosse de propósito
3- Miscelânea Criacionista: O Propósito.
4- O custo da propriedade intelectual, (os comentários não estão relacionados com o post).
5- Provado cientificamente

sexta-feira, julho 18, 2008

O Diabo.

Quando se fala de religião é costume falar de Deus. Se existe, se não existe, se é real ou imaginário, se criou o Homem ou vice-versa. Mas este é o meu 666º post. Parece-me mais adequado dedicá-lo ao Seu alter ego.

Tal como com o jovem Clark Kent em Smallville, no princípio era só Ele. Os relatos mais antigos na Bíblia mostram o mal como sendo essencialmente desobedecer a Deus. O resto é tudo Ele. A serpente no Génesis foi mais tarde reinterpretada como Satã, mas no contexto original é mais razoável ver o episódio como uma adaptação do épico sumério de Gilgamesh, a quem o segredo da imortalidade também foi roubado por uma serpente espertalhona. E a serpente era tradicionalmente um símbolo dos aspectos temíveis e misteriosos da Natureza, não necessariamente do mal.

De resto no Êxodo podemos ver que foi Deus que deu a Moisés os poderes mágicos para impressionar o Faraó, foi Deus que mandou as pragas e também foi Deus que «endureceu o coração de Faraó»(Ex, 9:11) para que este não deixasse partir os Judeus. Nesta altura isto parecia justo. Afinal, era Deus, e Deus podia fazer o que bem Lhe apetecesse.

Mais reveladora ainda é a diferença entre os relatos de 2 Samuel e 1 Crónicas acerca do recenseamento que David mandou fazer. Os recenseamentos eram sempre mal vistos. Inevitavelmente, visavam a cobrança de impostos, o recrutamento militar ou ambos. Ninguém gostava quando os reis mandavam fazer um. 2 Samuel foi escrito antes do exílio dos Judeus na Babilónia, e relata que «A ira do Senhor tornou a acender-se contra Israel, e o Senhor incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, numera a Israel e a Judá.» (2 Sam 24:1).

O contacto com a cultura Persa deu aos Judeus uma visão mais zoroástrica do conflito entre o bem e o mal como a luta constante de duas forças opostas. Esta foi muito mais popular em todos os géneros de ficção, dentro ou fora da religião, e influenciou os autores das Crónicas, escritas após o exílio: «Então Satanás se levantou contra Israel, e incitou Davi a numerar Israel» (1 Cró 21:1). Qual cabine telefónica, este encontro cultural transformou Jeová, que nunca foi propriamente mild mannered, num verdadeiro badass. A partir de agora era a sério.

Durante a idade média muitos e doutos teólogos tentaram perceber quem seria Satanás, porque se teria virado contra Deus e como eram as hierarquias de querubins, serafins e outros perlimpimpins. A Enciclopédia Católica tem um artigo interessante sobre o assunto. Entretém, e dá uma ideia do tempo que se perdeu com este disparate (1).

Mas os tempos mudaram. Hoje em dia os católicos mais esclarecidos vêem o Diabo como uma metáfora para as falhas humanas ou um símbolo para o incompreensível, o absurdo, aquilo que está totalmente fora da razão. Curiosamente parecido com Deus em muitos aspectos. Um regresso às origens, de certa forma.

A história do Diabo dá-me esperança. No princípio não se distinguia de Deus. O bem e o mal eram o mesmo, o que importava era saber quem mandava. Mais tarde alguém desconfiou que isso não estava certo e separaram as personificações. O muito bom de um lado, o bicho papão do outro, mas nós ainda cá em baixo acagaçados. Com o evoluir das ideias deu-se mais um passo. O mal afinal é um conceito, uma falha, um símbolo. Não é um ser com existência autónoma. Não é um tipo encarnado de cornos e barbas com quem se possa ter uma relação pessoal, pedir coisas e prometer outras em troca.

A esperança é que dêem o próximo passo neste raciocínio e vejam que Deus está na mesma categoria. É uma ideia, um símbolo, uma marca do limite das nossas capacidades. Nada mais. Se compreendem que o Super-Homem não existe deve ser fácil perceber que o Clark Kent também é fantasia.

Editado para corrigir uma gralha e alterar as tags. Obrigado ao António e à Granada pelas sugestões.

1- Catholic Encyclopedia, Devil

quinta-feira, julho 17, 2008

Deus vai vos...

... bem, é melhor ouvir a canção...

Confiar no sistema.

Várias pessoas têm discordado de mim em questões como a censura de injúrias, o copyright e a retenção de dados pessoais por parte de empresas. O que é bom porque obriga a repensar as coisas e torna os problemas mais claros. E o problema comum a estes casos parece-me ser o excesso de confiança no sistema e nas pessoas.

Um dos riscos de ceder poder a um sistema é que o sistema é controlado por pessoas falíveis, nem sempre fiáveis e muitas vezes com objectivos diferentes daqueles de quem nelas confia. A rede FiberWAN é um sistema informático de milhões de dólares que gere os pagamentos a funcionários públicos, registos de investigações policiais e comunicações electrónicas oficiais na cidade de São Francisco. Um técnico, por receber uma avaliação negativa, instalou programas para permitir a intercepção de mensagens por alguém que esteja fora da rede e alterou as passwords de administração (1). Sujeita-se a até sete anos de prisão mas se não der as passwords vai ser muito dispendioso recuperar o sistema. E não se sabe o que acontece entretanto à informação confidencial lá guardada.

Não proponho que se processe pagamentos e registos policiais à mão, ou que se abandone ambos por completo, porque há casos em que vale a pena correr o risco. Mas o risco de ter pessoas a gerir qualquer sistema tem que ser contabilizado nos custos. E quando se trata de pôr o juiz a decidir o que é ou não é ofensivo ou de guardar dados pessoais para se por ventura alguém for criminoso o risco ultrapassa os benefícios.

Outro problema é confiar no sistema. Até se apregoa muitas vezes a confiança na justiça, na polícia, nos legisladores e afins. É um erro, e é fugir à nossa responsabilidade. Numa democracia nós não temos apenas o direito de votar. Temos o dever de fiscalizar estes sistemas. A semana passada houve tiroteios e motins na Apelação. O artigo 302º do Código Penal pune com até um ano de prisão quem participar em «motim durante o qual forem cometidas colectivamente violências contra pessoas ou contra a propriedade». O artigo 303º agrava a pena a até dois anos se houver pessoas armadas no motim. O artigo 339º pune com até dois anos de prisão a fraude em eleição, quer pelo voto múltiplo quer pela falsificação dos resultados. Faz sentido que ofensas graves à ordem pública e ameaças ao sistema democrático sejam punidas com severidade.

O artigo 197º do código de direitos de autor pune com até três anos de prisão a distribuição não autorizada de uma obra protegida, ou até seis anos de prisão no caso de reincidência. A maioria dos que defendem que partilhar músicas seja crime foge à responsabilidade de fiscalizar este sistema. Matar de forma premeditada dá até vinte anos de cadeia; detonar explosivos pondo em perigo a vida de outros dá até dez; dois por falsificar eleições e um a quem se juntar com umas dezenas de amigos para bater em pessoas e partir coisas. Neste contexto partilhar ficheiros mp3 nem devia ser crime. Devia ser uma questão para tribunais civis. E estar entre a fraude eleitoral e o ataque terrorista demonstra a nossa irresponsabilidade enquanto cidadãos, porque me parece que o acordo tácito de muitos com este estado de coisas é mais fruto da ignorância da lei do que de um juízo ponderado em favor deste sistema.

Qualquer sistema, seja legislação, bases de dados ou o que for, tem como desvantagem dar a alguém o poder de o gerir. E o nosso papel numa democracia não é confiar nos sistemas mas desconfiar deles. Os custódios dos custódios somos nós, com a responsabilidade última por aquilo que a nossa sociedade for. Pelo bom e pelo mau.

Por isso proponho que não se defenda estas coisas sem considerar duas questões. Se vale a pena pôr esse poder nas mãos de alguém e se estamos a avaliar com diligência aquilo que defendemos. E nunca defender um sistema por confiar nele. Defendê-lo só apesar de desconfiar dele.

1- InfoWorld, Report: IT admin locks up San Francisco's network

quarta-feira, julho 16, 2008

terça-feira, julho 15, 2008

O custo da propriedade intelectual.

A semana passada, em conversa com uns colegas de bioinformática, alguém notou que a biotecnologia tem avançado muito menos que a informática. Há anos que parece prestes a rebentar mas continua empurrada lentamente por um punhado de grandes empresas em vez de despoletar novas aplicações, postos de trabalho e pequenas empresas como acontece na informática. Eu disse que uma das principais causas é o sistema de patentes.

As patentes começam a ser uma pedra no sapato da informática mas a biotecnologia está atolada em licenças e litígios, não só entre companhias mas também com os próprios clientes. Sementes e CDs têm mais em comum do que se julga (1). Por isso, para inovar em biotecnologia é preciso contratar um batalhão de advogados ainda antes de montar o laboratório. É preciso consultar milhares de patentes, processar os outros, lutar contra os processos dos outros e patentear cada espirrinho não vá outro patenteá-lo antes. Foi isto que levou a Microsoft a uma política agressiva de patentes a partir de 1990, já depois de terem desenvolvido os seus produtos principais (2), e a maioria das patentes em qualquer área já não é um incentivo à inovação mas uma arma legal. Só que a biotecnologia está no extremo. Ao conceder patentes até por sequenciar fragmentos de ADN reduziu-se a biotecnologia a cobrar licenças e marcar território. Os grandes avanços do sector público, onde a informação circula livremente, contrastam com o pântano legal do sector privado.

O problema não está nas patentes ou naquilo a que se chama propriedade intelectual. O problema é confundi-las com propriedade. Uma patente pode beneficiar a sociedade e o inventor ao incentivar o esforço e a divulgação da invenção, mas a forma correcta de a ver é como parte de uma transacção que se quer benéfica para a sociedade e para o criador. A marca registada é um exemplo deste benefício mútuo. A associação exclusiva da marca ao vendedor beneficia o vendedor, que controla a imagem do que vende, e beneficia o comprador que assim sabe a origem do que compra. A investigação farmacêutica é outro exemplo. Ninguém financia anos de testes exaustivos sem ser compensado e não é desejável que o resultado seja secreto. É claramente benéfico para todos que a sociedade ofereça uma contrapartida pelo esforço e pela divulgação dos resultados, desde que a transação compense.

No outro extremo temos patentes como a one click, concedida à Amazon (3) por permitir compras online sem obrigar o cliente a introduzir o número do cartão de crédito a cada compra. É mau negócio dar direitos exclusivos sobre um processo sem custos de desenvolvimento nem nada que seja secreto. Estas patentes servem apenas para dificultar a concorrência. Três semanas depois de ter a patente, e antecipando as compras de Natal, a Amazon processou a Barnes and Noble obrigando-a a retirar o seu serviço «Express Lane» de vendas online.

Este problema abrange toda a propriedade intelectual. Das patentes de software à partilha de ficheiros, é raro o privilégio da exclusividade coincidir com um benefício adequado para a sociedade que o concede. Pela influência de quem detêm estes privilégios, a lei encara a exclusividade como um direito em vez de uma contrapartida a dar só em troca de um valor equivalente.

Não nos podemos deixar enganar pela retórica dos direitos de propriedade. Os direitos de propriedade são consequência da exclusividade inerente ao uso de bens materiais. Se eu como uma batata mais ninguém pode comer essa batata. É pelo uso ser necessariamente exclusivo que precisamos de direitos de propriedade. O dono da batata é que decide quem a come. A propriedade intelectual é o contrário. Parte de coisas que podem ser usadas por todos sem prejuízo de ninguém, como músicas ou ideias, e torna o seu uso exclusivo por mera disposição legal. Neste caso devemos questionar se interessa impor essa restrição. Se todos pudessem comer a mesma batata não haveria vantagem em proibi-lo.

Temos também que compreender os custos de conceder estes privilégios. Os direitos que cedemos, as oportunidades perdidas ao vedar o acesso a uma obra ou proibir que outros a melhorem, os custos inevitáveis dos monopólios e o que pagamos em impostos para que polícia e tribunais se preocupem com estas coisas em vez da nossa segurança.

E quando os nossos representantes querem ceder a alguns o nosso acesso à informação, a nossa liberdade de agir e criar e o dinheiro dos nossos impostos, temos que exigir o façam só em troca de algo que valha a pena.

1- CNN Money, 10-7-08, Monsanto patent fight ensnares Missouri farm town
2- Ars Technica, Tim. B. Lee, Analysis: Microsoft's software patent flip-flop
3- Universidade de Stanford, projecto para a disciplina de Computers, Ethics, and Social Responsibility, 1999-2000, Amazon One-Click Shopping

quarta-feira, julho 09, 2008

Treta da Semana: A falta de Olíbano.

A propósito da treta da semana passada, o leitor (leitora?) JATA sugeriu que não era útil criticar o milagre do beato Nuno Álvares Pereira (1). Como este blog é um serviço de utilidade pública sinto-me obrigado a redimir essa falha focando um problema grave que urge resolver. A falta de olíbano, nomeadamente do «verdadeiro Olíbano Somalês»(2). Porque «O Olíbano é o ingrediente central da amarração, é a oferenda que atrairá as entidades e as fará agir da maneira que queremos. Sem ele, elas simplesmente não vão fazer o que queremos, pois não terão razões nem incentivos para isso.»(2)

A amarração «é uma conjura de poderes para persuadir um homem ou uma mulher a desejar a pessoa que faz o feitiço»(3). Escreve-se num papel o nome do visado, faz-se um círculo de sal no chão, junta-se uma fotografia e duas velas negras, queima-se o imprescindível olíbano e profere-se este encantamento intrigante:

«Eu vos conjuro novamente, por todos os nomes secretos de Tetragrammaton, para que envies os teus poderes para oprimir, torturar e assediar o corpo, mente e alma de [nome da pessoa desejada aqui], ele(ela) cujo nome aqui esta escrito, (segure o papel) para que ele(ela) venha até mim e concorde de livre vontade com os meus desejos, nunca mais gostando ou amando alguém no mundo que não eu, enquanto eu assim o desejar.”»(3)

Parece contraditória esta noção de «oprimir, torturar e assediar o corpo, mente e alma» até que a pessoa «concorde de livre vontade». Mas o Bom Feiticeiro diz que se for «bem-feita, nunca falha», e eu tenho tanto respeito pela sua magia como tenho por qualquer outra “ciência oculta”, seja a astrologia, o pai-nosso ou a previsão do futuro na borra de café. São tudo formas legítimas de contactar a dimensão espiritual, também conhecida como terra do nunca nunca.

Mais a sério, a questão da utilidade de criticar estas coisas é interessante. É certo que o faço mais por gozo que por utilitarismo, mas penso que também é útil. Não por criticar o milagre do salpico ou a amarração em particular – se não fosse isto podia ser outra coisa qualquer – mas pela atitude crítica em si. Essa julgo que é sempre útil mesmo nas coisas mais triviais.

Por um lado porque estas coisas são triviais e inofensivas apenas se não as levarmos a sério. Milagres, magias e essas tretas têm uma grande influência na vida de quem acredita nelas e uma atitude crítica pode poupar muita chatice. E, por outro lado, é útil para não julgar estas coisas apenas pela primeira impressão ou sem impressão nenhuma. Quer a rejeição gratuita quer o politicamente correcto “respeito pela crença dos outros” desprezam a questão que a atitude crítica nos força a considerar: será que isto é verdade?

No caso da amarração e do olíbano não é preciso pensar muito. Não há vestígio dessas entidades que pretendem conjurar. E mesmo que existissem espíritos com a inteligência para identificar a pessoa visada e perceber o encantamento, e com o poder de a fazer amar alguém, o mais certo era desmancharem-se a rir do pateta que espalha sal no chão e lhes dá ordens enquanto queima olíbano. Mas até nestes casos de disparate óbvio parece-me que é útil perder alguns segundos a perguntar porque é que o consideramos um disparate.

E se isto não vos convence, deixo aqui alguns dos comentários ao post da amarração (3):

« Estou a confiar muito nesta amarração tendo em conta que já gastei milhares de Euros e o meu problema ainda não foi resolvido.»

« A foto pode ser substituida por outra coisa? Como um fio de cabelo,ou o esperma dele?»

« Bom Feiticeiro, o Sre. tem outro feitiço para ensinar, porque eu sou candidata a Vereadora e quero ganhar a Eleição e a Eleição é esse ano em Outubro.»

«FIZ TUDO COM MUITO AFINCO E INFELIZMENTE ONTEM VI O MEU AMOR RINDO E BRINCANDO MUITO COM OUTRAS MULHERES EM SALAS DE BATE PAPO, ENTÃO ISSO SIGNIFICA QUE NÃO DEU
CERTO? ME RESPONDA POR FAVOR, SE PREFERIR PODE ME RESPONDER POR E-MAIL, POIS HJ ESTOU PROFUNDAMENTE DEPRIMIDA E CHORANDO PELO QUE VI ONTEM.»


Obrigado ao leitor Quetretófilo pela sugestão do tema.

1- Treta da Semana: A crise chega aos milagres.
2- Bom Feiticeiro, Erro Número 1: Falta de Olíbano.
3- Bom Feiticeiro, Amarração explicada incluindo as dúvidas dos leitores.

segunda-feira, julho 07, 2008

Simetria.

Até recentemente a tecnologia permitiu duas formas de comunicar. Uma forma assimétrica, com jornais, discos, cinema, radio e televisão, em que uns poucos controlam como o conteúdo chega a muitos. E uma forma simétrica, por carta, telegrama ou telefone, entre indivíduos ou grupos pequenos em igualdade de circunstâncias. A lei lida de forma diferente com estas relações em grande parte para mitigar as assimetrias. Entre médico e paciente, patrão e empregado ou pais e filhos a lei obriga uma das partes a zelar pelos interesses da outra, obrigação desnecessária em relações simétricas.

A Internet baralha porque é enorme mas simétrica. Habituados à assimetria que as limitações tecnológicas impunham à comunicação em massa muitos vêem a Internet como jornais ou televisão. Mas a Internet é como o correio. O vosso computador envia uma carta de bits a ao computador do Blogger e recebe outra simulando o texto deste post (1). Na Internet as cartas podem ser copiadas para muitos destinatários mas é como o correio porque todos participam em igualdade de circunstâncias.

Se me insultam num programa de televisão eu estou em desvantagem porque são outros que decidem o que passa na TV. Assim é razoável haver leis e códigos de conduta que me protejam e reduzam a assimetria desta relação. Mas se me insultam na rua ou num blog usam meios aos quais eu tenho o mesmo acesso. Aí a lei só deve intervir em casos extremos de ameaças ou violência e não movimentar polícia e juizes sempre que eu amuo.

O mesmo se passa na extensão do copyright ao conteúdo digital. No fabrico de discos e livros há relações assimétricas entre quem investe em fábricas, quem assina contratos cedendo os direitos de autor e quem compra as cópias. Aqui é razoável que a lei equilibre melhor estas relações. No entanto, mesmo antes da Internet era óbvio que não o fazia de forma adequada. O problema de depender da lei é que também a lei é feita por alguns. E agora que todos têm acesso igual aos meios de distribuição e o criador pode negociar directamente com o seu público esta legislação é desnecessária; um empecilho injusto à inovação e ao acesso à cultura.

Mas esta facilidade de cópia, transmissão e armazenamento de dados também pode dar demasiado poder a quem controla a infra-estrutura. Companhias de telefone, prestadores de serviços de acesso e outros podem acumular muita informação acerca de todos nós. A Google, por exemplo, tem 12 Terabytes de registos de acesso ao YouTube. Cada vídeo que vocês vejam eles registam o quê, quando, e o endereço do vosso computador.

Há quem julgue que isto não faz mal porque a lei impede “abusos”, mas tal ingenuidade esquece que a lei é o que os tribunais decidirem. Agora um decidiu que a Google tem que ceder estes dados à Viacom (2). Não se sabe que uso a Viacom lhes dará mas não deve ser no nosso interesse. E isto não é o mesmo que contar os visitantes do blog ou guardar um registo de quem nos telefona. A notícia do Destak diz que esta informação é «o suficiente para preencher as páginas de doze mil livros»(3) mas enganaram-se. Isto são doze milhões de livros com um milhão de caracteres cada um. Esta quantidade de informação acerca dos vídeos que vemos cria uma assimetria perigosa e injustificável. É este tipo de coisas que a lei devia evitar, não impedindo o que este ou aquele juiz considere abusivo mas impedindo a recolha destes dados.

Infelizmente, a má compreensão da tecnologia, os lobbies, a política de medo e (falsa) segurança e a falta de atenção dos cidadãos tem movido a lei no sentido inverso. No sentido de restringir o acesso e a comunicação entre indivíduos (e.g. 4, 5, 6, 7)* e impor a recolha de dados pessoais por parte das grandes empresas (8). Temos um sistema de correio instantâneo e praticamente gratuito. Podemos usá-lo para comunicar com quem quisermos, exprimir ideias e opiniões, partilhar cultura e arte, colaborar na inovação e participar na gestão democrática da nossa sociedade. É isto que vamos perder se deixamos os políticos ir atrás do dinheiro de um punhado de “gestores de direitos”.

*Obrigado aos leitores que me enviaram algumas destas notícias por email

1- Encontrei esta ideia dos bits como simulação de conteúdos no The Future of Copyright, do Rasmus Fleisher. Recomendo o artigo, e o Miguel Caetano tem aqui uma tradução para Português.
2- BBC, Google must divulge YouTube log
3- Destak, Viu o que não devia no YouTube?
4- Pedro Doria, A lei do senador Azeredo e o que ela faz da Internet
5- ZeroPaid, ISPs to Ban P2P with New European Telecom Package?
6- ZeroPaid, Dutch Court Rules BitTorrent Tracker Site Hosting Illegal
7- EDRI, Control on Internet users pushed with the new telecom package
8- Wikipedia, Data Retention

domingo, julho 06, 2008

Treta da Semana: A crise chega aos milagres.

As coisas já não são como no tempo de Nuno Álvares Pereira, quando o barril de petróleo nem um cêntimo valia e ninguém se queixava do preço da electricidade. Hoje vivemos uma crise que afecta tudo e todos. Beatificado em 1918 pela piedade com que fustigou nuestros hermanos, Dom Nuno passou quase um século a interceder junto ao Altíssimo para que Este concedesse um milagre, requisito sine qua non para que a Igreja Católica admita um beato ao restrito clube de setecentos santos de reconhecida eficácia intercessora.

Maria teve um filho ainda virgem e fez bailar o Sol no céu. Fernando, mais conhecido por António, deu uma lição no seu mosteiro ao mesmo tempo que pregava na igreja de São Pedro em Limoges e convenceu um burro e centenas de peixes a adorar Deus. Ao Nuno, coitado, calhou-lhe um milagre em tempo de crise. A Sra. Dona Guilhermina de Jesus, uma sexagenária de Vila Franca de Xira, estava a fritar peixe quando um salpico de óleo lhe caiu no olho esquerdo. «O olho deveria ficar tapado de forma a não ser sujeito à luminosidade do sol e a senhora era obrigada a tomar medicamentos diários na tentativa de debelar a queimadura. “Mas mesmo com esses tratamentos não havia garantia de cura e a solução poderia ser um transplante de córnea”, explicou à Agência LUSA o Pe. Francisco Rodrigues»(1).

Sem garantia de cura, de olho tapado e medicada, a Sra. Dona Guilhermina recorreu à única hipótese que restava. O único que a poderia curar. O beato Nuno Álvares Pereira, comandante do exército Português, vitorioso de Aljubarrota e flagelo dos castelhanos. «Depois de várias novenas»(1), e passados três meses, começou a ver novamente do olho que o peixe tão traiçoeiramente, qual invasor espanhol, lhe havia salpicado. Esta cura «foi analisada por uma equipa de cinco médicos e teólogos em Roma, que a consideraram miraculosa.» Só podia ser. Nunca, sem garantias de cura, podia a medicação e tratamentos ter reparado os danos causados por um salpico de óleo.

E por aqui também se vê a excelência destes médicos e teólogos. Dominam não só tudo o que a ciência sabe acerca da fisiologia ocular como também tudo o que a ciência algum dia poderá saber. É este conhecimento total sobre a ciência de hoje e do futuro que lhes permite identificar o carácter milagroso da cura do salpico, cientificamente inexplicável.

Graças a este trabalho, o processo de canonização irá avançar e em breve teremos mais um intercessor a quem pedir ajustes ao Plano Divino. Deus é omnisciente e todo-poderoso, o universo segue um plano traçado desde a Criação e tudo foi criado com um Propósito que é por nós insondável. Mas se alguém se magoa, tem um exame importante ou perde as chaves do carro não custa nada pedir um jeitinho. E tanto melhor se conhecermos alguém bem colocado lá dentro. Todos sabem que é assim que as coisas funcionam. É a diferença entre esperar três meses que a papelada fique pronta ou ser amigo da secretária do director.

1- Ecclesia, Beato Nuno Álvares Pereira
2- Ecclesia, Papa reconhece milagre do Beato Nuno de Santa Maria

sábado, julho 05, 2008

Bom e barato, IV.

A propósito da providência cautelar que mandou fechar o Povoaonline (1), recomendo o HTTracker, um programa gratuito para fazer cópias locais de sites na Web.

Para quem tem um blog no blogspot fica uma sugestão para as scan rules. Sem estas vão descarregar muita informação duplicada nos arquivos e ligações com pesquisas:

-*/*search*
-*/*archive*
-*.tmp
-*?showComment?*
+*.css
-*[vosso blog].blogspot.com/feeds*

Basta substituir [vosso blog] pelo nome do vosso blog e ficarão com uma cópia local de todos os posts e comentários. Infelizmente, muitas das ligações para os arquivos e posts são feitas dinamicamente, por isso se o blog for apagado será necessário criar um índice. E este arquivo é estático, não permitindo adicionar posts ou comentários. Mas sempre evita que algum disparate judicial ou percalço faça desaparecer tudo.

1- Imprensa da Póvoa, e também Póvoa Offline, macedo vieira é o nosso homem

quinta-feira, julho 03, 2008

Miscelânea Criacionista: a areia, o umbigo, e a infância de Adão.

Um argumento criacionista comum é que os seres vivos são tão complexos que não se podem ter formado gradualmente. Como um relógio ou um rádio, é preciso ter todos os componentes no sítio certo, coração, pulmões, fígado, tudo bem encaixado e coordenado senão morremos. Treta. Ao contrário do relógio, nós crescemos. Começámos numa célula que se dividiu em muitas que depois se diferenciaram. Gradualmente. O cérebro humano, que os criacionistas alegam ser a máquina mais complexa do universo*, começa como uma massa de neurónios imaturos e só com os anos é que vai adquirindo essa complexidade. Muitos anos, em alguns casos. No meu já lá vão 36 e, segundo a minha mulher, tenho menos juízo que os nossos filhos.

O desenvolvimento não é o mesmo que a evolução mas dá um exemplo imediato de como o complexo emerge naturalmente do simples. E estamos cá para ver gaivotas a surgirem cada uma de uma célula de gaivota. Os criacionistas dizem que isto não conta porque já lá está o ADN cheio de informação codificada. Mas o ADN é só uma molécula. É uma molécula grande e complexa mas muito mais simples que uma gaivota ou um cérebro humano. A informação no meu ADN cabe num CD; só em fotografias dos miúdos tenho dez vezes isso. E se a máquina mais complexa do universo surge naturalmente de uma molécula temos que aceitar a possibilidade dessa molécula ter uma origem mais humilde que o acto infinitamente inteligente de um deus todo poderoso. Então gaivotas dão gaivotas mas montanhas dão ratos?

Sermos o produto do nosso desenvolvimento originou importantes discussões teológicas acerca do umbigo de Adão** e a famosa hipótese onfálica de Philip Gosse (1). Segundo esta, Deus teria criado Adão com umbigo e os estratos geológicos com fósseis para dar a aparência que Adão tinha antepassados e a Terra era mais antiga. Uma versão extrema desta hipótese, o ultima-quinta-feirismo, defende que o universo foi criado instantaneamente na quinta feira passada, incluindo umbigos, fósseis e todas as memórias de tempos anteriores (2).

Os criacionistas não chegam a este extremo, até porque estão ocupados com outros, e muitos cristãos defendem que Adão não tinha umbigo. Mas isso não resolve o problema dos músculos, flora intestinal, anticorpos e inúmeras características que adquirimos pelo desenvolvimento. E Adão sabia andar e falar. No conto criacionista, Adão é um humano intelectualmente mutilado pois sabe coisas sem a experiência de as aprender. Ou então Deus enganou-o com memórias falsas da sua infância, de gatinhar e dizer as primeiras palavras.

Não é só o desenvolvimento de cada organismo que é histórico e gradual, com cada passo partindo do anterior. No outro lado da escala vemos o mesmo. A areia é composta, em grande parte, por fragmentos de conchas. Se Deus criou a Terra há seis mil anos só com rocha vulcânica não havia tempo para se formar a areia das praias e do fundo do mar nem as rochas sedimentares. Então a Terra já tinha areia com pedaços de conchas que nunca existiram e rochas sedimentares formadas pela compressão fictícia de areia que nunca o foi. O mesmo para os ecossistemas. Uma floresta não é só organismos vivos. Tem troncos a apodrecer, folhas mortas, húmus e uma data de restos essenciais ao funcionamento do sistema.

É claro que se admitimos milagres então vale tudo. Se no Paraíso os leões comiam brócolos também as árvores podiam crescer no basalto e a areia aparecer por magia. Ou o universo pode ter sido criado na quinta feira passada. Nada disto se pode provar ser falso. Mas o que importa é que, tal como o crescimento dos organismos, a formação das rochas e o desenvolvimento de ecossistemas, também a evolução das espécies mostra esta complexidade especial. A complexidade da árvore, da mente humana e da montanha, a complexidade que resulta de uma transformação gradual e cumulativa. Não é a complexidade artificial do relógio ou da caneca das Caldas.

* O universo dos criacionistas é só a Terra e os animais nem contam.
** E ainda dizem que a teologia não serve para nada...

Editado para trocar a fauna por flora no intestino do Adão. Obrigado Bruce.

1- Wikipedia, Omphalos
2- The Church of Last Thursday

quarta-feira, julho 02, 2008

Imprensa da Póvoa.

No passado dia 25 a Google apagou o blog Póvoa Online no seguimento de uma providência cautelar instaurada pelo presidente e o vice-presidente da câmara da Póvoa do Varzim. Os queixosos não gostaram dos bigodes nas fotos e dos posts alegando que arranjam empregos a familiares e amigos, entre outros negócios ilícitos. E no passado dia 26 estreou-se o blog Póvoa Offline, beneficiando entretanto de publicidade em jornais, na TV e noutros blogs.

Este caso caricato mostra que os autarcas não percebem bem como estas coisas funcionam. Além de chamar mais atenção para estas alegações, agora qualquer um pode ler na notificação do tribunal (1) precisamente aquilo que eles queriam retirar do acesso público. Além disso, apesar de não se saber se as alegações são verdadeiras, a decisão do tribunal só mencione o ataque à reputação, honra e bom nome dos queixosos e não a sua inocência.

O documento até refere o artigo 484º do código civil, um artigo estranho que pune mesmo quem diga a verdade: «Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados». E frisa que «pouco interessa [...] que o facto imputado seja verdadeiro ou falso desde que seja susceptível de, dadas as circunstâncias do caso, diminuir a confiança na capacidade e na vontade das pessoas para cumprir as suas obrigações». Em suma, acusam autarcas de serem corruptos e o tribunal censura porque, mesmo que seja verdade, a acusação é susceptível de diminuir a confiança nessas pessoas (acham?). Parece-me que é isto que mais lesa o crédito e o bom nome dos queixosos. E da justiça portuguesa.

Mas não é a Póvoa do Varzim que me interessa; se não fosse esta queixa eu não teria esta má impressão dos seus autarcas. E, como eu, provavelmente mais uma data de gente. É uma lição a reter para quem quiser usar a censura como arma de debate. O que me interessa aqui é a sentença, principalmente esta parte:

«São textos e imagens cuja publicação não se justifica pelo respeito de um qualquer outro direito, designadamente, do direito de informar ou do direito de crítica e que extravasam claramente o núcleo do direito de liberdade de expressão [...] Em suma, não se divisa em tais textos e imagens o exercício adequado e razoável do cumprimento da função pública de informar, não se vislumbrando qualquer preocupação cívica atendível com a divulgação dos mesmos.»

Dá vontade de dizer um palavrão, mas da maneira como isto vai é melhor conter-me. Compreende-se que haja restrições ao que se publica nos jornais ou na TV. São negócios e são meios de comunicação com uma grande assimetria entre comentadores e comentados. E compreende-se que um jornalista tenha responsabilidades profissionais no «cumprimento da função pública de informar».

Mas blogs não são jornais, bloggers não são jornalistas e isto não é um serviço público de informação. Um blog é onde um tipo qualquer escreve o que lhe vai na cabeça sem que seja no cumprimento seja do que for. É um simples exercício da liberdade de expressão. Infelizmente, em Portugal a lei dá pouco valor a isso. De 2000 até agora os atropelos dos tribunais portugueses a este direito fundamental já nos deram cinco condenações pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (2). Em parte porque quem paga as indemnizações são os contribuintes, e não os juizes nem os legisladores.

Mas o pior é a confusão entre os deveres do jornalista profissional que escreve uma notícia e os direitos do cidadão que exprime uma opinião. Um dos fundamentos apresentados na sentença é que a «maior parte do conteúdo do blogue [...] consiste na publicação de artigos de opinião sobre os requerentes». Isto seria de criticar num jornal, mas não num blog.

Vêem os blogs como jornais electrónicos baratos e aplicam a actos pessoais regras concebidas para regular actividades comerciais e profissionais. É um erro. Os blogs não são um jornal por fio; são um telefone com texto e imagens que muitos podem usar ao mesmo tempo. A lei, e a sociedade, têm que perceber que esta tecnologia é um meio de trocar informação, ideias e opiniões. É uma conversa global onde a liberdade de comunicar deve ter prioridade sobre pudores, melindres, queixinhas e negócios.

Obrigado ao comentador anónimo que me deu o link para a notícia.

1- Póvoa Offline, macedo vieira é o nosso homem
2, Blasfémias, Liberdade de expressão em Portugal

terça-feira, julho 01, 2008

O Carbono-14.

Agradeço esta sugestão da Joaninha porque é um bom exemplo para um post que tenho na calha. O carbono-14 (14C) é um isótopo radioactivo que se transforma espontaneamente em azoto. Em cerca de 5700 anos metade do 14C desaparece por este processo. Mas como o 14C é formado continuamente na atmosfera, em reacções nucleares desencadeadas pelos raios cósmicos, a qualquer momento cerca de um em cada milhão de milhões de átomos de carbono é 14C.

As plantas e algas incorporam-no na fotossíntese, os animais comem-no e, aproximadamente, qualquer ser vivo tem esta pequena fracção de 14C. Mas quando morre deixa de incorporar 14C e, como este decai espontaneamente, perde metade deste isótopo a cada 5730 anos. Isto permite datar a morte do organismo medindo a proporção de 14C para 12C, o isótopo estável e mais comum do carbono. Em teoria é simples.

Na prática é mais complicado. A proporção de 14C para 12C depende do ciclo de carbono. Em ambientes terrestres as plantas incorporam o carbono da atmosfera mas em ambientes marinhos o carbono dissolvido vem em parte da atmosfera e em parte da dissolução de carbonatos mais antigos. Em média, o carbono marinho é cerca de 400 mais “velho” que o terrestre (a contar de quando esteve exposto na atmosfera).

A quantidade de 14C criada na atmosfera também varia ligeiramente com as flutuações no campo magnético da Terra (que deflecte os raios cósmicos). Isto resulta em alguma ambiguidade na datação. Por exemplo, material orgânico de cerca de 1660 não pode ser distinguido de algum material do século XX porque têm a mesma proporção de 14C para 12C. Por outro lado, as bombas nucleares detonadas na atmosfera entre 1945-55 duplicaram a produção de 14C nesse período, permitindo uma datação bastante precisa do material dessa altura. Mas para material antigo o erro é relativamente pequeno. Com valores calibrados pode-se datar pelo 14C materiais com vinte mil anos com uma margem de erro de 15%.

Para calibrar a correspondência entre a proporção de 14C e a idade é preciso amostras com idades conhecidas, que se pode obter das árvores. No inverno a árvore cresce menos que no verão e, como a madeira nova cresce na zona interior à casca, criam-se os conhecidos anéis anuais de crescimento, alternando madeira clara e escura. O espaçamento dos anéis varia de ano para ano com a temperatura e pluviosidade, criando padrões comuns a todas as árvores da mesma região. Estes padrões podem ser sobrepostos em árvores com idades diferentes para seguir a história das árvores até há quase doze mil anos atrás. Outros processos, como a deposição anual de sedimentos ou microorganismos e o decaimento radioactivo de outros isótopos, permitem calibrar a datação por 14C até aos quarenta mil anos antes do presente (1).

Há quatro aspectos aqui que eu queria salientar agora e elaborar num próximo post. Primeiro, todas as hipóteses acerca do decaimento radioactivo, do ciclo do carbono e dos vários processos usados para datar as amostras, são hipóteses testáveis. Não se recorre a milagres ou mistérios. Segundo, estas hipóteses encaixam num sistema que permite resolver problemas e responder perguntas. Se um método dá erros pode-se recorrer a outros para o calibrar. Terceiro, dá-nos informação nova. Não é apenas uma história inventada para enquadrar o que observamos; é uma ferramenta para prever aquilo que ainda não observámos. Finalmente, não há explicação melhor para a coerência destes resultados.

Aqui aponto, mais uma vez, o contraste entre ciência e criacionismo. Os criacionistas não gostam dos métodos de datação porque não encaixam no seu universo com poucos milhares de anos. Por isso alegam que são todos falsos porque talvez o decaimento radioactivo tenha variado ou talvez tenha havido um milagre qualquer e seleccionam alguns casos onde os resultados não foram os esperados. Mas isto só lhes dá um conjunto desconexo de desculpas. Não serve para refutar uma rede interligada de hipóteses e observações que se encaixam tão bem umas nas outras.

Mais informação na Wikipedia e na Universidade de Utrecth.

1- Stein, Goldstein, Schramm, Radiocarbon calibration beyond the dendrochronology range