terça-feira, setembro 30, 2008

Como se Deus existisse...?

Há quem argumente que todos nós agimos como se um deus existisse, e é sempre o deus de quem o argumenta. Recentemente, o Mats escreveu um post, «Toda a Gente Age Como se Deus Existisse»(1), que seria uma bela sátira a este argumento não fosse a infelicidade de ser a sério.

Além de ficar pelo caminho, este argumento nem sequer aponta na direcção certa. Supostamente, o Mats quer mostrar que todos agimos como se o deus dele existisse. Mas o que ele alega é simplesmente que a moral, a lógica e a ciência devem as suas regularidades à criação divina. Mesmo que fosse verdade só demonstrava que tinha havido um deus qualquer. Nada disto sugere que tal deus tivesse criado o universo em sete dias, mandado escrever a bíblia, encarnado no seu filho e multiplicado pão e peixe. Mas nem a crença num deus genérico, de marca branca, o Mats consegue justificar.

«A ciência avança sob a presopusição [sic] de que existe uniformidade e inteligibilidade no mundo material. Mas se [...] o universo é o resultado de “acidentes” cósmicos, porque é que ele exibe evidências de racionalidade, inteligência e ordem, sem as quais a ciência não poderia existir?»

O Mats propõe que o universo é inteligível porque foi criado por um deus inteligente à medida da nossa compreensão. Comparando o tamanho do universo com o tamanho do meu cérebro a ideia parece-me ridícula. Mais razoável é que seja o contrário, que o meu cérebro compreende partes do universo porque foi moldado pela interacção dos meus antepassados com essas partes do universo. Por isso compreendemos quando os outros estão tristes ou contentes, a trajectória da pedra que atiramos e o passar de alguns anos. E por isso não conseguimos imaginar uma galáxia com cem milhões de estrelas, a passagem de dez mil milhões de anos ou a velocidade com que uma molécula de catalase decompõe seis milhões de moléculas de H2O2 por minuto. Não é o universo que é inteligível. É o nosso cérebro que está adaptado a compreender algumas partes, graças ao sacrifício involuntário daqueles que não chegaram a ser antepassados. As outras partes vamos descobrindo a custo e muitas vezes sem conseguirmos sequer imaginar aquilo que sabemos.

O mesmo para a lógica. «Se essas leis da lógica são intemporais, imateriais, abstractas e absolutas, donde vém [sic] a sua natureza absoluta?» Vem de a definirmos assim. Nós podíamos definir verdade como cerejas num Domingo à tarde e uma dedução válida como um encolher de ombros. Mas se o fizéssemos não nos servia de muito a lógica. Por isso temos que criar conceitos com as propriedades certas. E precisamos deles precisamente porque o universo não é fácil de compreender. Para as coisas que percebemos logo não nos faz falta a lógica. Não precisamos de formalismos para descascar uma banana ou jogar à macaca. É quando tentamos ir além daquilo para o qual o nosso cérebro está adaptado que precisamos da muleta da lógica e da matemática. Que nós inventámos.

Finalmente, «No campo da moral o ateu propaga que, uma vez que Deus não existe, a moralidade é o que cada um quiser que ela seja.» Não é bem isso. Nem tudo é igualmente bom ou mau para todos; uma coisa pode ser boa para um e má para outros. Mas isto é um facto, não é um juízo moral. O juízo moral vem depois, quando decidimos o que fazer deste facto. O Mats acha que se deve ignorar o que cada um pensa e assentar a moral naquilo que lhe disseram ser o juízo do seu deus. Eu prefiro dar a todos um voto na matéria, até ao Mats, e fazer da moral uma forma de convivermos com as nossas diferenças em vez de uma desculpa para impingir aos outros os caprichos de um amigo imaginário.

1- Mats, 21-9-08, Toda a Gente Age Como se Deus Existisse

domingo, setembro 28, 2008

Treta da Semana: Solterm.

O Decreto Lei 80/2006 publicou o Regulamento das Características de Comportamento Térmico dos Edifícios. Segundo este regulamento, «A contribuição de sistemas de colectores solares para o aquecimento da AQS, Esolar, deverá ser calculada utilizando o programa SOLTERM do INETI»(1). Este programa está disponível no site do INETI pelo preço de 130€ mais IVA (2).

Não duvido do rigor nem da utilidade do programa, mas isto parece-me uma bela treta. O programa foi desenvolvido num instituto do estado, é mantido por bolsas e salários do estado e é de uso obrigatório por lei para a certificação energética de edifícios. Mas é comercializado como se fosse um negócio. A lei obriga a usar este programa, obriga a pagar impostos para financiar o desenvolvimento e manutenção deste programa e, pela legislação de “propriedade intelectual”, pune quem usar este programa sem pagar mais 130€ à instituição do estado que o desenvolveu.

É um mal geral por cá. Por exemplo, se quiserem a norma para a decantação primária em estações de tratamento de águas residuais, elaborada por uma comissão técnica do LNEC paga pelo estado, podem obtê-la no site do Instituto Português da Qualidade. Mas têm que pagar 10€ por um pdf com meia dúzia de páginas (3) e estão proibidos de o copiar.

Até o Diário da República tem um serviço para assinantes. A consulta das últimas edições é gratuita mas a «Pesquisa Avançada», que não faz mais que o Google, tem que ser paga (4). Era bom que todo o cidadão tivesse acesso gratuito à legislação que rege o nosso país. Mas melhor ainda é aproveitar para fazer negócio.

Mesmo quem não partilha a minha aversão ao copyright digital deve ver a injustiça de cobrar por informação financiada pelos nossos impostos. Mas o que estes exemplos revelam, principalmente, é a natureza do copyright e restrições associadas. Não são mecanismos de financiamento ou incentivo da criatividade. São mecanismos de abuso por parte dos intermediários, que até consideram a legislação publicada há mais de trinta dias uma «Informação de Valor Acrescentado»(4) reservada a assinantes.

Adenda: O DR está disponível integralmente e gratuitamente, mas a pesquisa gratuita é apenas pelo número do diploma. Pesquisar por termos ou frases é considerado tão avançado que se tem que pagar. Também se tem que pagar por coisas como o «acesso à informação jurídica devidamente tratada e sistematizada», que devia ser gratuito. Mais detalhes aqui. Obrigado ao Quetretófilo pela correcção.

1- FEUP, RCCTE (.pdf)
2- INETI, Software
3- IPQ, Estações de tratamento de águas residuais. Parte 4: Decantação primária.
4- Diário da República Electrónico

sábado, setembro 27, 2008

Ciência sem arte.

O Desidério discordou de um detalhe na minha caracterização da filosofia como o esclarecimento das perguntas. «É que a filosofia não se ocupa apenas de fazer perguntas, mas também de teorizar hipoteticamente, quando a teorização científica ou matemática não é possível.» E deu como exemplo uma piada que terminava com a pergunta filosófica «"Se tivesses irmãos, achas que eles gostariam de pizza?"»(1). Mas não é o gosto pela pizza que interessa ao filósofo. Isso seria estimado por coisas como a propensão para alergias na família, intolerância à lactose ou hábitos alimentares. O filósofo está mais interessado em perceber se a pergunta refere irmãos reais num universo paralelo, se é uma implicação trivialmente verdadeira por ser falso o antecedente ou questões desse género. Ou seja, em esclarecer o que se quer perguntar e não propriamente em dar-lhe uma resposta.

Mas admito que a filosofia também dê respostas e que a ciência esclareça perguntas. Por muito diferentes que sejam nos extremos, ciência e filosofia são fases inseparáveis de um processo contínuo. Por isso o objectivo desta distinção é, em parte, salientar o que têm de comum e, principalmente, rejeitar que as distingam pelos assuntos. Como, por exemplo, sugere este simpático comentário do Carlos P.

«Desculpe lá, mas você não sabe o que é a filosofia. Dizer, por exemplo, que a pergunta pela composição das estrelas é uma pergunta filosófica é um disparate. A filosofia pergunta e busca os fundamentos, pergunta pelos porquês e pelo sentido - coisas de que se aproxima da religião [...], e que a diferencia das ciências que procuram (apenas) estabelecer relações (causais) entre fenómenos.»

Filosofia é ciência sem arte. Os grandes filósofos gregos distinguiam-se cabalmente dos artífices. Os filósofos compreendiam as coisas explicitamente, por palavras e argumentos. Os artífices faziam o que faziam sem se saber como. Ninguém percebia porque é que o barro cozia ou o cobre ficava mais duro com um pouco de estanho, mas faziam potes e espadas à mesma. E nem o Leonardo conseguiria explicar como a tinta na Gioconda dá a sensação que a senhora percebeu uma piada que nos escapou. O que quero salientar é essa característica da arte de nos dar coisas notáveis sem percebermos como.

E para os grandes filósofos gregos era ponto de honra que a filosofia não tivesse aplicação prática. Não servia para potes e panelas mas para conhecer o bem, a lógica e de que eram feitas as estrelas. Aristóteles concluiu que as estrelas eram feitas de éter, o quinto elemento, o que lhes dava o seu movimento circular perfeito. Isso era filosofia. Em retrospectiva, é pena que os gregos tivessem tanta aversão ao prático e os romanos tão pouco jeito para a filosofia. Se Aristóteles tivesse sido um engenheiro nas legiões romanas se calhar a ciência tinha começado dois milénios mais cedo.

Ou talvez não. É difícil dizer se a junção da filosofia com a arte se deveu a génios como Leonardo e Galileu ou ao lento acumular de conhecimentos e técnicas. Seja como for, eventualmente percebeu-se que quando o conhecimento teórico permite compreender o que fazemos na prática a filosofia e a arte transformam-se em algo diferente. Em ciência e tecnologia, que avançam em conjunto muito mais que as outras separadas.

A composição das estrelas foi uma questão filosófica e reproduzir as cores do arco-íris com prismas de vidro foi uma arte. Mas depois de Newton explicar a decomposição das cores e Fraunhofer a origem das linhas de absorção a espectroscopia passou a ser tecnologia e a composição das estrelas uma questão científica. A diferença entre filosofia e ciência não está nos temas, nem no objectivo, nem sequer no fundamento da abordagem. Está nas ferramentas disponíveis. Se não compreendemos as artes relevantes para o problema temos que nos restringir à filosofia. À argumentação, à especulação lógica, à análise cuidada das perguntas. Se podemos atacar o problema com arte que, pela compreensão, tornámos tecnologia então podemos também medir, registar, comparar, experimentar. É esse acréscimo que torna a filosofia em ciência.

A religião é diferente, mas também não pelos temas. Deuses e milagres podem ser estudados pela filosofia ou pela ciência, conforme o conhecimento que tivermos. A religião é fundamentalmente diferente porque não procura respostas, julgando que já as tem, e porque as perguntas que faz são meramente retóricas.

1- Desidério Murcho, 21-9-08, Passagens de Nível.
2- Comentário em Treta da Semana: Ao “nível científico”.

sexta-feira, setembro 26, 2008

Deve ser horrível ter deus.

Qualquer semelhança entre este texto e algum outro não deverá ser coincidência

Já pensaram na pachorra que é preciso para ter um deus? Ter um amigo imaginário a meter o bedelho na vida das pessoas deve ser horrível. E no caso de Deus é mesmo de todas as pessoas. Outros deuses há que deixam em paz quem não acredita mas este mete-se em tudo. Não há dúvida que é preciso muita pachorra só para conseguir suportar este deus.

Ter um deus é ser incompreendido. Não existe nada no mundo tão fugidio, tão invisível, tão misterioso e incompreensível como os deuses. Deus, porque é Deus, está em tudo, dizem os crentes. Mas não se percebe que falta faz Deus à malária para matar crianças ou ao Sol para causar cancro de pele. Nem tão pouco como sabem que ele lá está. Por isso a certeza que Deus existe é uma das certezas mais infundadas da humanidade. E depois dizem que Deus está também acima de tudo, infinitamente acima de tudo, e que nunca O conseguiremos compreender. Ou seja, falam do que não percebem. E não é por ser tão incoerente que ninguém perceba que se justifica levá-lo a sério.

Muitos não ligam aos deuses. Aproveitam o que compreendem da realidade sem inventar mistérios invisíveis só para calejar os joelhos com obséquios gratuitos. E exigem mais. Claro. Quem constrói a sua vida assumindo-se responsável pelo que é tende a ser menos conformista que quem ganhou a existência na santa rifa da providência divina.

Aqueles que dizem que compreendem Deus são os piores. Que aldrabice. Vejam, senhores e senhoras, aqui está o mistério invisível que ninguém compreende. Dêem cá o dízimo que explicamos tudo, e ainda levam dois milagres pelo preço de um. E não se queixem se a vida vos correr mal. Agradeçam e aceitem o privilégio indiscritível de simplesmente existir, por muito sofrida que seja a existência. Ah, e não se esqueçam do dízimo.

Existir não é um privilégio. É um desafio que só vamos superando com tempo e esforço. E a liberdade não é uma dádiva que nos cai no colo mas um prémio que arrancamos à vida. Começamos a existência como parasitas agarrados à mãe. Com o nascimento pouco muda; apenas por onde nos agarramos. Durante a infância aceitamos o que nos dizem, acreditamos sem perceber, fazemos o que fazemos porque é assim que se faz. E muitos ficam por aí, escravos da “liberdade” que lhes deram. Mas outros percebem que a liberdade gratuita não é liberdade nenhuma. A liberdade não se recebe. Exerce-se. Conquista-se empurrando as restrições com perguntas e defende-se franzindo o sobrolho e dizendo explica lá isso como deve ser. O maior perigo para a nossa liberdade é julgá-la uma dádiva de outrem.

Talvez o mais ridículo seja a falsa modéstia de atribuir a um deus tudo o que temos de bom. Parece modéstia porque o crente diz não ser nada senão aquilo que Deus fez, que só conseguiu fazer algo de bom porque Deus lhe segurou a mão e essas coisas. Mas é falsa porque atribui à vontade divina o que é um simples aproveitar de acontecimentos fortuitos. Não vejo coisa menos modesta que afirmar que tudo o que me aconteceu de bom, desde os genes que tenho à educação que me deram e aos amigos que encontrei, foi assim porque um deus infinitamente sábio e justo me julgou merecedor dessas benesses. Isso é que é presunção.

Ter deuses é tão horrível que mesmo os crentes já só os toleram em abstracto. Se alguém vivo e presente se apresenta como um deus as coisas correm mal de certeza. É verdade que os egípcios tinham reis que eram deuses. Mas os egípcios percebiam que isso da divindade é só um truque para mandar nos outros. O deus é o tipo com mais poder. O chefe. Só que quanto mais poder tem o deus mais apertado lhe fica o disfarce de homem. Eventualmente, tem que ir o deus para a terra do nunca-nunca e ficar a chefia a cargo dos representantes. Um chefe omnisciente e omnipotente quer-se bem longe. Por isso se alguém diz que é o pastor está tramado. Leva dentadas dos cães que não querem perder o tacho e leva marradas do rebanho que sabe que os cães só castigam o que vêem mas julga que o pastor vê tudo.

Só com o deus morto, enfiado num buraco, tapado com uma pedra e desaparecido o cadáver é que é seguro aos representantes criar um novo rebanho. Depois basta haver ovelhas. Mas essas nunca faltam.

terça-feira, setembro 23, 2008

Uma achega.

Por azar a discussão inspiradora acerca do último post (1) calhou numa semana atolada em trabalho. Mas como hoje não tenho tempo de almoçar aproveito para deixar um post rápido só para dizer que estou convosco.

Defendendo a tal separação dos níveis, o F. Dias perguntou «o que é mais real, a cor vermelha tal qual a vejo no dia a dia ou as ondas electromagnéticas descritas pelos físicos e que chocam comigo quando vejo um objecto vermelho?» A resposta é simples se não nos baralharmos.

Primeiro, real é como grávida; não há mais nem menos. Segundo, o real e o que julgamos ser real não são necessariamente o mesmo. Por isso vou reformular a questão do F. Dias: será que aquela coisa “cor” à qual parece apontar a nossa percepção de cor é real, e será que a coisa para a qual aponta a descrição “onda electromagnética” é real, ou será que as descrições falham o alvo?

A primeira parece falhar. A percepção da cor dá ideia que há um tal “o vermelho” por aí, mas é uma ilusão. A percepção é real mas é uma propriedade de certos padrões de actividade dos neurónios e não de algum “o vermelho”. A segunda, tanto quanto sabemos, está correcta. A descrição de ondas electromagnéticas refere-se a algo que é real.

Mas o mais importante é como sabemos isto. Exactamente da mesma maneira para ambos: colocando hipóteses, esmiuçando o que significam e implicam e confrontando-as com o que podemos observar. É assim que sabemos que vermelho é um fenómeno neurológico como o doce e o confortável enquanto que a luz a 700 nm é um fenómeno electromagnético como as microondas e os raios X. A luz a 700 nm só nos parece vermelha porque estimula os tais padrões nos nossos neurónios e não por ter nela algo que seja “o vermelho”.

A Maria C., acerca da diferença entre “quem criou o universo?” e “como foi criado o universo?”, propõe que «é a maneira de perguntar que faz a diferença. A primeira remete para uma entidade (deus) a segunda remete para um método (cientifico).» Não. A diferença está apenas nas respostas. Se eu disser que o universo foi criado pela queda misteriosa de pós de perlimpimpim estou a responder ao “como” de uma forma que não é científica. Nada me obriga a postular hipóteses informativas e testáveis.

E a hipótese que a Terra foi criada por alguém pode ser científica se for suficientemente detalhada para averiguarmos se é verdadeira ou falsa. Por exemplo por extraterrestres que construíram o nosso planeta, a galáxia ou mesmo todo o universo. Só deixa de ser científica se imputarmos aos hipotéticos criadores capacidades que isolam a hipótese por completo. Coisas auto-contidas e imunes como milagres e fé, por exemplo.

Não há níveis diferentes na realidade nem na forma como a compreendemos. Se queremos perceber as coisas pomos tudo ao mesmo nível, onde comparamos as nossas ideias com a informação que obtemos. O outro nível inventamo-lo quando deixamos de nos preocupar se acertamos ou erramos. O nível da treta.

1- Treta da Semana: Ao “nível científico”.

domingo, setembro 21, 2008

Treta da Semana: Ao “nível científico”.

Chamaram-me a atenção para um artigo de opinião onde Anselmo Borges exalta as experiências no Large Hadron Collider e salienta que «É natural que também os crentes sejam arrastados pelo entusiasmo da investigação e se esforcem por fazer avançar o conhecimento da realidade a nível científico»(1). Isto incomoda-me.

A engenharia civil serve para construir pontes. Não pontes ao nível da engenharia civil. Quanto muito, ao nível dos acessos para não haver degraus ou buracos. Mas simplesmente pontes que aguentem o tráfego e durem uns anos. Também a medicina não trata doenças “ao nível médico”. Trata doenças. Porque tudo o que tratar doenças faz parte da medicina, tal como tudo o que for útil para construir pontes faz parte da engenharia civil. Se as hóstias aumentassem a resistência das pontes ou os crucifixos curassem a apendicite passavam a fazer parte da engenharia e da medicina.

A ciência é o conjunto de técnicas e teorias que nos permite avançar no conhecimento da realidade. Também não é da realidade ao nível disto ou daquilo. É da realidade que houver e de tanta quanto conseguirmos conhecer. Porque, tal como a medicina e a engenharia civil, a ciência é moldada pelos resultados que podemos avaliar. E quando os resultados não satisfazem muda-se a ciência corrigindo erros, melhorando teorias e inventando ideias novas. E se oração fosse mais fiável que a observação não se fazia ciência sem uma boa reza.

Por isso incomoda-me esta tentativa, que me parece pouco honesta, de dividir a compreensão da realidade em “níveis” científicos e não científicos. Por exemplo, «O que se passa é que, no limite, há uma pergunta que transcende a ciência: porque há algo e não nada? Porque houve o Big Bang? Qual o sentido de tudo? Aqui, já não se trata de ciência, pois é uma questão filosófica e religiosa». Não. É uma pergunta. Mais precisamente três. E uma pergunta não é científica nem filosófica nem religiosa. Essas categorias não são “níveis” diferentes mas apenas a expressão do que queremos ou podemos fazer com a pergunta.

A ciência serve para as perguntas que compreendemos e que queremos responder correctamente. Obriga a considerar respostas alternativas e a recolher dados para determinar as mais verosímeis. A filosofia serve para as perguntas que ainda não percebemos mas que queremos responder, eventualmente. Atacamos essas com a filosofia até ficarem suficientemente claras para as passar à ciência. Muitas respostas da ciência são a perguntas inicialmente filosóficas, como a composição das estrelas ou a origem das espécies. E outras são a perguntas de que a filosofia nem se lembrou, como a geometria do espaço-tempo ou a incerteza quântica.

As religiões apenas convencem que sabemos a resposta. Mesmo quando a pergunta não faz sentido. Ao contrário da ciência, as religiões não se avaliam pelo seu ajuste à realidade. Uma religião diz que se tem que rezar naqueles dias, àquelas horas e com pantufas daquela cor. Se outra discorda do dia ou da cor das pantufas não há como decidir quem tem razão. Não se mede a eficácia das orações ou rituais. Não se sabe se as coisas ficam mais bem benzidas por um bispo ortodoxo ou por um monge dominicano. A diferença entre a ciência e as religiões não é lidarem com a realidade a “outro nível”. É funcionarem ao contrário.

A ciência é o método para ajustar as nossas crenças à realidade. Como a realidade é a mesma para todos (por definição), a ciência tende a uniformizar as crenças acerca da realidade. Que a matéria é feita de átomos, que as estrelas são sóis distantes, que as espécies evoluem. E isto dá-nos um conjunto coerente de modelos para a realidade que conhecemos. Não de um “nível” da realidade mas de toda a que podemos observar ou acerca da qual podemos inferir algo.

As religiões são o contrário. São a afirmação de certas crenças, cada religião afirmando as suas, sem qualquer preocupação de as testar ou de avaliar o seu mérito. Alegam que isso é desnecessário por estarem num “nível” diferente mas não há um nível para Shiva, outro para Jahve e outro para o John Frum. Estão todas ao mesmo nível e cada uma a dizer a sua coisa acerca da mesma realidade que a ciência modela. Só que em vez de tentarem saber fazem de conta que sabem.

A pergunta acerca da origem do universo não é religiosa nem está noutro "nível". Religiosa é a convicção que o universo foi criado por aquele deus que ditou a Bíblia, encarnou em Jesus e proibiu o uso de preservativos. Ou pelo outro deus que falou com Maomé e proibiu que as mulheres mostrassem a cara. Ou pelo outro que tem cabeça de elefante, ou o outro, ou o outro...

1- DN, Anselmo Borges, 20-9-08, O Bosão de Higgs e o Livro do Génesis

sábado, setembro 20, 2008

Licença para matar. Outra vez.

Isto já parece um filme de mortos vivos, mas a oposição à rodada anterior deu-me vontade de reanimar o tópico. A Karin comentou que «se alguém me apontar uma arma à cabeça espero mesmo que a polícia não tenha dúvidas que alguém está predisposto a matar-me»(1). Isto sugere dois pontos que me parecem consensuais e permitem focar a discussão onde discordamos. Se é que discordamos.

O primeiro ponto é que não há regras triviais para decidir se devemos matar alguém. Se alguém me apontar uma arma à cabeça pode haver dúvidas se esse alguém for uma criança, deficiente mental, tiver uma pistola de alarme, estiver bêbado ou me fizer refém para exigir que a mãe lhe telefone. Há sempre margem para dúvidas acerca da intenção, culpabilidade, urgência ou soluções alternativas. Não podemos contar com regras tipo Monopólio que resolvam estes problemas sozinhas. Por isso vamos sempre depender do juízo subjectivo de quem puxa o gatilho, com os defeitos e virtudes típicos de qualquer ser humano.

Apesar disso, há situações em que concordamos ser legítimo matar outra pessoa. O meu segundo ponto é que nessas situações em que temos consenso não interessa a profissão ou cargo de quem mata. É legítimo eu dar uma facada em quem tentar matar os meus filhos mas isto não tem nada a ver com eu ser professor auxiliar.

Se concordamos nestes dois pontos – que não há regras que cubram todos os casos e que a legitimidade de matar não depende da profissão – então podemos concentrarmo-nos no que interessa, que é se devemos dar a alguém, apenas por ser polícia, licença para matar fora das circunstâncias nas quais outros também poderiam matar. Eu proponho que não. Proponho que ninguém deve ter mais legitimidade para matar só por pertencer à PJ ou ao GOE. No que concerne a dar tiros em cabeça alheia as regras devem ser iguais para todos.

Os policias podem estar mais armados, treinados e ter legitimidade para revistar ou prender pessoas, coisa que os outros não têm. Esse poder aceito conceder-lhes porque pode ser controlado devidamente e porque se pode corrigir abusos e enganos. Mas o direito de matar, fora das condições em que todos o têm, não é aceitável. Por um lado porque não podemos codificar explicitamente os limites desse direito. Por isso o poder será dado à pessoa e não às regras ou ao sistema em abstracto. Por outro lado porque, sendo o efeito imediato e irreversível, não se pode controlar devidamente nem corrigir erros. Por isso, quando um polícia mata alguém a sua conduta deve ser avaliada pelos critérios aplicáveis a qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias. Ser polícia não dá mais direito de matar, tal como não dá mais direito de roubar ou conduzir bêbado. Nenhuma destas faz parte dos deveres da profissão.

O que nos traz ao caso do BES. Imaginemos por hipótese que tinha ocorrido exactamente o mesmo, com as mesmas pessoas e aparato, mas em vez de serem polícias de serviço eram civis que tinham cercado o banco por serem amigos dos reféns. Tinham o treino, a experiência, o equipamento e tudo o que fosse preciso mas não eram agentes da lei. Eram pessoas como qualquer um de nós. Ao fim de umas horas de negociação, como a polícia nunca mais vinha, matavam os assaltantes com tiros de espingarda na cabeça.

Discordo de quem disser bem feito porque, polícias ou civis, era isso que os ladrões mereciam. Acho que é preciso mais para merecer um tiro na cabeça. Mas esta diferença é difícil de resolver e o diálogo pouco interessante. Rapidamente se atola no “imagina que a refém era a tua mulher”, equivalente ao “imagina que o assaltante era teu filho”, e não se sai da cepa torta. Por isso este post é para aqueles que consideram que se fossem civis a matar os assaltantes teria que ser a justiça a decidir se era homicídio ou legítima defesa mas que, sendo polícias, basta aplausos e palmadinhas nas costas.

Preocupa-me esta atitude porque autoriza algumas pessoas a matar em circunstâncias impossíveis de definir com rigor, nas quais outros não teriam o mesmo direito e sem controlo sobre o exercício desse poder. Aplauda-se quando os polícias prendem criminosos. É o seu trabalho e devemos reconhecer quando o fazem bem. Mas matar não é função da polícia, muito menos um trabalho bem feito. Quando um polícia mata ou manda matar alguém tanto nós como a lei devíamos julgá-lo pelos mesmos critérios que se aplicam a qualquer outra pessoa. A farda autoriza-o a prender, não a matar.

1 Licença para matar.

quinta-feira, setembro 18, 2008

Afinal a Eastasia sempre foi nossa aliada.

Um grupo de trabalho das Nações Unidas, o grupo Q6/17, está a elaborar um conjunto de padrões técnicos para implementar mecanismos de rastreio de comunicações na Internet. A base é uma proposta do governo chinês e a National Security Agency dos EUA também faz parte deste grupo.

As reuniões são à porta fechada e o grupo não divulga documentos mas, segundo uma alegada fuga, uma das justificações para implementar este sistema é que «Um opositor político de um governo publica artigos desfavoráveis ao governo. O governo, tendo uma lei contra qualquer oposição, tenta identificar a fonte dos artigos negativos mas, sendo os artigos publicados por intermédio de um servidor proxy, não o consegue por estar protegido o anonimato do autor». É estas situações que querem corrigir.

O anonimato assusta algumas pessoas mas é uma parte fundamental da liberdade de expressão e de acesso à informação consagrada pela declaração universal dos direitos humanos. Quando a NSA e a China começam a colaborar para acabar com o anonimato é caso para ficarmos preocupados.

Mais informação em U.N. agency eyes curbs on Internet anonymity, via Schneier on Security.

quarta-feira, setembro 17, 2008

Licença para matar.

O António comentou a minha critica ao uso de snipers para matar os assaltantes do BES. «Ou seja, se o estado não é perfeito, pode-se assaltar e empunhar armas, que a policia não pode fazer nada.»(1) Reconheço a hipérbole do comentário mas, mesmo assim, é melhor explicar.

Concordo que se dê a algumas pessoas algum poder para nos protegerem dos malfeitores. Multar, prender, revistar, vigiar, pôr telefones sob escuta. Coisas que nós não podemos fazer mas que compensa permitir a alguns se tivermos um sistema que permita mitigar e corrigir erros ou abusos. O arguido tem direitos, é representado, é ouvido por um juiz, pode recorrer das sentenças e o processo é aberto ao escrutínio público. Nestas condições o benefício de dar algum poder à policia é maior que o risco de abuso ou incompetência*.

E concordo que um polícia que veja um assaltante sacar da arma e apontá-la às pessoas possa, naquele instante, atirar a matar. Não porque conceda este poder ao polícia mas porque a defesa da vida própria ou de terceiros em perigo iminente é uma situação extrema que justifica matar alguém se for necessário. Seja polícia ou qualquer pessoa. Se alguém entrar aqui para matar os meus filhos também acho legítimo dar-lhe uma facada. E se morrer, azar.

O caso do BES foi diferente; um grupo organizado com elementos escondidos de espingarda apontada e outros a negociar para manobrar os assaltantes até à linha de tiro, tudo combinado para os matar quando estivessem a jeito. Não foi uma decisão no momento face a um perigo iminente. Foi o desfecho planeado de oito horas de negociações. Se o plano tivesse sido executado por civis seriam julgados por homicídio premeditado. E provavelmente condenados.

E os agentes foram autorizados a cometê-lo sem qualquer dos controlos que exigimos para os outros poderes, bem menores, que lhes concedemos. Alguém na hierarquia da polícia decidiu e executou tudo sem se saber nada. Os visados não foram ouvidos nem poderão recorrer da decisão. Não interveio um juiz nem alguém que representasse os direitos dos assaltantes. Ao contrário do que alguns julgam, até os criminosos devem ter direitos. E um mecanismo de controlo fundamental é que todos sejam considerados inocentes até que o juiz se pronuncie em contrário.

A minha preocupação principal não é o caso do BES. Até pode ser que um juiz sensato e conhecedor dos detalhes que nos faltam o julgasse legítimo e necessário. Também não é a incompetência que só não deu em tragédia porque os assaltantes não eram assassinos. Se bem que essa nos preocupe um pouco a todos. A minha preocupação principal é que se dê à polícia autorização para planear e coordenar a morte de pessoas. É demasiado poder para dar a alguém, especialmente sem possibilidade de recurso nem controlo adequado.

* Se bem que enquanto as indemnizações forem pagas do dinheiro dos nossos impostos em vez do bolso de quem faz asneira o sistema nunca vai funcionar muito bem.

1- Legal, 2

terça-feira, setembro 16, 2008

E a treta de quem não a tem.

O Pedro Romano, a quem agradeço, apontou-me para um post do Rodrigo Adão da Fonseca, n’O Insurgente. Com mais umas voltas e despistes pelo meio, «O mito da Razão» reza assim.

«A ideia de que a razão deve ser a fonte única de todas as decisões humanas nega aquilo que é típico do homem, a sua subjectividade, por um lado, e a sua natureza imperfeita, por outro. [...] Sociedades que negam a subjectividade, que querem impor uma razão laica, representam um retrocesso, um desperdício face ao que foram algumas das conquistas civilizacionais mais importantes conseguidas - tantas vezes por linhas tortas - nos últimos séculos.» (1)

A tal «razão laica» não se apresenta como a fonte única das decisões. Não me diz quando me devo coçar, se devo rezar, em que dias comer carne ou peixe ou com quem posso ter relações sexuais. Nem sequer exige que eu tome estas decisões movido por alguma razão. Entre mim e a minha subjectividade o sim porque sim chega bem, e isto é tão típico de outros animais como do homem. O que é mais particular do ser humano é perguntar porquê e responder com razões que se possa partilhar e compreender. A razão não governa a subjectividade em si mas é a melhor ferramenta para conciliar subjectividades diferentes sem desatar tudo à dentada.

É este o papel da razão. Não preciso da razão para comer iogurte, em vez de torradas, ao pequeno almoço. Escolho o que me apetece e pronto. Mas exijo razões se me dizem para comer torradas. E tenho que dar razões se digo para comerem iogurte. A razão não é a fonte de todas as decisões mas é o requisito de todas as justificações. É por isso que a razão deve ser uma para todos, que todos partilhem e compreendam, e não um emaranhado incompreensível de desculpas. Por exemplo:

«A religião segue uma Razão externa, mas dentro das limitações humanas, apenas compreensível no contexto da Fé. A religião escapa da intolerância, quando não esquece que persegue uma dimensão que não é temporal, e está ao serviço do Amor (que no plano terreno representa a chave para a tolerância).»

Esta tretificação da razão é uma chatice e é potencialmente perigosa. O valor da razão é ser universal. Quando perguntamos porquê pedimos ao interlocutor que nos guie pelo seu raciocínio, seguindo um caminho reconhecido por ambos, até encontrarmos um ponto de acordo ou até chegarmos às tais diferenças puramente subjectivas que, mesmo discordando, podemos reconhecer como igualmente legítimas.

Quando se metem com coisas como a «Razão externa apenas compreensível no contexto da Fé» está tudo estragado. Perde-se a distinção fundamental entre o subjectivo e a razão, entre o que nos separa por cada um ter o seu e o que nos une por ser igual para todos. E abre o caminho para que apregoem as suas preferências subjectivas como mais legítimas que as dos outros. Que não se pode comer carne à sexta feira, que se tem de ir à missa no domingo e que o sexo é só para fazer bebés. E que se tem que punir quem discordar. Ou com o castigo eterno depois da morte ou já aqui se puder ser.

A razão não é a única fonte das decisões humanas. A subjectividade é fundamental. Mas se querem que tome as minhas decisões de acordo com a vossa subjectividade têm que me dar boas razões. A vossa fé não chega. É isso que é a laicidade.

1- Rodrigo Adão da Fonseca, 16-9-08, O mito da Razão

Editado 17-9: corrigi "comentador anónimo" porque estava anónimo apenas por capricho do Blogger.

segunda-feira, setembro 15, 2008

Legal, 2.

Parte dos nossos impostos serve para pagar professores, escolas e universidades porque é justo que ninguém fique ignorante por ter pais pobres. E porque isto nos beneficia a todos. Infelizmente, outra parte dos nossos impostos paga à IGAC para apreender fotocópias de manuais escolares e livros técnicos (1) com o intuito de obrigar os alunos a comprar livros caros que só precisam consultar por uns meses.

Há quem proponha apreender as cópias mas subsidiar a compra dos livros. Bela ideia. Pagar à polícia para obrigar os estudantes a pagar à editora que depois dá uma pequena fracção ao autor. Sai muito mais barato deixar as fotocópias e se um dia os professores deixarem de escrever livros técnicos dar-lhes algum dinheiro extra para o fazerem.

A prisão do Bernardo Macambira por um CD foi outro exemplo de mau uso do erário (2). E agora foi liberto, cumprida menos de metade da pena, porque descobriram que afinal tinha pago a multa (3). O que me traz ao desabafo de hoje. Na terapêutica da sociedade a intervenção judicial é uma amputação. Por vezes é necessária, mas sempre que a polícia e o estado se metem há consequências irreversíveis. Por isso não é uma resposta adequada a casos menores como a cópia de um CD ou a fotocópia de um livro de química. Mesmo que ninguém seja preso cada operação destas amputa-nos uma data de dinheiro que podia servir para outras coisas. E é muito arriscado dizer ao cirurgião «Força! Corte à vontade.» Especialmente se é vesgo e tirou o curso na Escola Superior de Sapataria.

Parece que a PSP se esqueceu de mencionar alguns detalhes acerca do abate dos assaltantes do BES. Dos quatro atiradores do GOE, só um disparou. Aparentemente os outros três tinham o rádio avariado. Ou algo do género. Enquanto houver mais interesse em aplaudir que em perguntar o que se passou duvido que a PSP se vá lembrar dos detalhes todos. Por isso é que um dos assaltantes teve a oportunidade de disparar um tiro contra o vidro, na direcção dos snipers. Segundo a notícia, «Só por sorte não morreu um dos reféns.»(4) Sim, foi sorte. Sorte o assaltante ser só um ladrão que queria dinheiro e não matar reféns...

Errar é humano e qualquer organização humana comete erros. Isto não justifica desistir de ter leis e ordem. Só que não devemos ignorar a possibilidade de erro só por ser inevitável. Há quem simplesmente encolha os ombros e, paciência, como não se pode fazer nada é como se não houvesse problema. Mas se os travões funcionam mal conduzimos mais devagar, e se não podemos contar que o sistema seja perfeito temos que exigir menos dele.

Se pesamos o benefício das leis com o custo de as implementar, os efeitos irreversíveis e a inevitabilidade de haver erros, sobressaem dois extremos que não queremos deixar por conta do estado. Um é o das infracções menores como a regulação do comércio de CDs, as fotocópias ou quem se ofende com o quê. Estes são problemas para a justiça civil e onde cabe ao queixoso o ónus de provar que foi injustamente prejudicado e merece compensação. Não é para isto que queremos pagar polícia e investigações do Ministério Público.

O outro extremo é o das acções mais contrárias aos direitos humanos. O da prisão perpétua, pena de morte, censura, snipers e afins. Pode-se invocar razões a favor destas medidas. Há pessoas más até ao tutano, coisas que não se deve dizer, criminosos irrecuperáveis e situações de vida ou de morte que, em teoria, justificariam estas coisas. Se o sistema fosse perfeito. Mas estas justificações não resistem à margem de erro para a incompetência, conflitos de interesse, corrupção e desejo de poder.

No mundo real de custos e imperfeições só devemos pagar ao estado para nos amputar liberdades quando for absolutamente necessário e dando sempre uma margem de erro generosa.

Obrigado ao Mário Miguel pelo (1) e (4).

1- Correio da Manhã, 8-9-08, Apreendidas 18.555 cópias de manuais
2-O custo do CD.
3- Só consegui confirmar aqui que foi solto. Os detalhes que menciono só li de relance no Metro, numa revista de alguém que se sentou ao meu lado...
4- Sol, 11-9-08 O que falhou na operação policial do assalto ao BES

Editado a 16-9: Afinal o Bernardo Macambira foi solto porque «deveria ter sido movido um processo de penhora, antes da detenção.» Obrigado ao Jaime pelo link.

sábado, setembro 13, 2008

Treta da Semana: O mundo a acabar. Outra vez...

Prognosticar a destruição do universo é um dos passatempos tradicionais menos violentos dos supersticiosos. O que diz muito sobre os outros. A Bíblia, os astros, contas esquisitas e outras tretas têm alimentado este precursor dos filmes de terror e reality shows. Uns, mais cautelosos, previram o fim do mundo com alguns séculos de antecedência. Gerard de Poehlde, por exemplo, previu em 1147 que tudo acabaria em 1306, mil anos após o reino de Constantino (1). O impacto era menor mas também havia menos risco de serem confrontados com o falhanço da previsão.

Outros destacaram-se pela persistência. As Testemunhas de Jeová previram o grande final em 1914. E em 1915. E em 1918, 1920, 1925, 1941, e assim por diante (2), numa adaptação religiosa da anedota do barco que se afundou 385 vezes porque levava um carregamento de ioiôs.

No dia 10 foi testado o Large Hadron Collider (LHC), cuja operação alguns prevêem irá acabar com o universo. O método de previsão é semelhante ao usado no passado e estima-se que a fiabilidade será a mesma. Os físicos dizem que não há razões para alarme. No LHC vão colidir protões com uma energia de 14 Tera-electron-Volt, que soa impressionante mas equivale a 2.2 micro Joule (3). É a energia necessária para levantar um grão de areia a meio milímetro de altura. À escala subatómica é muita energia, mas só mesmo à escala subatómica, e colisões destas são frequentes em todos os planetas e estrelas. Se isto fosse o fim do mundo já tinha sido muitas vezes.

Mas os físicos não percebem nada disto. É o fim do mundo e é preciso consultar um perito em fimdomundologia. Por isso a TSF decidiu entrevistar Anselmo Borges que, enquanto teólogo, está particularmente habilitado a avaliar as experiências do LHC antes sequer de alguém as fazer. Recorrendo aos seus contactos transcendentes, Anselmo Borges «considera que será muito importante que se possa descobrir a chamada “partícula de Deus” nas experiências que estão a ser feitas no CERN [...] Contudo [...] entende que a dúvida sobre as razões da existência de um Big Bang permanecerá»(4). Dúvida na dose certa. Se houver dúvida demais podem duvidar que haja razões para a existência do universo e lá ficam os deuses sem emprego. E se houver dúvida de menos vai-se o mistério, o medo do escuro, e ficam os padres sem emprego.

A teologia é importante para se poder afirmar com certeza que há razões para a existência do universo mesmo que essas razões sejam um mistério insondável. Essa certeza justifica-se pela fé. Só quando a ciência sugere que não se encontra razões porque não há razão nenhuma é que se invoca a dúvida. A dúvida é o buraquinho no conhecimento onde o teólogo enfia as suas certezas. Só os anos de formação lhe permitem fazê-lo sem corar nem se desmanchar a rir.

Nas próximas semanas vão fazer mais testes ao LHC e, se tudo correr bem, antes de fechar para o inverno ainda vão partir uns protões e obter dados interessantes. Entretanto, quando fizerem a tal experiência já ninguém se vai lembrar das previsões apocalípticas. Felizmente, isto do universo acabar já não é o fim do mundo*.

Os mais nervosos têm aqui imagens em directo do LHC para verem que está tudo bem.

* Por cá. Na Índia uma rapariga suicidou-se porque ficou convencida que o mundo ia mesmo acabar: Indian girl commits suicide over 'Big Bang' fear, via Bad Astronomy.

1- Religious Toleranca, 63 failed & 1 ambiguous end-of-the-world predictions between 30 CE and 1990 CE
2- Religious Tolerance, Jehovah's Witnesses: Predictions of TEOTWAWKI
3- Wikipedia, LHC
4- TSF, Teólogo entende que dúvidas sobre Big Bang vão permanecer

sexta-feira, setembro 12, 2008

Invenções, descobertas e números.

O Wyrm criticou novamente a minha oposição ao copyright digital, desta vez pela diferença entre inventar e descobrir. «Colocar a música, filmes, textos e imagens na categoria da matemática e da investigação fundamental é simplesmente desonesto. Estamos a falar de arte, não da observação de fenómenos naturais.[... ] Se alguém compõem uma música ou escreve um poema porque não há-de ser compensado por todos aqueles que usufruam da sua obra?»(1)

O primeiro problema é que podemos perguntar o mesmo acerca da descoberta científica. Não é claro que um poema sobre unicórnios seja mais merecedor de recompensa ou direitos especiais que a descoberta do mecanismo molecular do cancro. Fica por justificar a ideia implícita que toda a arte, só por ser invenção, é mais merecedora que qualquer descoberta. E isto assumindo que se pode distinguir arte e ciência por uma suposta diferença entre criar e descobrir. Esse é o segundo problema.

À primeira vista é simples. Inventamos o que não havia antes e descobrimos o que já existia. Os pinguins foram descobertos e os unicórnios inventados. Mas a coisa complica-se quando comparamos descrições de pinguins e unicórnios. Em prosa ou poesia, as descrições foram criadas. Não existiam antes. E a ciência, tal como a arte, cria descrições. A descrição da força como proporcional ao produto da massa pela aceleração não existia antes de Newton, por exemplo.

Podemos então aceitar que tanto a ciência como a arte são criativas mas pensar que diferem porque a arte é uma expressão livre da criatividade enquanto a ciência se restringe à realidade. O poeta pode descrever unicórnios ou pinguins mas o biólogo tem que se restringir aos últimos e apenas descrevê-los como eles são. Saliento que isto não resolve o primeiro problema. Não há razão para considerar qualquer criação livre mais meritória que a criatividade subordinada ao real. E também não resolve o segundo problema porque a premissa ou é falsa ou é contrária à tentativa de distinguir arte e ciência.

Se por arte entendermos aquilo que transmite alguma sensação ou emoção então um poema que não respeite gramática ou semântica, um quadro pintado em microondas e um filme de três milésimas de segundo não são arte porque não nos dizem nada. Tal como a ciência, a arte também é criatividade com restrições impostas pela realidade. E se entendermos que qualquer coisa pode ser arte então não a podemos distinguir da física ou da matemática. Aborrecido por aborrecido, se os filmes do Manoel de Oliveira são arte a análise matemática é literatura.

Além disso a ciência não se limita a coisas reais. Por um lado porque é falível. Lowell estudou durante anos canais em Marte que eram pura imaginação, e é difícil aceitar que o trabalho dele tenha mais mérito por isso. Por outro lado porque muitos conceitos fundamentais na ciência são invenção nossa. Por exemplo, dizemos que o impacto de um seixo causa o movimento noutro, mas a causalidade não é uma coisa nos seixos. O que queremos dizer com “causa” é que se não tivesse havido impacto o seixo não se tinha movido, e isso é pura ficção.

Não se pode distinguir arte e ciência apenas pela diferença entre invenção e descoberta nem se justifica algemar uma delas ao copyright. Mas especialmente absurdo é tentar esta distinção no conteúdo digital. Os computadores trocam e copiam sequências de números e executam operações algébricas. É um disparate tentar distinguir os números que são criação artística dos números que são matemática. Não só porque ninguém inventa números, por muito artista que seja, como porque a relação entre uma sequência de números e aquilo que a fazemos representar é totalmente arbitrária. Se eu escrever um poema sobre unicórnios que números é que passam a ser meus por eu os ter inventado?

Mas ao Wyrm não interessa defender o copyright digital por ser justo ou razoável. O que ele quer é saber «quantos álbuns, livros e filmes copiados tens na tua colecção? Penso que esta é no fundo a questão essencial.» Essencial. Ou seja, o essencial é que ninguém usufrua do que ele faz sem lhe pagar mas que ele continue a usar de graça tudo o que os outros fizeram antes, desde a tabuada do 3 que aprendeu na primária até ao TCP/IP e HTML que usa agora sem pagar um cêntimo a quem os inventou.

Por isso, Wyrm, proponho que me digas quem és e eu prometo não ouvir nem ler nada do que tu escrevas ou digas ou cantes. E até podes continuar a ler isto de graça. Ficas mais feliz assim?

1- Pitágoras e as patentes

Editado: acrescentei "pensar" no 4º parágrafo para ficar mais claro que era algo a refutar e não a defender. Obrigado ao Pedro Ferreira por ter notado o problema.

quinta-feira, setembro 11, 2008

A economia e o CO2.

Na discussão sobre o aquecimento global é curioso que quem critica as previsões climatéricas por se basearem em modelos pouco fiáveis não hesite prognosticar uma tragédia económica se tentarmos reduzir as emissões de carbono. Não me parece que a previsão da economia global das próximas décadas seja mais fiável que a previsão do clima para o mesmo período. E acho o prognóstico especialmente duvidoso porque a economia dos países mais ricos assenta cada vez mais na inovação, tecnologia e serviços. Mas vamos fingir que não há vantagens económicas na energia solar e eólica, em carros menos poluentes ou casas mais eficientes. Vamos supor que, logo por azar, esta é a única tecnologia na história da humanidade que não contribui para o desenvolvimento económico. Mesmo assim vale a pena.

Primeiro, porque os custos a esta escala não são como estamos habituados. Quando pagamos dez euros por uma refeição ficamos com menos dez euros. Mas quando um país, ou o mundo inteiro, investe dez mil milhões de euros numa coisa esse dinheiro apenas circula entre as pessoas. Não desaparece. A esta escala o custo é apenas a oportunidade que se perdeu de aplicar aquele esforço, naquele momento, noutra coisa qualquer. Nem se pode guardar para mais tarde. E se o custo de reduzir a emissão for não ter tantos mais carros, estradas, centros comerciais e estádios de futebol, que venham já as turbinas e os painéis solares.

Em segundo lugar porque o crescimento económico nos países desenvolvidos não é tão importante. O PIB por pessoa em Portugal é o quádruplo da Namíbia e um quarto do Luxemburgo (1). Mas a diferença na qualidade de vida é muito maior entre a Namíbia e Portugal do que entre Portugal e o Luxemburgo. Passar de cinco mil para vinte mil dólares por cabeça faz mais efeito que passar de vinte mil para oitenta mil. E é fácil perceber porquê. Faz mais efeito, com menos dinheiro, deixar de passar fome na rua e ter uma casa e refeições regulares do que substituir o iate de trinta metros por um de sessenta. Quanto mais dinheiro se tem menos serve ganhar mais.

E é isto que trava o crescimento económico. A China e a Índia têm um crescimento enorme porque se matam a trabalhar. Precisam do dinheiro. Mas quando o rendimento aumentar vão preferir estudar até mais tarde, reformar-se com saúde, tirar férias e ter mais tempo para a família, como aconteceu em todos os países industrializados. E isto vai reduzir o crescimento económico. Até suspeito que os alemães só são mais ricos que nós porque precisam do dinheiro para vir cá passar férias.

Mais a sério, acima de certo rendimento o tempo que investimos a ganhar dinheiro não compensa o tempo que perdemos para outras coisas. O leitor JM escreveu, há uns meses, «Eu não sou o Ludwig. Eu cobro pelo meu tempo que é curtíssimo.»(2) Pois o meu tempo também é curto. Mas é por isso que só o vendo se for mesmo preciso ou se receber em troca algo mais que apenas dinheiro.

Ao nível económico dos países industrializados, o ambiente já está entre estas coisas que valem mais que o dinheiro que nos custam. É por isso um erro explorar a natureza visando apenas o máximo rendimento económico (3). É como trabalhar o máximo possível para ganhar um enorme ordenado que não se tem tempo para gastar. A ideia de conservar baleias, florestas, grutas, fósseis e o ar que respiramos não é aumentar rendimentos. É gozar destas coisas pelo valor que elas têm.

Quem ignora o problema do aquecimento global comete dois erros. Primeiro o erro factual de assumir que os modelos de previsão económica são mais fiáveis que os modelos de previsão climática. Se há coisa que rivaliza o clima em complexidade e caos é o efeito da inovação tecnológica e social na economia. E, segundo, confundir os valores. A economia, o PIB, o dinheiro todo têm apenas um valor instrumental. Não valem por si mas só por aquilo que permitem adquirir. Mas o ambiente, a biodiversidade e o clima têm um valor intrínseco além do dinheiro que possam render. Por isso só sai caro preservar o ambiente se precisarmos desse dinheiro para algo ainda melhor. Para os países mais ricos que já compraram as coisas mais importantes o ambiente é um bom investimento mesmo que a conta tenha muitos zeros.

1- Cia World Factbook, Rank Order - GDP - per capita (PPP)
2- Comentário em Porquês.
3- Valores

quarta-feira, setembro 10, 2008

400%

A propósito de alguns comentários ao post anterior.

- Então, pá! Estás bom?
- Mais ou menos...
- O que foi?
- O médico disse-me que tenho um tumor. Se não for operado tenho 1 a 5 meses de vida.
- Xii... que grande susto... Então quando é que vais ser operado? Já está tudo tratado?
- Nah, não quero operação nenhuma. Com uma margem de erro de 400% nem me vou preocupar com isso.

segunda-feira, setembro 08, 2008

À cautela...

O último post (1) suscitou reacções dos “cépticos” do aquecimento global. As aspas são porque não é claro se distinguem o cepticismo da mera crença no contrário. Também não é claro que opinião defendem, se negam que a Terra está a aquecer, se negam que temos alguma coisa a ver com isso ou se aceitam ambos mas negam que haja algum problema. Aparentemente, limitam-se a dizer que os modelos são imperfeitos, que não sabemos o suficiente e que pode haver outras explicações. É revelador que a afirmação mais concreta nestas críticas seja uma pergunta (do Barba Rija):

«Não será melhor esperar para ver, e de igual modo esperar por melhor tecnologia para quando o mundo for mais rico conseguir resolver todos estes problemas?»(1)

Uma fábrica descarrega para o rio uma substância cujos efeitos se desconhece. A jusante, a incidência de cancro tem subido gradualmente desde que a fábrica entrou em operação e alguns testes em animais sugerem que o composto é carcinogéneo. Por isto muitos propõem reduzir as descargas e procurar métodos alternativos de produção mesmo que isso tenha um impacto negativo na economia da região. Mas alguns accionistas e operários da fábrica contrapõem que o aumento na incidência de cancro pode dever-se a outros factores e que os modelos animais não permitem calcular com rigor os efeitos do composto nos humanos. Por isso sugerem prudência. À cautela, aconselham, deve-se continuar as descargas para o rio até haver melhor tecnologia e mais riqueza para resolver todos os problemas.

É isto que me parece passar-se com o aquecimento global e o CO2. Há muitas questões em aberto e a prudência, se for prudente, é sempre aconselhável. Mas não é prudente mandar CO2 para a atmosfera sem conhecer os riscos. Nem é razoável traçar uma meta móvel de “melhor tecnologia” e “mais ricos”, pela qual podemos esperar eternamente. E cepticismo não é apontar defeitos como desculpa para procrastinar.

Eu sou céptico acerca do aquecimento global, como sou acerca de muita coisa. E isto quer dizer que abordo o problema subordinando as minhas crenças à informação de que disponho. O cepticismo é este método. Não garante nem exige que eu seja a favor ou contra aquilo em relação ao qual sou céptico. Exige apenas que eu encontre a minha opinião seguindo o peso das evidências e que a mude sempre que este puxar para outro lado.

As evidências são que a temperatura está a aumentar, que o CO2 na atmosfera faz aumentar a temperatura, que nós libertamos muito CO2 para a atmosfera e que o resultado pode ser trágico para muita gente. Por isso – e por cepticismo – rejeito esta “prudência” de quem decide fumar três maços por dia enquanto não tiver a certeza que vai morrer de cancro.

1- Treta da Semana: Aquecimento? Nah...

domingo, setembro 07, 2008

Treta da Semana: Aquecimento? Nah...

O cientista erra como qualquer pessoa. Mesmo assim, a opinião partilhada por centenas de cientistas ao fim de anos de investigação merece mais confiança que a opinião de quem acha o contrário só porque lhe apetece. O Ricardo Pinho deu um exemplo recomendando a peça de propaganda de Martin Durkin, The Great Global Warming Swindle(1), à qual chamou “documentário”: «apesar de não ser perfeito, apresenta-se como o único documento de divulgação duma alternativa ao pensamento ortodoxo actual.»(2) Infelizmente, não há virtude em ser contra o pensamento ortodoxo só porque se acordou para esse lado...

Temperaturas

Esta imagem dá uma ideia do rigor científico e honestidade intelectual do “documentário”. O gráfico da esquerda é apresentada por Durkin como prova de quatro décadas de arrefecimento global e de que o aquecimento subsequente não foi grande coisa. O gráfico da direita mostra os dados de temperatura para o mesmo período, significativamente diferentes daqueles que Durkin tirou do chapéu.

Durkin afirma que os vulcões emitem mais CO2 que toda a actividade humana em conjunto. Na realidade, os humanos emitem 120 vezes mais CO2 (30 mil milhões de toneladas por ano) do que os vulcões (250 milhões de toneladas por ano)(3). E, tal como fez em “documentários” anteriores, Durkin distorceu os comentários dos entrevistados. O oceanógrafo Carl Wunsch foi um dos contemplados, e escreveu mais tarde:

«Na parte do filme "Swindle" onde eu descrevo o facto do oceano tender a expelir dióxido de carbono quando aquece, e absorvê-lo quando arrefece, a minha intenção era explicar que aquecer o oceano podia ser perigoso – porque é um gigantesco reservatório de carbono. Pela sua colocação no filme, parece que eu estou a dizer que o dióxido de carbono existe no oceano em tão grandes quantidades que a influência humana não é importante – exactamente o oposto do que eu estava a dizer – que é que o aquecimento global é real e ameaçador de muitas maneiras diferentes, algumas delas inesperadas»(4)

O “documentário” está repleto de tretas (5, 6, 7), mas a treta principal vai além disto. Concordo que não há certezas acerca do que devemos fazer. Mas não por o aquecimento ser incerto. Disso as evidências são muito fortes. As medidas da temperatura atmosférica por satélites e balões, a diminuição do gelo glaciar, a temperatura da crosta a várias profundidades e a temperatura e nível dos oceanos todas indicam o mesmo. Isto está a aquecer rapidamente (8).

E é quase certo que o que nós fazemos tem importância. Não me surpreende que antes de haver humanos as variações climáticas globais fossem causadas por outros factores, mas é desonesto defender que se pode mandar para a atmosfera trinta mil milhões de toneladas de CO2 por ano sem consequências.

Admito uma incerteza intelectual quanto ao rumo a tomar porque não conseguirmos estimar com rigor a relação entre os custos de reduzir as emissões e os custos de nos adaptarmos à alteração do clima. Mas só a um nível intelectual e abstracto e não a um nível ético porque, independentemente dos custos exactos, a redução de emissões será paga pelos ricos e a adaptação a um clima diferente será paga pelos pobres. É claramente injusto que quem está melhor lixe ainda mais quem já está mal só por ser mais cómodo.

O Ricardo conclui «que se vivêssemos numa era teocêntrica, que atribuiríamos o aquecimento a um Deus. [...] Agora crê o Homem ser o criador da Natureza, e crê ser o responsável pelo seu decurso. E crenças destas não me parecem nem produtivas nem sequer muito saudáveis. Nem para o equilíbrio da biosfera, nem para o equilíbrio mental dos seus habitantes.» Os Maias, os Anasazi, os habitantes originais da Ilha da Páscoa e de Pitcairn também atribuíam à natureza esta capacidade mágica de aguentar com tudo o que lhe fizessem. Foi asneira (9).

1- Wikipedia, The Great Global Warming Swindle.
2- Ricardo Pinho, 20-8-08, Antropocentrismo causa aquecimento global
3- US Geological Surveys, Volcanic Gases and Their Effects
4- Carl Wusch, 11-4-07, Partial Response to the London Channel 4 Film "The Great Global Warming Swindle"
5- MediaLens, 13-3-07, Pure Propaganda - The Great Global Warming Swindle
6- Real Climate, 9-3-07, Swindled!
7- Bill Butler, “The Great Global Warming Swindle” is itself a Fraud and a Swindle
8- Grist, Colby Beck, 2-11-06, 'The temperature record is simply unreliable'
9- Jared Diamond, Collapse.

quinta-feira, setembro 04, 2008

Pitágoras e as patentes.

Neste blog o copyright é um par de ténis velhos. Gasto, com mau aspecto e algum odor mas não tão confortável que não resisto se puxam pela conversa. O Wyrm justificou restringir-se a cópia de números que descrevam músicas porque dependem de um «investimento em máquinas e em pessoal». Quando apontei que os números que descrevem estruturas de moléculas ou propriedades físicas de materiais também exigem grande investimento ele retorquiu que

«Possivelmente as descobertas dos dias de hoje já têm patentes e royalties e as que tu te referes, Ludovico foram criadas/descobertas no tempo em que ainda se cagava de cócoras. Logo a ausência do tal "pagamento". Pitágoras, nos dias de hoje, teria registado a patente do seu teorema e teria sido compensado pelo seu contributo à Matemática.»(1)

Um erro menor é que as primeiras retretes datam de 2800 AC (2). A menos que tivesse problemas com a ASAE por contrafacção de retretes, Pitágoras poderia ter feito as suas necessidades sentado. Mais grave é julgar que a simulação de dinâmica molecular, contagens de supernovas, dados de reacções nucleares e de estruturas moleculares ou são patenteados ou vêm do tempo de Pitágoras. Mas o mais grave de tudo é julgar uma boa ideia patentear estas coisas. Se o fizessem é que ainda andávamos todos a cagar de cócoras.

Restringir números porque custam a encontrar é um modelo demasiado simplista porque não é esse o custo relevante, como vemos se distinguirmos os custos de criar, de distribuir e de explorar o que se criou. Se são todos irrisórios não precisamos de regulação, como com as anedotas e receitas para uso pessoal. E mesmo quando o custo da criação é grande não precisamos de impor restrições se os outros forem pequenos. Aceleradores de partículas e telescópios em órbita custam muito dinheiro mas como a informação obtida pode ser divulgada e aproveitada sem custos adicionais o financiamento não depende de direitos exclusivos. Porque para incentivar a criatividade interessa mais a educação e o acesso à informação do que deter monopólios.

Os direitos exclusivos servem para cobrir os outros custos. As patentes aplicam-se a ideias fáceis de divulgar mas que exigem um investimento significativo para explorar. Um medicamento exige testes e produção controlada, um processo de produção industrial exige uma fábrica e infra-estrutura para o explorar, e a patente incentiva este investimento na exploração das ideias.

O copyright incentiva o investimento na distribuição. É trivial tirar partido de uma história, musica ou filme. Mas é preciso um investimento considerável para imprimir livros, fabricar discos ou produzir películas, projectores e cinemas para trazer estas obras ao público. É este investimento que o copyright subsidia, tal como as patentes subsidiam o investimento na exploração industrial.

É claro que o dinheiro arrecadado graças a estes monopólios acaba por contribuir para a inovação por ser usado também para cobrir os custos de criar estas obras e ideias. Mas é importante perceber que se for só para cobrir o custo de criar é sempre melhor usar alternativas que não restrinjam nem o acesso nem o uso daquilo que já foi criado. Por um lado porque essas restrições são sempre um obstáculo à inovação e por outro porque são muitas vezes contrárias aos direitos pessoais de acesso e participação na cultura.

Por isso há problemas quando se aplica patentes ou copyright à categoria errada. A patente de uma receita não pode proibir que se faça aquele prato em casa, porque viola-se direitos pessoais sem um benefício que o compense. Sequências de genes também não devem ser patenteadas porque esta informação pode ser usada e divulgada sem mais investimento. Conceder a patente dificulta a inovação e o aproveitamento da informação sem trazer contrapartidas. E com a tecnologia digital muita coisa deixou de ter custos de distribuição. Músicas, filmes, textos e imagens ficaram na categoria da matemática e da investigação fundamental. Estas sequências de números custam a encontrar mas, uma vez descobertas, não têm custos de distribuição ou uso pessoal.

Por isso a protecção conferida a estas coisas deve agora restringir-se à exploração comercial. A cinemas, espectáculos e à venda de CDs e DVDs. De resto, o subsidio pelo monopólio é um tiro no pé da sociedade que o concede.

1- Comentário em Tudo isto por 10 ou 15%?
2- Wikipedia, Toilet
3- Matt Mason, Etymology of a Yankee. Ver também este artigo no Zeropaid.

PS: vou estar offline até Sábado ou Domingo. Mas desanquem à vontade que depois respondo.

terça-feira, setembro 02, 2008

Google Chrome

é o novo browser da Google. É open source, gratuito e tem uma data de coisas porreiras. Por exemplo, separa cada página num processo independente, o que evita bloquear o browser todo só por causa de uma página que cause um erro imprevisto, impede pop ups quando estamos a ver outras coisas e não permite que o código numa página ande a bisbilhotar o que fazemos noutras. É leve, rápido e tem bom aspecto. Infelizmente, ainda não deixa navegar só com o teclado, como o Opera. Mas como o Chrome foi concebido a pensar também nos programadores que o queiram modificar, em breve vai haver extras para todos os gostos.

Mais informação nesta banda desenhada da Google e discussão fresca no Downloadsquad. (Fica aqui um link mais permanente)

E aqui o site de onde descarregar o Chrome.

segunda-feira, setembro 01, 2008

Costumes...

O mês passado, na província paquistanesa do Baloquistão, três raparigas entre os 16 e os 18 anos foram enterradas vivas porque queriam casar com quem elas escolhessem. Na passada sexta feira o senador Sardar Israrullah Zehri, representante desta província em Islamabad, explicou que não havia arguidos porque essa forma de lidar com raparigas desobedientes faz parte «dos nossos costumes tribais» (1).

Seguindo as recomendações que me têm deixado aqui, considerei o contexto histórico, a imaturidade da sociedade paquistanesa, o número de habitantes do Paquistão e a proximidade dos Jogos Olímpicos. Pesando cuidadosamente todos estes factores concluí que se devia dar estalos àquela gente até lhes saírem os costumes tribais pelos ouvidos.

1- Ahmed Hassan, 30-8-08, Burying of women alive defended in Senate, via Pharyngula