sexta-feira, outubro 31, 2008

Como o conhecimento a priori é empírico.

Obrigado a todos que têm participado nesta conversa que me tem ajudado muito a perceber este problema. Deu-me uma ideia mais clara do que pode ser o a priori e até, ao contrário do que eu tinha defendido anteriormente, de como salvar a noção de conhecimento a priori.

Uma verdade a priori será qualquer estado acessível a pela aplicação de regras de transformação preestabelecidas e partindo de um estado inicial. Aqui uso “verdade” num sentido lato que não exige consciência nem a interpretação desses estados como proposições. Desta forma, se programarmos um computador para seguir certas regras a partir de um estado inicial todos os estados resultantes da aplicação dessas regras serão verdades a priori naquele contexto*. A noção de verdade aqui é simplesmente a de coerência com o estado inicial e com as regras de transformação, por isso uma verdade a priori é sempre relativa ao seu contexto. O conhecimento a priori é apenas o conhecimento de verdades a priori. Conhecendo as regras de transformação da álgebra e partindo do estado inicial de 2+2 eu posso conhecer a verdade a priori, neste contexto, que o resultado é igual a quatro porque essa conclusão segue do estado inicial pela aplicação das regras.

Uma consequência importante é que, nesta definição, o a priori é uma categoria ontológica e não epistemológica como o empírico. Assim percebe-se como saber que 2+2=4 é conhecimento a priori mesmo que se descubra que 2+2=4 experimentando com pedras, dedos e palitos e extrapolando daí uma regra geral, empiricamente. É a priori não pela forma como foi conhecido mas por poder resultar de se aplicar certas regras partindo de um estado inicial. Podemos então falar de objectos a priori, como por exemplo todas as jogadas possíveis do Xadrez, mas não de objectos empíricos pois empírica é a forma de conhecer esses objectos e não propriedade dos objectos em si. Posso conhecer as jogadas do Xadrez construindo peças e um tabuleiro e experimentando seguir as regras a ver o que dá.

A noção de a priori como categoria epistemológica, aquilo que se descobre «pensando somente», faria sentido se a nossa mente fosse um homúnculo algures dentro da cabeça assistindo ao que os nossos sentidos mostram e pensando acerca disso. Fechando o teatro cartesiano o homúnculo continuaria a pensar e a obter conhecimento independente da experiência, que seria definida como o que se passa no teatro e não no homúnculo. Mas esta ideia é errada. A nossa mente é gerada por redes de neurónios interligadas do cérebro aos dedos dos pés. Os neurónios interagem, as redes interagem e a consciência emerge como o borbulhar de sais de frutos. Não há uma res cogitans independente a pensar a priori nem uma divisão entre o sentir e o pensar. Está tudo ligado. Mesmo sem sentidos sentimos recordações, sentimos que somos, sentimos que pensamos. A consciência é empírica, e se o conhecimento exige consciência então o conhecimento será sempre empírico. Mesmo que a coisa conhecida seja tal que a sua verdade se possa justificar a priori, seguindo regras a partir de um estado inicial.

Outro aspecto importante é que a priori é a qualidade de ser resultado da aplicação de transformações especificadas a partir de um estado inicial, por isso nem o estado inicial nem as regras de transformação são a priori no contexto do seu sistema. Daí que não se possa fazer matemática ou lógica a priori. Só depois de feitas, depois de se especificar as regras e os axiomas, é que os resultados serão a priori, e até se pode implementar os sistemas em computadores que apliquem as regras mecanicamente.

Em suma, parece-me que o problema era confundir a forma de conhecer com a propriedade de certos objectos de resultar da aplicação de regras. 2+2=4 é a priori porque é o resultado de aplicar certas regras a partir de um certo estado inicial. Mas isto não tem nada que ver com a forma como conhecemos que 2+2=4, nem com o que nos levou a inventar essas regras ou a escolher essas em vez de outras. Quando dizemos “conhecimento a priori” estamos a qualificar a coisa conhecida e não a forma de a conhecer. A forma como conhecemos os resultados e inventamos e escolhemos regras e axiomas é sempre empírica.

PS: A palestra Higher Order Truths about Chmess do Daniel Dennett sugeriu-me algo semelhante, apesar de não ser directamente sobre isto. Não só pelos avisos aos filósofos mas pela distinção entre as verdades a priori e o nosso conhecimento delas.

* Aqui devia distinguir os processos físicos do aspecto conceptual, mas isso dava mais uma carrada de posts e se calhar é impossível. Ao que tudo indica, o conceptual é um tipo de processo físico que ocorre no nosso cérebro.

quinta-feira, outubro 30, 2008

Para que serve a teoria da evolução?

Num longo post sobre o debate em Oeiras, o Mats perguntou: «qual é a utilidade da crença que diz que o mundo biológico é o resultado de milhões de mutações aleatórias? O que é que me interessa se o pássaro evoluiu de um dinossáuro? De que forma a ciência progride quando se “sabe” que a mão da minha irmã, a pata do gato dela e as asas dos morcegos tem uma origem natural comum? O que é que isso afecta a forma que eu vivo?»(1)

A teoria da evolução tem muitas aplicações práticas. Para dar um exemplo detalhado da área onde trabalho, é a teoria da evolução que permite modelar a estrutura de uma proteína com base na estrutura de outra que, quimicamente, tem tanto de diferente como de igual (50% de identidade na sequência é suficiente para ter um modelo fiável). À partida isto não devia ser possível, pois com tantas diferenças químicas seria de esperar uma estrutura muito diferente. Mas como sabemos que estes genes descendem de ancestrais comuns e como as alterações que deformam demasiado a estrutura são eliminadas pela selecção natural, podemos concluir que as diferenças químicas entre estas proteínas têm pouco impacto na sua estrutura. E isto funciona mesmo que uma proteína seja de ervilha e a outra de baleia.

A teoria da evolução é fundamental em quase toda a bioinformática, desde estes estudos estruturais à organização e integração de bibliotecas de genes. Sem a teoria da evolução em vez de conhecimento teríamos centenas de milhões de cromos e nenhum sitio onde os colar. Pensar que cada ser foi criado de acordo com a sua espécie não ajuda nada.

A teoria da evolução também é importante na medicina para conceber drogas novas, seleccionar modelos para testar medicamentos ou estudar doenças, prescrever antibióticos ou vacinas, combater epidemias e até, cada vez mais, para compreender a origem de vários problemas de saúde. Também serve para gerir pescas, controlar pestes agrícolas e optimizar o uso de pesticidas, recuperar espécies em perigo de extinção, criar enzimas e antibióticos novos e até para algoritmos de aprendizagem automática.

Mas isto são só aplicações práticas. Mais importante ainda é a teoria da evolução nos dar uma explicação unificadora para as características da vida na Terra. Quando Newton explicou da mesma maneira coisas tão diversas como a queda da maçã, a estabilidade dos edifícios, as marés e a órbita da Lua, só alguém muito pobre de espirito perguntaria “pois, mas para que é que isso serve?”. A teoria da evolução explica da mesma forma todos os organismos que existem e todos os que já existiram. O criacionismo, em contraste, não explica nada. É tudo capricho do deus que criou o leão com dentes enormes só porque lhe apeteceu visto que, supostamente, nessa altura o leão só comia caldo verde e saladinhas.

Finalmente, é melhor crer na verdade do que numa patranha. O valor principal da ciência é dar-nos um caminho para a verdade. O caminho pode nunca acabar, tem buracos e desvios que nos enganam, mas é este o caminho. Em retrospectiva, é óbvio que estamos hoje muito mais esclarecidos acerca do universo do que estava quem escreveu o génesis.

O problema do criacionismo não é desconhecerem as aplicações práticas da teoria da evolução. Nós todos usamos tecnologia sem compreendermos em detalhe de onde vem. O mal do criacionismo é ter os valores invertidos. O criacionista ferrenho recusa a compreensão e a verdade para proteger a sua crendice. E mesmo que não deseje mutações a ninguém deseja contagiar todos com essa ignorância propositada e cegueira mental.

Os criacionistas dizem que o criacionismo é a palavra infalível de um deus omnipotente e omnisciente. Pois então deixem que esse deus fale por si. Com tanta omnicoisa conseguirá certamente explicar o que fez e mostrar que o criacionismo é verdade. Mas não sendo os criacionistas omnipotentes nem omniscientes, não é só por dizerem que têm razão que lhes compro a treta que querem vender.

1- O post é Evolucionismo vs Criacionismo em Oeiras. Obrigado ao – com – por me ter apontado isto.

quarta-feira, outubro 29, 2008

Modelos e experiência.

O Cordeiro Lobo apontou o que me parece ser um problema importante nesta discussão que tenho tido com o Desidério acerca do conhecimento a priori:

«Um objecto não empírico, em que o modelo é o próprio objecto, por exemplo, um qualquer objecto matemático ou relacional, exige as suas regras próprias de experimentação para aquilatar da sua coerência.
A confusão do Krippahl parece-me resultar de que ele concebe a realidade apenas como realidade empírica, sem se aperceber que o próprio pensado, o conhecimento, faz parte da realidade e não é objecto empírico.»


Quando imaginamos um cavalo temos na mente um modelo do cavalo e não um cavalo. E quando imaginamos um plano infinito também não nos cresce um plano infinito na mente. Não é verdade que os objectos matemáticos sejam os modelos mentais que temos deles nem que estes modelos mentais sejam independentes da experiência. São construídos com base na nossa experiência. Imaginamos um plano infinito imaginando algo plano e acrescentando o equivalente mental de reticências nos extremos. Duvido que alguém consiga imaginar um plano mesmo infinito.

E não é por inferências abstractas que concluímos que temos esses modelos na nossa mente ou que são representações de algo. Sentimo-lo, não o deduzimos de alguns princípios fundamentais. É também por experiência que vamos aperfeiçoando esses modelos. Não se aprende matemática num lampejo de raciocínio a priori. Aprende-se com momentos de confusão, erros, exercícios, exemplos, correcções e assim por diante. Empiricamente.

E nem os génios lá chegam sem depender da experiência a cada passo. Não foi coincidência que a geometria de Euclides se fazia com compassos e fios esticados, ou que os axiomas e demonstrações eram obviamente extrapolados da experiência de desenhar figuras geométricas. A geometria analítica seguiu-se só dois mil anos depois porque foi preciso a experiência acumulada de muitos matemáticos até Descartes aprender e conceber os conceitos que precisava para fazer o que fez.

A confusão do conhecimento a priori parece dever-se a vestígios de platonismo. A divisão da realidade em empírica e não empírica, por exemplo. O que é empírico é o conhecimento, não a realidade. Schaeffer determinou as sequências de jogadas de damas que dão empate ou vitória pondo computadores a experimentar todas as possibilidades. Mas não faz sentido chamar “objecto empírico” ao conjunto das jogadas de damas. A noção que pensar é manipular Ideias no mítico mundo do a priori é outra nódoa platónica. Quando fazemos contas de lápis e papel o que acontece é que as redes neuronais no nosso cérebro reconhecem padrões e recordam algoritmos, somas e tabuadas. Em último caso recorremos à experimentação directa contando pelos dedos. O nosso processo de cálculo é uma sequência de tarefas de reconhecimento de padrões e assenta na nossa experiência. A matemática como raciocínio a priori é um relato romântico de uma realidade mais prosaica, e quem duvidar que verifique empiricamente quanto treino é preciso para se ser um matemático competente.

Não digo que o a priori seja um termo inútil. Designa as partes do processo de conhecimento que podem ser desligadas da experiência e, por isso, deixadas a cargo de máquinas, sistemas formais e assim por diante. Desde que inventámos a matemática que os nossos modelos ultrapassaram o nosso conhecimento, e agora com os computadores isso é cada vez mais evidente. Mas é a capacidade (ainda) misteriosa de criarmos modelos intencionais* que nos dá conhecimento. O que está nos computadores ou nos livros não é conhecimento se não for interpretado por quem os sinta como sendo modelos de algo. E a intencionalidade não se infere a priori. Tem que adquirir pela experiência. Empiricamente.

Se um dia os computadores forem capazes de perceber que os modelos que têm são acerca de algo então terão conhecimento. Mas apenas porque deixarão o a priori e passarão a experimentar.

*Este termo engana mas dá um jeitão. Em filosofia, intencionalidade é a propriedade de ser acerca de algo. O que normalmente chamamos de intenção é intencional, mas também o é a crença, o desejo, e uma data de coisas na nossa consciência ou linguagem que são acerca de outras coisas. Mais sobre isto na Wikipedia»

terça-feira, outubro 28, 2008

Vinte e oito mil sexos.

Se acham que é difícil compreender o sexo oposto, sorte vossa não serem um Schizophyllum commune. Esta espécie de cogumelo tem vinte e oito mil sexos diferentes.

Nos fungos o sexo é determinado por alelos de certos genes*, com a compatibilidade sexual dependendo dos parceiros terem alelos diferentes em todos. O caso mais simples é só um gene com dois alelos, que dá dois sexos, e cada indivíduo será compatível com metade da população e metade dos seus parentes mais próximos. Aumentando o número de alelos de um só gene aumenta a proporção da população com a qual o indivíduo é sexualmente compatível (e aumenta o número de sexos), sendo sempre incompatível com metade dos seus parentes próximos, com quem partilha o seu alelo.

O Schizophyllum commune tem dois genes que controlam o sexo, e são conhecidos mais de 300 alelos para um e mais de 90 para outro, dando para cima de 28,000 sexos diferentes. Como cada sexo só é compatível com os sexos com alelos diferentes em ambos os genes, cada indivíduo é compatível com só com ¼ dos seus parentes próximos mas é sexualmente compatível com 99.98% da população em geral. Isto permite a cada Schizophyllum commune encontrar facilmente parceiro mas evitar cruzar-se com parentes próximos. Talvez seja esta adaptação, e a diversidade genética resultante, que fez deste um dos cogumelos mais bem sucedidos do mundo.

Fica aqui a ligação à página do Tom Volk sobre este cogumelo. Uma boa leitura quer para os criacionistas que acham impossível o sexo ter surgido sem um acto divino (que tal vinte e oito mil milagres?) e para os fundamentalistas que acham que o que é natural é só acasalar machos com fêmeas.

* O artigo original refere loci em vez de genes. Tecnicamente é mais correcto porque o termo “gene” pode querer dizer muita coisa enquanto que locus é uma posição específica nos cromossomas. Mas não queria estragar o post com palavrões mais estranhos do que necessário.

Via Sandwalk.

segunda-feira, outubro 27, 2008

Ainda o conhecimento a priori...

Kant definiu o conhecimento a priori como sendo totalmente independente da experiência. Uma definição clara que, infelizmente, excluía todo o conhecimento. Por isso tem-se tentado resgatar o conceito aludindo de forma vaga a uma intuição racional à parte da experiência. O sucesso da empreitada é, até agora, duvidoso. Alguns filósofos até propõem que algo como “todo o acontecimento tem uma causa” é justificável a priori (1), quando esta intuição resulta da nossa experiência com acontecimentos macroscópicos. Se pudéssemos ver acontecimentos subatómicos teríamos a intuição inversa. Mas o Desidério explicou assim o termo:

«O a priori nada tem a ver com anterioridade, mas apenas com isto: depois de eu aprender os conceitos relevantes, depois de o meu cérebro se ter formado, depois de tudo isso, não posso saber se há água em Marte pensando apenas, por exemplo. Por isso, diz-se em filosofia que esse conhecimento é a posteriori. Mas estando na mesma situação, tudo o que tenho de fazer é raciocinar para saber o resultado de uma operação aritmética.»(2)

Se o «tudo isso» incluir a verdade de proposições como “há gelo em Marte” eu poderia, pensando apenas, concluir que há água em Marte. Mas isto o Desidério dirá que não conta porque não se pode saber a verdade de “há gelo em Marte” sabendo apenas o que a frase significa, e o conhecimento a priori é aquele que se deriva apenas do conhecimento (empírico) do significado das proposições. E, sendo assim, concordo com o Desidério que saber que há água em Marte será conhecimento a posteriori, pois precisamos saber mais que o significado dos termos. O problema é que na matemática também.

Nós conseguimos calcular o resultado de uma operação aritmética porque aprendemos por experiência como isso se faz. Mas imaginemos um génio que fazia tudo do início, «pensando apenas» e partindo somente do significado dos termos. Não ia a lado nenhum. A matemática e a lógica precisam de axiomas e os axiomas não são verdade apenas pelo significado dos termos. Se fossem bastava o significado dos termos e não era preciso axiomas.

Por exemplo, para a geometria euclideana precisamos assumir que “dada uma recta e um ponto fora desta só há uma recta que contém o ponto e é paralela à primeira”. Mas isto não segue do significado de “ponto” e “recta”, tanto que geometrias não-euclideanas usam axiomas diferentes. Por isso não se pode fazer matemática «pensando apenas». Temos que partir de premissas que não se pode justificar a priori. E se afrouxarmos este critério permitindo um ponto de partida empírico, alegando que o resto é a priori, então também se pode saber a priori que há água em Marte. Basta permitir uma premissa como “há gelo em Marte”.

Por isso discordo do Desidério quando ele afirma que o conhecimento a priori «parece óbvio — fazemos matemática e lógica sem termos de recorrer à experiência: limitamo-nos a pensar.» Tanto numa como noutra, sem a experiência não tínhamos sequer como começar a pensar. Felizmente, parece que o Desidério também discorda pois adiante escreve «Outra posição muitíssimo radical, e que eu favoreço, é que sem o concurso da experiência e do a priori nada poderia ser conhecido.»

O que me parece é que a tentativa de dividir o conhecimento em a priori e a posteriori foi uma ideia engraçada de Kant que não deu em nada. Os termos foram ficando cada vez mais vagos, a distinção cada vez mais ténue e confusa e a utilidade de os distinguir cada vez mais questionável. Como o Desidério ilustrou: «um computador desligado da internet pode responder-nos à pergunta sobre uma operação aritmética, mas não pode dizer-nos se há água em Marte». O computador pode dizer o que quer que tenha sido programado para dizer, seja sobre Marte seja sobre a álgebra. Se tiver as premissas correctas e a programação adequada dará a resposta certa. Caso contrário sai asneira. E mesmo que o a priori seja igual para ambos, enquanto que eu sei fazer contas o computador apenas as faz sem saber. Sem acesso à experiência o computador nunca vai saber nada porque é esse aspecto empírico que distingue conhecimento da execução cega de procedimentos.

1- Ver mais detalhes nesta entrada da SEP, que o Desidério também referiu.
2- Desidério Murcho, 18-10-08, A priori.

domingo, outubro 26, 2008

Testar teorias.

No debate em Oeiras o Marcos Sabino perguntou como é que se podia testar a teoria da evolução se esta permite que populações aumentem de complexidade, diminuam, ou se mantenham igualmente complexas. Não é um problema. A física também permite que corpos subam, desçam ou se mantenham à mesma altitude. Em muitos casos as teorias especificam apenas relações entre os parâmetros dos modelos. Por exemplo, se a força é o produto da massa pela aceleração sabemos que aplicando uma força de um newton a uma massa de um quilograma a aceleração será de um metro por segundo a cada segundo.

A teoria da evolução permite calcular a probabilidade de fixação por deriva genética sabendo o tamanho da população, a diversidade genética no equilíbrio conhecendo a deriva e a taxa de mutação, o contributo da selecção natural pelo sucesso reprodutivo e assim por diante. Nem a física diz que tudo tem que descer nem a evolução que tudo tem que ficar mais complexo. Apenas restringem as condições em que isso acontece, determinando uns parâmetros em função de outros. E a teoria em abstracto não é directamente testável. Não podemos testar uma equação sem lhe atribuir valores concretos. Por isso avaliamos as teorias pelo sucesso dos modelos que estas geram de acordo com dois critérios.

Por um lado, a teoria tem que gerar modelos que correspondam ao que observamos. A teoria que a força iguala a massa a dividir pela aceleração gera modelos contrários ao que se observa, o que justifica rejeitar a teoria. Por outro lado, a teoria tem que ser suficientemente restritiva para que uns parâmetros do modelo determinem os restantes. Uma teoria frouxa que diga apenas que a força é qualquer função da massa e da aceleração permite criar modelos para qualquer conjunto de dados mas serão modelos são inúteis. Cada modelo precisa de todos os parâmetros, não diz nada de novo e a teoria não organiza os factos numa explicação coerente.

Rejeitaríamos a teoria da evolução se falhasse qualquer destes critérios, se só gerasse modelos incorrectos ou se os modelos precisassem de todos os parâmetros sem especificar nenhum em função dos outros. Mas não é isto que acontece. Por exemplo, se a vida surgiu só uma vez neste planeta a teoria da evolução exige que as características de todos os seres vivos se distribuam como se formassem uma grande árvore de família. Esta exigência é extremamente restritiva (a probabilidade de ocorrer por acaso é o que os criacionistas chamam de impossível) e é confirmada por tudo o que descobrimos até agora, da genética molecular à anatomia comparada.

O criacionismo falha estes testes. A sua forma mais restritiva assume que cada organismo foi desenhado com perfeição mas dá modelos incompatíveis com os dados. Quando os ratos dos navios começaram a dizimar a fauna de ilhas remotas os biólogos tiveram que concluir que a suposta criação era menos que perfeita. Um deus inteligente não ia criar pássaros que ficassem impávidos enquanto os ratos lhes comiam as crias. E ao tentar explicar tudo por milagres e pelo pecado da maçã a teoria fica tão frouxa que não segura nada.

E não é apenas o criacionismo. Crentes mais moderados tentam fugir da ciência (“transcendê-la”, dizem) tornando as suas hipóteses impossíveis de testar. O deus invisível e assim por diante. Isto não funciona. As hipóteses acerca de factos estão todas no domínio da ciência. Todas estas podem ser consideradas e avaliadas pela ciência. Só que aquelas que são impossíveis de testar são imediatamente rejeitadas por não cumprirem aqueles requisitos mínimos de aceitabilidade. São frouxas demais para dar informação que se justifique assumir correcta e não servem para explicar nada.

É deste erro que vem o chavão das religiões darem respostas factuais que ciência não pode dar. Os critérios das religiões é que são demasiado permissivos. Cada uma aceita como resposta qualquer coisa que concorde com os seus preconceitos. E como isto é insuficiente para a ciência cria-se a ilusão que a ciência não consegue encontrar estas respostas. Na verdade, a ciência é capaz de as encontrar e de as avaliar. Só que as rejeita porque não servem.

sábado, outubro 25, 2008

Treta da Semana: Para sua conveniência.

No Público de hoje saiu a notícia de um carro de compras “inteligente”, com um computador e um monitor, que indica a localização de cada produto seleccionado e as promoções do dia. É um sistema personalizado, com login e password, que guarda a lista de compras e até informação acerca de alergias para avisar quem queira comprar produtos aos quais é alérgico. «É uma forma de ajudar o consumidor a poupar e a fazer as compras num mais curto período de tempo.»(1) Como sabemos, o objectivo das lojas e supermercados é ajudar o consumidor a poupar.

Este é um descendente mais sofisticado dos cartões de cliente, tão comuns agora, onde os supermercados registam tudo o que compramos. Só que o novo sistema não só regista o que compramos como também o que tencionávamos comprar, por onde passámos no supermercado e quanto tempo ficámos em cada sítio. E tira partido dos chips RFID*, que começam a substituir os códigos de barras. Os chips RFID podem ser lidos à distância, via rádio, e cada chip tem um código único. Ao contrário dos códigos de barras, que são atribuídos a um tipo e modelo de produto, o código de RFID identifica cada objecto. Cada par de sapatos ou calças, cada mochila ou casaco terá um código que poderá ser lido em cada loja onde entramos.

A capacidade de armazenar, recolher e processar informação cresce tão depressa que apanha a sociedade de surpresa; as leis contrárias aos interesses económicos e as atitudes das pessoas têm ambas demasiada inércia para responder a mudanças rápidas. Por isso a lei promove a recolha e retenção de dados pessoais e os consumidores não se preocupam com a informação que dão. E não percebem que os dados recolhidos ficam lá para sempre. Não lhes preocupa que a seguradora a quem vão pedir um seguro de saúde daqui a dez anos possa saber se compraram mais presunto e chocolates do que iogurtes e fruta. Ou que na entrevista para um emprego a empresa saiba se compraram fraldas e leite para bebé nos últimos meses. Ou que se guarde registos dos telefonemas que fizeram, das portagens por onde passaram e assim por diante.

Interesses económicos levam a lei a proteger a informação em função do valor comercial dos monopólios, e o estado a proibir, fiscalizar e punir com prisão a troca de ficheiros de músicas que são vendidas ao público a menos de um euro cada uma. Mas o que a lei devia proteger primeiro é a privacidade. Muito antes de regular o comércio de informação que foi voluntariamente tornada pública devia restringir a recolha e retenção não autorizada de dados privados. Se publico isto aqui abdico voluntariamente do direito exclusivo a estas palavras. Mas não é por ir ao supermercado ou fazer um telefonema que dou a outros o direito de bisbilhotar as minhas compras ou chamadas telefónicas.

Além de dificultar a distribuição e o acesso à cultura, a noção corrente de informação como propriedade faz perder de vista o que nos interessa na informação. Não são os bytes em que se codifica mas aquilo acerca do que ela é. E se há informação que merece um monopólio é a informação acerca da nossa vida pessoal, não a informação acerca de obras disponíveis ao público. Não é da nossa conveniência que a lei proteja o negócio das empresas em vez da privacidade das pessoas.

* Radio-Frequency Identification, mais detalhes na Wikipedia
1- Público, 25-10-08, Empresa portuguesa desenvolve carrinho de compras que ajuda consumidor a poupar

sexta-feira, outubro 24, 2008

A conversa na Aldeia Global.

O debate de ontem em Oeiras foi animado e teve uma participação excelente por parte da audiência. Gostei de lá ter estado. Infelizmente, deixaram usar o projector durante a sessão de perguntas. Já tinha acontecido em Braga, no debate de Abril (1). Quando se responde a uma pergunta da audiência mostrando slides acabam por ser os slides, e não a pergunta, a conduzir as respostas. E como um slide puxa outro, cada resposta tende a arrastar-se para além do razoável. E ontem foi ainda pior porque o Jónatas Machado andava à procura dos slides enquanto eu respondia às perguntas.

Reparei nisto na altura, pelo canto do olho, no monitor que tínhamos ao pé de nós. Mas só percebi o efeito depois do debate quando algumas pessoas me explicaram o problema. Realmente, slides criacionistas, em rápida sucessão, projectados na parede atrás de mim enquanto eu falava deve ter incomodado a audiência. Certamente não era a intenção do Jónatas, mas temo que algumas pessoas tenham ficado com a impressão que a monopolização do projector durante o debate foi um acto deliberado. De futuro vou pedir que se desligue o projector no fim das apresentações. Os audiovisuais são muito bons mas para conversar é melhor sem bonecos.

A conversa tocou alguns temas que gostava de comentar (e desabafar) aqui. Um que surge sempre nestas coisas é que a ciência não encontra respostas para tudo. O que é verdade e pertinente mas não implica, por si só, que possam encontrar essas respostas de outra forma. A ciência é um método imperfeito para conhecer os factos mas é o melhor método que temos. Por isso é sempre de desconfiar quando alegam conhecimento de factos por portas travessas.

O Jónatas mencionou várias vezes que tanto a ciência como o criacionismo dependem de premissas e que o criacionismo também dá muitas explicações. A estratégia criacionista de reclamar a legitimidade da ciência sem abdicar da fé obriga-os a deixar as verdades a meio. A ciência é o método de analisar criticamente as premissas à luz dos dados. Depende de premissas mas as premissas de que depende têm o pescoço na guilhotina do teste empírico. Não estão trancadas em casa como as do criacionismo. E o criacionismo explica tudo ad hoc. Vemos estrelas a milhões de anos luz porque a luz andou mais depressa no passado, ou foi criada já em caminho, ou o tempo é diferente nas estrelas. As proporções de isótopos nas rochas são porque a radioactividade acelerou e abrandou q.b. para encaixar toda a geologia na Bíblia e Deus fez milagres para evitar que a Terra explodisse com a brincadeira (2). Em contraste, a ciência explica fenómenos diversos de uma forma coerente. Só assim se pode compreender o que quer que seja. Por exemplo, o universo ter milhares de milhões de anos é uma explicação unificada para estes dados que os criacionistas “explicam” com uma multidão incoerente de desculpas esfarrapadas.

E a humildade. Essa aparece sempre. Os cientistas têm que ser humildes e admitir que são falíveis. Curiosamente, os crentes não. Podem apregoar que têm no seu livrinho a palavra infalível do seu deus e ninguém lhes chama presunçosos. Eu não tenho problemas em admitir que sou falível. E nem é humildade. É apenas respeito pela realidade. Mas se alguém me diz saber pela sua fé que a Lua é feita de queijo eu, na minha humilde falibilidade, tenho que retorquir que isso é uma treta.

Aliviado com o desabafo e de espírito mais leve já consigo passar aos agradecimentos. Agradeço ao Vasco Trigo a sua moderação amável, as perguntas pertinentes e o seu esforço na dura tarefa de bloquear avalanches de slides. Agradeço o convite aos organizadores, e especialmente à Maria José Amândio a sua simpatia, atenção e paciência para todos os meus emails. E agradeço ao Jónatas a sua contenção pois penso que, apesar de tudo, conseguiu deixar por comentar alguma meia dúzia da centena de slides que trouxe.

1- XX Jornadas Teológicas
2- Miscelânea Criacionista: o decaimento radioactivo.

quinta-feira, outubro 23, 2008

Lembrete.

Hoje às 21:30 vou estar na Biblioteca Municipal de Oeiras para uma conversa com o Jónatas Machado. Vamos falar sobre o criacionismo e a teoria da evolução (que infelizmente chamaram de evolucionismo).

Mais detalhes no blog Oeiras a Ler.

Dúvidas claras não são certezas.

O Alfredo Dinis dedicou à minha intervenção uma boa parte do seu post sobre a Jornada Fé e Ciência, o que agradeço. E concordo com a sua apreciação da jornada. Também me pareceu um diálogo produtivo, e tão interessante que não resisto continuá-lo. O Alfredo resume assim a minha intervenção:

«A argumentação de Krippahl partiu de diversos pressupostos insustentáveis:
1- a crença em Deus e a própria existência de Deus é uma hipótese empiricamente testável;
2- as narrações mitológicas presentes em todas as religiões, devem ser submetidas a uma crítica científica;
3- uma vez provada a não sustentabilidade das narrações mitológicas de uma religião, pode-se negar a sustentabilidade de todas as demais narrações dessa religião, incluindo as de carácter factual;
4- termos como ‘ciência’, ‘Deus’, ‘realidade’, etc, não necessitam ser definidos;
5- o termo racionalidade aplica-se apenas à metodologia científica;
6- qualquer pessoa que assuma uma crença religiosa deve necessariamente rejeitar como falsas todas as demais crenças religiosas.»
(1)

Concordo que estes pressupostos são difíceis de justificar. Felizmente, não são os meus. Eu não exijo que a existência de qualquer deus seja empiricamente testável. Simplesmente rejeito as garantias dos crentes que a do seu, ao contrário das dos outros, não é. Também não exijo que considerem a sua crítica científica. Mas se o Alfredo Dinis afirma que as outras narrações são mitológicas é porque as criticou e as considerou indignas de se considerar verdadeiras. O que eu peço aos crentes é que me justifiquem a discriminação que o Alfredo faz no terceiro ponto, quando diz que algumas são de “carácter factual”. Ter fé ou ver numa narrativa uma fonte de inspiração não chegam para justificar tratá-la como factual. Certamente que ao longo da história muitos que criam naquilo que o Alfredo considera mitológico sentiram a mesma fé e inspiração.

Quanto ao quarto ponto, concordo que é preciso definir os termos para que nos possamos compreender. Se ao dizer “deus”, “realidade” ou “ciência” durante a minha palestra tivesse reparado que ninguém percebia o que eu queria dizer teria tentado corrigir o problema. Mas na altura ninguém se queixou, e quando os termos transmitem adequadamente o que se pretende é contraproducente defini-los demais. Platão mostrou-o nos seus diálogos, e já há muita gente que abusa das definições para baralhar em vez de as usar para esclarecer. E o Alfredo admite adiante que a minha intervenção não sofreu por indefinição:

«Creio no entanto que Krippahl utilizou necessariamente todos os conceitos presentes na sua argumentação com um sentido preciso, e nos convidou, consciente ou inconscientemente, a aceitar esse sentido e não outros, sobretudo outros que estivessem em contradição com a sua cadeia argumentativa.»

O que me parece razoável. Se eu digo “crença” no sentido de fé religiosa ou convicção, espero bem que a audiência não julgue que refiro credencial, crédito diplomático, desconfiança ou birra. E se os deixo sem saber o que eu queria dizer ou estou a meter os pés pelas mãos ou estou a fazer teologia.

Mas penso que o Alfredo revelou um problema importante neste diálogo entre ateus e crentes quando escreveu que «O que mais me impressiona em Krippahl é a sua atitude de quem tem tudo claro na sua mente, de quem não tem qualquer dúvida seja sobre o que for, e que em matéria de religião já provou tudo o que havia a provar.» É verdade que eu tento ser, no que digo e no que penso, o mais claro que consigo. Nunca sou tão claro como gostava, mas tento sempre. Mas o que tenho claro na minha mente são principalmente dúvidas e as razões porque duvido. Duvido, por exemplo, que se houver uma religião correcta calhe logo ser a do Alfredo porque o Alfredo não me dá justificações diferentes das que me dão os crentes de outras religiões.

O que é pena, e dificulta o diálogo, é que os crentes confundam clareza com certeza. E como as dúvidas dos ateus são mais claras que as certezas dos crentes, acabam por nos julgar dogmáticos e intolerantes só por duvidarmos das crenças deles.

PS: Neste fim de semana, se tiver tempo, preparo o vídeo com os slides e a gravação da minha palestra para pôr online. A ver se o que eu disse é parecido com o que o Alfredo relata. Espero que não...

1- Alfredo Dinis, Jornada Fé e Ciência

quarta-feira, outubro 22, 2008

Definir Deus.

Eu propus que a definição do termo “Deus” não serve para excluir da ciência o problema da existência de Deus. O comentário do Alfredo Dinis, «Discordo completamente e se não é evidente para ti que o que dizes não faz sentido e é inaceitável, não creio que valha a pena insistir»(1), fez me suspeitar que devia explicar melhor este ponto. Começo por um exemplo menos problemático. A definição do termo “Alfredo Dinis” não serve para excluir da ciência o problema da existência do Alfredo Dinis. O Alfredo Dinis é mais do que uma definição.

O pentângulo não. Posso definir “pentângulo” como “figura geométrica com cinco ângulos”. Como é apenas um conceito abstracto posso fazer dele o que quiser e a minha definição não pode estar errada. É simplesmente o que eu exijo para considerar algo um pentângulo e o termo não faz mais que representar a minha definição. Mas o termo “Alfredo Dinis” faz mais que isso. Independentemente de como eu o defina, este termo também refere o Alfredo Dinis*. Assim a minha definição não dita o que o Alfredo Dinis é mas apenas exprime o que eu possa julgar que ele seja. Se eu definir o Alfredo Dinis como “figura geométrica com cinco ângulos” a única coisa que faço é criar uma ideia errada do Alfredo DInis. O Alfredo, felizmente, nada sofre com este meu erro.

Por isso só se o termo “Deus” for usado puramente como um conceito abstracto é que temos que levar a sério uma definição como “ser invisível cuja existência nunca poderá ser testada”. E mesmo assim está fora da ciência por ser rejeitado e não, ao contrário do que muitos propõem, por a ciência evitar pronunciar-se sobre o assunto. A ciência não se pronuncia sobre hipóteses como a do gelado de chocolate ser melhor que o gelado de baunilha. Mas a hipótese de existir um ser cuja existência nunca poderá ser testada a ciência recomenda que se rejeite. E com razão. É uma hipótese inútil, infundada e que mesmo que seja verdade nem faz diferença nem pode ser justificada.

Mas Deus não é um mero conceito abstracto. Por isso quando um crente diz “Deus é ...”, tudo o que se segue deve ser encarado como uma especulação acerca dos atributos de Deus, uma definição de um modelo e não do deus em si. E os crentes reconhecem-no. Qualquer coisa que me mostrem que não seja uma figura geométrica com cinco ângulos eu não considero um pentângulo. A minha definição é aquela e é aquela que eu uso dê lá por onde der. Mas suponham que um ser desce à Terra e demonstra a toda a gente, sem sombra de dúvida, que é o criador do universo, que encarnou em Jesus, que morreu pelos nossos pecados e ressuscitou. Nenhum católico que aceitasse a verdade disto tudo diria que este não é o seu deus porque o seu deus é invisível. Aquilo que nos apresentam como sendo a definição de Deus não passa de uma suposição acerca dos atributos desse ser hipotético. E se a ciência pode ou não estudá-lo não se resolve por mera suposição.

Pior ainda, o deus da mitologia católica está associado a muitos acontecimentos com implicações testáveis. Engravidou Maria sem que ela perdesse a virgindade, nasceu Jesus, ressuscitou e foi para o céu, e Maria também ascendeu de corpo e alma. De momento não conseguimos testar isto, mas por meras limitações tecnológicas. Em princípio, isto é tudo testável. E esta religião já se deu mal várias vezes por fazer afirmações testáveis confiando que fossem demasiado difíceis de testar.

Em suma, muitos crentes invocam definições como “ser não testável” para isentar o seu deus de critérios pelos quais rejeitam os deuses dos outros. Mas tal definição não determina o que o deus é; apenas exprime o que os crentes o julgam ser. É uma opinião tão falível como qualquer outra, mais falível que a maioria, e é só parte da história porque muitas religiões acabam por associar aos deuses actos e efeitos passíveis de falsificação.

* Ver também este post do Desidério sobre definições. A mim parece-me mais razoável considerar que todas as definições estipulam conceitos e que a diferença entre a definição nominal e real é apenas se o conceito corresponde a algo mais. Mas o post do Desidério elabora em mais detalhe os diferentes tipos de definição.

1- Comentário em Jornada Fé e Ciência

terça-feira, outubro 21, 2008

E tentar escolher.

O problema de saber qual dos gelados é de baunilha ou de chocolate é diferente do problema de escolher qual deles vou comer. A pergunta “de que é feito?” tem uma resposta algures na realidade e tentar sabê-la é ir à sua procura. É ciência (1). Mas a pergunta “qual hei de comer?” não tem uma resposta por descobrir. Não me adianta procurar entre os factos porque não vou lá encontrar uma resposta para isto. Tenho que inventar uma resposta. Tenho que escolher. E se estou com outra pessoa e só há estes dois gelados temos um problema ético. Mesmo sem haver resposta temos que inventar uma resposta que satisfaça ambos senão acabamos à pancada.

Esta é uma área filosófica por excelência. Na ética queremos que impere a argumentação racional, a especulação sobre questões de princípio e toda a parafernália filosófica porque, à parte de patranhas, ameaças ou subornos, não há outra solução para estes problemas. Porque nenhum facto pode decidir por nós, o diálogo filosófico é a única forma honesta de inventar em conjunto respostas para perguntas que não as têm, mas que nem por isso deixam de ser importantes.

A ciência tem aqui um papel limitado. Permite prever as consequências das nossas escolhas, o que é relevante. Mas, em última análise, o conhecimento dos factos é insuficiente para determinar a escolha. Podemos saber pela ciência quantas vidas se salva e quanto dinheiro custa reduzir o limite de velocidade nas auto-estradas para 80 km/h. Mas nada nestes factos é objectivamente bom ou mau e precisamos decidir nós se é melhor salvar vidas ou se é melhor andar depressa e poupar dinheiro em transportes e fiscalização.

E as religiões não tem papel nenhum nisto. Na ética, as religiões são patranha, ameaça ou suborno. Muitas vezes os três. A ameaça e o suborno são evidentes nos prognósticos de quem fala da vida depois da morte como se soubesse mais disso que quaisquer outros. E é patranha fingir que um alegado facto acerca da vontade de um deus hipotético pode resolve um problema de valores. Não resolve nada. Mesmo que um deus mande que seja eu a comer o gelado de chocolate continua por decidir se será justo ficar o outro desgraçado com o gelado de baunilha.

A filosofia faz parte do processo de adquirir conhecimento. Eu gosto da filosofia da ciência em parte porque esclarece questões que os cientistas muitas vezes ignoram e em parte porque é a mais científica das filosofias. Mas no conhecimento a filosofia é apenas o primeiro passo de muitos. As respostas estão lá fora e não é só com conversa que as vamos encontrar. Neste campo a ciência influencia muito mais a filosofia do que vice-versa.

Mas na ética a filosofia é tudo. É só o primeiro passo mas não há mais passo nenhum. Na ética temos que argumentar, definir os termos, perceber o que queremos e, uma vez dispondo dos factos e conhecendo as consequências das alternativas, escolher em conjunto o rumo a seguir. Concordo que o papel da ciência na ética é limitado. Os factos são necessários para uma escolha informada mas os factos não escolhem por nós. É pena é que tantos dos que defendem manter a ciência fora da ética não percebam que o mesmo se aplica às religiões. O que dizem que um deus proíbe ou permite é tão relevante para a ética como a massa do electrão.

1- Este post é um complemento a Tentar saber.

domingo, outubro 19, 2008

Treta da Semana: Definir coisas.

Na Jornada Fé e Ciência, ontem em Braga, encontrei vários exemplos de um problema recorrente nas discussões sobre religião. A confusão entre a definição de um termo e os atributos daquilo que o termo designa. É como se pudéssemos definir as coisas em si. Por exemplo, que a ciência não se pode pronunciar acerca de Deus porque Deus não tem atributos ou efeitos detectáveis. Ou que a fé nos dá um caminho para o conhecimento que não requer verificação independente. E o exemplo clássico, como definir o amor.

Não definimos o amor tal como não definimos o tijolo. O que podemos definir são as palavras “amor” e “tijolo”, e isto, em última análise, exige a presença daquilo que estas designam. Para quem nunca viu tijolos, saber que é «peça de barro usada na construção» não adianta, tal como «afeição profunda» não ajuda quem nunca amou a perceber o que “amor” designa. É como explicar o sentido de “azul” a um cego. Só podemos dar a conhecer o significado destas palavras se perante aquilo que elas designam.

Se definirmos o termo ao contrário, partindo das palavras em vez da coisa que o termo designa, deixamos em aberto a questão do termo corresponder a algo real. Posso definir “tijolor” como «sentimento de amor profundo e paixão por um tijolo». Mas a definição do termo não garante que haja tal coisa. Daí a aldrabice em definir o conhecimento pela fé como uma forma de conhecimento que prescinde de justificação independente. É legítimo definir o termo “conhecimento pela fé” desta maneira, mas não é legítimo inferir daí que haja tal forma de conhecimento e que isto não seja apenas um termo disparatado. Tal inferência só se justificaria se houvesse indícios independentes que a fé serve para obter conhecimento. Ou seja, a tal justificação de que se querem safar por decreto da definição.

O problema em dizer que Deus está fora da ciência é semelhante. Podem definir “Deus”, a palavra, como designando um ser que cuja presença ou efeitos não se pode detectar. Essa palavra, assim definida, é mesmo inútil para a ciência e para o conhecimento por ser um termo com o qual nada podemos fazer. Mas isto não diz nada, nem justifica dizer nada, acerca do deus ou deuses que existem. Essa definição é irrelevante para resolver este problema ou qualquer outro.

É uma confusão comum na teologia cristã e, julgo, na apologética religiosa em geral. Em vez de moldarem as palavras ao que se constata da realidade querem ditar a realidade com as palavras que proferem, como se a definição da palavra “Deus” ou do “método da fé” fosse, por si só, determinar quais deuses existem, quais são fantasia e o que se pode fazer com a fé. Um exemplo extremo é o argumento ontológico de Anselmo, que defendeu a existência de Deus incluindo a existência na definição de “Deus”. Mil anos mais tarde continuam a insistir no mesmo erro, tal é a força da tradição...

Jornada Fé e Ciência.

Ontem em Braga, a convite da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica, falei sobre «A hipótese de Deus perante a Ciência». Este título que me deram serviu para apontar que o problema não é apenas esta hipótese, pois temos de considerar toda a infinidade de hipóteses acerca de deuses e da falta deles. Nem é um problema que se restrinja a uma qualquer definição de ciência. O que é pertinente à ciência neste assunto, que é a correspondência entre hipóteses e realidade, é pertinente a todo o diálogo racional, chame-se ou não ciência. O problema fundamental é o de justificar a confiança numa hipótese destas – a santíssima trindade, por exemplo – em detrimento de todas as outras.

Como nenhum crente consegue justificar adequadamente que se aceite a sua crença como a única verdadeira, a estratégia de alguns participantes foi ignorar as outras crenças. Falaram muito do diálogo entre fé e ciência como se só houvesse uma fé (a deles) e alguns até disseram explicitamente que eu não devia invocar outras religiões. O Alfredo Dinis alegou que os deuses dos aborígines australianos no meu exemplo eram irrelevantes por serem meramente mitológicos*. Pois essa é precisamente uma das tais hipóteses a considerar. E não apenas em relação às religiões dos outros. O António Fernandez-Rañada disse que eu não podia falar dos deuses egípcios porque o que estava em causa era o Deus cristão, e assim por diante. A coisa acalmou um pouco quando eu mencionei que se estivéssemos a fazer uma jornada de fé e ciência no Irão, a ciência seria a mesma que cá mas a fé seria muito diferente. Não sei é se acalmou por ficarem persuadidos, se foi por medo de ataques bombistas por alguém chamar mitologia ao islão ou se foi simplesmente porque já tinham dito o que tinham a dizer.

Seja como for, gostei bastante de ter lá estado e agradeço este convite. A discussão foi animada, sempre com bom ambiente e com alguns momentos engraçados. O Álvaro Balsas disse que eu tinha definido ciência de forma demasiado restrita quando eu tinha dito várias vezes que não queria definir ciência precisamente para evitar esses problemas. O aspecto importante era o do diálogo racional, a troca de razões que se possa partilhar com os outros. Isso está no fundamento da ciência mas se a define ou não era irrelevante para a conversa. E o Alfredo Dinis disse que a hipótese de Deus não tinha nada que ver com a ciência. Disto queixei-me, a brincar, que me tinham armado uma cilada ao com o título que me deram.

Tive pena que o Desidério não pudesse ter ido. Gostava de o ter conhecido pessoalmente. Mas conheci alguns leitores deste blog, o que me deixa sempre contente. Tenho relutância em perguntar o nome quando alguém me diz que lê o meu blog por receio que o pressione a revelar mais do que gostaria. Há quem prefira navegar e comentar incógnito e respeito essa opção. Mas como um post faz menos pressão deixo aqui a sugestão. Se alguém esteve lá e quer comentar, ou se alguém daqui me encontrar numa coisa destas e quiser dizer o nome ou o pseudónimo que usa nos comentários, é sempre agradável associar uma cara às palavras.

Agradeço também as palavras amáveis dos que me disseram ter gostado da minha intervenção. Eram quase todos ateus, pelo que provavelmente não convenci ninguém que não concordasse comigo logo de inicio, mas a sensação de que o esforço foi apreciado só aumenta o prazer que tenho em discutir estes assuntos.

Finalmente, agradou-me ver o interesse no diálogo. Ao contrário da minha tia Júlia, que me recomendou não discutir nem política nem religião, há crentes interessados em falar sobre o assunto. Isto é bom. Por exemplo, muitos dos comentários da audiência focaram a falibilidade do conhecimento científico. Isto não é novidade para os cientistas, mas se os crentes focarem este problema pode ser que percebam que o seu “método da fé” é ainda mais falível. Tem todos os defeitos humanos que afectam a ciência sem a virtude da verificação independente.

O diálogo entre ciência e as fés é pouco produtivo. A crença convicta não quer ouvir a ciência e o que propuseram dizer à ciência não me convenceu. Agustín Udías, por exemplo, sugeriu que “a fé” podia contrapor a tendência da ciência de dominar o ambiente e tornar-nos administradores mais responsáveis da natureza. Mas quem está à frente de organizações como a Quercus não são padres. São cientistas. E quem defende mais o ambiente é a esquerda ateísta e não a direita religiosa mais preocupada com a exploração de recursos. Em alguns casos precisamente pela fé num fim do mundo iminente.

Mas o diálogo com os crentes é proveitoso. Tudo o que os tire das barricadas das fés e os faça juntar-se à conversa com os demais trará benefícios para todos.

Mais informação sobre a jornada no blog Companhia dos Filósofos.

* Os Bagadjimbiri. São dois dingos irmãos que criaram os órgãos sexuais das pessoas a partir de cogumelos, foram mortos e depois ressuscitados pela mãe e agora vivem no céu como nuvens. O exemplo tem um paralelo interessante com a mitologia cristã, que tem pai-filho em vez de irmãos e uma morte e ressurreição pelo meio.

quinta-feira, outubro 16, 2008

Ó magalhão, magalhão...

Recebi por email esta notícia, Professores obrigados a louvar «Magalhães»:

«Um grupo de professores que participou em acções de formação sobre o computador portátil «Magalhães», no âmbito do Plano Tecnológico da Educação, foi obrigado a fazer canções de louvor ao computador, o que deixou indignados muitos docentes e lançou a polémica na blogosfera, revela o jornal Correio da Manhã.»

À parte da demonstração bizarra de como estas acções de “formação” são uma bela treta, gostava de chamar a atenção para o comentário do Paulo Carvalho, o blogger que relatou primeiro esta palhaçada:

«... o que me choca no meio de tudo isto [...] é que todos os jornalistas com quem falei tentaram obter opiniões de muitos outros intervenientes na Acção e todos se recusaram a dar a cara ou uma simples opinião.[...]
Eu gostava que todas as pessoas se sentissem livres, num Estado livre e não se coibissem de dar uma simples opinião que seja. Cidadãos interventivos e activos é que constroem uma sociedade democrática e participada.»
(1)

Esta notícia faz me temer pela educação em Portugal. Não pelas acções de formação serem uma treta. O que me assusta é que impinjam um disparate destes a 200 professores e só um dê a cara para refilar. Se há uma coisa que quero que os meus filhos aprendam é a chamar a treta pelo nome. E adianta de pouco se os filhos dos outros não o aprenderem também...

1- Paulo Carvalho, Sejam livres, porra!

quarta-feira, outubro 15, 2008

Tentar saber.

O Desidério escreveu no Público de ontem que «Especular é tentar saber o que não sabemos e o que nem sequer fazemos ideia de como podemos tentar saber»(1). Só no sentido peculiar em que levantar-se da cama é tentar correr a maratona. É condição necessária mas está longe de ser suficiente.

Especular é gerar hipóteses. Saber é crer em hipóteses que se justifica considerar verdadeiras. Por isso especular só faz parte de tentar saber quando inserido na procura de crenças justificadas. Mas especular, por si só, não chega para tentar saber. Especular que o Elvis está vivo numa ilha deserta não é o mesmo que tentar saber se o Elvis está vivo numa ilha deserta. Faltam aí coisas importantes, omissão que afecta o resto do texto. Por exemplo, «A ideia de que só devemos especular ou tentar saber algo se o fizermos cientificamente é insustentável.»

A ideia de especular cientificamente é insustentável. A ciência é o processo de comparar hipóteses, encaixá-las noutras em que confiamos e encontrar justificações para confiar mais numas que nas alternativas. A ciência não regula a criação dessas hipóteses. Podemos criá-las especulando, sonhando ou pondo o computador a gerar frases aleatórias com “Elvis”, “vivo”, e “ilha deserta”. Isto será ciência só se continuarmos o processo; a especulação por si não é ciência.

É verdade que as especulações mais úteis normalmente vêm de quem percebe do assunto. Como o Desidério diz, quem especula sem saber nada acaba por repetir o que outros já especularam, sem grande utilidade. Mas o que determina se uma hipótese merece a nossa confiança – se é saber – não é a forma como se lembraram dela mas os dados que a suportam e justificam.

E por isso não é insustentável a ideia que só devemos tentar saber algo cientificamente. Sem a comparação e selecção justificada de alternativas não vamos obter conhecimento. Especular sem justificar só nos pode dar crenças verdadeiras se acertarmos à sorte, mas acertar à sorte não é saber. Saber exige justificação. Exige ciência.

Além da nossa discussão acerca do alegado conhecimento a priori, esta divergência ilustra outro ponto interessante. A tentativa comum, quase universal, de separar a filosofia da ciência. Neste caso, propondo a especulação como uma forma não científica de saber. Penso ser um vestígio do tempo em que só havia uma geometria e em que se julgava que a razão, e não a experiência, é que levava ao saber. Agora é diferente. Agora percebemos que geometrias e sistemas formais há aos pontapés e o problema é ver quais correspondem à realidade. E que a nossa razão não é invenção de alguma razão suprema mas o produto de milhões de anos de experiências em que a natureza atirou os nossos antepassados contra o seu ambiente (ou vice versa).

Há, e sempre deverá haver, espaço para filósofos. É útil que alguém se especialize nos aspectos mais analíticos do processo. Mas para tentar saber é preciso juntar as peças todas. Só com o bocadinho da especulação não vamos saber nada.

1- Também no De Rerum Natura, Especulação

terça-feira, outubro 14, 2008

Verde, código, vai-se...

Alguns leitores de cartões de crédito e débito fabricados na China vêm com um brinde. Uma placa de rede wireless que se liga periodicamente a servidores no Paquistão e deposita lá a informação dos PIN e números de cartão usados naquele leitor. Pelas centenas de leitores alterados que já foram encontrados no Reino Unido, Irlanda, Holanda, Bélgica e Dinamarca, estima-se que o negócio já tenha rendido entre cinquenta a cem milhões de dólares.

A coisa está bem feita. Os leitores provavelmente são alterados na fábrica ou logo após a produção e a alteração não é visível sem os abrir. A única diferença é que são cerca de 100g mais pesados que os leitores sem brinde. Também têm uma programação sofisticada. Cada vez que depositam a informação nos servidores paquistaneses podem receber instruções acerca dos tipos de cartão a interceptar e a frequência com que armazenam e enviam os dados. Isto permite ir alterando o comportamento dos leitores para dificultar a sua detecção.

Infelizmente, as notícias não explicam como os aparelhos se ligam ao Paquistão. Se for pela rede móvel têm que ter SIM registados com alguma operadora e pagos por alguém. Se for pela rede dos pagamentos algo está muito errado com a segurança do sistema. Seja como for, o ataque apenas é possível porque a comunicação entre o leitor e o cartão não é cifrada. Ou seja, porque o sistema está mal feito de raiz.

Mais detalhes no Telegraph (e aqui) e no Wall Street Journal. Via Schneier on Security.

Editado a 15-10 para tirei o plural ao acrónimo SIM. Hoje deu-me para ser contra o plural nos acrónimos.

segunda-feira, outubro 13, 2008

Crise de fé.

A Igreja Católica sobreviveu a inúmeras crises e ataques. Sobreviveu aos romanos, aos escolásticos, às cruzadas, ao incómodo constante de perseguir judeus, aos hereges, ao zelo com que limpou o sebo aos hereges, aos protestantes, a Galileu, ao Rock ’n’ Roll e até a Pio XII. Nem quando este Papa pronunciou ex cathedra que Maria teria ido para o céu com corpo e tudo, talvez até vestida, nem aí os católicos disseram desisto, isto está tudo doido, vou-me embora.

Mas agora surgiu uma ameaça mais profunda. Uma ameaça aos próprios alicerces da fé. Pela primeira vez na história, está em causa a viabilidade económica do catolicismo.

«A palavra "crise" entrou em força no vocabulário dos lojistas de Fátima que, em dia de começo de uma das principais peregrinações do ano ao Santuário, levam as mãos à cabeça, lamentando "significativas" quebras no negócio em 2008.»(1)

Valha-nos Santo Armindo de Famalicão, padroeiro das romarias...


Editado a 15-10. Obrigado ao Zarolho, graças a quem finalmente percebi a diferença entre "São" e "Santo".

1- Expresso, Crise chegou aos "santinhos"

domingo, outubro 12, 2008

Famalicão e a laicidade.

Há duas semanas a Associação Ateísta Portuguesa (AAP) denunciou ao Ministério da Administração Interna a organização de visitas a Fátima por parte do município de Famalicão. No Companhia de Filósofos, o Alfredo Dinis criticou assim esta denúncia.

«Sabemos que muitos idosos vivem com magros recursos. Muitos deles não têm autonomia para se deslocarem seja onde for, nem têm família que os leve a passear. Deverão ficar condenados a não sair da sua terra? Ou a escolherem apenas destinos da excursão oferecida pela Câmara que não tenham nada a ver com a sua religião? Não me parece. Ao subsidiar passeios de idosos, a Câmara não está a subsidiar nenhuma instituição religiosa, está a subsidiar pessoas e, neste caso, pessoas a quem a sociedade deve uma particular atenção. O princípio da laicidade do Estado não pode nunca ser um princípio contra as pessoas.»(1)

A posição do Alfredo é razoável mas assume uma situação diferente daquela que a AAP denunciou. Concordo que se use recursos públicos para ajudar quem mais precisa e independentemente de preferências pessoais como a religião. Por isso se a câmara de Famalicão disponibilizasse alguns autocarros para passeios gratuitos eu não teria nada a obstar mesmo que muitos desses passeios fossem a locais de culto religioso. A laicidade do estado não passa por proibir as pessoas de passear até Fátima.

No entanto, o que aconteceu não encaixa neste cenário. Em 2005, a câmara de Famalicão organizou um passeio de dez mil munícipes ao santuário de Fátima. O passeio tornou-se um evento anual e no passado 20 de Setembro foram mais de nove mil pessoas, centena e meia de autocarros e três ambulâncias a Fátima (2). Lá os munícipes de Famalicão participaram numa eucaristia presidida pelo reitor do santuário, Monsenhor Luciano Guerra. Isto sugere uma organização e um investimento muito superiores ao que está implícito na justificação do Alfredo. Não parece ser um simples caso da câmara ajudar umas pessoas com carências e elas escolherem dar um pulinho a Fátima.

Assim, não considero o caso tão inofensivo como o Alfredo julga. A organização de um passeio de dez mil pessoas sugere que o destino não foi uma escolha espontânea dos beneficiados mas sim uma decisão dos organizadores. Os custos significativos e o carácter regular do passeio fazem-me duvidar que seja uma boa aplicação do dinheiro público. E se bem que concorde que a laicidade não deva ser anti-religiosa, preocupa-me o carácter religioso do passeio. Não pelo passeio em si mas pela cegueira colectiva da nossa população ao tratamento privilegiado da religião católica.

Se a câmara de Famalicão tivesse organizado cento e cinquenta autocarros para transportar adeptos do Futebol Clube do Porto para assistir a um jogo não faltaria quem apontasse o dedo à discriminação e ao desperdício de fundos públicos. É por isso que o artigo 13º da nossa Constituição não refere explicitamente os clubes de futebol mas frisa que «Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.» Isto porque, infelizmente, para muita gente é fácil fechar os olhos a discriminações destas. Entre as quais a religião.

Em suma, não só me preocupa a organização deste evento e o dinheiro mal gasto, mas também que, por favorecer uma religião popular, haja quem defenda que cento e cinquenta autocarros e dez mil pessoas não é nada de especial.

1- Alfredo Dinis, A Sociedade Ateísta Portuguesa e a laicidade
2- RTP, Religião: Associação Ateísta acusa Câmara de Famalicão de pagar romarias a Fátima e pede ao Governo levantamento de processo contra autarquia

sábado, outubro 11, 2008

Treta da Semana: «A Ciência confirma a Bíblia».

É o título de um post do Rodrigo Bento no seu blog «Sal da Terra». Começa assim:

«Tendo em mente que a Bíblia foi escrita há milhares de anos, por dezenas de pessoas diferentes, num período de 1500 anos, considere:
A Bíblia: A Terra é uma esfera. (Isaías 40:22)
A Ciência Hoje: A Terra é uma esfera.
A Ciência Então: A Terra é plana.»
(1)

Isaías 40:22 usa o termo hebraico «chuwg», literalmente círculo ou compasso (2). Isto está de acordo com a mitologia hebraica, que imaginava a Terra como um círculo plano. Jó 38:12-14 diz «Desde que começaram os teus dias, deste tu ordem à madrugada, ou mostraste à alva o seu lugar, para que agarrasse nas extremidades da Terra, e os ímpios fossem sacudidos dela? A Terra se transforma como o barro sob o selo». Nem a esfera tem extremidades para agarrar nem o barro sob o selo fica esférico. Em Mateus 4 o diabo leva Jesus a uma montanha alta de onde se podem ver todos os reinos da Terra, e Daniel 4 relata uma visão de uma árvore tão alta que dela se podia ver o fim de toda a Terra.

Por outro lado, séculos antes do cristianismo já os gregos tinham demonstrado que a Terra era esférica, e a partir daí foram raras as pessoas cultas que julgavam a Terra plana. Era uma crença comum entre os mais ignorantes, e entre os que levavam a Bíblia demasiado à letra, mas não era o que dizia a ciência da altura (3).

O Rodrigo estica metáforas escolhidas a dedo, afirma-as de acordo com a ciência moderna, inventa uma “ciência antiga” e esquece-se que a Bíblia foi a origem de muitos desses erros. Noutro exemplo, o Rodrigo diz que a Bíblia e a ciência moderna recomendam que «[q]uando se lida com doenças, as mãos devem ser lavadas em água a correr». Mas o que a ciência recomenda é um bactericida eficaz. E a Bíblia diz que as doenças são castigo divino. Não é a lavar as mãos que alguém se safa disso.

Que há uns séculos tentassem pôr a Bíblia e a ciência ao mesmo nível ainda se desculpava. Mas fazê-lo hoje é de uma miopia atroz. O Rodrigo troca a exploração sistemática do universo pela aceitação passiva de um dogma, faz de conta que o conhecimento que acumulámos se resume a um livro de poesia religiosa e prescinde por completo de qualquer explicação. Diz ser «impossível naquela altura ter-se este tipo de conhecimento, a menos que se fosse inspirado por quem de facto soubesse.» Mas que conhecimento?

A ciência diz para usarmos bactericida, e isso é conhecimento porque inclui a explicação que as mãos têm bactérias, que as bactérias se propagam, que a sua propagação causa doenças e até quais bactérias causam quais doenças. Essa rede de hipóteses interligadas e justificadas é conhecimento. A Bíblia não tem nada disso. O Rodrigo refere Levítico 15:13, «Quando, pois, o que tiver o fluxo e ficar limpo do seu fluxo, contará para si sete dias para a sua purificação, lavará as suas vestes, banhará o seu corpo em águas vivas, e será limpo.» Isto não é conhecimento nenhum. É um ritual religioso. Não explica, não informa, não diz por quê nem para que fim.

Não sei se há muitas pessoas como o Rodrigo Bento e outros que por aqui passam. Se calhar este blog atrai uma amostra não representativa da população. Mas, mesmo que sejam poucos isto preocupa-me porque é uma ameaça à sociedade moderna. A nossa compreensão da natureza, o nosso conforto e segurança, os princípios de igualdade e justiça que nos regem, praticamente tudo o que conquistámos nos últimos séculos depende de perceber que o conhecimento e a razão exigem muito mais que estas tretas.

A ciência não confirma a Bíblia. A ciência explica uma data de coisas e a Bíblia afirma uma data de coisas. Estranho seria se nem uma das últimas se parecesse a alguma das primeiras.

1- Rodrigo Bento, A Ciência confirma a Bíblia.
2- Strong’s Hebrew dictionary, chuwg.
3- Wikipedia, Flat Earth mythology.

sexta-feira, outubro 10, 2008

Cristianismo e ateísmo em Portugal: que diálogo?

É uma boa pergunta e o título de um debate no dia 15 de Outubro na Faculdade de Teologia da Universidade Católica. Eu penso que tanto o cristianismo como o ateísmo são demasiado heterogéneos para que possam dialogar; há tantos cristianismos e ateísmos como há cristãos e ateus. Mas o dialogo entre cristãos e ateus pode ser interessante, e pelos participantes parece-me que este será.

Mais detalhes no Portal Ateu e no Liverdades.

quinta-feira, outubro 09, 2008

Miscelânea Criacionista: esquemas, modelos e factos.

O Manuel, aparentemente em defesa do criacionismo (ou “plano Criador”, como ele o chama), citou este trecho de um artigo de Robert Crowther no The Scientist de Junho:

«Esta teoria da evolução é na verdade um enquadramento para pensarmos sobre as mudanças no mundo vivo. Não fornece suposições específicas para os diferentes tipos de características que possam existir, não fornece fortes exigências ou proibições sobre a forma como elas podem interagir para formar um organismo complexo ou ecossistema, e não fornece compromissos quanto à forma como uma população diferenciada se divide em duas espécies distintas»(1)

É verdade. Tal como a física newtoniana, a relatividade ou a mecânica quântica, a teoria da evolução não fornece detalhes por si só. Estas teorias são esquemas genéricos para criar modelos. Para criar um modelo newtoniano do sistema solar, por exemplo, temos que instanciar no esquema de Newton o número de planetas, órbitas, massas e dados afins. E é esse modelo específico que prevê detalhes que se pode comparar com os dados para avaliar o rigor do modelo. Enquanto esquema geral a mecânica newtoniana não pode ser confrontada directamente com a realidade. Mas pode ser comparada com outros esquemas análogos e testada indirectamente através dos modelos que permite gerar.

Como a relatividade permite criar modelos mais rigorosos concluímos que o esquema de Newton é menos adequado que o esquema de Einstein. Além disso, o esquema de Newton deixa algumas coisas por explicar que o esquema de Einstein explica, como a origem da gravidade. Estas vantagens justificam preferir o esquema de Einstein quando queremos mais rigor ou melhores explicações. O que não quer dizer que não se use o esquema de Newton. Por exemplo, a mecânica quântica é o melhor esquema que temos para modelar átomos e moléculas. Tem mais fundamento, melhores explicações e gera modelos mais rigorosos. Mas os modelos da mecânica quântica são tão complexos que para moléculas grandes como proteínas preferimos usar o esquema de Newton. Modelar átomos como pesos e ligações químicas como molas não é realista nem muito rigoroso, mas se não esquecermos as suas limitações, tal modelo é proveitoso e tem a vantagem de dar resultados em horas em vez dos vários anos que demoraria a resolver as equações da mecânica quântica.

Em traços gerais, podemos dividir a ciência em três níveis. No nível mais fundamental temos teorias como a mecânica quântica ou a teoria da evolução, que são esquemas genéricos para gerar modelos que fundamentam explicando porque têm que ser assim e não de outra forma. No nível intermédio temos esses modelos, instanciados com dados e que geram previsões específicas que podemos confrontar directamente com o que observamos. E nestes modelos há aspectos tão solidamente suportados pelos dados que os consideramos factos. Não por serem inquestionáveis mas por pragmatismo. A gravidade existe, a Terra é aproximadamente esférica, as moléculas são compostas por átomos e tentar negar estas coisas é, tanto quanto sabemos, pura perda de tempo.

O criacionismo não está ao nível da teoria da evolução. Esta permite criar modelos da transformação de populações na Terra, noutro planeta, numa caixa de Petri ou até de representações virtuais no computador, porque é um esquema genérico que podemos instanciar para casos concretos. E isto o criacionismo não permite. O criacionismo é apenas um modelo da origem de algumas espécies neste planeta. E além de pouco detalhado quando comparado aos modelos gerados pela teoria da evolução, é também um modelo ad hoc por não assentar numa teoria genérica que explique porque é que o modelo há de ser assim em vez de ser de outra maneira.

Finalmente, o criacionismo não se distingue dos outros modelos nos aspectos mais questionáveis como, por exemplo, a importância relativa da selecção, a deriva genética ou os efeitos moleculares, ou a interacção do desenvolvimento embrionário com a evolução dos genes que o regulam. Nestes aspectos há questões legítimas e um debate aceso entre biólogos acerca de quais serão os melhores modelos. Em vez disso o criacionismo rejeita os factos, aqueles elementos que é um disparate rejeitar. Coisas como a idade da Terra, a formação lenta do registo fóssil ou os seres vivos descenderem de ancestrais comuns. É como rejeitar os princípios da geologia alegando que a Terra é quadrada.

1- Comentário em Evolução: os tipos.

quarta-feira, outubro 08, 2008

ACTA

é um acordo internacional contra a contrafacção (Anti-Counterfeiting Trade Agreement) que foi iniciado pelos EUA, Japão, Suíça e a União Europeia, e onde participam a Austrália, Nova Zelândia, Coreia do Sul, Canadá e México nesta fase de negociação. O objectivo é reforçar o policiamento de violações de copyright e afins. Uma vez traçadas as regras entre os representantes dos maiores detentores de “propriedade” intelectual, os outros países serão “convidados” a participar neste tratado(1). Entretanto, as negociações são à porta fechada e as únicas informações públicas acerca do tratado devem-se a fugas (2).

Não me incomoda que negoceiem tratados de regulação comercial desta forma. Tarifas e licenças de comercialização não precisam ser decididas por processos abertos e democráticos. São meras questões burocráticas. Desde que não interfiram na vida pessoal dos cidadãos. E é aí que está o problema. Entre outras coisas, o ACTA prescreve buscas nas fronteiras para apreender material copiado, policiamento por parte dos prestadores de serviços de comunicação (3) e legislação que facilite a obtenção da identidade de quem os detentores de copyrights suspeitem violar os seus privilégios (2).

O ACTA é um caso extremo que já mereceu um processo contra o governo dos EUA (4) e oposição pública de membros do senado americano (5). Mas, vendo bem as coisas, a legislação recente que temos nesta matéria foi criada por processos semelhantes. Por comissões que representam principalmente os interesses de quem detém estes privilégios e que negoceiam directivas europeias ou tratados internacionais que depois forçam a legislação no nosso país.

Por definição, todos temos a obrigação legal de respeitar a lei. E, em geral, temos também a obrigação moral de a respeitar porque as leis são criadas em nosso nome por representantes que elegemos. Mas no caso do copyright deixou de haver fundamento moral para esta obrigação. A proibição de trocar conteúdos digitais, as penas de prisão por copiar CDs, o policiamento a custas do erário, os períodos de exclusividade de várias décadas e agora a violação da privacidade das comunicações ou das próprias pessoas quando atravessam fronteiras são produto de processos que não conferem a estas leis a legitimidade que têm as leis criadas democraticamente.

1- IP Justice, What is the Proposed Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA)?
2- Zeropaid, Another Critical ACTA Leak Surfaces
3- Wikipedia, ACTA
4- Intellectual Property Watch, Public Interest Groups Sue US Trade Representative Over ‘Secret’ Enforcement Treaty
5- Intellectual Property Watch, Key US Senators Warn Bush Administration On ACTA

domingo, outubro 05, 2008

Evolução: Os tipos.

«Deus disse: Que na terra apareça toda a qualidade de vida animal quadrúpedes, rastejantes, animais selvagens de toda a sorte, reproduzindo-se de acordo com os seus tipos.» Gen. 1:24.

Darwin não inventou a evolução, que era um facto já conhecido no século XIX. Antes de Charles Darwin o seu avô já tinha dissertado sobre o assunto e Lamarck propusera que o “poder da vida” dotava as gerações de complexidade crescente enquanto a “influência das circunstâncias” levava ao desenvolvimento ou degeneração de características conforme o uso. Darwin também não foi o único a pensar na selecção natural, tendo Wallace chegado independentemente à mesma conclusão. Em 1858 apresentaram-se à Sociedade de Lineu o manuscrito de Wallace (Acerca da Tendência de Variedades de Divergir Indefinidamente do Original) e um excerto do Origem das Espécies de Darwin. Darwin destacou-se pelo detalhe com que fundamentou este mecanismo, antecipando em século e meio a maioria das objecções infundadas dos criacionistas de hoje. Mas com o que conhecimento da sua época era inevitável que se encontrasse este mecanismo mesmo sem Darwin.

O génio de Darwin foi rejeitar o essencialismo, os tais tipos bíblicos a que se agarravam os seus contemporâneos. Até Wallace estava convicto que os seres humanos eram essencialmente diferentes das outras espécies. Darwin foi genial nisto porque viu de uma forma nova aquilo que os outros já tinham visto e ignorado. Todos os organismos são diferentes, são tão mais diferentes quanto mais afastado o parentesco e não há limites para estas diferenças. Não há barreiras a prender um organismo à essência do seu tipo porque não há essência nenhuma. E sem compreender isto não se compreende a biologia, como demonstra o Rodrigo Bento.

«num determinado ponto da história (no tal em que os seres se tornaram (?!) sexuados, macho e fêmea, [curiosamente] no mesmo ponto geográfico, no mesmo tempo de vida útil, no mesmo estado de desenvolvimento sexual e não só, sentindo atracção um pelo outro, com vontade de procriar, sendo capazes de, pela primeira vez na história, reproduzir sexuadamente e logo sem erros, produzindo descendência fértil com as mesmas características...)» (1)

A questão é que os seres não se tornaram sexuados em grupo. Tal como os romanos não passaram a falar português de uma só vez. O que aconteceu foi que seres distintos entre si formavam populações onde a distribuição de certos atributos ia variando com o passar das gerações, à sorte ou sob pressão reprodutiva. Ninguém saltou a “barreira” entre o português e o latim. O que transformou estas línguas foi a acumulação das idiossincrasias individuais de quem as falava.

O mesmo se passa com o sexo. As fêmeas dos dragões de Komodo podem reproduzir-se por partenogénese na ausência de machos. Não porque a espécie tenha mudado colectivamente mas porque alguns indivíduos nasceram assim e a capacidade foi-se espalhando, e nos lagartos da família Teiidae (2) há espécies só com fêmeas. Os caracóis terrestres são hermafroditas, tendo cada indivíduo ambos os sexos, mas em algumas espécies aquáticas há machos e fêmeas distintos. Os afídeos reproduzem-se sexuadamente durante parte do ano mas assexuadamente durante a primavera, muitos peixes mudam de sexo ao longo da vida e muitas plantas são hermafroditas. Seria tão difícil uma espécie mudar colectivamente de estratégia reprodutiva como seria que todos os romanos passassem a falar português de um dia para outros. Mas estas transições são possíveis pela mudança gradual da população conforme uns indivíduos são substituídos por outros ligeiramente diferentes.

Tal como não há uma barreira histórica entre o latim e o português, nem um número exacto de cabelos a separar o careca do cabeludo, também não há barreiras entre tipos ancestrais e descendentes. O requisito do Rodrigo Bento para a reprodução sexuada é tão ridículo como exigir que surgissem dois romanos a falar português ao mesmo tempo para que o latim desse origem ao português (se fosse só um, diria o Rodrigo, ninguém o compreendia e morria frustrado).

Para compreender a evolução é preciso perceber que não há tipos de organismos. Há populações. A evolução não é o aparecimento súbito de um tipo diferente mas a transformação gradual de populações pela substituição de organismos que morrem por outros ligeiramente diferentes. Gaivotas dão gaivotas, mas não exactamente iguais. E se passar tempo suficiente acabamos por lhes dar outro nome.

1- Comentário em Deve ser horrível ter deus.
2- Wikipedia, Teiidae

sábado, outubro 04, 2008

Treta da Semana: Exorcismo.

Deus, na sua infinita sabedoria, deu aos humanos o dom da vontade livre. E aos demónios o dom de possuir os humanos. Depois encarnou em Jesus, expulsou demónios e deu aos apóstolos o poder de fazer o mesmo. «Chamando os doze discípulos para junto de si, Jesus deu-lhes autoridade para expulsar os espíritos maus e curar toda a espécie de doenças e enfermidades.» (Mat. 10:1). Aparentemente, mais tarde Jesus revogou esta autoridade dos bispos e deu-a aos antibióticos, vacinas e cremes fungicidas.

Os mais cínicos dirão que isto é armar aos cágados, que Deus podia ter feito os humanos imunes a influências demoníacas ou micoses e dispensar estes milagres. Mas isto desrespeita o principio fundamental da fé, que é atribuir a um desígnio misterioso tudo o que puser em causa preconceitos queridos.

Seja como for, durante a idade média os representantes de Deus usaram e abusaram da sua autoridade curativa. Exorcizaram pelo poder divino tudo o que era espirito maligno ou doença, da peste negra à azia e da epilepsia ao paganismo. Por vezes com algum excesso de zelo. Os resultados ficaram aquém do que se esperava de uma manifestação do poder de Deus, mas a idade média foi um período dominado por ignorância e superstição, e a Igreja Católica era um produto do seu tempo. Apesar do contacto directo com um ser omnisciente que lhes revelava regularmente a Verdade, permaneceram tão ignorantes e supersticiosos como os seus contemporâneos.

Mas com o fim da idade média, período que para a Igreja Católica acabou em 1999, decidiram actualizar o ritual do exorcismo para o trazer mais em linha com a ciência e os tempos modernos. Infelizmente, a Igreja Católica não optou por critérios objectivos bem estabelecidos no diagnóstico da posse demoníaca, tais como rodar a cabeça 360º ou projectar o vómito de um lado ao outro do quarto. Mas agora o padre exorcista «”tem que decidir com prudência” depois de consultar peritos espirituais e “se considerado oportuno, com peritos na ciência médica e psiquiátrica”»(1). Cumpre-se assim o requisito de eliminar qualquer explicação científica. O padre, se considerar oportuno, pode pedir uma opinião ao primo que estudou psicologia e avançar com o exorcismo apenas se o primo coçar a barba e disser “na verdade, é estranho...”

De resto, isto está em linha com a atitude esclarecida e progressista com que a Igreja Católica se tem destacado em todas as áreas, da astronomia à educação sexual. Partindo do princípio que a ciência é infalível, perfeita e completa, e que qualquer pessoa ligada à ciência domina todo o conhecimento científico, e assumindo também que nenhum cientista se engana, a Igreja Católica pode comprovar como inquestionavelmente sobrenatural qualquer fenómeno que o cientista mais próximo não consiga explicar em detalhe num quarto de hora de análise superficial. É este método exigente que fundamenta o diagnóstico do exorcista moderno (entra música dos Ghostbusters).

Para terminar, deixo uma ressalva. Apesar da Igreja Católica defender oficialmente a existência e intervenção regular de espíritos demoníacos há membros do clero com a decência de ficar ligeiramente embaraçados e mudar de assunto se pressionados sobre isto. E, que se saiba, João Paulo II apenas exorcizou espíritos malignos uma vez enquanto Papa. Por isso não quero que pensem os leitores que o exorcismo é mais uma superstição católica como a transmutação da hóstia ou o pecado da contracepção.

1- CNN, 28-1-1999, Vatican issues first new exorcism ritual since 1614

quarta-feira, outubro 01, 2008

Crer na fé.

Parece estranho que pessoas razoáveis professem acreditar num deus que condena quem não lhe for fiel, quem adorar outros deuses, desrespeitar o Sábado ou invocar o seu nome em vão. Mais estranho ainda quando são boas pessoas e se dão bem com ateus, hindus ou budistas. No livro Breaking the Spell o Daniel Dennett propõe uma explicação interessante. À parte dos mais fanáticos, os crentes têm mais fé na crença do que em Deus. Esse deus não faz muito sentido, a Bíblia não é para levar a sério, cada um interpreta como quiser. O que importa é acreditar na crença em deus.

O Barba Rija propôs que «Acreditar na crença é dizer que se acredita na profissão de fé, mas não na fé em si. É uma treta pegada, pois uma vem sempre a seguir à outra.» Nem sempre. Isso é verdade para as crenças que servem unicamente o conhecimento. Para saber que estou a escrever isto tenho que acreditar que estou a escrever isto. Sem essa crença não o sei. E como essa crença serve apenas para que eu possa saber que estou a escrever isto não faz sentido crer nela se achar que não estou a escrever isto.

Mas nem todas as crenças são assim. Um atleta numa prova estimar a sua vitória pelo desempenho dos outros competidores. Mas se acreditar que vai ganhar terá melhores hipóteses por ter mais motivação e afinco. Neste caso a crença na vitória tem um valor além da sua correspondência à realidade. O atleta pode assim crer, por um lado, que as probabilidades de ganhar são pequenas mas crer também, por outro lado, que a crença na vitória lhe traz vantagem. Isto pode levá-lo a crer (confiar) na crença que vai ganhar.

Parece-me que um conflito deste género molda a crença religiosa de muitas pessoas. O absurdo da tese em que se quer crer, assumido explicitamente nos mistérios insondáveis e rituais incompreensíveis, contrapõe-se à percepção que é bom crer nesse absurdo. Não é que rezar adiante alguma coisa, mas é algo que vale por si. Deus não se importa se vão à missa ou não mas ir à missa pode ser bom à mesma. A hóstia não é o corpo de Deus – isso seria horrível – mas confiam que é bom crer nisso, mesmo que não faça sentido. Como o fã do pequeno clube antes do jogo com o favorito. Sabe que não vai ganhar mas não seria um fã se não gritasse “Vamos ganhar três a zero!”. E a religião tem a vantagem do jogo ser sempre amanhã.

É claro que a crença varia muito de pessoa para pessoa. Uns viram-se para a teologia e trocam a confiança na crença pela crença na retórica. Outros arriscam o fundamentalismo, ignorando que qualquer religião é má quando levada demasiado a sério. Mas o foco da crença de muitos crentes não é um deus. É a fé num deus. E isso faz toda a diferença. Porque crer num deus é crer num ser que está lá para todos, que diz respeito a todos e a quem todos devem obediência quer queiram quer não. Mas crer na fé em deus é crer em algo pessoal, que só diz respeito ao crente, e que se os outros não gostam é lá com eles.

É por isso que neste blog implico com teólogos e fundamentalistas mas com os restantes crentes até me dou bem.