quinta-feira, julho 30, 2009

Treta da semana: Duh...

Os criacionistas têm alguma dificuldade – ou relutância – em lidar com o óbvio. O Marcos Sabino escreveu que «O Ludwig parece entender “processos naturais” como tudo aquilo que acontece na natureza e, partir daí, acha legítimo dizer que todos os dias surgem novos seres vivos por processos naturais. Se essa for a definição de “processos naturais”, então é verdade que os seres vivos se criam através de processos naturais.» Não é o que me parece entender nem é a minha definição. É o uso comum dos termos. Os processos naturais são o que ocorre na natureza, em contraste com os alegados efeitos sobrenaturais de um ser hipotético que manipula a natureza de fora. «Mas não é a esse tipo de “processos naturais” que os criacionistas se referem»(1), continua o Marcos, sem explicar que processos naturais serão esses que não ocorrem na natureza.

O Mats tem uma dificuldade semelhante. «O pior naturalista não é aquele que o proclama sem rodeios, mas sim aquele que o esconde por trás do manto da tão-mal-definida “ciência”. O ateu evolucionista Ludwig Krippahl é um bom exemplo.»(2) Julgo que o meu naturalismo é bastante óbvio. É uma ferramenta indispensável porque assumir à partida que um fenómeno é sobrenatural impede-nos de perceber o que o causou. Não podemos desvendar o mecanismo dos milagres nem compreender os processos de intervenção divina. Por isso o ponto de partida tem de ser um conjunto de hipóteses acerca de causas naturais. Só estas podem ser testadas e destiladas em teorias coerentes que expliquem o que se passa.

Mas este naturalismo é metodológico. O Mats acusa-me de julgar saber «qual é o propósito final da ciência», mas o naturalismo não é o “propósito final”. É apenas o ponto de partida. A conclusão final depende dos resultados. Para verificar se uma moeda é equilibrada começamos por assumir que é porque essa hipótese permite calcular a probabilidade de cair em cada face, 1 em 2. Mas depois de a lançar várias vezes podemos concluir que, afinal, não estava equilibrada, se o resultado for incompatível com essa hipótese inicial. O naturalismo metodológico da ciência funciona assim. Começamos por assumir mecanismos naturais por trás do que observamos porque só desta forma podemos formular hipóteses testáveis. Mas se nenhum mecanismo natural for compatível com os dados teremos de concluir que o fenómeno é sobrenatural. Só que, até agora, temos encontrado sempre mecanismos naturais que explicam bem os dados que este universo nos fornece. Não parece ser preciso milagres.

Este problema do criacionismo é óbvio para quem não é criacionista. Assumir que tudo foi criado por um ser omnipotente impede qualquer investigação. É uma premissa estéril, não permite hipóteses testáveis e condena os criacionistas a ficar pasmados, assombrados, e ignorantes.

Outra confusão óbvia do Mats e do Marcos, nos seus blogs, e do Jónatas Machado nos comentários aqui (por alguma razão, o Jónatas ainda não conseguiu criar um blog), é no termo “informação”. No sentido coloquial, esta palavra implica consciência e inteligência porque informar é transmitir alguma ideia a alguém. Mas no sentido técnico o termo nem sempre implica inteligência. Pode ser uma propriedade de sequências abstractas de símbolos, da execução de programas no computador ou até de marcas na lama. A impressão da pata do cão copia informação da pata para a forma da lama. O que não implica códigos inteligentes. Em certa medida, um cão a passear sobre a lama aumenta a quantidade de informação desse sistema sem recurso a qualquer código inteligente.

O Marcos Sabino afirma também que «os animais se reproduzem sempre de acordo com o seu tipo, tal como refere o primeiro capítulo de Génesis. E isto é um facto científico. Observa-se os seres vivos a procriarem de acordo com as suas espécies». Se dois organismos se cruzam e dão um filho fértil então pertencem os três à mesma espécie. Não porque a espécie seja uma barreira à reprodução mas porque é assim que nós definimos “espécie”. E o caso do criacionista é ainda pior porque a égua e o burro podem-se cruzar e ter uma mula. Para salvar a regra bíblica, os criacionistas dizem que são do mesmo tipo e fecham por completo o círculo do seu argumento. Para qualquer outra pessoa é óbvio que, se podemos definir “tipo” como quisermos, então não quer dizer grande coisa que a reprodução seja segundo o tipo.

A classificação dos fósseis também baralha os criacionistas. O Marcos Sabino escreve que «O mais antigo fóssil de morcego que se conhece mostra que eles sempre foram morcegos». Duh. O fóssil mais antigo de morcego é classificado como morcego porque, se fosse classificado como outra coisa qualquer, já não seria o mais antigo fóssil de morcego. Isto só mostra que tudo o que classificamos como fóssil de morcego é considerado um fóssil de morcego.

Concluindo por hoje, o Marcos escreve que «os evolucionistas acreditam que [...] um ser vivo adquiriu informação genética que os seus progenitores não possuíam[...]. É aí que entra a fé evolucionista. Nunca ninguém viu tal acontecer.» O que ninguém viu acontecer foi o deus do Marcos a criar bicharada. Em contraste, filhos com genes diferentes dos pais há por aí aos montes.

1- Marcos Sabino, Resposta ao Ludwig – Com muita fé se constroem árvores da vida imaginárias.
2- Mats, Ciência e Certezas Naturalistas

terça-feira, julho 28, 2009

Porque não uso o Gmail.

É conveniente, porreiro, gratuito e dá estilo. Quase todos os meus colegas o usam. De qualquer sítio onde tenham acesso à Internet – e hoje em dia é quase qualquer sítio – podem consultar todas as mensagens que receberam e enviaram, e todos os anexos, sem limite de espaço.

O problema é que qualquer pessoa com a password certa pode fazer o mesmo. O francês “Hacker Croll”, por exemplo, obteve acesso à conta de email de um empregado do Twitter indicando ao Gmail que se tinha esquecido da password. O Gmail enviou uma mensagem para um endereço secundário que o dono da conta tinha indicado. Mas como este era um endereço desactivado no Hotmail, o hacker pode criar novamente essa conta e obter o link para alterar a password da conta de Gmail da vítima.

O problema depois foi descobrir a password original, porque tendo a password alterada pelo hacker o dono ia descobrir que a sua conta tinha sido “raptada” assim que não conseguisse ler o email. Mas com acesso a todos os emails guardados o hacker descobriu várias mensagens de outros serviços que enviam a password ao utilizador. E era sempre a mesma. Arriscando, mudou a password da conta no Gmail para essa. E funcionou. O dono nem desconfiou. Puxando o fio à meada, a partir da conta de Gmail de um empregado do Twitter o hacker obteve centenas de documentos confidenciais da empresa (1).

O caso do Twitter revela o problema de ter tudo na Internet, acessível de qualquer sítio e protegido apenas por uma password. A empresa também usava vários serviços de colaboração e partilha de documentos que eram vulneráveis a qualquer pessoa que penetrasse a rede de confiança dos vários colaboradores. Ter todas as minhas mensagens acessíveis a todos é um risco grande e, além disso, é provável que eu dure mais que o Gmail. A Google não deve falir tão cedo, mas é raro uma empresa durar muitas décadas e nada garante que se mantenha proprietária do Gmail.

Um exemplo recente foi a falência da Clear, que facilitava a passagem pela segurança nos aeroportos. Os clientes forneciam à empresa vários dados pessoais, incluindo fotografia e impressões digitais, e a empresa disponibilizava esta informação aos serviços de segurança dos aeroportos nos EUA. Só que agora que a Clear fechou (2) não se sabe ao certo o que acontecerá a essa informação. Se um dia o Gmail for vendido ou a Google concluir que não dá negócio, o destino das muitas caixas de correio também será incerto.

Eu uso o email da Netcabo. É rudimentar, tem pouca capacidade e não é especialmente seguro. Mas como tiro de lá tudo cada vez que leio o email, mesmo que me cacem a password não ficam com grande coisa. E quando vou para algum lado posso levar uma cópia dos documentos e caixas de correio. São só alguns gigabytes, cabe num pendisk ou disco portátil. E vai tudo encriptado com uma frase secreta, que é tão fácil de recordar como uma palavra mas muito mais difícil de adivinhar.

A conveniência de ter tudo online é sedutora. Há muita gente que deixa o seu email, fotografias, documentos e o que calhar em servidores alheios porque é prático. Mas eu prefiro não arriscar. Se precisar, posso levar tudo comigo e, se bem que a protecção seja sempre por uma frase ou palavra secreta, o acesso é diferente. É mais fácil ir à página do Gmail que roubar um pendisk.

1- Tech Crunch, The Anatomy Of The Twitter Attack
2- www.flyclear.com, via Schneier on Security

domingo, julho 26, 2009

Treta da semana: tal como a outra.

Imaginem que uma companhia farmacêutica vendia um tratamento para quase tudo. «Afasia, Amenorreia, Amigdalite, Anorexia, Ansiedade, Apresentação do Feto, […] Constipação, Contracturas, Controlo da dor aguda, Diarreia, […] Eczema, […] Incontinência Urinária, […] Toxicodependências (drogas, álcool e tabaco), Tremores, Urticária, Zumbido»(1). E dizia que a Organização Mundial de Saúde (OMS) o recomendava para todos estes casos, referindo uma conferência organizada pelos National Institutes of Health (2). Mas nessa conferência, de 1997, a única indicação é que o tratamento pode ser eficaz para controlar de dores ligeiras e náuseas, havendo mesmo nesses casos resultados contraditórios. Além disso, afirma que «De acordo com os padrões modernos, é parca a investigação de qualidade [acerca da terapia]. A maior parte dos artigos na literatura […] consiste em relatórios de casos individuais». Finalmente, que «Há evidência que [a terapia] não se demonstra eficaz para deixar de fumar e pode não ser eficaz em outras condições»(2). O contrário do que afirma a empresa farmacêutica.

Se fosse uma empresa farmacêutica toda a gente apontava a aldrabice e não se safava de acções legais. A lei, e a sociedade, é rigorosa no que exige de quem vende tratamentos. Uma multinacional farmacêutica não consegue vender um medicamento para quase tudo sem sequer ter indícios sólidos de que trate o que quer que seja, e havendo até evidências que não trata o que dizem tratar. Mas a Clínica do “Dr.” Pedro Choy não tem esse problema. Talvez por não ter acabado a licenciatura em medicina ou por não pertencer à ordem dos médicos (3), é o tipo de “Doutor” a quem dão mais facilmente o benefício da dúvida. Afinal, tem casos clínicos para comprovar a sua eficácia. Escolhidos por ele, é claro, de entre os muitos que lá vão levar umas picadelas. O Fernando, de Aveiro, tinha um zumbido que passou ao fim de apenas seis sessões. A Leonor, de seis anos, tinha «Sintomas semelhantes aos de constipação e gripe». Felizmente, «Após inicio do tratamento tem melhorado de forma bastante significativa»(4). E ainda bem. A 60€ a primeira consulta mais 32€ por sessão de tratamento (5), é bom que sejam poucas para competir com o xarope Ben-u-ron. Bem, competir não. Complementar, que o Ben-u-ron é para tomar à mesma. Felizmente, são só mais 5€.

Há uns tempos discuti com o João a hipótese de tratar as “medicinas” alternativas da mesma maneira que tratamos a outra. É o que os praticantes dizem querer e parece-me que seria uma excelente ideia. Mas tinha de começar pelo público. São os pacientes, principalmente, que deviam tratar as “Clínicas do Dr. Pedro Choy” tal como tratam a Pfizer, a Hoffmann–La Roche ou qualquer vendedor de medicamentos e terapias. Com muito cepticismo e exigência.

Mas apesar da “alternativa” dizer que quer ser tal como a outra, complementar mas igualmente eficaz, é só mesmo dizer. Porque, ao mesmo tempo, diz também que «A sábia e experimentada Medicina Chinesa tem dado, ao longo dos séculos, provas da sua eficácia, ainda que às vezes pouco claras para a Medicina do Ocidente que, como não tem uma abordagem energética do indivíduo tem dificuldade, sem formação para isso, em entender como é que a Medicina Chinesa funciona.»(6) Ou seja, funciona e é claramente eficaz. Dizem eles. Mas funciona e é eficaz de uma maneira tão subtil que só os seus praticantes notam.

Quase ninguém seria crédulo ao ponto de para aceitar uma coisa destas vinda de uma clínica médica a sério ou de uma empresa farmacêutica. Se estas afirmassem tratar os pacientes com uma eficácia “pouco clara para a Medicina do Ocidente” e que só os próprios vendedores pudessem avaliar quase todos dariam pela marosca. Infelizmente, parece que estas tretas milenares coincidem com um ponto cego cognitivo por onde muitos se deixam enganar. Porque não percebem é que a maioria das terapias tradicionais chegou até hoje apenas pela virtude de fazer menos mal que as outras do seu tempo.

Se a escolha fosse entre espetar agulhinhas de bambu para “libertar as energias” ou o sapateiro cortar-me uma veia para “equilibrar os humores”, eu também preferia as agulhinhas. Não por julgar que fizessem alguma coisa, mas antes isso que uma veia cortada. Durante a idade média, em vários sítios da Europa tornou-se popular tratar feridas aplicando as mezinhas e emplastros aos utensílios que as tinham causado. Isto porque se o remédio é uma mistura de ervas ou gordura cheia de bactérias, o melhor é aplicar longe da ferida (7). Mesmo sem saber o que eram bactérias, rapidamente devem ter visto que tinha um efeito muito melhor. É claro que era o mesmo efeito de não fazer nada e esperar que curasse sozinho. Mas esse remédio, psicologicamente, é o mais difícil de aplicar. Daí o sucesso das medicinas alternativas.

É irónico que muitas pessoas argumentem a favor das alternativas apontando que as empresas farmacêuticas querem ganhar dinheiro. Mas “Dr.” Pedro Choy, e outros que tal, fazem o mesmo. São negócios. 60€ uma consulta não é obra de caridade. E mesmo que fosse, a questão fundamental é se aquilo é seguro, eficaz e útil. Se vale a pena espetar agulhas a uma criança de seis anos com sintomas de gripe quando esta já está medicada e a ser seguida pelo pediatra. Se uma empresa farmacêutica propusesse fazer isso aos meus filhos eu exigia evidências sólidas antes de aceitar. Não se deve exigir menos ao “Dr.” Choy.

1- Clinicas Dr. Pedro Choy, O QUE PODE FAZER POR SI
2- National Institutes of Health, Consensus Development Conference Statement, November 3-5, 1997
3- Clínicas Dr. Pedro Choy Dr. Pedro Choy
4- Clínicas Dr. Pedro Choy Casos Clínicos
5- Clínicas Dr. Pedro Choy Preços
6- Clínicas Dr. Pedro Choy, Medicina Chinesa.
7- Weapon salve

sábado, julho 25, 2009

Religiões e certezas humildes.

A ciência tem a pretensão de dizer como o universo funciona, como surgiu a nossa espécie, como o Sol brilha e explicar cada vez mais coisas. E tem o atrevimento de não descobrir deuses em lado nenhum. Pior de tudo, é feita por pessoas comuns com o desplante de tentar perceber a realidade. Para alguns crentes isto é presunção. Muito mais humilde, defendem, é confiar – ter fé – numa fonte de conhecimento infalível de inspiração divina. Livros sagrados, profetas, líderes infalíveis que lhes digam o que é e o que não é. Só assim se pode ter certezas, porque errar é humano e o que nós fazemos não é de fiar.

Felizmente, nem todos usam a fé como fonte de certeza ou a defendem como racional. Para muitos, a fé é acerca de si e não dos factos. É uma disposição pessoal, como gostar de pintura ou amar alguém, que não se justifica, não carece de razões e não tem nada a ver com o o universo ou com os outros. Mas nesta fé não dá para assentar a religião. É demasiado pessoal. Por isso os profissionais da religião têm de vender a fé como fonte de certezas. Normalmente com maiúsculas. A Verdade, a Razão e a Revelação. E, com isto, acabam por defender uma certeza ao contrário, sem nada de racional, que não é verdade e que só revela a insensatez da abordagem.

A certeza justifica-se quando há tanta evidência em favor de uma hipótese que já não é útil procurar mais. Eu tenho a certeza que o Sol é maior que a Terra no sentido em que a minha convicção não pode aumentar por ter mais confirmação. Se ler no jornal que a NASA organizou uma medição cuidadosa e concluiu que o Sol é maior que a Terra fico exactamente na mesma. Isso já eu sabia. No entanto, esta certeza não é inabalável. Resultando da preponderância de evidências em favor da hipótese, se novos dados alterarem o balanço a certeza desaparece. Não me parece provável que aconteça neste caso, mas se acontecesse acumular-se evidências que afinal a Terra é maior que o Sol, sei que iria mudar de ideias. A certeza que a Terra é mais pequena que o Sol é relativa aos dados que tenho.

A certeza da religião é diferente. Não dispensa confirmação adicional. Quem quer ter certeza na sua religião procura sempre apoio em milagres, profetas e santos, cultos e homilias, para reforçar a certeza difícil em coisas como o número de dias da criação, a virgindade de personagens de histórias ou a infalibilidade de lideres religiosos. E rejeita a possibilidade de estar enganado. Por exemplo, uma religião cristã não admite a possibilidade de Jesus ter sido apenas um homem porque Jesus ser um deus é a premissa base destas religiões. E essa é uma certeza ao contrário. Em vez ser o ponto final do acumular de evidências, surgindo quando já não adianta reunir mais, a certeza religiosa é o ponto de partida. E dizem-na irrefutável, o que, em qualquer outro contexto, todos considerariam arrogante.

A justificação que dão é que as religiões têm acesso a fontes infalíveis. Só que a fonte infalível de cada religião contradiz as fontes infalíveis das outras, pelo que raramente se entendem. E há um problema mais subtil. É que só podemos ter confiança absoluta numa fonte que supomos infalível se assumirmos que também somos infalíveis a identificar e interpretar tais fontes. E isto é presunção a mais. Quando o criacionista interpreta a sua Bíblia ou o católico o seu Papa, por trás da fachada de humildade em seguir uma orientação divina está a arrogância de se assumirem infalíveis na sua escolha de fontes e interpretações. Porque se admitirem que são falíveis, que podem estar a perceber mal ou ter-se enganado no deus, livro ou líder, então não podem ter estas certezas e a suposta infalibilidade da fonte, mesmo que fosse verdade, de nada lhes adiantava.

Se vejo mil cisnes e são todos brancos tenho a certeza que os outros cisnes também serão brancos. É razoável decidir que mais cisnes brancos já não vão fazer diferença. Mas se descubro um cisne preto largo a certeza. A ciência funciona assim, com certezas revogáveis. Já não vale a pena confirmar se o Sol é maior que a Terra, se descendemos de outros primatas ou se o universo tem milhares de milhões de anos de idade. Disso já temos a certeza. Ou seja, já temos tanta evidência a favor que não adianta obter mais. Apenas nos interessa algo que ponha estas certezas em causa.

É neste sentido que tenho a certeza que as religiões estão enganadas. Que não houve uma criação divina nem há um ser omnipotente a controlar isto. Isto porque se amanhã a ciência desvendar mais um mistério explicando-o por processos naturais ninguém vai achar estranho. De processos naturais já temos exemplos que chegue e não é preciso mais confirmação para concluir que este universo é todo natural, sem bonecreiros invisíveis no céu. E se algum dia houver evidências claras em contrário, pois então deitarei fora esta certeza. Mas, até lá, a conclusão é esta. As religiões estão enganadas. E isto não é arrogância nem humildade. É ir para onde as evidências me levam.

Arrogância é ter a certeza do contrário sem evidências à altura, baseando-se em histórias, interpretações duvidosas e milagres em pingas de óleo. É dizer-se humilde seguidor de um saber infalível quando esse saber só pode ser infalível se quem o sabe também o for.

quinta-feira, julho 23, 2009

A linha.

A National Portrait Gallery (NPG) expõe e preserva retratos de britânicos famosos. Foi inaugurada em 1856 e tem um orçamento anual de cerca de vinte milhões de euros; metade do estado, um quarto de donativos e um quarto dos seus próprios rendimentos. Legalmente, é uma instituição de caridade isenta de impostos (1). Nos últimos anos a NPG investiu cerca de um milhão de euros na digitalização dos retratos expostos e, em Abril, um contribuinte voluntário da Wikimedia Commons colocou disponibilizou cerca de três mil imagens da NPG e esta exigiu à Wikipedia Foundation (WF) que as retirasse. A WF recusou, invocando uma decisão judicial nos EUA segundo a qual uma imagem de uma obra no domínio público não é, por si só, suficientemente inovadora para ser protegida por copyright. Por seu lado, a NPG invoca a tradição legal deste tipo de imagens ser protegido por copyright para ajudar a financiar o restauro e preservação dos originais.

É fácil ver a NPG como o mau da fita. Uma instituição financiada principalmente pelos contribuintes e por donativos, com a missão de preservar e expor estas obras, beneficia do estatuto de instituição de caridade e quer apropriar-se de obras no domínio público. No entanto, a digitalização com a qualidade que estas obras merecem exige um investimento considerável. E é razoável que a comercialização das imagens resultantes contribua para cobrir este investimento. Mas, por outro lado, a WF também tem razão. Não faz negócio com as imagens, também é uma instituição sem fins lucrativos e a sua missão é disponibilizar informação. Estando as obras no domínio público nem legalmente se justifica restringir o acesso em nome do lucro.

É um dilema recorrente. Por um lado, o poder legal para proibir a troca de informação é demasiado intrusivo para ser um bom subsidio. Isto é óbvio com obras no domínio público, mas o princípio aplica-se a todo o conteúdo digital, onde “proteger a obra” é um eufemismo enganador para proibir as pessoas de copiar sequências de números. Seria um exagero subsidiar a minha carreira de blogger, por exemplo, proibindo a troca de quaisquer números que pudessem representar este texto. Mas, por outro lado, sem o copyright não há forma de controlar a comercialização de textos, imagens, músicas e filmes. Se estas imagens que a NPG produziu forem declaradas de domínio público qualquer um poderá usá-las para vender livros, camisolas ou posters sem dar um cêntimo a quem investiu na sua produção. Isto dificultará o trabalho a instituições como a NPG, que querem partilhar a cultura que preservam e têm a noção que guardam algo que é de todos, mas que precisam de dinheiro para o fazer de forma adequada. Até agora, a venda de direitos de cópia foi uma forma de financiar o restauro e digitalização de obras de arte. Sem este financiamento o trabalho será mais difícil.

Mas é um falso dilema. O mau da fita nem é a NPG nem a WF mas sim o copyright, uma legislação antiquada, de quando fazer cópias era caro e inevitavelmente ligado ao comércio. Hoje, a cópia é a base da tecnologia digital e da transmissão de informação. Quando damos informações não ficamos sem elas, quando enviamos um email o que enviamos é uma cópia e quando descarregamos um ficheiro o original continua no servidor. Os computadores, como os nossos cérebros, são poderosos copiadores de informação. Do ensino à cultura e à Internet, a sociedade moderna depende dessa capacidade. Uma sociedade de informação é uma sociedade de cópia.

Por isso temos de traçar a linha noutro sítio. Entre actividades comerciais e actos sem fins lucrativos. Entre o negócio e a cultura. Entre a venda e a partilha. Se em vez de um direito de cópia se regulasse a comercialização, a WF podia disponibilizar as imagens sem impedir a NPG de receber pelo lucro das aplicações comerciais dessas imagens. A Creative Commons dá licenças deste tipo, mas não são uma boa solução porque assentam na legislação do direito de cópia – legislação que afecta todas as pessoas e não só os comerciantes – e, em casos como este, teria de se aplicar uma licença de cópia a algo que já é domínio público. O ideal seria substituir o copyright por um direito temporário, e inalienável, de comparticipação dos lucros.

Uma objecção é que isto diminui o negócio porque as pessoas, tendo à borla, não vão pagar. Mas esta objecção é infundada em muitos casos porque o que se compra complementa o gratuito. O ficheiro não substitui o concerto ao vivo ou o filme no cinema. Pelo contrário; estes negócios têm aumentado muito com a partilha de ficheiros. Mas a razão principal para rejeitar esta objecção é focar um problema diferente. Uma coisa é regular o comércio para que quem produza algo receba parte dos lucros da venda. Outra é inflacionar o preço de um produto proibindo a troca de certo tipo de informação.

Em suma, precisamos acabar com as restrições à cópia e implementar uma solução que dê algum incentivo a quem cria sem atropelar os direitos de todos os outros. E pensando também que, num futuro próximo, podemos ter no bolso todas as músicas que tenham sido editadas e descarregar um filme enquanto fazemos as pipocas no microondas. Convém que a lei seja uma forma razoável de conjugar os vários direitos em vez de uma rolha a flutuar sobre os escombros do dique.

1- Wikipedia, National Portrait Gallery (London)
E mais informação em:
National Portrait Gallery bitchslaps Wikipedia
Wikipedia's Gallery guy hung up to dry?
U.K. National Portrait Gallery threatens U.S. citizen with legal action over Wikimedia images

segunda-feira, julho 20, 2009

Autoridade.

Uma técnica da apologética religiosa é confundir normas, prescrições e descrições. Numa aula de filosofia, quase teologia, ouvi o professor dizer que o fundamento da religião tinha de ser verdade porque senão a vida era muito injusta. O argumento ficava melhor numa aula de lógica, como exemplo de non sequitur. E um tema onde esta confusão sobressai é a autoridade.

A autoridade sobre normas ou prescrições é convencionada. O professor decide como avaliar o exame e o juiz prescreve a pena ao condenado com autoridade conferida pela sociedade que acata estas decisões. Do presidente da junta ao primeiro ministro, muitas autoridades nem precisam de mais qualificação que o mero assentimento da maioria. Daí que seja conferir autoridade normativa ou prescriptiva a um líder religioso, livro sagrado ou classe profissional. O padre manda rezar trinta avé-marias e a Bíblia diz o que se pode ou não pode fazer ao sábado. Mas as religiões exageram logo ao assumir que certas autoridades são inquestionáveis. Por ser convencional, este tipo de autoridade pode ser delegado em qualquer pessoa ou tradição. Mas, também por isso, é revogável, condicional e questionável. O professor pode ser despedido e o presidente impugnado. A ambos pode ser destituída essa autoridade pela mesma convenção que lha conferiu. Uma falha nas religiões é não admitir o mesmo para as suas autoridades máximas.

Já aqui se nota a diferença entre o ateísmo e as religiões. O crente religioso tem de reconhecer uma autoridade suprema que lhe dê normas ou prescrições, seja Corão, Papa ou Buda. O ateu não. O ateu reconhece apenas as autoridades terrenas da sua sociedade. Mas a diferença mais marcante é na autoridade de quem se pronuncia acerca da realidade. Todos reconhecemos a autoridade de cardiologistas, electricistas ou livros de química e física. E esta autoridade tem uma fonte diferente. A autoridade normativa ou prescriptiva é atribuída, ou revogada, por convenção. Até votamos para escolher quem avalie opções políticas e as mande executar. Mas a autoridade do perito não, e dá mau resultado eleger por sufrágio cirurgiões ou engenheiros civis. E se bem que o professor e o juiz possam ser destituídos da sua autoridade normativa ou prescriptiva, ninguém pode ser destituído de ser um perito numa área. Se sabe, sabe. A confiança que temos num perito não vem do título. O título é que vem de ter demonstrado objectivamente que domina essa área.

E aqui as religiões baralham tudo. Os criacionistas atribuem à Bíblia não só a autoridade para avaliar as coisas ou lhes dizer o que fazer mas também a autoridade de perito em geologia, biologia, cosmologia e o que mais calhar. O que é absurdo porque este tipo de autoridade depende de haver uma aferição independente do perito. Os católicos criticam este fundamentalismo mas cometem o mesmo erro com o Papa que, só por ter sido eleito para o cargo fica magicamente infalível em certas coisas. Adquire autoridade de perito na origem do homem, na diferença entre homens e animais, na transubstanciação, na existência de deuses e até na eficácia do preservativo, tudo por obra e graça do espírito santo. Sem prestar qualquer prova da sua fiabilidade nestas matérias.

Alguns crentes afirmam que o ateísmo é uma fé e que os ateus também aceitam acriticamente as suas autoridades. O que é irónico, porque normalmente a fé e a autoridade inquestionável é o que os crentes apontam como pontos fortes da sua crença. Mas, ironia à parte, a afirmação é falsa. O ateu escolhe autoridades de forma muito diferente. Primeiro, porque o ateísmo não dá qualquer autoridade normativa ou prescriptiva. Ser ateu não me subordina ao que o Dawkins manda nem me obriga a aprovar o que o Harris julgue bom. E, principalmente, porque o ateísmo não deixa entrar peritos pela porta do cavalo. Considero o Dawkins um perito em biologia, que ele demonstrou dominar, mas julgo que percebe pouco de filosofia.

Esta atitude contrasta com a atitude dos crentes que consideram profundas vacuidades como «Jesus Cristo purifica e liberta das nossas carências humanas a busca do amor e da verdade e desvenda-nos, em plenitude, a iniciativa de amor e o projecto de vida verdadeira que Deus preparou para nós.» Ou que assumem ser verdade que «Sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem é.» Não porque tenham evidências desta purificação, projecto de vida ou necessidade daquele deus em particular para sabermos quem somos. Nem porque o suposto perito que o afirma tenha demonstrado saber o que diz. Aceitam isto, e levam-no a sério, apenas porque é uma encíclica do Papa (1). Este foi eleito perito infalível em matérias de facto por quem nem se preocupou em averiguar como é que ele pode saber estas coisas ou como se pode verificar se ele tem razão no que diz.

Isto vem a propósito dum post do Alfredo Dinis, onde ele afirma que os ateus «aceitam incondicionalmente o que dizem» pessoas como Dawkins e Harris, que «os ateus têm pouco espírito crítico, ou mesmo nenhum»(2), e sugere que os crentes é que têm uma atitude crítica. Pois eu sugiro que nenhum ateu será acrítico por causa do seu ateísmo. Se o for, será por outras razões. E o crente só poderá criticar os dogmas fundamentais da sua religião se conseguir ser mais crítico que crente. Porque a religião depende sempre do magister dixit. Em contraste, o ateísmo é fruto quase inevitável do nullius in verba.

1- Caritas in Veritate
2- Alfredo Dinis, Religião, ateísmo, e espírito crítico

domingo, julho 19, 2009

Treta da semana: partilhar por inveja.

É vulgar acusarem quem critica o copyright de ser um parasita da criatividade dos “autores”. As aspas são porque, neste contexto, o termo restringe-se a uma fatia minúscula da criatividade humana. Música, filmes e obras de ficção, essencialmente. E isto numa sociedade que preza a educação, que a oferece gratuitamente, que dá valor a quem aprende e ensina. Estas pessoas passam a vida a aprender coisas que outros criaram, como línguas, matemática e ciência, a apreciar o património cultural colectivo e a admirar quem o conhece e partilha mas, mesmo assim, julgam que músicas e filmes são propriedade privada que só um energúmeno trespassa sem pagar.

Uma leitora foi ainda mais longe e comentou recentemente que «Todos aqueles que publicamente não são reconhecidos [como] grandes criadores pensam [exactamente] dessa mesma forma e repudiam os copyrights. Sempre acho que a mediocridade é uma variação da inveja de quem quer, mas não consegue e ainda assim quer, mesmo que à custa dos outros.»(1) A afirmação é pouco realista porque sugere que, à excepção dos “grandes criadores”, todos são invejosos e contra o copyright. Mas levar o comentário à letra faria dele um alvo demasiado fácil até para esta rubrica semanal. Por isso interpretá-lo com querendo dizer apenas que quem se manifesta contra o copyright, como eu, o faz por inveja da criatividade alheia.

Há filósofos cujas ideias eu gostava de ter tido, cientistas cuja inspiração e lucidez admiro e professores que quem me dera conseguir imitar. Mas não me lembro de desejar mal a alguém por ser criativo. E muito menos a quem o copyright é dedicado. Cantores, produtores de videogramas, gestores de direitos de retransmissão e editores de discos. Esses entretém-me mas não me suscitam cobiça nem inveja. O que mais admiro na criatividade humana é precisamente o que o copyright exclui: «As ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios ou as descobertas não são, por si só e enquanto tais, protegidos nos termos deste Código.»(2)

E não é por inveja que milhões de pessoas partilham ficheiros gratuitamente. É por gosto. Faz parte de ser humano, isto que nos leva a emprestar um CD ou um livro ou a deixar outros copiar um ficheiro. É o gosto de partilhar aquilo que nos agrada. E isto é o contrário da inveja. E é o que nos ensinam a fazer desde criança. Que o saber, a informação, é para se partilhar livremente. Contamos coisas, explicamos, ensinamos e aprendemos sem cobrar ou pagar pela cópia da informação. E, hoje em dia, a informação inclui imagens, músicas e filmes, que podem ser copiados com a mesma facilidade com que fazemos um telefonema ou escrevemos um email. Não por inveja, mas porque partilhar informação é uma parte importante de ser humano.

Tão importante que a reconhecemos como um direito fundamental. O direito de expressão e de acesso à educação, informação e cultura. Este é um direito a sério. Ao contrário do copyright, uma mera licença que pode ser comprada e vendida e que a lei dá a músicos mas não a matemáticos, a realizadores de cinema mas não a cozinheiros ou cientistas. Há direitos de autor que são direitos de verdade. O direito de ser reconhecido como o autor da sua obra ou o direito de a manter privada. Porque estes são direitos inalienáveis e concedidos a todos por igual. Einstein nunca teve direitos de cópia sobre E = mc2, mas teve, e tem, o direito de ser reconhecido com o seu autor.

Mas o copyright não é um direito. É apenas o poder legal de proibir a cópia daquilo que se publicou de livre vontade. E isso não é justo. O matemático não pode proibir que façam contas iguais às suas nem o professor proibir os alunos de ensinar o que aprenderam. Nem se dou uma aula acerca do meu trabalho de investigação posso proibir cobrar por tirarem apontamentos ou por partilhar a informação. E ainda bem. O justo é eu ganhar pelo trabalho que faço e não à custa de roubar os direitos aos outros. Por isso sou contra que editores de videogramas e produtores musicais lucrem à custa de restrições legais à liberdade de expressão e ao acesso à cultura. Restrições que, ainda por cima, pagamos em impostos para ASAEs e tribunais. Em vez de um direito exclusivo de cópia devia haver apenas licenças de comercialização.

Porque o invejoso não é quem ensina o que aprendeu, mostra o que viu ou partilha gratuitamente a informação que tem. O invejoso é quem que se sente lesado só por pensar que, algures, alguém possa usufruir de uma ideia sem pagar.

1- Comentários de Dina em A treta do copyright: definição.
2- Código do Direito do Autor e Direitos Conexos, Artigo 1º, alínea 2.

sexta-feira, julho 17, 2009

O que se testa.

Para tentar compreender a realidade, ou para a descrever, criamos modelos. Podem ser modelos materiais, como maquetas ou mapas. Podem ser modelos matemáticos ou linguísticos, escritos num papel, programados no computador ou guardados nos nossos cérebros, ideias e conceitos. Seja como for, todos estes modelos pretendem representar algum aspecto da realidade. Por isso cada modelo levanta uma hipótese que nos interessa. A hipótese do modelo ser fiel à realidade. Em rigor, é essa hipótese que pode ser verdadeira ou falsa e é essa hipótese que queremos avaliar.

Numa conversa informal não é costume dar importância a estas distinções. Por vezes dizemos que o modelo é verdadeiro ou falso quando só a hipótese pode ter um valor de verdade. Em geral, o modelo não é uma proposição. Ou dizemos que testamos um certo aspecto da realidade, como um medicamento ou ferramenta quando, em rigor, o que queremos dizer é que testamos a hipótese de esse objecto se comportar de acordo com um modelo que esperamos ser correcto. Mas, felizmente, isto não costuma dar confusão. Excepto quando se alguém faz por isso. A pergunta do António Parente, «Já imaginou Deus deixar-se aprisionar num tubo de ensaio para o Ludwig O testar?»(1), é um exemplo extremo desta confusão. Mas, mesmo quando o absurdo não e tão óbvio, confundir a realidade com o modelo e a hipótese deste se adequar àquela é um obstáculo persistente nas conversas acerca da crença religiosa.

Ninguém vai testar Deus. Tal como ninguém testa terremotos, estrelas, tempestades, electrões ou qualquer outro aspecto da realidade. A realidade não é verdadeira, nem falsa, nem se testa. A realidade é o que é. Mas como o nosso acesso à realidade é incompleto e imperfeito, aquilo que julgamos ser nem sempre corresponde ao que é. É essa hipótese que temos sempre de testar. Por isso os geólogos não precisam de enfiar continentes num tubo de ensaio. Têm um modelo segundo o qual os continentes se deslocam lentamente flutuando no magma. Desse modelo pode-se prever os resultados de algumas observações. Não se consegue ver, a olho nu, os continentes a andar. Mas se tivermos um GPS suficientemente preciso ao fim de uns anos vamos notar diferenças. E vemos na forma e geologia dos continentes vestígios de quando estavam encaixados, as bandas de magnetização da rocha no fundo do oceano indicam que esta se foi formando gradualmente, a distribuição de zonas vulcânicas e sísmicas estão de acordo com o esperado e assim por diante. É assim que se testa a hipótese. Comparando os dados que se obtém com aquilo que o modelo prevê.

É claro que podemos conceber um modelo para o qual isto seja impossível. Eu posso propor que todos os objectos ficam amarelos quando estão às escuras. Como o modelo não diz nada acerca da sua cor quando os iluminamos, e como às escuras não se consegue saber a cor dos objectos, não há maneira de decidir se o meu modelo corresponde à realidade. Por isso a hipótese é impossível de testar. O que não é uma virtude. Aquilo que o torna imune à realidade, não dizer nada que a observação possa contradizer, também o torna inútil para descrever ou ajudar a compreender a realidade.

Isto é importante na discussão com crentes religiosos porque não são os deuses que estamos a testar. O que queremos é averiguar se correspondem à realidade aqueles modelos onde os crentes descrevem atributos, actos e vontades dos dos seus deuses. Cada um destes modelos pode, ou não, corresponder à realidade, e essa hipótese tem de ser passível de algum teste empírico sob pena do modelo ser inútil. E os crentes reconhecem-no. Por muito que se refugiem na suposta impossibilidade de falsificar as suas hipóteses, todos afirmam que sofreremos, depois da morte, as consequências da descrença. Seja a vingança mesquinha dos deuses dos evangélicos seja a ameaça vaga dos católicos, de uma eternidade sem “amor”, todos apresentam um teste empírico para determinar se o seu modelo corresponde à realidade.

Por isso essa coisa do deus ser infalsificável é treta. É dos modelos que estamos a falar. E a correspondência entre cada um desses modelos e a realidade é uma hipótese que admite um teste empírico. O problema é que ninguém entre os vivos dispõe dos dados necessários para testar essas hipóteses. À proposta de um modelo antes de ter quaisquer dados relevantes chama-se especulação infundada. Ou fé. Acaba por ser a mesma coisa.

1- Comentário em No olhar de quem crê.

quinta-feira, julho 16, 2009

No olhar de quem crê.

O Alfredo Dinis escreveu que eu tenho «um entusiasmo pela difusão do ateísmo que rivaliza com o entusiasmo proselitista dos mais devotados missionários cristãos.»(1) Se rivaliza, é bom sinal. Mas o que me interessa é o diálogo racional acerca de afirmações objectivas. Gosto de apresentar razões que sejam válidas para quem discorda de mim e de pedir, a quem defende a posição contrária, razões que eu também possa aceitar. Se afirmam que uma hipótese corresponde à realidade, justifiquem-no. Não deixo que se safem com a desculpa que a hipótese não é testável e tem de ser aceita pela fé. Ao contrário do missionário, não me motiva a conversão dos outros, mas sim a sensação incómoda de me quererem enfiar um barrete.

O Alfredo explica que a sua hipótese não pode ser «formulada em termos empíricos e espácio-temporais, de forma a poder ser submetida a testes igualmente empíricos» porque isso seria como «pretender apresentar a hipótese da beleza de um quadro de Picasso de tal forma que essa beleza seja posta à prova pela observação empírica do movimento dos electrões dos átomos que constituem a matéria da tinta que o autor utilizou.» É uma analogia interessante. Merece ser explorada mesmo para além do que o Alfredo pretendia.

Revela logo o truque das lacunas. Uma explicação por analogia serve para elucidar um tema difícil com um análogo mais acessível. Por exemplo, explicar a função de onda do electrão com a analogia de uma corda a vibrar. Mas, sistematicamente, os religiosos procuram analogias com coisas que não se compreende. Há uns séculos podiam ter sido as estrelas ou a natureza dos seres vivos. Com o avanço da física e da biologia, agora tem de ser o amor e a beleza. A ideia parece ser criar a ilusão que se explica alguma coisa sem esclarecer coisa nenhuma.

Depois, a hipótese da beleza de um quadro ser função unicamente da configuração dos átomos na tinta é falsa mas é válida. Pode-se testar e é útil na procura de hipóteses melhores. Isto sugere que o problema do Alfredo não é que a sua hipótese não seja formulável de forma mais concreta. Parece que o problema é apenas o receio que se revele falsa. Nem é por causa do «espácio-temporal». Por exemplo, a hipótese de existir uma forma platónica de beleza fora do espaço-tempo pode ser confrontada com a hipótese que a beleza de um quadro resulta da interacção do quadro com o ser humano que o aprecia, ambos compostos por átomos. Apesar da primeira hipótese não ser «espácio-temporal», prevê que haja um critério objectivo de beleza e, por isso, rejeitamo-la em favor da segunda.

Mas o mais interessante nesta analogia é que compara o deus do Alfredo com a beleza. A beleza é um conceito muito diverso entre pessoas e culturas, não há um critério objectivo para determinar o que é belo e é algo que não se pode justificar aos outros. Um quadro do Picasso pode ser belo para uma pessoa e horroroso para outra*, sem nenhuma ter mais razão que a outra nem haver forma de chegarem a um consenso. Isto indica que a beleza é subjectiva, como penso que o Alfredo concorda. Não faz sentido dizer que alguém está enganado ao achar feios os quadros do Picasso.

A crença religiosa tem as mesmas características. É expressa de formas diversas entre pessoas e culturas diferentes, não há um critério objectivo para determinar qual é a religião “correcta” e não parece que os crentes alguma vez cheguem a consenso acerca de quem tem razão. Muitos, como o Alfredo, até excluem essa possibilidade por alegarem que não se pode testar a sua hipótese. Estas são as características esperadas de algo que é subjectivo, e o contrário do que se espera de algo com um fundamento objectivo e universal.

Por isso não me preocupo que o Alfredo ache bonitos os quadros do Picasso ou que goste de adorar um deus. Não partilho essas preferências mas são juízos subjectivos. A cada um o seu. Mas já não é subjectivo se o Alfredo afirma que eu estou enganado porque existe uma Beleza que, por acaso, corresponde aos gostos dele. Ou se me diz que eu devia adorar um certo deus porque existe mesmo um deus e logo calhou ser o do Alfredo. Isso já é preciso justificar com razões concretas e aceitáveis até para quem não tenha os mesmos gostos.

Mas não é por isso que me vou portar como um missionário. Não invoco a autoridade de livros nem fantasmas, não bato à porta do Alfredo nem o ameaço com céus e infernos. Só não deixo que me enfiem o barrete. Se puxam a lã eu ponho o dedo no ar e, na minha vez, digo que é treta. E se isto lhes parece tão agressivo como o proselitismo dos missionários, até compreendo. Mesmo com muita gente a elogiar todos os domingos as magnificas vestes de sua majestade, basta uma voz pequenina lhes apontar a falta de substância para haver logo consternação.

*Em defesa de Picasso, não me parece que a beleza dos quadros fosse uma prioridade para ele.

1- Alfredo Dinis, 10-7-09, ateus missionários?

quarta-feira, julho 15, 2009

Miscelânea Criacionista: quem foi o primeiro?

Os criacionistas alegam ser preciso fé para aceitar que os seres vivos tenham surgido por processos naturais. O que é estranho. Todos os dias a natureza cria seres vivos a partir de outros parecidos. E por processos naturais. Como este poder da natureza torna supérfluo qualquer agente sobrenatural, os criacionistas preferem perguntar «De onde surgiu o primeiro ser vivo?»(1), assumindo implicitamente que houve um primeiro e que esse tinha algo de especial. Como resposta propõem que cada um dos primeiros foi criado, segundo a sua espécie, por milagres do filho do carpinteiro, pai de si próprio e nascido de uma virgem, que depois veio fingir que morria para nos perdoar o mal que os nossos antepassados fizeram quando nem sabiam distinguir o que era bem e o que era mal. Esta hipótese é demasiado rebuscada para resolver um problema que, no fundo, é meramente linguístico.

Os criacionistas tratam os “tipos” de organismos como categorias bem definidas e estanques, um erro que o Marcos Sabino demonstra quando aceita a evolução, tal como ela é, para logo a seguir dizer que não pode ser assim: «Se evolução for apenas “descendência com modificação” (que é o mesmo que dizer que os filhos serão diferentes dos pais) então há “evolução”. [...] Mas nós não queremos saber como os filhos são diferentes dos pais. [...] Se “evolução” for o processo que transforma um animal noutro tipo de animal diferente então isso [nunca] foi observado.»(1) A evolução é um processo gradual, como o envelhecimento ou a queda de cabelo. Os filhos herdam características dos pais mas não são sempre iguais aos pais, o que faz as populações mudar com o passar das gerações. E se bem que as mudanças sejam pequenas de geração para geração, acumuladas tornam as populações muito diferentes dos seus ancestrais longínquos.

No sentido usual, entre réptil e mamífero há uma fronteira difusa, tal como entre cabeludo e careca ou entre jovem e idoso. Não se define com precisão os limites destas categorias, ao contrário de outros casos como, por exemplo, os objectos com dois metros de comprimento. Podemos conceber um objecto ao qual falte uma milésima de um milímetro para ter dois metros mas é absurdo falar da pessoa a quem falta uma milésima de um cabelo para ser cabeluda. E é disparate argumentar contra a macro-perda de cabelo alegando que só se observa micro-perdas e ninguém passa de cabeludo a careca só por perder um cabelo.

É a confusão que os criacionistas fazem com os tipos de animal e até com a categoria de ser vivo. As fronteiras destas categorias ou não permitem distinções finas ou, quando permitem, são arbitrárias. É como definir cabeludo especificando o número mínimo de cabelos necessários à categoria. Pela necessidade de classificar fósseis, os paleontólogos fazem algo parecido, distinguindo os mamíferos e os répteis cynodontes por pequenas diferenças na articulação da mandíbula. Levada ao extremo, esta definição até poderia destacar o primeiro mamífero. Mas este iria diferir do seu pai réptil apenas naquele detalhe minúsculo que arbitrariamente se escolhesse para marcar a fronteira. O que importa notar é que estas fronteiras entre categorias, sejam precisas ou difusas, afectam apenas o uso dos termos. O processo em si não depende da definição das palavras. O cabelo vai caindo gradualmente até que o cabeludo fique careca e os filhos nascem ligeiramente diferentes dos pais de tal forma que uma população de répteis pode ter como descendentes, num futuro distante, uma população de mamíferos.

Penso que foi este o golpe de génio de Darwin. Que os filhos são diferentes dos pais já toda a gente sabia. E os agricultores, e criadores de animais, já tiravam partido disso para seleccionar as características mais desejadas. Mas Darwin percebeu que perguntar quem foi o primeiro é irrelevante. Seja o primeiro pombo, o primeiro mamífero ou o primeiro ser vivo, não vale a pena procurá-lo porque estas categorias são imprecisas ou arbitrárias. E não são estes tipos que importam à natureza, porque são apenas invenções linguísticas nossas. O verbo, ao contrário do que alguns defendem, não surgiu no início mas apenas ao fim de milhares de milhões de anos de evolução.

Como alguns criacionistas gostam de apontar, são as gaivotas que dão gaivotas e as moscas que dão moscas. Deus não faz nada aí. E apesar de ninguém se deitar jovem uma noite para acordar velho na manhã seguinte, as coisas mudam. Os filhos não são exactamente iguais aos pais e cada dia que passa deixa-nos um dia mais velhos. Entre esta manhã e a noite sessenta anos antes, ou entre os filhos de hoje e os seus antepassados de milhões de gerações atrás, a diferença pode ser enorme.

Até o início da vida se pode compreender com estes processos graduais, partindo de moléculas orgânicas simples que se acumulavam na superfície de minerais, que reagiam e produziam novas moléculas em sistemas cada vez mais complexos até se replicarem a si próprios e, eventualmente, produzirem algo claramente do lado de cá da fronteira indefinida que separa o que não é vivo e o que vive. Tudo isto de forma natural, sem precisar de deuses, milagres ou outros contos de fadas.

1- Comentário do Mats em O escaravelho bombardeiro e o pulgão suicida.
2- Marcos Sabino, Informando um evolucionista confuso e pouco esclarecido

segunda-feira, julho 13, 2009

Treta da semana (passada): O Mestre Zetor.

No seu curso de Reiki, conta o Mestre Zetor que (sic) «o Reiki original tinha técnicas que pela sua dificuldade não chegaram ao ocidente.. Para se passar para o segundo nível ( Okuden ), as exigências era grandes, possivelmente demorariam longos períodos de treino, ate estarem prontos a deixar o primeiro nível.. Assim o que passou para O Ocidente foi uma forma simplificada de actuação onde o operador é apenas um canal passivo da energia que passe por ele e se encaminha para os locais onde poderá ser necessária.»(1) Mas o Mestre Zetor «resolveu juntar as técnicas preconizadas pelo Dr.Usui e outras igualmente importantes» e agora dá um curso avançado de Reiki em 8 horas por apenas 125€.

E não é só a nível pedagógico que o Mestre Zetor se destaca. Faz magia, caça fantasmas, vende produtos de alquimia, fala com os mortos e até o seu fraco domínio do HTML é mais que compensado pelo entusiasmo com que usa gifs animados. Fundou também o Grupo de Pesquisas Paranormais (2), o «Primeiro grupo profissional de Ghost Hunters em Portugal». Sem canhões de protões mas apetrechados de bússolas e termómetros, investigaram o convento em Monfurado (3). Nesta investigação usaram até um «EMF medidor de electro-frequencias em gauss», que só por si já é um fenómeno sobrenatural. Do relatório sucinto, destaco o trecho abaixo, que me pareceu o ponto mais negativo da investigação.

«Chegados ao antigo refeitorio, sentimos a presença de alguem e entramos em contacto com uma entidade que disse se chamar Domingos e ser um antigo monge [... Revelou-nos] pormenores de muita angústia pessoal e que me abstenho de contar aqui pois considero que ele nao gostaria que se tornassem publicos. Pedida a confirmação fisica da sua presença, por alteração do aparelho de EMF , este que nao detectava nada, começou a tocar e o ponteiro a apontar para o meio da escala»

O GPP devia ter mais tacto com estas coisas. O coitado do fantasma está que tempos sozinho e quando, finalmente, tem alguém a quem contar a sua história, interrompem-no para fazer abanar a agulha a ver se ele existe mesmo. Não se faz. É um duro golpe na auto-estima de qualquer falecido.

Se conseguirem navegar nas páginas do Mestre Zetor encontrarão um verdadeiro tesouro do paranormal (talvez por motivos psíquicos, as ligações estão sempre nas imagens e nunca no texto... muito cliquei eu em vão durante esta expedição). Fotografias em que seres espirituais se manifestam como grãos de pó à frente do flash, chás curandeiros que tratam tudo, do reumatismo à menopausa («Os efeitos da menopausa são atenuados e muitas vezes ultrapassados», fica já o aviso às senhoras, não vá o diabo tecê-las), uma investigação psíquica ao castelo Craig y Nos, de onde destaco a foto do autor «psicometrando foto de Adelina Patti» e as «FOTOS ESPECTACULARES DE UMA MANIFESTAÇÃO PSÍQUICA, COM O APARECIMENTO DE UM ROSTO QUE SE PRESUME SEJA ADELINA PATTI» (peço desculpa pelas maiúsculas, mas não queria abafar o fervor original).

Fica aqui a recomendação, para uns momentos bem passados na companhia do Mestre Zetor:

zetor.homestead.com

(Mas façam intervalos regulares para descansar a vista)

Obrigado ao Mário Miguel pela ligação, entretenimento e gargalhadas.

1- Técnicas avançadas de Reiki e outras.
2- Grupo de Pesquisas Paranormais
3- Investigação do GPP em Monfurado

sábado, julho 11, 2009

Burqas, férias, e coisas sérias.

A nossa lei proíbe contractos de trabalho nos quais se abdique do direito às férias. Se a lei permitisse a abdicação contractual deste direito, o empregador podia pressionar um empregado a prescindir das suas férias. O mesmo raciocínio pode justificar a proibição da burqa. Por motivos pessoais ou religiosos, talvez haja quem queira mesmo abdicar das férias ou andar tapado dos pés à cabeça. Mas, havendo perigo de alguém ser forçado a isso, pode ser melhor proibir se a protecção dos direitos de uns compensar o inconveniente causado aos outros. Não é uma imposição gratuita de valores. É a tentativa de proteger, o melhor possível, os direitos de todos.

Acerca disto, o João César das Neves (JCN) baralhou-se com a sua habitual eloquência. «A tolerância só tem significado quando enfrenta algo intolerável. Para aceitar o que consideramos admissível não é preciso esforço. Claro que a tolerância tem limites [...] A discriminação das mulheres e, pior ainda, a sua servidão e abaixamento são evidentemente intoleráveis.» Para o JCN, só é preciso tolerância para o intolerável mas há coisa intoleráveis que não se tolera. Como a discriminação das mulheres que, logo a seguir, já parece tolerar quando diz que proibir a burqa é «precisamente a mesma posição que fez nascer a burka. Se substituirmos "dignidade da mulher" por "decência feminina" e "abaixamento" por "deboche", é fácil imaginar um qualquer responsável afegão a justificar literalmente nos mesmos termos a recusa do traje ocidental.»(1) Esta dicotomia é assimétrica. O “traje ocidental”, neste contexto, inclui tudo que não seja a burqa. Bikini, vestido de noiva, fato de treino, saia e casaco ou calças de ganga. Proibir a burqa restringe muito menos que proibir o resto. Mais importante ainda, o objectivo de proibir a burqa é impedir que obriguem as mulheres a usá-la. Não é por não gostar de burqas, mas por não querer que privem as mulheres do direito de escolher a sua roupa. Se for preciso restringir a escolha apenas a tudo o resto, antes isso que só poder escolher a burqa.

Numa sociedade tolerante ninguém sobrepõe os seus valores aos direitos dos outros. O católico não obriga o judeu a comer a hóstia e o judeu não proíbe o budista de trabalhar ao sábado. Mas se o empregador quer forçar o trabalhador a abdicar das férias, ou se o muçulmano obriga a mulher a andar de burqa, então a situação já é de intolerância e o máximo que se pode fazer é remediar com uma intolerância menor. Por isso proibir a burqa é uma hipótese aceitável, em teoria, se resultar numa imposição menor que deixar que obriguem as mulheres a usá-la.

Em teoria. Na prática, não estou convencido que seja boa ideia. Não me parece que passar multas a quem usa burqa seja uma forma eficaz de combater a discriminação. E desagrada-me soluções ad hoc. O melhor seria uma alteração estrutural. Por exemplo, deixar de tratar a religião como uma vaca sagrada. É fundamental que a sociedade encare as religiões como opções pessoais, que não merecem mais respeito que qualquer outra e que ninguém deve poder impor aos outros. Para isso era preciso abolir as leis, e combater a mentalidade, que ainda protegem de crítica as crenças religiosas. Não castigamos quem troça do futebol, quem goza com a ciência ou aponta o dedo à política. Mais importante, exigimos de quem gosta de futebol, ciência ou qualquer partido que tolere as críticas dos outros. Aos religiosos devemos exigir o mesmo. Que respeitem o direito de criticar. É certo que as religiões são mais vulneráveis à crítica, mas é pelo absurdo das suas crenças e isso não justifica protecção especial.

É grave que obriguem mulheres a usar burqa, é urgente enfrentar o problema e talvez proibir seja melhor que não fazer nada. Mas isto remedeia o sintoma em vez de tratar a doença. Por isso devia-se tirar melhor partido daquela virtude que é comum a todas as religiões. O ridículo. É que além de indecente, obrigar as mulheres a andar tapadas (ou proibir-lhes o sacerdócio, e tantas outras coisas) é idiotice. É disparate. É palhaçada. O JCN remata o seu artigo dizendo dos ditadores que «O mal deles não era cinismo e hipocrisia, nem estava tanto nas finalidades, mas na arrogância e tacanhez que o seu caminho implicava.» Pois é a arrogância e a tacanhez de muitos crentes que torna as suas religiões tão intolerantes. E intoleráveis. E para combater a arrogância e a tacanhez uma boa gargalhada é melhor que muitas proibições.

Não é uma solução a curto prazo. A curto prazo, gozar até pode dar mais tacanhez. Mas, a longo prazo, habituarmo-nos a gozar com os disparates resolveria muitos problemas. A troça não tira liberdade a ninguém, o humor ajuda a mudar de perspectiva e o gozo desmascara esses intolerantes disfarçados que apregoam tolerância mas não toleram críticas. Em qualquer país onde a lei proteja a integridade física de cada um, era remédio santo. Quando um homem inventasse que as mulheres têm de fazer isto ou não podem fazer aquilo, desatava tudo a rir e a gozar com ele. Em poucas semanas acabava-se a burqa, havia mulheres a dar missa e deixava o sexo de ser pecado e as religiões de estorvar tanto.

Cada vez mais me parece que o problema são os homens sérios. Os que franzem o sobrolho, se fazem ofendidos, exigem respeito e cofiam o bigode, tudo para disfarçar o ridículo que, no fundo, reconhecem. Têm tanto medo que se riam deles que inventam tudo, até religiões, só para lixar a vida aos outros.

1- João César das Neves, DN, 'Burka' e tolerância

quarta-feira, julho 08, 2009

Christian Engström no Financial Times.

O Financial Times publicou um artigo de opinião do deputado do Partido Pirata sueco no Parlamento Europeu. Os pontos principais são que esta guerra de coutadas do copyright está a destruir a noção de cultura como uma herança partilhada, e que a única forma de impor o copyright à nova tecnologia é acabando com a comunicação privada.

O primeiro problema é evidente na forma como as empresas e associações de cobrança usam a legislação. Nos EUA, a ASCAP quer cobrar pelo toque do telemóvel a quem já pagou, e bem, pelos segundos de música que tocam quando lhe telefonam. Isto porque dizem que o telemóvel a tocar é uma exibição pública e esse direito não está contemplado quando se compra o toque (1). Na Suécia querem cobrar aos empregadores uma taxa anual para os empregados poderem ouvir música no local de trabalho (2). E, por cá, às estações de rádio que já pagam para difundir a música, a SPA quer cobrar mais três porcento dos rendimentos pela «exploração comercial do site» que cada estação tenha, incluindo «todas as receitas provenientes da cobrança de serviços, publicidade e patrocínios» (3). Claramente, a arte não é cultura. É negócio. Ou extorsão.

E o artigo também aponta que partilhar ficheiros é parte integrante da comunicação moderna. Na Internet troca-se informação. Seja a partilhar ficheiros, enviar email, ler páginas ou qualquer outra coisa. A única forma de impedir que uma pessoa envie uma cópia de um ficheiro a outra é monitorizando cada comunicação. Por isso temos de escolher. Ou restringimos o copyright às licenças de comercialização e o deixamos fora da vida privada, ou abdicamos do direito de trocar informação com outros sem ter alguém a policiar.

O artigo está aqui: Copyright laws threaten our online freedom (via ZeroPaid).

1- ZeroPaid, ASCAP Demands Additional Performance Tax for Ringtones
2- ZeroPaid, Swedish Copyright Group Wants $5,000 p/yr Permit for Workplace Music
3- Remixtures, SPA inicia “caça” às rádios online

terça-feira, julho 07, 2009

O escaravelho bombardeiro e o pulgão suicida.

O escaravelho bombardeiro africano, Stenaptinus insignis, armazena uma mistura de hidroquinonas e peróxido de hidrogénio e, quando ameaçado, excreta pequenas porções para uma câmara de reacção no abdómen. Aí, enzimas catalisam uma reacção violenta e o spray tóxico, quase a ferver, persuade o atacante a procurar o almoço noutro lado. Além disso o escaravelho consegue apontar a esguichadela para qualquer direcção orientando o canal de saída. Os criacionistas adoram estas coisas. O vídeo abaixo mostra o escaravelho em acção. Termina com o comentário típico que algo tão sofisticado teria de ser criado de uma só vez, e que era impossível o escaravelho sobreviver com um sistema parecido mas incompleto.



O método criacionista é escolher um exemplo extremo, apresentá-lo como único na natureza e pedir que desliguemos o cérebro e nos prostremos a adorar o senhor deus deles. Mas a realidade é que há meio milhar de espécies de escaravelho com defesas semelhantes, em vários níveis de sofisticação. Alguns excretam uma espuma quente, outros uma névoa tóxica, outros juntam os reagentes fora do corpo em ranhuras nos élitros, e assim por diante. A enorme diversidade destas defesas, das mais simples às mais complexas, refuta a tese que uma coisa destas tem de ser criada de uma vez e segundo um plano exacto.

Os artrópodes segregam quinonas para endurecer a pele e muitos acumulam-nas porque a sua toxicidade os torna menos apetecíveis. Quando os predadores são resistentes às quinonas, uma reacção simples transforma-as em hidroquinonas. O peróxido de hidrogénio é também um produto comum do metabolismo celular, bem como as enzimas que o degradam em oxigénio e água. São estas enzimas que aceleram a oxidação das hidroquinonas pelo peróxido de hidrogénio. Milhares de espécies de insectos aproveitam várias combinações destes compostos e reacções para sua defesa. O escaravelho bombardeiro não é um problema para a evolução. Não é um caso isolado sem explicação. Com tantas combinações possíveis, até seria de estranhar que a evolução não tivesse encontrado algumas tão extraordinárias quanto esta.

O problema é para o criacionismo. Tem a difícil tarefa de explicar a necessidade desse deus criar um sistema de defesa tão sofisticado. Supostamente, na altura da criação não havia morte e o escaravelho não precisava de se defender. E explicar a origem de tantos sistemas de defesa nos insectos, tão diversos, dos mais rudimentares aos mais sofisticados. Se tudo isto resulta da corrupção dos insectos pelo pecado de Eva há imenso espaço para a evolução sem deuses. Um exemplo é o pulgão das couves, Brevicoryne brassicae.

Várias plantas produzem glucosinolatos. São compostos inofensivos enquanto armazenados nas células mas, quando um animal mastiga a planta, estes misturam-se com enzimas que os transformam em substâncias irritantes como o isotiocianato alilo, que dá aquela pungência à mostarda e ao wasabi. O pulgão das couves defende-se de forma semelhante. Acumula no sangue os glucosinolatos que ingere na seiva das plantas onde vive. E produz nos músculos uma enzima análoga à das plantas (myrosinase) que, tal como a destas, parece ter evoluído de uma glucosidase (1). O resultado é que, quando uma larva de joaninha começa a mastigar o pulgão, os glucosinolatos no sangue misturam-se com a myrosinase nos músculos e os produtos da reacção acabam por envenenar a larva.

O pulgão também morre, mas isto não é problema para a evolução. Os pulgões normalmente reproduzem-se assexuadamente e formam colónias de indivíduos geneticamente iguais. Os genes que promovem o sacrifício de um em benefício dos outros propagam-se com sucesso porque estão a salvar cópias idênticas no pulgão do lado. É um fraco consolo para o desgraçado que explode em veneno quando leva uma dentada, mas a evolução não se preocupa com estas coisas que, para o criacionismo, são um problema bicudo. Não admitindo que tal mecanismo possa evoluir, cai na ideia absurda que um deus inteligente criou o pulgão de forma a morrer envenenando a joaninha que o mesmo deus criou para se alimentar de pulgões. Seja antes ou depois da Eva comer a maçã, isto não faz sentido.

A grande diferença é que a ciência tenta encontrar explicações abrangentes que unifiquem o nosso conhecimento e lhe dêem uma estrutura coerente. Por isso interessa-se pelos padrões nos dados, por como as coisas encaixam. Em contraste, a hipótese de uma criação ad hoc para cada bicharoco exclui esta possibilidade logo à partida. É um milagre aqui, outro ali, outro acolá, sem nada que os una, que explique como ou porquê. Para convencer as pessoas que a realidade se assemelha a este disparate, os criacionistas têm de focar apenas exemplos isolados, desprovidos de contexto. Como os ilusionistas, precisam que se olhe só para onde o dedo aponta e não se perceba o truque que está por trás.

Mais informação:
Talk Origins, Bombardier Beetles and the Argument of Design
BBC, Bull's-eye beetle
Wikipedia, Bombardier beetle
Afarensis, Icons of Creationism: The Bombardier Beetle - One from the archives
E este sobre os afídeos, no Not Exactly Rocket Science, Aphids defend themselves with chemical bombs

1- Jones AM, Winge P, Bones AM, Cole R, Rossiter JT. Characterization and evolution of a myrosinase from the cabbage aphid Brevicoryne brassicae., Insect Biochem Mol Biol. 2002 Mar 1;32(3):275-84.

segunda-feira, julho 06, 2009

Treta da semana (passada): limpeza espiritual e terapias.

Eu preciso fazer exercício. No site do «Projecto Alexandra Solnado (Terapia da Alma)» há alguns exercícios que parecem mesmo adequados à minha aptidão física. Começam assim: «Coloque uma música suave e um incenso, se possível. Sente-se confortavelmente numa cadeira ou poltrona.» À parte do incenso, é mesmo isso. Mas estes exercícios são para o espírito, para queimar as calorias da alma. O termo técnico é “energias negativas”. Eis como nos podemos livrar delas, neste exercício para «Limpeza de Ansiedade e Angústia»:

«Leve a sua atenção para o seu peito. Tente visualizar um portão. Tente visualizar um tubo cujo fim vai dar nos céus de Fátima (para onde as energias negativas deverão se enviadas para posterior processamento). Quando o portão e o tubo estiverem em frente um do outro, abra o portão. Irá notar (ver ou simplesmente sentir) que desse portão sai energia escura directamente para o tubo. Não faça nada até que saia tudo. Espere o tempo que for necessário. Quando terminar, feche o portão, deixe o tubo onde está.»(1)

Fantástico. E nem é preciso imaginar que se arruma o tubo no fim. É este o final do trajecto que se afasta da fria medicina “ocidental”. Esta exige primeiro que os tratamentos sejam eficazes e seguros. Só entre estes escolhe depois os que mais agradam aos clientes. A “medicina complementar” inverte as prioridades. O que importa é que seja agradável. Se funciona ou não, isso é ser demasiado científico. A Alexandra Solnado leva-nos ao fim do percurso. Vamos-nos sentar no sofá e imaginar que estamos melhor. E dá cursos disso. «Curso onde se aprende a comunicar com o céu através da conexão ao nosso Eu Superior e onde são ensinadas diversas técnicas de limpeza espiritual.»(2) Alguns exemplos das «patologias kármicas» que resolve são «Cancro, Casos de violação, Epilepsia»(3).

É curioso que Jesus só tenha tempo de falar com a Alexandra para lhe explicar estas coisas e depois tenha de ser a coitada a explicar isso às pessoas. A troco de dinheiro. É tramado, esse Jesus... No meio desta treta toda talvez a pergunta seja insignificante mas, se alguém transcrever os livros da Alexandra e os disponibilizar na Internet, será que ela processa por violação de direitos de autor? Segundo o site «O Projecto Alexandra Solnado - Terapia da Alma é um projecto espiritual com uma forte vertente terapêutica. Tudo começou quando Alexandra Solnado viu Jesus pela primeira vez, em 28 de Março de 2002 e começou a escrever as mensagens que Ele passou a ditar a 1 de Setembro do mesmo ano.» Se os livros são ditados por Jesus não há razão para não os disponibilizar gratuitamente. Não me parece que Jesus precise do dinheiro.

Mas também não parece que valha a pena o trabalho. Era mesmo só curiosidade, porque um excerto do último livro sugere que os bytes seriam melhor empregues noutras coisas:

«Alça asas, para poderes voar. Cuida das tuas asas com carinho, rigor e determinação. Com carinho, para que elas possam crescer livres, sem comprometimentos pueris. Com rigor, para que o céu se apresente a ti, sempre, como um grande e respeitoso criador de estrelas. E determinação, para que nunca desistas, mesmo quando as tuas asas estiverem longe de voar, longe dos céus, longe da luz.»(4)

Foi sábio, Jesus, em ter escolhido a Alexandra para sua tipógrafa. É que nem todos têm paciência para transcrever estes disparates.

1- Projecto Alexandra Solnado, Limpeza de Ansiedade e Angústia
2- Projecto Alexandra Solnado, Os cursos, curso de terapeutas.
3- Projecto Alexandra Solnado, QUAIS OS PRINCIPAIS SINTOMAS DE PROBLEMAS ESPIRITUAIS?
4- Projecto Alexandra Solnado, Muito Mais Luz – Pergunte. O Céu Responde

sábado, julho 04, 2009

Urgências alternativas.

Uma abordagem holística, complementar e tradicional para ajudar quem precisa. É pena que a medicina ocidental alopática não perceba a necessidade de curar o ser humano em todas as suas dimensões emocionais, espirituais, transcendentes e tretológicas.



Via Bad Astronomy

sexta-feira, julho 03, 2009

No entanto não se move.

Cobra

Mais ilusões de óptica na página de Akiyoshi Kitaoka. Se visitarem a página, verão que ainda bem que uma imagem vale mil palavras...

Adenda: O João pediu-me para explicar como funciona a ilusão, mas a explicação é ainda especulativa. Pelo que encontrei, a hipótese é que os neurónios estimulados por contrastes maiores têm uma resposta mais rápida que os neurónios que detectam contrastes mais ténues. Isto cria um desfasamento periódico ao longo de cada circulo, devido ao padrão de contrastes, que por sua vez engana os sensores de movimento na nossa visão periférica.

Agora vou jantar fora, por isso fica assim a explicação pela rama, de quem nem sabe se percebeu o original. Mas deixo dois artigos para quem quiser ler mais sobre o assunto. Phenomenal characteristics of the peripheral Drift illusion, por Kitaoka e Ashida, descreve estas “cobras”. E Illusory motion from change over time in the response to contrast and luminance, por Backus e Oruç, propõe a explicação e menciona também uma explicação anterior, segundo a qual se julgava ser os movimentos constantes dos olhos que criavam esta ilusão.

Mais uma adenda: Graças ao comentário do Francisco Burnay, lembrei-me que descobri isto via o Bad Astronomy.

quinta-feira, julho 02, 2009

Branco mais branco não há.

O post sobre o voto em branco deu uma discussão acesa e vontade de esclarecer algumas coisas (1). Entre elas, que excluo da conversa a apreciação subjectiva do voto em branco. É legítimo que alguém considere o seu voto em branco um voto de protesto. Mas também é legítimo considerar o seu voto outra coisa qualquer, os votos num partido podem ser de protesto ou amor à camisola, e até ficar em casa pode ser interpretado de muitas maneiras. Por isso considero inútil tentar esmiuçar o sentido de cada voto para cada eleitor. Até porque o propósito da votação é extrair dessa multidão subjectiva um resultado objectivo e consensual. Se vamos ao detalhe daquilo que está por trás de cada voto ninguém se entende.

E no contexto da aritmética dos votos o voto em branco vale metade do voto num partido e o mesmo que não ir votar. É certo que a democracia não é só contar votos. Manifestações, notícias, conversas de café e blogs, tudo isso influencia a política. Mas o voto é o fulcro da democracia e estas expressões públicas influenciam os políticos porque indicam, ou determinam, os votos na eleição seguinte. Por isso, independentemente da intenção subjectiva de quem vota em branco, esse voto é objectivamente menos eficaz. Porque é um voto de abstenção.

Esta foi outra confusão na discussão. A abstenção é a expressão de indiferença por parte de quem vota. Seja na assembleia de condóminos, na Assembleia da República, nos grupos desportivos ou concelhos de departamento, só se pode abster quem lá estiver. A votar. Quem não, não está. E a diferença entre a abstenção e a ausência depende das regras da votação. Nas eleições legislativas só são contados os votos nas listas candidatas. Por isso, nestas, abster-se de escolher uma lista ou ficar em casa vai dar ao mesmo. Nos referendos, como em muitas assembleias, exige-se que mais de metade dos eleitores vote para que o resultado seja vinculativo. Se não houver quórum a decisão não conta. Mas as abstenções – ou seja, ir lá e votar em branco – são simplesmente ignoradas. Segundo a nossa legislação, um referendo onde 99% dos eleitores vota em branco é um referendo vinculativo (2).

Alguns apontaram que se houver um grande número de votos em branco também haverá uma revolução. Até pode ser. Mas isso já não é democracia. O que nos traz à questão moral do voto em branco ser mais virtuoso que não votar. Mais uma vez, cada um que decida o aspecto subjectivo da questão. Mas há um aspecto que toca a todos. Votar é um dever porque a democracia precisa que os cidadãos participem na decisão. Sem isso, é impossível governar de acordo com a vontade dos governados*.

Assim, é legitimo que se abstenha quem for indiferente às opções propostas. Quer vote a sua abstenção quer fique em casa; conforme as regras da votação, isto pode ser o mesmo. Mas só é legítimo fazê-lo se for mesmo indiferente a todas as opções. Caso contrário falta ao seu dever democrático e comete um acto irresponsável porque põe em risco a democracia. É que se a maioria vota em branco porque tanto lhe faz não há problema. Conta-se os votos daqueles a quem faz diferença. Mas se a maioria vota em branco por “protesto” e acaba por ganhar quem a maioria detesta então temos chatice. Chatice daquela que só se resolve, como uma senhora propôs, suspendendo a democracia por uns meses.

Em conclusão, admito que se possa fazer muitas análises dos votos em branco, de quantos não votaram e do que terá motivado cada um. Mas são tantas e tão diferentes que pouco importam. Além disso, o propósito de votar é precisamente eliminar essa ambiguidade e projectar a diversidade de razões pessoais num indicador claro e consensual. E isto só funciona se cada voto manifestar claramente o que o eleitor quer, de acordo com as regras da votação. Por isso, quem quiser protestar que proteste de forma clara, com blogs e cartazes. Mas no voto deve manifesta a sua preferência, se a tiver, e votar em branco só se o resultado lhe for indiferente. Votar em branco por protesto é inútil na melhor das hipóteses e perigoso se a moda pega.

E, para lançar a discussão, deixo uma pergunta. Se em vez de 4% de votos em branco nas eleições para o Parlamento Europeu, tivesse havido metade ou o dobro, o que é que estaria diferente na política europeia?

*O que não quer dizer que, mesmo com isso, seja fácil...

1- Treta da semana: Protesto em branco.
2- Artigo 240º da Lei Orgânica do Regime do Refereo: «O referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento.»

quarta-feira, julho 01, 2009

Confiança e outra coisa.

Há uns dias, a propósito das medicinas alternativas, a Cristal comentou que «Infelizmente deixei de ter confiança na ciência e nos seus propósitos.»(1) Em parte, discordo. Discordo da parte do infelizmente. Mas o resto está bem e, se já teve confiança na ciência e nos seus propósitos, ainda bem que deixou de a ter.

A ciência é uma ferramenta e o seu propósito é o propósito de quem a usa. Por isso, se uma empresa me quer vender um tratamento, eu desconfio. O que eles querem sei eu. Exijo dados concretos demonstrando que o tratamento é seguro, eficaz, e melhor que os outros que possam resolver o mesmo problema. E não aceito o velho truque de vendedor do “experimente que vai gostar”. Posso gostar agora e arrepender-me mais tarde ou posso simplesmente não gostar e arrepender-me já. Mas primeiro quero saber se funciona. Depois logo vejo se gosto.

E isto não é só com a ciência. Se quiserem cobrar dinheiro para me espetar agulhas nas costas exijo o mesmo. Que me provem que é seguro, que é eficaz e que não me vou arrepender pelo dinheiro gasto e eventuais sequelas. Não importa se o tratamento é científico, tradicional, chinês ou filosófico. O que importa é que é sensato, e prudente, desconfiar dos propósitos de quem quer impingir seja o que for. Infelicidade só se for por restringir esta atitude aos propósitos da ciência e deixar de fora os propósitos do resto.

E, à parte do propósito, a ciência funciona porque não se confia nela. Se confiássemos na ciência não fazíamos mais ciência. Talvez a maior dificuldade em compreender a ciência venha desta ser um sistema simbólico que assenta numa forma sistemática e activa de não confiar. Que até estamos habituados naquilo que fazemos. Se vou cair da bicicleta, se é seguro levantar isto assim, se o bolo não se vai queimar. Em muito do que fazemos no dia a dia exigimos evidências de como a coisa corre e reagimos de acordo com o que observamos. Ninguém se convence que sabe andar de patins sem ter obtido primeiro dados concretos que o fundamentem. E foi assim durante milhões de anos com os nossos antepassados (só que sem patins).

Mas a linguagem deu mais valor à confiança e forçou-nos a uma atitude diferente naquilo que dizemos e ouvimos dizer. Se o vizinho da caverna ao lado avisa que está um leão atrás da colina há pouco a ganhar em ir lá ver se está mesmo. Em vez de nos basearmos em evidências acerca daquilo que é afirmado, avaliamos afirmações pela confiança na pessoa que o afirma. O que permitiu usar o conhecimento dos outros quase sem custos e criar estruturas sociais complexas. Permitiu a civilização. Mas pagámo-lo caro, com superstição, crendice, tretas e burlas que sem a confiança no que dizem não seriam possíveis. Muita gente está convicta de ter uma alma imortal só porque lho disseram. E só há poucos séculos é que finalmente pegou a ideia de separar factos e confiança. A ideia que podemos questionar aquilo que alguém diz sem ter de desconfiar da sua honestidade. E esse é o fundamento da ciência. Não confiar no diz que disse e não ficar infeliz por isso. Pelo contrário. Uma vez ganho o hábito, é estimulante exigir evidências e apresentá-las a quem as exige. Obriga a pensar melhor nas coisas e dá-lhes uma clareza que a confiança e a fé não conseguem rivalizar.

Não é confiança porque a confiança é demasiado passiva para levar ao esclarecimento. É cómoda quando querem o nosso bem e sabem o que fazem mas um risco quando uma das condições falha. Nem é desconfiança, que tem uma conotação negativa inadequada para a atitude de quem faz um puzzle, cuida do jardim ou arranja a máquina de lavar. Não desconfia de más intenções mas também não confia, sem uma atenção crítica aos detalhes. À falta de uma palavra melhor para esta suspensão tanto da confiança como da desconfiança para descobrir como as coisas são, chamemos-lhe ciência.

1- Comentário em Quicksort.