terça-feira, agosto 31, 2010

Novos modelos de financiamento.

No dia 27, o Simon Klose abriu no Kickstarter um projecto para um documentário sobre o Pirate Bay(1). O Kickstarter é um site onde qualquer pessoa pode submeter um projecto a apreciação pública e pedir financiamento. Cada interessado compromete-se com o valor que quiser, através da Amazon, e o dinheiro só é cobrado se for atingido o mínimo pedido pelo criador do projecto e o projecto avançar. Na página do projecto o Simon Klose explica que tem cerca de duzentas horas de filmagens, entrevistas com os fundadores do Pirate Bay e outro material, e precisa de $25.000 para tempo de estúdio e edição profissional.

No dia 28 recebi um email a avisar disto mas, como o cartão de crédito que tinha na Amazon já estava caducado, só hoje é que lá voltei, depois de actualizar os dados de pagamento. Neste momento as contribuições vão em $29.947. O Simon Klose tinha dado um prazo de 30 dias para conseguir os $25.000. Demorou três. Mesmo assim lá prometi os $30 que tencionava contribuir. Não é dinheiro que eu desse para comprar um DVD, porque pagar para ter acesso à informação é uma treta. Mas dou de bom grado para ajudar a fazer algo que me interessa. Estou a pagar pelo trabalho de fazer este documentário, e isso vale a pena. E se ele tiver mais algum dinheiro sempre pode fazer algo melhor. Ou ficar com mais no bolso, que também merece.

Muita gente ainda está céptica acerca disto. Acham que um autor não consegue cobrar pelo seu trabalho, que tem de ceder os seus direitos para poder ganhar dinheiro e que o único modelo viável de financiamento é pagar pelo acesso aos bytes em vez de pagar pelo trabalho de produzir as obras. Pois aqui têm. Se o Simon Klose tentasse vender este projecto à Time Warner ou à Sony Entretainment o mais provável era mandarem-no dar uma curva. E se aceitassem financiar aquilo ficavam com os direitos exclusivos sobre o trabalho dele, vendiam-no com as condições que eles quisessem e cobravam pelo acesso ficando com o dinheiro quase todo.

Este modelo é mais justo. É um modelo de mercado livre, em que as partes participam na transacção celebrando um acordo voluntário. E não precisa de legislação especial que proíba o acesso ou a partilha só para se poder cobrar portagens à informação. Uma vez pago o trabalho e feito o documentário, o autor tem o que quer. Dinheiro no bolso e público a apreciar a sua obra.

É claro que isto não satisfaz toda a gente. Por exemplo, não dá para fazer coisas como a Sony fez com os actores da série Glee. É uma série musical que tem tido sucesso, e a banda sonora com as versões cantadas pelo elenco da série tem vendido bastante. O que é bom para a Sony mas os actores, que cantam essas músicas, não recebem nada pelas vendas(2).

O que me parece é que se não fosse a propaganda dos distribuidores – e terem os legisladores no bolso – isto seria bastante óbvio. Um sistema em que o autor tem de ceder direitos exclusivos e o distribuidor fica com o poder legal de controlar o acesso à obra é um sistema que beneficia o intermediário. Não é concebido para proveito de quem cria nem do público que aprecia e quer financiar as obras. Infelizmente, continua muita gente convencida que a melhor forma de promover a inovação na arte é com monopólios, direitos exclusivos, proibições e batalhões de advogados.

1- Simon Klose, TPB AFK: The Pirate Bay – Away From Keyboard. Obrigado pelo email com o link para o projecto.
2- MSN Música, Elenco de Glee furioso. Obrigado pelo email com a notícia.

Passa com a esponja.

O Orlando Braga respondeu ao meu post (1). Inicialmente sucinto, escrevu apenas «Este gajo não sabe ler inglês, e ainda arrota postas de pescada»(2), citando de seguida o trecho do artigo original, sobre o genoma da esponja, onde está escrito que esta tem quase o mesmo número de genes que nós. Comentei então que era melhor ele ler o que eu tinha escrito antes de dizer que eu não sei ler. Porque no meu post não disputo o número de genes; aponto é que não se pode inferir daí, como faz o Orlando, que a diferença entre um humano e uma esponja esteja na forma platónica e essas tretas.

Em resposta, o Orlando apagou o meu comentário e escreveu uma adenda ao seu post, sem mencionar sequer a minha chamada de atenção. Isto pode parecer aquela arrogância de quem mantém a sua certeza metafísica mesmo tendo metido o pé na argola. Mas no caso do Orlando julgo tratar-se de humildade. Ser humilde é admitir os seus próprios erros, e a adenda do Orlando demonstra claramente os erros que ele comete. Além disso, revela também que o Orlando tem muito por que ser humilde.

Depois de deambular por uma introdução, ironicamente, sobre a crítica de António Sérgio às introduções deambulantes que nada adiantam, o Orlando reitera que as esponjas têm sensivelmente o mesmo número de genes que nós, que os genes se alinham da mesma forma e que as esponjas partilham alguns genes com os humanos. Finalmente, aponta que os investigadores não sabem porque precisam as esponjas de 705 genes de enzimas de fosforilação. Infelizmente, o Orlando também não esclarece este enigma, concluindo apenas que compreende «o desespero do naturalista em causa (naturalista = darwinista + ateísta)». Penso que fala de mim, aqui.

Eu não estou desesperado. Talvez só um pouco desiludido por seiscentos milhões de anos de evolução, desde a esponja ancestral, terem feito tão pouca diferença a alguns ramos da família. Mas não vejo razão para duvidar dos mecanismos propostos para essa evolução. A selecção natural de alterações aleatórias e hereditárias.

Os genes controlam toda a bioquímica celular e a nossa é muito parecida com a da esponja. E se desenharmos a árvore da vida à escala das gerações ficamos juntos à esponja num raminho pequenino. Por isso da evolução não se espera diferenças tão grandes como as que exige o ego de quem sonha ser criado à imagem de um deus. E quando se diz que a esponja partilha genes com os seres humanos quer-se dizer que são parecidos. Não se quer dizer que sejam os mesmos, exactamente iguais, como se um criador tivesse feito copy-paste.

O alinhamento semelhante dos genes também não é mistério. Um gene não é uma unidade independente do resto. Os genes operam em conjunto, guiando a síntese de proteínas que interagem em redes metabólicas, na regulação do desenvolvimento e assim por diante. Muitos genes que operam em conjunto são parentes próximos, descendendo de um gene ancestral recente. E estes grupos tendem a ser regulados em conjunto, activados e reprimidos em grupo. Factores como estes levam a que os grupos de genes sejam preservados pela selecção natural, mantendo o tal alinhamento que tanto intriga o Orlando.

Noutro post onde o Orlando imagina ter muita razão, mesmo nunca dizendo em quê, afirma que: «Quando se pergunta, por exemplo, a um naturalista porque é que a esponja tem aproximadamente o mesmo número de genes do que o ser humano, o que pressupõe um desenho biológico e não apenas o império das forças do acaso na organização do universo, o naturalista invariavelmente responde: “a ciência ainda não sabe, mas vai saber”.»(3)

Não sei a que “naturalista” o Orlando perguntou isto. Talvez tenha confundido a palavra e passado a tarde numa praia de nudismo a perguntar por esponjas a quem passava. Porque os biólogos têm uma explicação bem fundamentada para isto. A bioquímica da esponja é muito parecida com a nossa e é preciso muitos genes para a controlar. Em geral, os organismos têm mais genes do que do que precisariam se fossem criados de forma inteligente, precisamente porque são produto de um processo cego de acumulação de características hereditárias. À esponja não calhou ficar com 705 cinases por criação inteligente, por exemplo. E aquilo que temos de especial como mamíferos, a nossa inteligência, vem principalmente da interacção com o ambiente. Ao contrário da esponja, nós temos de aprender para saber.

E talvez seja esta a lição mais importante aqui. A esponja nasce sabendo tudo o que pode saber. Está tudo de forma robusta nos seus genes; faça frio ou calor, luz ou escuro, a esponja cresce esponja. Nós precisamos dos estímulos certos. E precisamos de experimentar, pensar, duvidar, questionar e testar ideias para aprender. Podemos ir muito mais longe do que a esponja. Mas se passarmos o tempo a olhar para o nosso umbigo – ou a ler os ensinamentos de quem passou a sua vida a olhar para o seu – nos poucos instantes em que olharmos em volta tudo vai parecer um grande mistério. Talvez acontecesse o mesmo à esponja se tivesse umbigo e olhos mas continuasse desprovida de cérebro.

1- Treta da semana: a esponja do O.B.
2- Orlando Braga, Esta gente vota.
3- Orlando Braga, O eterno argumento naturalista: “A ciência ainda não sabe, mas vai saber”

segunda-feira, agosto 30, 2010

Má ideia...

A Quercus estima que os incêndios deste ano, até 15 de Agosto, possam ter libertado um milhão de toneladas de CO2(1), e diz que este valor «corresponde aproximadamente às emissões de 29 milhões de automóveis a fazerem o percurso da autoestrada Lisboa-Porto»(2). A quantidade de CO2 pode ser a mesma, mas a comparação parece-me infeliz.

O carbono emitido por uma floresta que arde pode ser recuperado reflorestando essa área. A floresta é essencialmente um reservatório de carbono, preso na biomassa, e aumentar a biomassa da floresta reduz o CO2 na atmosfera. Isto depende de uma boa política de reflorestação, mas a emissão de CO2 nos incêndios florestais é reversível em dez ou vinte anos. Com os combustíveis fósseis é diferente. O petróleo demora milhões de anos para se formar, o que à nossa escala equivale a nunca. Por isso, enquanto cada árvore ardida pode ser replantada, cada barril de petróleo que queimamos é dano permanente.

E há uma diferença de magnitude. Portugal emite cerca de 75 milhões de toneladas de CO2 por ano(2). Se quiséssemos recuperar esta quantidade de CO2 plantando florestas seria preciso plantar setenta e cinco vezes a área de floresta ardida este ano. E repetir a façanha todos os anos.

Por isso acho infeliz esta comparação com os automóveis. Os incêndios são um problema grave. Também pelo CO2 mas, mais ainda, pelos efeitos na biodiversidade e ecossistema, esses muitas vezes irreversíveis. E compreendo que os ambientalistas queiram chamar a atenção para a gravidade do problema. Mas 29 milhões de carros a viajar de Lisboa ao Porto não é muito, relativamente. Portugal tem mais de seis milhões de veículos a motor, dois milhões dos quais são veículos comerciais (3). Provavelmente, em menos de quinze dias ultrapassam em CO2 todos os incêndios do ano.

O efeito desta comparação acaba por ser o contrário do pretendido. Os incêndios florestais são algo que a maioria vê como problema ou responsabilidade dos outros. A maioria não tem florestas, não é bombeiro e não ateia fogos. Mas quase todos andam de carro. Quase todos decidimos, diariamente, entre andar mais a pé e de transportes públicos ou levar o carro para o trabalho, compramos coisas vindas de países distantes, usamos aquecedores, elevadores e ar condicionado.

A comparação dos incêndios com os 29 milhões de carros dá a ideia de que, por muito que tentemos diminuir as emissões de CO2, basta um idiota com uma caixa de fósforos para estragar milhões de vezes o que poupámos. O que não é verdade. Se queriam consciencializar as pessoas fizeram a notícia ao contrário. O importante aqui não é que a floresta ardida equivale a 29 milhões de viagens de carro. O importante é que a cada cinco dias da nossa vidinha normal queimamos o equivalente a todos os incêndios do ano. E queimamos combustíveis fósseis que, ao contrário das florestas, nunca mais vamos poder recuperar.

1- Público, Incêndios: Emissões de dióxido de carbono podem ter atingido 1,1 milhões de toneladas
2- Público, Incêndios já emitiram o mesmo CO2 que 29 milhões de carros de Lisboa ao Porto
3- Automotor, Portugal com parque automóvel superior ao Japão em 2012 (esquecem-se de dizer no título que é per capita...)

sábado, agosto 28, 2010

Treta da semana: a esponja do O.B.

O Orlando Braga escreveu que «O que, no fundo, nos separa de uma esponja — e ao contrário do que têm defendido os naturalistas e ateístas — não são propriamente os genes, mas antes a Forma entendida no sentido platónico, ou a Essência entendida no sentido aristotélico.» Isto porque «As esponjas têm entre 18.000 e 30.000 genes, aproximadamente o mesmo número dos genes do ser humano [e] os genes [...] têm uma estrutura idêntica.»(1).

“Estrutura idêntica” é um termo vago, como é costume na tretofilia. Pode referir as semelhanças na sequência e organização dos genes, esperadas pelo parentesco entre os seres vivos. Pode ser a argolada de dizer que os genes da esponja são iguais aos nossos. Ou pode ser qualquer coisa pelo meio, fugindo da inteligibilidade para não admitir que não sabe o que diz.

E o número de genes não permite tirar estas conclusões. Os genes interagem, pelo que a complexidade do genoma depende das combinações de genes. A cada gene que se acrescenta duplica-se as combinações possíveis de genes activos em simultâneo. Com mais dez genes há mil vezes mais combinações e entre 18 mil e 30 mil a diferença é inimaginável. Mas nesta imensidão de possibilidades a evolução acumula muita redundância. A evolução elimina rapidamente o que prejudica a reprodução mas deixa acumular o resto como a tralha na dispensa da avó.* Isto resulta em muitos genes e muita variedade. Há seis mil milhões de pessoas com combinações diferentes de genes todas igualmente humanas. E em cada um de nós há milhões de células do sistema imunitário com genes diferentes, que combinam aleatoriamente trechos de ADN para criar os genes dos anticorpos.

Além disso a nossa estrutura celular e o nosso metabolismo são quase iguais aos da esponja. A maior parte da maquinaria bioquímica é a mesma e a maior parte das diferenças genéticas deve-se a mutações que alteraram os genes mas deixam igual o funcionamento. A tal redundância que se espera de uma evolução por processos naturais, sem inteligência. E o último antepassado comum a nós e à esponja viveu há pouco mais de seiscentos milhões de anos. É um sexto do tempo da vida na Terra e uma fracção ainda mais modesta das gerações, porque a maior parte do tempo foi com antepassados unicelulares e gerações mais curtas.

Alega o Orlando que «Lá se vai o “gradualismo darwinista” por água abaixo» e «o que interessa saber é onde estavam os genes da esponja — que são idênticos aos do ser humano e de outros animais — antes de a esponja aparecer no nosso planeta.» Refere-se a genes encontrados na esponja que são semelhantes, não idênticos, a genes activos em células nervosas ou epiteliais, células que a esponja não tem (2). O que a teoria da evolução prevê é que esses genes, como todos os outros, descendam de genes de antepassados por duplicação e acumulação de alterações. O antepassado comum a nós e à esponja tinha genes parecidos que a esponja herdou adaptados ao seu modo de vida e nós ao nosso. E esse antepassado comum terá herdado os seus genes dos seus antepassados, também por duplicação e modificação de genes pré existentes. Um processo que começou com moléculas simples, formadas por processos naturais, e que dispensa quaisquer milagres.

Saltando alguns disparates, como dizer que os biólogos consideram que a vida humana vale o mesmo que a da esponja, passo ao que parece ser o ponto principal do Orlando. «A questão de saber como é que uma idêntica disposição genética gera seres tão diferentes, é totalmente ocultada ou esquecida pelos naturalistas». É falso. A regulação genética do desenvolvimento é uma área de investigação intensa, com dezenas de milhares de artigos publicados* e um trabalho notável na descoberta destes mecanismos. Gradientes de concentração de algumas moléculas controlam a actividade de genes específicos, que por sua vez geram novos gradientes que se cruzam em sinfonias químicas tão complexas que pequenas diferenças genéticas podem gerar uma grande diversidade anatómica.

Também a interacção de genes com o ambiente amplia as diferenças genéticas. Uma esponja cresce bem numa caixa com água se lhe dermos oxigénio e nutrientes. Mas se um mamífero crescer sem estímulos sensoriais não se desenvolve correctamente. E não é preciso muitas diferenças genéticas para tornar o organismo mais sensível ao ambiente em que se desenvolve e, com isso, gerar coisas tão diferentes como o cérebro humano e uma esponja.

O Orlando quer substituir o conhecimento detalhado da evolução, do desenvolvimento e da regulação dos genes por um simples “o que nos separa de uma esponja é a Forma platónica ou a Essência aristotélica”. Coisa que não diz nada, não esclarece e não explica. É como deitar fora a medicina para ficar só com “a doença é um problema de saúde”.

É preciso opor estas flatulências verbais não só porque enganam com uma ilusão de sabedoria fácil mas também porque a proliferação destas tretas não prejudica apenas os iludidos.

*Mais sobre isto no post sobre as cebolas.
**Procurando por “developmental biology” na PubMed devolve 38825 artigos, e “developmental genetics” 2653. Com as apas.
1- Orlando Braga, Aumenta o desespero dos naturalistas e ateístas
2- Science News, Sponge genes surprise.

sexta-feira, agosto 27, 2010

Quem lucra.

Eckhard Höffner é um historiador alemão que atribui o crescimento cultural, científico e económico da Alemanha no século XIX à ausência de copyright. A tese é estranha mas os números são elucidativos e, pensando bem, faz sentido.

Na primeira metade do século XIX a Alemanha não tinha legislação de copyright. Mesmo a que a Prússia implementaria era ineficaz devido à organização política da Alemanha, dividida em estados semi-independentes. Em contraste, a Inglaterra tinha uma legislação parecida à que temos hoje, concedendo direitos exclusivos de reprodução às editoras. E enquanto a Inglaterra publicava cerca de mil títulos por ano, a Alemanha publicava dez vezes mais. Em 1836 chegaram aos catorze mil títulos (1). Tendo em conta a população (2), não ficou muito aquém dos menos de oito mil que Portugal agora edita por ano (3).

E percebe-se porquê. Sem monopólios, os editores alemães tinham de chegar ao máximo número de pessoas e o mais rápido possível. Por isso faziam edições baratas, que muita gente podia comprar, a par das edições luxuosas para os clientes mais abastados. Não como se faz hoje, com o paperback a sair só um ano depois do livro de capa rija, muito mais caro. E como não podiam ficar a vender sempre o mesmo livro, por causa da concorrência que também o poderia editar, tinham de diversificar a oferta.

Protegidos por monopólios, os editores ingleses faziam o contrário. Vendiam as cópias o mais caro possível em edições de luxo que poucos podiam comprar mas com margens de lucro maiores. A arraia miúda não lhes interessava, pois ninguém podia fazer-lhes concorrência vendendo edições baratas da mesma obra. E não lhes convinha editar muitos títulos. Cada edição tem custos fixos além do custo marginal de cada cópia e, mesmo que com um catálogo pequeno vendessem menos cópias no total, a poupança nos custos fixos compensava. Pouco e caro era melhor para o lucro.

Além do aspecto económico, o copyright teve também um impacto cultural. Na Inglaterra editava-se livros para pessoas ricas, de boas famílias, focando quase exclusivamente temas como literatura, história e teologia. Na Alemanha havia de tudo, incluindo uma explosão de publicações técnicas, de manuais práticos, como de agricultura e construção, e de livros científicos. A combinação da apetência natural dos académicos por falar do seu trabalho e a distribuição barata que lhes dava uma grande audiência foi um incentivo irresistível para a divulgação científica, técnica e cultural na Alemanha do século XIX. E, segundo Höffner, para a inovação que tornou a Alemanha numa potência económica e tecnológica.

Ao contrário do que se apregoa hoje, a falta de copyright não prejudicava os autores. Höffner menciona um exemplo revelador. Sigismund Hermbstädt foi um professor de química de quem hoje ninguém se lembra mas que, com o seu livro Princípios da preparação do couro, e sem “protecção” legal dos seus direitos, ganhou mais dinheiro que a Mary Shelley pelo famoso Frankenstein. Höffner cita também uma carta de 1854, depois da Alemanha implementar legislação de copyright, que Heinrich Heine escreveu ao seu editor, Julius Campe:

«Por causa dos preços tremendos que estabeleceu dificilmente verei em breve uma segunda edição do meu livro. Mas tem de baixar os preços, caro Campe, porque de contrário realmente não vejo porque fui tão indulgente com os meus interesses materiais.»(1)

Nunca simpatizei com o copyright. No entanto, algumas conversas que tenho tido aqui deram-me a impressão que poderia ser útil para regular e incentivar o comércio de obras, apesar de termos de o expulsar da esfera pessoal. Agora até isso me parece pouco plausível. Mesmo como regulação comercial, o monopólio sobre a cópia não serve.

Se queremos incentivar a criatividade mais vale deixar que os autores, editores e público negoceiem entre si o preço de criar obras e distribuir cópias. Um mercado competitivo é a melhor forma de incentivar este tipo de coisas. E conceder monopólios, além de distorcer o mercado, só beneficia os detentores desses monopólios. Sempre em detrimento dos outros. É ingénuo pensar que o monopólio sobre a cópia traz benefícios para alguém que não seja quem vende cópias. Serve apenas para os editores optimizarem os seus lucros restringindo a oferta, aumentando os preços e acabando por dificultar a inovação.

1- Der Spiegel, No Copyright Law: The Real Reason for Germany's Industrial Expansion? Obrigado pelo email com a ligação para a notícia.
2- Historical Atlas, Population of Germany
3-Wikipedia, Books published per country per year

quarta-feira, agosto 25, 2010

É a hipótese, bolas...

O Miguel Panão pediu-me «mais humildade nas afirmações»(1). Como da humildade a única coisa que se aproveita é a capacidade de reconhecer as próprias limitações, despacho já isto com um disclaimer. Sou falível, posso-me enganar e não tenho problemas em admiti-lo. Só julguei desnecessário dizê-lo por assumir que somos todos falíveis. Até o Papa se pode enganar nos dogmas e até as certezas que a fé dá aos crentes podem estar erradas. Mas fica aqui a correcção para quem julgasse que eu era infalível.

Apesar de falível, prefiro que o que digo seja claro, directo e correcto. Mas se falhar numa, que seja na última. Porque se digo algo incorrecto mas que é claro e directo, facilmente me corrigem. O pior de tudo é andar às voltas com palavreado ambíguo que ninguém percebe o que quer dizer, quanto mais se é verdade ou não. Por isso vou continuar humildemente a dizer o que penso, e se estiver enganado estou. Grande coisa. Não será a primeira vez nem a última.

O que me traz hoje ao desabafo é esta breve troca de palavras com o Miguel Panão. Eu escrevi que ambos rejeitamos «hipóteses como fadas invisíveis […] por não preverem nada que possamos observar» e o Miguel retorquiu que «Deus não está - como disse - na mesma categoria. Pois, Deus é criador e isso vê-mo-lo através da existência do universo.»(1) Alhos, bugalhos.

Nós não estamos a decidir nada acerca de Deus, que continuará na mesma, existindo ou não, seja qual for a nossa decisão. E nem sequer temos um deus que possamos observar. Apenas temos hipóteses. Que existe, que não existe, que é como as fadas, que não é como as fadas. O que estamos a decidir é apenas quais hipóteses aceitar como verdadeiras e quais rejeitar como falsas.

Por isso as categorias que nos devem preocupar não são as que organizam deuses e fadas mas as que classificam hipóteses. E estas são fundamentalmente duas. A das hipóteses testáveis, que nos permitem descobrir quando erramos e que podemos determinar se são verdadeiras ou falsas, mesmo que de forma falível. E a categoria das outras, que são perda de tempo porque se forem verdade adiantam o mesmo que se forem falsas. Nada. E ninguém consegue notar a diferença. Hipóteses como o prognóstico astrológico de que a semana é propícia à tomada de decisões mas cuidado com as consequências, o diagnóstico de que um bloqueio energético faz acumular vibrações negativas num chackra ou que «Deus criou-nos (universo) para a liberdade e isso está patente pela contingência nele presente.»(1) O que está em causa não é a natureza metafísica, astrológica, teológica ou tretológica das vibrações negativas, dos efeitos dos astros ou do tal deus que alegam nos ter criado, em que por “nós” humildemente se entende “o universo”. O problema é escolher as hipóteses que melhor descrevem a realidade. E hipóteses como estas últimas não servem para descrever coisa nenhuma.

Outro motivo para este desabafo é a desculpa de uma hipótese poder não ser verdadeira para a ciência mas sê-lo para a teologia, ou que a verdade das hipóteses depende da nossa visão do mundo. Não é assim. Se a hipótese é uma das que vale a pena considerar, então será verdadeira se a realidade for como a hipótese diz ser, e falsa no caso contrário. E são essas as duas possibilidades. Se existir um deus, existirá tanto para a teologia como para a ciência, filosofia, ténis de mesa e macramé. E se não existir não existe e pronto. De nada valerá o contexto teológico, a sua alegada natureza metafísica, o mistério da fé ou a careca do Pinto da Costa.

Eu digo que o deus do Miguel Panão não existe porque considero essa a hipótese mais plausível, dadas as evidências. Porque se esse deus não existe então não vai salvar quem está em perigo, nem responder a preces, nem guiar o Papa para que não cometa erros, nem curar os enfermos, entre uma data de outras coisas. E é precisamente isso que observo. O Miguel propõe a hipótese alternativa de que esse deus existe mas que só faz coisas de forma a não podermos saber se as fez. Só guia o Papa em afirmações que ninguém pode testar, transubstancia as hóstias sem que se veja diferença alguma e assim por diante. Eu rejeito essa hipótese porque nem sequer permite aferir se está errada ou não. Além de inútil, porque no que se pode observar prevê o mesmo que a sua negação, é um beco sem saída no caminho para o conhecimento.

E, voltando ao ponto inicial, se ser humilde é reconhecer limitações e admitir quando se erra, então a fé numa hipótese impossível de testar, que não permite sequer descobrir se se errou, estará certamente entre as maiores arrogâncias.

1- Comentários em Fundamentos.

Pela boca morre o peixe.

Não têm mais nada em comum que isso, mas assim ponho um dois em um e poupo um post.

Este é o vídeo que a Google produziu em 2006 para persuadir legisladores e a opinião pública da importância da neutralidade da Internet. Isto foi antes de se meterem nos telemóveis e decidirem que a neutralidade só é importante para a rede fixa, não para as ligações à Internet pela rede móvel. Obrigado ao Barba Rija pela referência ao Vooglewilreless.



E este é uma argolada da Fox News, que tem feito um grande alarido acerca da mesquita no sítio do World Trade Center. Que na verdade é um centro cultural islâmico a vários quarteirões de distância. Segundo a Fox News, o projecto é financiado por uma organização islâmica, Kingdom Foundation. Esquecem-se de mencionar que a Kingdom Foundation é dirigida por um príncipe saudita chamado Alwaleed bin Talal, o segundo maior accionista da empresa detentora da Fox News. Obrigado pelo email com a ligação para o vídeo.

terça-feira, agosto 24, 2010

Fundamentos.

Uma dificuldade que sinto no dialogo com alguns crentes é o desentendimento acerca do que é esse diálogo. Já disseram que o diálogo implica «abdicar das minhas ideias e do que penso para acolher livremente as ideias e pensamentos do outro»(1), o que me parece desnecessário. Preciso perceber o que o outro diz, obviamente, mas não preciso abdicar do que penso para “acolher” coisa alguma. E já me pediram para «apontar a pretensa "falta de fundamento" [de] teses sobrenaturais»(2), sugerindo que que a noção de fundamento não ficou clara.

Um diálogo é uma troca de ideias entre pessoas que defendem posições contrárias ou entre uma pessoa que defende algo do qual a outra não está convencida. Se o diálogo for racional terá sucesso quando encontrarem razões para concordar numa conclusão ou, não sendo possível, quando descobrirem as divergências fundamentais que não podem resolver. No primeiro caso, os intervenientes aceitam um conjunto de premissas e uma linha de inferência que os conduz à conclusão, que até pode ser diferente das suas posições iniciais. Esta situação é comum na ciência, onde a crítica mútua e a recolha de dados levam muitas vezes a algo novo. Que o electrão não é só onda nem só partícula, por exemplo.

O segundo desfecho ocorre em algumas questões de valor. Se um prefere chocolate e o outro baunilha terão uma diferença fundamental que não podem resolver, pois não há nenhuma razão que possa ser invocada para fundamentar alguma destas preferências. Pode-se discutir gostos, mas com estas limitações. No entanto, em questões factuais isto não acontece sem se sair do diálogo racional, porque alegar algo como facto exige sempre algum fundamento. Ou se encontra o fundamento que leva ambas as partes à mesma conclusão ou o diálogo fica suspenso por falta de dados. Num diálogo racional não pode haver uma divergência irredutível acerca da existência de fadas, por exemplo, só porque uma das partes gostaria muito que elas existissem.

A isto alguns apontam que nunca podemos encontrar o fundamento último de todas as coisas, certezas absolutas acerca dos factos, podemos ser cérebros em jarros e assim por diante. Pode ser, mas é irrelevante. O fundamento do diálogo racional não precisa ser a explicação última para tudo. Basta premissas que ambas as partes julguem fundamentar a conclusão. Se alguém alegar que a Terra é redonda, aceito que é. Não por fé ou por ser dogma que dispense fundamento mas porque concordo que é uma alegação suficientemente fundamentada para servir como ponto de partida. Num diálogo racional é esse fundamento que procuramos, um bom ponto de partida para o raciocínio.

E saímos da racionalidade quando alguém, por exemplo, diz da transubstanciação da hóstia que «metafisicamente, tenho a certeza. Porquê? É um mistério da fé.»(3) “Mistério da fé” não é uma razão aceitável nem relevante para se inferir que a hóstia se transubstanciou. Ainda menos ter certeza. Afinal, é mistério. Por isso a hipótese da hóstia se transubstanciar continua carente de fundamento. Por outro lado, a hipótese contrária fundamenta-se na constatação de que a hóstia ficou na mesma e no consenso de ser racional inferir de uma coisa que fica na mesma que não se tornou em algo que é tão diferente como Deus é da farinha.

É por isto que eu defendo serem infundadas muitas das alegações religiosas. Admito que o tal “mistério da fé” seja psicologicamente suficiente para convencer algumas pessoas de que devem rebentar com aviões e apedrejar raparigas, que a Terra só tem dez mil anos ou que o Ratzinger nunca falha. Mas num diálogo racional, “mistério da fé” não é fundamento nenhum. Num diálogo racional, o “mistério da fé” equivale a tombar o rei no Xadrez.

1- Miguel Panão, Dialogar ...
2- Comentário do Bernardo Motta em Equívocos, parte 7
3- Comentário do Miguel Panão em Crença, fé e religião.

segunda-feira, agosto 23, 2010

O mistério dos comentários desaparecidos.

Era uma noite escura e tempestuosa. Bem, não era, mas o mistério também não é grande. Afinal, o Blogger agora tem um sistema de detecção de Spam. Que embirrou com o Barba Rija e alguns comentários do Mats.

Para tentar ensinar o filtro, repus os comentários afectados. Que, infelizmente, agora ficam em duplicado (ou tri- e quadriplicado, em alguns casos). Mas espero que isto resolva o problema. Seja como for, nos próximos dias vou dar umas olhadas regulares na página do Spam. Se algum dos vossos comentários desaparecer esperem um pouco.

Se os problemas persistirem por mais tempo desactivo o filtro, mas por enquanto vou deixar que dá jeito para os comentários de chineses com uma carrada de links e um tipo que anda aí a vender camisolas.

domingo, agosto 22, 2010

Treta da semana: neutra, mas pouco.

No dia 9, a Google e a Verizon emitiram um comunicado conjunto acerca da neutralidade da Internet (1). Este é um velho problema que se tem arrastado, de decidir se os provedores de acesso podem discriminar o tráfego que retransmitem. Por exemplo, um provedor poderia cobrar extra para deixar consultar a Wikipedia ou, como a Verizon já fez nas ligações móveis, proibir streaming e P2P (2). Para as ligações fixas o comunicado é claro. Não deve haver qualquer discriminação na Internet e os provedores devem permitir por igual todo o tráfego legal.

E tem mais uma coisa que acho excelente. Exigem transparência para que os clientes saibam o que estão a comprar. O que faz muita falta por cá, com a treta do tráfego ilimitado. É impossível um ISP vender tráfego sem limites a todos os clientes com taxas de contenção de 1:20 ou 1:50. Se vendem dezenas de vezes mais largura de banda do que têm disponível não pode estar toda a gente a usar a ligação ao máximo. O que é razoável. Não faz sentido explorar a infraestrutura assumindo que está tudo sempre a maximizar o tráfego. Teríamos de pagar dezenas de vezes mais pelo acesso à Internet se fosse assim.

Por isso têm de limitar o tráfego que dizem ilimitado, e a Netcabo até aproveitou para chamar idiotas aos clientes. A Política de Utilização Aceitável (PUA) dizia que «A disponibilização de Produtos Netcabo sem limites de tráfego associados está sujeita a níveis de utilização razoáveis»(3). Mas a Netcabo recusava-se sempre a dizer qual era o limite da utilização razoável para o tráfego ilimitado (4), talvez julgando que assim podia insistir que o tráfego era ilimitado. Por queixa de clientes, foi obrigada a retirar essa cláusula da PUA (5). Mas continua a fazer precisamente o mesmo, só que agora pela calada (6).

Esta aldrabice devia acabar. Acabar a treta do tráfego ilimitado e obrigar os ISP a dizer o que vendem. Alguns já já têm um asterisco para a nota de rodapé com o limite para o tráfego ilimitado, o que já não é tão mau mas mesmo assim engana alguns. Mas se bem que este limite da Netcabo nunca me tenha feito diferença – por relatos de alguns afectados parece que ronda os 250GB por mês, muito mais do que eu uso – o tráfego que usamos está constantemente a aumentar, e não saber até onde se pode ir é um problema. É bom ver que companhias de peso como a Google e a Verizon concordam que isto não pode ser assim.

No entanto, este post é sobre as coisas más do tal comunicado. Começa pela neutralidade na rede fixa ser só para os “conteúdos legais”. Isto cheira a esturro porque dá ideia que é o ISP quem decide o que é legal. Além de abrir um grande buraco no princípio da neutralidade – basta decidirem que o tráfego P2P é maioritariamente ilegal para o proibir – dá ao fornecedor deste serviço um poder que só devia ser exercido pelo sistema judicial. Como se os CTT abrissem as encomendas a ver se estamos a enviar fotocópias de livros ou a PT escutasse os telefonemas para saber se estamos a tocar música pelo telefone, distribuindo conteúdos protegidos sem autorização.

Mencionam também que o princípio da neutralidade se aplicaria apenas na Internet, a rede pública, mas não a eventuais redes privadas que os ISP quisessem criar usando a mesma infraestrutura. Por exemplo, distribuição de filmes, serviços de educação, jogos online ou assim. O que abre outro buraco na neutralidade, se um ISP puder dizer que jogos ou streaming passam pela rede privada.

Mas o ponto pior, e mais hipócrita, é o princípio da neutralidade não se aplicar ao acesso por redes móveis. É hipócrita porque a Google e a Verizon começam por defender a neutralidade da Internet dizendo que esse princípio foi responsável pelo seu sucesso e crescimento espantoso, mas depois dizem que não deve haver neutralidade no acesso móvel porque é um mercado nascente e em crescimento. Uma treta óbvia, mas como a Verizon vende telemóveis com o Android da Google, ambas querem manter o controle sobre o tráfego nas redes móveis. Que cada vez vai ser maior. Daqui a uns anos, quando qualquer telemóvel estiver permanentemente ligado à Internet, ninguém vai querer pagar chamadas telefónicas se pode usar o Skype ou assim. Nessa altura os operadores de redes móveis vão dizer lamento, mas Skype por aqui não passa.

Isto é muito mau porque o princípio da neutralidade da rede não é uma mera questão de mercado, de preços e muito menos para descartar quando dá jeito à Google e a Verizon. A neutralidade destes serviços é uma salvaguarda importante da nossa privacidade e liberdade de expressão. Quem transporta as cartas não as deve ler. Quem fornece redes telefónicas não deve escutar as conversas. E quem providencia ligações à Internet não deve controlar o que estamos a enviar. É indispensável que a lei especifique que o provedor aluga o canal de comunicação. Que permita cobrar pelo volume de tráfego e distinguir tráfego com custos diferentes, por exemplo nacional e internacional. Mas que o proíba de bisbilhotar a informação que partilhamos.

E é preciso começar já a pressionar os legisladores. Cada vez mais é pela Internet que vamos comunicar. E é óbvio que não podemos contar que empresas como a Google e a Verizon zelem pelos nossos direitos.

1- Policy Blogs, Google e Verizon (os dois têm a mesma coisa).
2- TorrentFreak (2007), Verizon Bans P2P, Streaming Services and Online Gaming.
3- Aberto até de Madrugada, 27-10-2008, ZON - A Aventura Continua, com a PUA
4- Fórum ZON, Tráfego Ilimitado – Não
5- Aberto até de Madrugada, 28-8-2009, Netcabo acaba com a PUA.
5- Aberto até de Madrugada, 7-1-2010, PUA Regressa à ZON Netcabo.

Pessoas.

A propósito de alguns comentários.

Tres tipos

Via 9GAG, originalmente do Household name

sábado, agosto 21, 2010

Crença, fé e religião.

Muitas vezes que escrevo sobre isto noto que estes termos causam alguma confusão. Não quero obrigar ninguém a usar estas palavras como eu as uso mas queria esclarecer o que quero dizer com elas e salientar diferenças que me parecem importantes.

Uma crença é a aceitação de uma ideia. Se a ideia for uma proposição acerca dos factos, então crer é considerar essa ideia como verdadeira, correspondendo à realidade. Se a ideia for um juízo de valor, crer será adoptá-lo. Se for um ideal será partilhar desse ideal, e assim por diante. E todos temos crenças. Não se pode saber algo sem acreditar que é verdade, não se pode preferir algo sem acreditar que é melhor e não se pode almejar algo sem acreditar que vale a pena. Assim, quando critico crenças procuro explicar porque as rejeito e talvez persuadir alguém a rejeitá-las também. Se são crenças acerca dos factos posso apontar que não se justifica concluir que são verdade, e se são acerca de valores posso apontar inconsistências com outros valores. Mas como crer é uma atitude pessoal a discussão assenta sempre no princípio de que cada decidirá por si em que há de acreditar e mais ninguém tem nada com isso.

A fé é uma meta-crença, como diz Dennett. As crenças acerca dos factos carecem de uma justificação objectiva. Não podemos justificar acreditar que algo é verdade só porque queremos ou nos dá jeito. Mas a fé, para quem a tem, permite ignorar este requisito. Quem tem fé confia que aquelas crenças que a sua fé abrange estão automaticamente justificadas. A fé é crer na legitimidade dessas crenças. Sendo também uma atitude pessoal, fica igualmente ao critério de cada um decidir em que há de ter fé ou se há de ter fé alguma. Mas como a fé apenas dá a sensação de justificação a quem a tem, nunca se consegue justificar a quem não a tenha e não explica porque se há de ter fé numas crenças e não noutras, não há muito a discutir acerca disto a não ser apontar estes defeitos.

Uma religião é algo diferente porque é uma construção social e não uma atitude pessoal. Não é apenas a opinião de uma pessoa ou uma opinião partilhada por muitos. Uma religião é uma organização com uma classe profissional que alega saber mais que os outros acerca dos deuses, que afirma os seus dogmas como verdade e não como mera crença e que goza de benefícios, prestígio e poder injustificados. Injustificados porque assenta em fantasias disfarçadas de verdades. Não há evidências que o Joseph Smith tenha traduzido placas de ouro que Deus lhe emprestou, nem que Maomé tenha falado com Deus, nem que a Terra tenha sido criada em seis dias ou que Deus se tenha disfarçado de carpinteiro e morrido crucificado para perdoar pecados que não cometemos. E eu considero que é má ideia criar organizações influentes à volta de teses sem fundamento como estas.

O problema não é a crença ou a fé, que fazem parte da liberdade de crer e pensar. Os defeitos que tenham algumas crenças ou a fé devem ser mitigados de forma a respeitar esta liberdade. Podemos explicar que a astrologia é treta, que as medicinas alternativas não funcionam e que os OVNIs não são pilotados por ETs. E se, no fim disto tudo, alguém ainda quiser acreditar nessas coisas, paciência. Isso é lá consigo.

Mas as religiões afectam terceiros e temos de decidir o que permitimos a essas organizações. Se queremos crucifixos nas escolas e aulas de religião no ensino público. Se aceitamos as objecções à educação sexual e às lojas abertas ao domingo. Se permitimos que ganhem dinheiro com dízimos ou na venda de milagres e paraísos. Se financiamos missas e excursões aos centros de aparecimentos, e assim por diante.

Neste debate público, no qual a democracia assenta, somos responsáveis por distinguir aquilo que é crença subjectiva daquilo que é legítimo considerar facto e igualmente válido para todos. Não vamos inventar dados acerca da saúde, do desemprego ou da segurança rodoviária apenas pela fé. E, ao contrário do que as religiões defendem, a fé também não serve para inventar factos acerca da vida depois da morte, dos deuses e dos milagres. Por isso as religiões participam neste debate de uma forma intrinsecamente desonesta ao insistir ser facto dogmas que não passam de mera crença.

Esta diferença é importante. Quando critico crenças e fé estou a explicar a minha posição consciente de que não virá mal nenhum se discordarem de mim e não chegarmos a conclusão alguma. Mas quando critico religiões estou a participar num processo colectivo de decisão, que é prejudicial deixar em suspenso, e a denunciar como ilegítima a alegada autoridade dos membros destas organizações. Quando uma pessoa morre por recusar uma transfusão de sangue, ou vive um casamento miserável porque não se consegue divorciar, parte da culpa é do próprio por tomar tão más decisões. Mas parte da culpa é dos que lhe dizem saber, como facto, que há um deus que castiga quem se divorciar, receber transfusões ou duvidar de fábulas. Não só lhes falta legitimidade para afirmar que sabem tais coisas – sabem tanto disso como qualquer um de nós – como o mais provável é ser tudo treta, que isso não é coisa que seja fácil acertar à sorte.

quinta-feira, agosto 19, 2010

Corrupção moral.

No post anterior referi, de passagem, que é injusta a má reputação da prostituição. O Jairo Entrecosto discordou, escreveu que isto era um «bom exemplo da moral e postura neoateísta» e que «a prostituição é uma corrupção moral do indivíduo e da sociedade, levando ambos à decadência e ruína»(1). Realmente, há aqui uma corrupção da moral. Mas é outra.

Há casos em que a prostituição é imoral. Quando as pessoas são forçadas a isso pela miséria ou pela violência, por exemplo. Mas o imoral nesses casos não é a prostituição em si. É a escravatura de quem se vê a isso obrigado. Tal como muitos que cortam cana de açúcar, trabalham em minas ou passam a infância a coser bolas de futebol. Por outro lado, se exercida de livre vontade, a prostituição devia ser uma profissão como outra qualquer. Há outras profissões com riscos para a saúde, como a construção civil ou os desportos de alta competição. Ou com contacto íntimo, como enfermagem e ginecologia. E até movidas pelo sexo, como as indústrias da moda, cosmética e publicidade. A prostituição não tem nenhuma característica fundamentalmente diferente de outras socialmente aceites.

O problema é que na prostituição, além de se vender o acto sexual, são normalmente as mulheres que o fazem. E para a as religiões isto é o pior. Inventar religiões é um passatempo para homens e a sexualidade feminina é o bicho papão que, durante milhões de anos, deixou os nossos antepassados masculinos na dúvida se seriam antepassados de quem julgavam ser. Naturalmente, isto traumatizou-nos o cromossoma Y. Além disso, o propósito das religiões é controlar a vida das pessoas. Dar-lhes regras, rituais, normas e obrigações convencendo-as que o Grande Chefe no Céu assim manda, e que delegou os detalhes de implementação nos seus representantes oficiais. Que, por isso, não podem deixar que cada um tenha relações sexuais pelas suas razões pessoais. Especialmente as mulheres. Pouca vergonha.

Mas se assumirmos que a actividade sexual é do foro íntimo e que compete a cada adulto decidir por si com quem e porquê quer ter relações sexuais, então deixa de haver razão para marginalizar a prostituição. Pelo contrário. Há muitas razões – fiscais, de saúde, segurança e melhores condições de trabalho – para a encarar como uma profissão legítima. Como qualquer outra. Infelizmente, também há muitos Jairos e, por isso, muita corrupção moral. Ou, melhor dizendo, corrupção da moral.

A moral devia ser um conjunto de normas com fundamento ético que guiasse o nosso comportamento em benefício de todos. É uma criação humana, para servir a humanidade e assente na nossa empatia, no respeito mútuo e na nossa capacidade de perceber quando os conflitos são mediados de forma imparcial e justa. Mas as religiões precisam de normas assentes em mistérios que foram alegadamente revelados aos membros da hierarquia religiosa, que assim se apresentam como os intermediários do bom e do correcto. E precisam que a moral sirva os propósitos da hierarquia religiosa. Sirvam a religião neste mundo que logo terão a recompensa no próximo.

Por isso corrompem a moral, deturpando a própria noção do que deve ser uma moral. Inventam regras picuinhas, intrometidas e injustas. Alegam que somos incapazes de decidir por nós o que é bom ou mau e que temos de acreditar no que eles nos dizem. E vão assim apontando defeitos e virtudes conforme lhes dá jeito sem que se perceba o que têm de bom ou quem prejudicam. Enaltecem a fé como se fazer confiança em hipóteses infundadas trouxesse algum benefício e fazem do sexo um pecado como se ter prazer ou dá-lo a alguém fosse uma coisa má.

Isto não tem directamente que ver com o ateísmo, nem o neo nem qualquer outro. Ser ateu não implica uma opinião acerca da prostituição. Mas, indirectamente, o Jairo tem alguma razão em ver esta correlação. Indirectamente. Porque ser religioso – não apenas crente mas aderente aos preceitos de uma religião – praticamente obriga a condenar a prostituição pela necessidade religiosa de controlar o que as pessoas fazem da sua vida.

1- Comentário em Treta da semana: o caso Queiroz

sábado, agosto 14, 2010

Treta da semana: o caso Queiroz

O Carlos Queiroz treina futebolistas. E nesse meio é comum exprimirem-se com alusões coloquiais a actos e órgão sexuais ou às mães dos envolvidos. Ao que parece, foi isso que Queiroz fez com o Luís Horta, o presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal. Segundo consta, Queiroz alegou que a mãe de Luís Horta teria uma profissão que é mais antiga mas injustamente menos respeitável que a de treinador de futebolistas.

Daqui veio um grande drama. Na Federação Portuguesa de Futebol há quem ache que Queiroz não explicou aos futebolistas portugueses para onde deviam chutar a bola e que, por isso, Portugal (os dez milhões, não os onze em campo) fez má figura na África do Sul. Disso não sei, que faltei ao concerto das vuvuzelas. Mas dizem alguns entendidos que vem daqui a motivação para entalar o Queiroz.

Eu acho que a razão principal é outra. Os homens gostam de telenovelas mas têm vergonha de o admitir. Por isso inventam destas coisas. Como é acerca do futebol já podem estar todos atentos a quem disse o quê de quem sem que ponham em causa a sua masculinidade. E por mim estão à vontade. Façam lá as reuniões na federação, falem aos telejornais como se isto tivesse alguma importância e chamem o presidente do FCP para defender quem gritou FDP.

Mas que o façam com o tempo e dinheiro deles. Infelizmente, o caso foi também para o Ministério Público. E essa parte da palhaçada pagamo-la nós no trabalho de quem vai investigar, relatar e decidir sobre se Queiroz ofendeu Luís Horta ou se perturbou o processo de controlo de doping.

Dizem que a denúncia é obrigatória porque «os insultos do seleccionador nacional foram dirigidos a um funcionário de um organismo público»(1). Isto é treta porque ninguém é obrigado a sentir-se insultado. Qualquer coisa que possa ser interpretada como insulto pode igualmente ser interpretada como mero desabafo. Só se insulta quem quer ser insultado. Além disso, e em rigor, o insulto foi dirigido à mãe do funcionário do organismo público, não ao funcionário em si.

Mas a maior treta aqui são estas leis. O regulamento do controlo de doping condena quem “perturbar” a recolha das amostras e o código penal condena injúrias e insultos. Mas isto são conceitos vagos e subjectivos. Perturbar um processo pode ser chamar nomes à mãe de alguém e pode ser dizer bom dia ou espirrar na altura errada. E insultar e injuriar pode ser qualquer coisa. Estas leis reduzem explicitamente a justiça aos caprichos dos juízes, deixando que cada um deles decida o que vai considerar insultuoso ou perturbador. Porque, objectivamente, o simples acto de medição perturba necessariamente o sistema e tanto se pode ficar ofendido por alegarem ser filho de uma prostituta como de um contabilista, toureiro ou político. Por isso o valor legal de qualquer coisa destas é o que der na cabeça ao juiz.

Proponho substituir-se estes artigos mal redigidos e absurdos por uma multa pesada a quem quiser usar o sistema judicial para resolver criancices. A justiça é um bem precioso que deve ser usado nos problemas importantes e não quando um menino diz um palavrão ao outro. O mais adequado neste caso é castigar o Carlos Queiroz e o Luís Horta a uma semana sem sobremesa para aprenderem a não fazer birras.

1- DN Caso Queiroz no Ministério Público há mais de 15 dias

quinta-feira, agosto 12, 2010

Equívocos, parte 7.

O Alfredo Dinis escreveu um novo post na sua série sobre «Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo»(1). É quase todo dedicado ao Sam Harris culpar os crentes moderados pelo extremismo dos fanáticos, que o Alfredo contrapõe dizendo saber interpretar a bíblia melhor que o Sam. Como essa conversa me interessa pouco deixo-a entre eles. Interessa-me mais a posição do Dawkins, que o Alfredo confunde com a do Sam Harris e acaba por não comentar. «Embora em si mesmos não sejam extremistas, os ensinamentos da religião ‘moderada’ são um convite aberto ao extremismo.»

Uma peça fundamental do ensinamento religioso é que as opiniões religiosas não são como as outras. São verdade revelada, inspiração divina ou assim. Um caso à parte. Por isso tenho de dizer que sou ateu quando é desnecessário afirmar-me ahomeopata, acartomante ou aovniólogo. Porque se digo apenas não acreditar em afirmações infundadas e, por isso, rejeitar superstições e crendices os religiosos dizem sim senhor, nós também. Não percebem que acreditar que um homem ressuscitou e agora está no céu a transubstanciar hóstias a pedido dos padres também é superstição.

E a reverência pela superstição religiosa promove o disparate. Qualquer opinião sobre o clima, o Benfica, a política ou a astronomia pode ser questionada ou oposta abertamente. Mas se alguém de turbante diz que Deus falou com Maomé ou alguém de batina diz que faz exorcismos então tem de se “respeitar” e não se deve contrariar estas pessoas. Esta mudez é um convite ao extremismo por isentar a crença religiosa da pressão moderadora de uma crítica sincera.

Outro problema é a incongruência da crença religiosa moderada. Ser moderado faz sentido com preferências e valores. O Alfredo pergunta, retoricamente, «Dever-se-á então afirmar que são precisamente os moderados em política [...] que são os responsáveis pelos ditatoriais?» Não. Os moderados não têm culpa e na política devemos aproveitar o que preferimos e rejeitar o resto. Há coisas no comunismo e no capitalismo que acho boas e outras que me repugnam. Por isso escolho o que considero melhor e não tudo em pacote. Na fé pessoal também é assim. Se alguém gosta de rezar mas não concorda com os padres pode rezar em casa e pronto. Nestas coisas é bom ser moderado.

Mas nas religiões é diferente porque uma religião não é um conjunto de preferências ou opções. É, fundamentalmente, uma ideia da realidade. Proclama factos. De como se vai para o céu ou para o inferno, quem criou o mundo, para quê e o que quer de nós, quem tem o poder de baptizar, casar, absolver ou excomungar e assim por diante. E nisto não faz sentido escolher a gosto o que é verdadeiro ou falso. É como dizer que acredito nos travões mas, sendo um crente moderado na mecânica e não gostando de barulho, rejeito que o motor tenha algum efeito no carro.

A verdade do que julgamos ser facto não é uma preferência como o que opinamos acerca de clubes, da segurança social ou do papel que o Estado deve ter na economia. Nos valores há gamas onde nos podemos distribuir conforme preferimos. Mas o que dizemos da realidade ou está correcto ou está errado. Seja acerca da aceleração gravítica, da existência da alma ou de um deus condenar os preservativos. Não podemos escolher o que é verdade. O único critério para seleccionar estas crenças deve ser a sua adequação à realidade e não a nossa impressão do que é extremo ou moderado.

Isentar de crítica a crença religiosa moderada cria a ilusão de que cada um pode escolher a sua realidade. Admito que, em qualquer religião, mais vale acreditar em pouquinho do que em tudo. Do mal o menos. E a culpa não é só dos crentes mas sim de todos os que ficam calados por “respeito” pelas crenças religiosas. Mas com isto esquecem que o mais importante nas afirmações de factos é saber se são verdadeiras ou falsas. Em troca do critério claro e objectivo de julgar cada afirmação pelo confronto com os dados fica apenas a distinção vaga e subjectiva entre extremismo e moderação.

Um padre diz que expulsa o diabo do corpo, um pastor diz que a transfusão de sangue dá castigo eterno, um papa afirma que o preservativo prejudica o combate à SIDA e um criacionista diz que a Terra tem dez mil anos. E em vez de apontar que isto não tem fundamento defende-se o “respeito” por estas crenças que se dizem moderadas. As pessoas têm o direito de acreditar no que quiserem, mas estas opiniões não merecem mais respeito que qualquer outro disparate.

Fica assim a ideia que os auto proclamados representantes dos deuses sabem o que dizem e que é mais importante respeitar a sua autoridade do que questionar ou exigir evidências. Isto já tem consequências práticas mesmo com disparates “moderados” mas, mais grave ainda, aplica-se igualmente bem a qualquer extremismo. Ignorar a distinção objectiva entre realidade e fantasia e isentar de crítica as opiniões dos religiosos abre as portas a qualquer treta que os chefes das religiões impinjam aos seus seguidores. A diferença vaga entre o moderado e o extremo é uma protecção muito mais fraca do que ir cortando a treta onde quer que apareça.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

terça-feira, agosto 10, 2010

O gráfico.

O Jairo Entrecosto sacou de uma das armas mais usadas por quem nega que a Terra esteja a aquecer ou, pelo menos, que tenhamos algo com isso. O “especialista”. No singular. Neste caso, Gonçalo Moura, um falecido engenheiro electrotécnico de grande reputação que se dedicou à climatologia depois da reforma. O Jairo desafiou-me a «pegar em algum texto deste especialista em clima, que consta no seu blogue "Mitos Climáticos" e a demonstrar que uma linha daquilo que lá está seja "treta".» Está muito calor para textos, por isso vou começar por um gráfico.

Antes de mais, quero salientar que não tenho nada contra o Gonçalo Moura nem intenção de atacar a memória de ninguém. E tanto me faz se é especialista em climatologia ou em electrotecnia. O que quero é pôr de lado o argumento de autoridade e apontar a treta neste post, que seria a mesma fosse quem fosse o autor. O post do Rui Gonçalo Moura, de Maio deste ano, intitula-se « Camada de neve no HN por décadas. Dez-Fev de 1967-2010»(1) e consiste no seguinte gráfico:

Neve HN

Para os Jairos isto é evidência clara e incontestável que o aquecimento global é treta. Há mais neve até aos anos 80, menos até 2000, mas depois há mais neve outra vez. É um fenómeno cíclico. É o Sol ou a órbita da Terra. Não tem nada que ver com o carvão e o petróleo que podemos continuar a queimar até acabar. Infelizmente, não é bem assim. Uma coisa que este boneco esconde, pela agregação dos dados em décadas, é a variação anual na cobertura de neve durante os meses de inverno. Usando os mesmos dados (2), refiz o gráfico com as médias das 8 primeiras e 4 últimas semanas de cada ano (Janeiro, Fevereiro e Dezembro).

Neve HN, Inverno, por ano

O peso evidente de alguns anos anómalos mostra que a tendência tão visível no primeiro gráfico se deve mais ao ruído que ao sinal. Mas, mesmo assim, ainda é aparente que a cobertura de neve no Inverno tem uma área tendencialmente maior agora que há uma década atrás. O que nos leva ao outro truque.

O post não comenta nem explica, mas a impressão que dá é que isto é um dado contra o aquecimento global. Mais neve, mais frio. Julgamos nós, que vivemos num país ameno onde só neva se estiver muito frio. Mas a neve é precipitação, e se estiver demasiado frio durante demasiado tempo haverá menos neve porque o ar estará mais seco. Não vou especular se terá sido uma decisão deliberada ou mera falta de atenção, mas sem explicar que maior cobertura de neve no inverno não implica necessariamente mais frio, o gráfico engana.

Além da relação complexa entre a cobertura de neve e a temperatura, visto a neve depender também da humidade no ar, se considerarmos as médias dos meses de verão ou a média global anual o resultado é diferente. Nestes casos nota-se claramente uma tendência para a redução na área coberta por neve*.

Neve HN, Verao
Neve HN, Anual

Saliento que não estou a apresentar estes dados de cobertura de neve como evidência conclusiva para o aquecimento global (3). O que me faz concluir que a Terra está a aquecer é o padrão de muitos dados independentes, e não apenas de um conjunto cuidadosamente seleccionado e massajado para melhor apresentação. O meu propósito aqui é apenas apontar mais um exemplo das tretas de quem se dedica a querer provar que a Terra não está a aquecer. Escolher a dedo os melhores dados e períodos ignorando os restantes. Agregar os valores para esconder que o resultado é mais ruído que sinal. E, finalmente, não mencionar que os dados não suportam a conclusão que fingem suportar.

Uma das razões porque, de momento, estou convencido que o aquecimento global é real e que a actividade humana é um factor importante é que, do outro lado, só me mostram destas tretas. Neve no Brasil, gráficos de treta, o Al Gore anda de avião a jacto e assim por diante. Isto fica muito aquém do necessário para refutar os dados que indicam que a temperatura está a aumentar, a correlação desse aumento com o aumento de CO2 na atmosfera e as propriedades físicas do CO2, que pode ser muito bom para a fotossíntese mas também é muito bom a absorver infravermelhos.

Se alguém estiver interessado em verificar os meus gráficos, está aqui o código fonte do parser (em FPC/Lazarus), os dados e a folha do Calc.

*Estes gráficos começam em 1972 porque nos anos anteriores os dados são incompletos excepto para os meses de inverno.

1- Rui G. Moura, Fig. JM1 - Camada de neve no HN por décadas. Dez-Fev de 1967-2010 (km2). Fonte: Univ. Rutgers.
2- Rutgers Univ., Snow Cover NH.
3- Mas recomendo que vejam uma análise mais detalhada no National Snow and Ice Data Center, Northern Hemisphere Snow

Direito de acesso.

A legislação dos direitos de cópia especifica excepções ao controlo sobre a distribuição e exploração comercial. Permite citações, paródias e críticas, por exemplo, sem ser preciso autorização dos detentores de direitos sobre o original. Os livros do Barry Trotter e Bored of the Rings, por exemplo, não violam copyright nenhum mesmo sendo obras derivadas.

Mas apesar de me permitir escrever, publicar e vender uma crítica onde resuma um livro, cite trechos e aponte defeitos sem pedir permissão, esta legislação não diz nada acerca do direito de ler o livro. O mais próximo que chega, no nosso Código do Direito de Autor, é mencionar que posso copiar o livro para uso pessoal desde que não afecte injustamente o seu valor comercial. É um artigo infeliz que não esclarece em que condições este direito pode ser exercido. E é só acerca da cópia. A lei é omissa quanto a pedir emprestado, emprestar, cantar no duche, memorizar, copiar um poema para um diário ou escrever a letra de uma canção na carta à namorada.

A lei é assim porque vem de quando não se imaginava computadores nem Internet. Nesse tempo, copiar um livro era criar um molho de papel impresso com o mesmo texto, copiar um disco era criar um disco igual, assumia-se que isto só seria feito com equipamento especializado e que a lei só se importaria se o fizessem à escala comercial. Até as fotocópias na faculdade passavam despercebidas. Gerações de alunos estudaram por fotocópias de livros que nunca iriam comprar e ninguém se chateava com isso.

Esta lei não precisava enunciar o direito de ler o livro ou ouvir a música porque, presumia-se, isso não tinha nada que ver com a lei. E lei regulava a distribuição e a cópia, mas entendidas como actividades especializadas, tipicamente comerciais e fora do alcance da maioria das pessoas. O que fizéssemos com livros e discos em nossa casa, entre amigos e conhecidos, presumia-se permitido.

Com a informática viraram isto ao contrário. Por um lado, a noção de cópia mudou radicalmente. A cópia de um livro já nem precisa ser papel escrito. Agora qualquer conjunto de dados, bits e bytes, pode ser considerado cópia de um livro, filme, quadro ou música. E copiar é o que fazemos todos, constantemente. Ler uma página da Web implica copiá-la do servidor para o nosso PC. Enviar um email é enviar uma cópia do que escrevemos ou do que nos escreveram. Instalar um programa é copiá-lo para o disco e executar o programe exige criar outra cópia em memória. Copiar é trivial e indispensável.

Assim, esta lei que regulava apenas uma gama estreita de actividades, que presumia tudo o resto como sendo permitido e que, mesmo no que regulava, procurava equilibrar os direitos de uns com os direitos dos outros, passou a presumir que quase tudo o que se faz no computador é proibido. Ler, ouvir, emprestar, partilhar, mostrar e usufruir, tudo o que dantes se fazia sem regulação, agora exige autorização dos detentores do copyright só porque a tecnologia melhorou. Uma mudança que condena os hábitos sociais e culturais de todos nós. Porque, em rigor, até é ilícito reencaminhar um email ou enviar um artigo que lemos na Web sem obter primeiro a permissão expressa dos autores ou detentores dos direitos de reprodução.

Esta lei deve ser reformulada. Radicalmente. Não para que tenha um efeito diferente do original mas, pelo contrário, para que funcione como se pretendia. Que regule o comércio de obras artísticas e incentive a criatividade sem se intrometer na vida das pessoas e sem nos custar o acesso à cultura.

Este post é roubado do Free Culture, do Lawrence Lessig. Mas como o Lessig não tem medo de ficar sem ideias só por outros aprenderem com ele, podem descarregar daqui o livro, que recomendo.

domingo, agosto 08, 2010

Treta da semana: a franja.

Há uns dias, a propósito do aquecimento global, escrevi que ia evitar a franja extremista dos que negam tudo (1). Daqueles que estão para a climatologia como os criacionistas para a biologia. E bem tentei. Mas eles encontraram-me.

O autor anónimo do blog EcoTretas, além do comentário a esse post, enviou-me também um email exprimindo desagrado pela minha preocupação com o aquecimento global. Como razões apontou que eu sou professor universitário, o que aparentemente me deve impedir de ter esta opinião, que o meu trabalho de investigação deve ser de má qualidade por causa do que penso acerca do clima e que o CO2 é importante para a fotossíntese. Infelizmente, não percebi o que isto tenha que ver com o aquecimento global. E no comentário ao meu post sugeriu que eu lesse o seu blog para «ficar mais elucidado sobre o tema»(1).

Quando fiz um paralelo entre os criacionistas e os que negam o aquecimento global não sabia que a analogia era tão adequada. Mas usam exactamente as mesmas tácticas. Uma é a escolha cuidadosa de notícias irrelevantes mas que parecem refutar aquilo de que discordam. Um exemplo no EcoTretas é «Frio e Neve no Brasil», como se o frio invulgar em algum ponto do globo fosse um contra exemplo para o aumento da temperatura média. O que é relevante é a tendência global, e essa mostra claramente que a temperatura está a aumentar (ver, por exemplo, os dados da análise de temperatura superficial do GISS). Excepções pontuais são irrelevantes.

Outra táctica é a falsa representação de resultados científicos. Por exemplo, «A notícia de que os atóis do Pacífico, em vez de se estarem a afundar, estão a ganhar terreno, está-se a espalhar lentamente, pois é uma notícia muito inconveniente!»(3), dá a ideia que os atóis do Pacífico não se estão afundar. Mas o artigo referido menciona claramente que o nível do mar medido nessas ilhas subiu em média 2 mm por ano no último século(4). Além disso, o que aconteceu nessas ilhas, nesse período, foi muito mais complexo que “crescerem”. A área aumentou em 43% das ilhas estudadas mas com uma erosão significativa da costa virada para o oceano – exactamente como previsto pelo aumento do nível do oceano – tendo a expansão sido quase exclusivamente na orla das lagoas. E, em boa parte, devido à acção dos habitantes.

Noutro exemplo de raciocínio falacioso, o EcoTretas critica os sacos reutilizáveis. Para mostrar o alegado ridículo de nos preocuparmos com lixeiras cheias de plástico, aponta um estudo nos EUA que descobriu vestígios de Escherichia coli nos sacos de pano que as pessoas não lavam(4). Escherichia coli há em muitos sítios, incluindo nas superfícies externas de quase tudo o que trazemos do supermercado. Daí a importância de lavar bem os legumes e empacotar as bolachas. E isto não tem nada que ver com o problema do plástico nas lixeiras. É uma inferência inválida concluir que a preocupação ambiental com os sacos de plástico é treta só porque há E. coli nos sacos de pano.

O aquecimento global e a conservação do ambiente levantam questões importantes. Como os custos, benefícios e eficácia das medidas a tomar. Ou a quantificação dos problemas que causamos e da nossa capacidade para os resolver. Mas simplesmente negar que haja qualquer problema e se limitar a apontar defeitos nas soluções não só é irracional como irresponsável. É mais um caso em que a insensatez de uns prejudica todos.

Muitos criacionistas também se opõem a medidas de conservação ambiental. Em parte porque não gostam da ciência moderna, que desmascara o seu modelo infantil do universo. E em parte pela crença imbecil que o mundo vai acabar em breve e que, por isso, podemos estragar tudo à vontade. Também não é coincidência que os auto-denominados “cépticos” do aquecimento global usem os mesmos truques a que recorrem os criacionistas. Mas não é preciso haver uma conspiração entre estes proponentes de tretas. O que acontece é que tanto os criacionistas como quem nega que a Terra está a aquecer têm a difícil tarefa de argumentar contra evidências sólidas e conclusivas. E contra evidências só mesmo falácias.

1- Resumindo.
2- EcoTretas, Frio e Neve no Brasil
3- EcoTretas, Atóis a crescerem
4- Arthur P. Webb, Paul S. Kench, The dynamic response of reef islands to sea level rise: evidence from multi-decadal analysis of island change in the central pacific(pdf), Global and Planetary Change.
5- EcoTretas, Malditos sacos

quinta-feira, agosto 05, 2010

Deus, afinal, é aspas.

Segundo o Miguel Panão, um milagre é «um evento de muito baixa probabilidade que ocorre no espaço de possibilidades que caracteriza a contingência do mundo.»(1) Ou seja, um acontecimento improvável. Mas se o milagre é isso então, pergunta o Miguel, «o que distingue milagre de um “golpe de sorte”?». A fé. Claro. O solvente universal do cepticismo.

Se uma pessoa se cura de doença que os médicos consideram incurável há três possibilidades. A mais desprezada, apesar de ser a mais provável, é que os médicos se tenham enganado. Afinal, também acontece o prognóstico ser optimista e o paciente morrer. Não é impossível que cometam o erro contrário.

Mas suponha-se que a maleita é mesmo grave e a cura está fora do alcance da medicina moderna. Por exemplo, um salpico de óleo de fritar peixe. Nesse caso é muito raro encontrar a cura no espaço de possibilidades que caracteriza a contingência do mundo. Ou mesmo fora dele. E se o feliz contemplado não tem pinga de fé em deus algum, então curou-se por sorte. Um dia estava com o olho encarnado pelo acidente com a fritura e ao fim de umas semanas de medicação ficou curado. Milagre? Não. Se tal assombro se dá sem reza nem missa é pura sorte.

Só com fé é que a sorte passa a milagre. Segundo o Miguel Panão, o que distingue o milagre de um “golpe de sorte” é «a fé do próprio doente ou de alguém muito próximo na intervenção de Deus (o facto significante) que ocorre no plano da existência, isto é, da realidade na sua totalidade». Ocorrer no plano da existência, sendo da realidade na sua totalidade, é como o outro ocorrer no espaço de possibilidades que caracteriza a contingência do mundo. Basicamente, o Miguel Panão não gosta de dizer com poucas palavras o que pode dizer em muitas. Ainda que diga o mesmo, sempre fica mais aconchegado.

O reverso da medalha é que quem tem fé nunca tem sorte. Nenhuma. Porque tudo o que lhe ocorra de bom, e pareça improvável à partida, é um favor divino. O ateu que ganha a lotaria ou chega atrasado ao avião que se despenha não fica a dever nada a ninguém. Teve sorte e pronto. Mas se o mesmo acontece ao crente, terá de dar graças a Deus por lhe ter calhado o dinheiro a ele em vez de calhar a outro, ou por terem morrido os outros passageiros quando ele se safou. Porque se tem fé houve uma intervenção divina (no plano da totalidade, disto e daquilo, etc e ámen).

Mas o Miguel salienta que, no milagre, a intervenção de Deus não pode ser «considerada como “intervencionista”, dito de outra forma, como uma causa entre outras causas.» Enquanto que no golpe de sorte o paciente se cura sem intervenção de Deus, no milagre, após rezar e beijar estatuetas, o paciente cura-se sem a “intervenção” de Deus.

Por isso conclui assim o Miguel:

«Alguém me perguntou recentemente se haveriam milagres em igual número comparando um mundo com Deus e um mundo sem Deus. Dado que a fé N’Ele é determinante para se considerar um milagre como tal, a presença de Deus no mundo faz toda a diferença.»

Toda a diferença? Mesmo que a fé seja determinante, esta apenas indica que acreditam em Deus. Não indica que seja o deus que o Miguel julga ou sequer que exista deus algum. E a diferença parece muito pouca. É apenas a diferença entre não intervir e não “intervir”. A julgar pela explicação do Miguel, a diferença entre um milagre e um golpe de sorte, ou entre Deus existir ou não existir, não passa de um mero par de aspas.

1- Miguel Panão, Milagre ou “golpe de sorte”?

terça-feira, agosto 03, 2010

A dor é má.

A propósito de umas otites, o Jairo Entrecosto escreveu que «Se um dos filhos do Ludwig lhe perguntar se a dor que sente é "má", ele terá de lhe dizer que, "naturalisticamente", ela não é má [nem] boa», e que coisas como a dor «só poderiam ser más ou injustas a esse ponto de criar um problema filosófico do Mal e Sofrimento, se houvesse Bem Absoluto, Deus.»(1) Como de costume, o Jairo baralha uma data de coisas.

Uma criança com otite não questiona se a dor é má. Sente que a dor é má. Mesmo que nem conheça as palavras “dor” e “má”, quanto mais o Jairo ou o deus do Jairo, sabe imediatamente que a dor é má. E isto não configura esse problema filosófico nem depende de um “Bem Absoluto”. A dor é má, e nem sequer o é pela definição dos termos. Pelo contrário, é má pelas sensações que permitem definir esses termos.

O que a criança poderia perguntar é porque é que a dor é má. As crianças gostam dessas perguntas. Porque é que o Sol brilha, porque é que o açúcar é doce e a água molhada. Algumas podemos responder explicando os processos físicos, outras pela evolução dos nossos sentidos – o morango tem um cheiro mais apetitoso que o da bosta, por exemplo, pela compreensível pressão selectiva que favorece quem coma aquele em detrimento desta – e outras ainda pela forma como definimos as palavras. Também aqui é desnecessário invocar o “Bem Absoluto”, os deuses, as fadas ou o abominável homem das neves. Não é isso que torna o sal salgado nem a dor dolorosa.

O problema filosófico que o Jairo refere começa apenas quando consideramos um sentido muito específico de “má”. O de eticamente reprovável. Mas, nesse sentido, a dor em si não é má. Uma otite, uma queda ou uma martelada no dedo não são, por si só, eticamente reprováveis, mesmo sendo desagradáveis e prejudiciais. O problema filosófico da maldade surge apenas no contexto da decisão. Não é acerca do que simplesmente acontece mas daquilo que deliberadamente fazemos acontecer. E mesmo neste contexto limitado o Jairo se baralha.

Para guiar as nossas decisões precisamos apenas de valores relativos, pois precisamos saber distinguir o melhor e o pior. Se percebemos que tirar o apêndice é melhor que o deixar ficar já sabemos o que devemos fazer. Não é preciso que o apêndice seja algum Bem Absoluto. Basta perceber que está infectado e que é melhor para paciente tirá-lo. Melhor, não absolutamente bem. Por isso não se justifica essa exigência de um bem ou mal absoluto que, além de desnecessários, nem sequer fazem sentido.

E se bem que estes valores sejam relativos aos sujeitos e aos outros valores, a ética da decisão não é relativa a nenhum valor individual. Este é um ponto importante que ao Jairo não convém compreender. O Manuel pode gostar mais de chocolate, a Alzira de baunilha e o António preferir o frango assado. Mas a distribuição mais justa será aquela que tem em consideração o que há para distribuir, as preferências de cada um e as alternativas. Não é mais justa para o António, para o Manuel ou para a Alzira em particular. Se é a mais justa é mais justa para todos, reflectindo os valores subjectivos de cada um mas abstraindo-se de qualquer um em particular.

Isto não convém ao Jairo porque mostra que a ética prescinde dos deuses. Não há um “justo se Deus quiser”. Ter uma otite não é eticamente reprovável mesmo que o deus do Jairo diga que é, nem a violação passa a ser aceitável se esse deus disser que violar é bom. A opinião do deus do Jairo é não importa porque a ética procura princípios universais que sejam independentes que qualquer uma opinião.

Curiosamente, a mitologia bíblica revela uma intuição deste problema. Deus não explicou a Adão e a Eva o que era o bem e o mal. Pelo contrário. Eles é que descobriram a diferença, contra as ordens de Deus, que depois teve um ataque de fúria e correu com eles do paraíso. E nessa história é evidente que foi o deus quem agiu de forma injusta.

Com a ética queremos avaliar decisões e encontrar a forma mais correcta de decidir, não pelo que queira este ou dê mais jeito àquele mas por princípios abstraídos dos valores de todos. Que princípios serão esses, ou sequer se os podemos encontrar, é uma questão em aberto. Mas a proposta do Jairo não resolve nada. Diz que o deus dele é o Bem Absoluto quando o que queremos é comparar o bem de cada opção em relação às outras. Diz que a ética vem do deus dele quando a ética tem de ser algo universal e independente de ser deste ou daquele. E, para cúmulo, não sabe o que esse seu deus quer. O que o Jairo atribui ao seu deus são apenas os preconceitos do Jairo regados de presunção.

Isso não é ética, nem moral, nem bem. É só treta.

1- Comentário em Otite média.

segunda-feira, agosto 02, 2010

Otite média.

É uma inflamação do ouvido médio, por trás do tímpano. Normalmente resulta de uma infecção viral e passa em poucos dias, mas trata-se com antibiótico pelo risco de infecções bacterianas oportunistas. A obstrução da trompa de Eustáquio e a acumulação de líquido aumentam a pressão no tímpano, o que dói. Bastante. Directamente, afecta quase exclusivamente as crianças. Indirectamente, tira também bastante sono aos pais, em especial quando são logo dois miúdos com dores de ouvidos ao mesmo tempo.

De um ponto de vista naturalista é mais uma de muitas chatices que se tem de aguentar. Mas numa perspectiva criacionista é intrigante porque é que um deus omnipotente e infinitamente misericordioso terá criado agentes infecciosos tão especializados para infectar os ouvidos das crianças e causar-lhes dor. Deve ter sido alguma coisa que veio na tal maçã.

De qualquer forma, talvez amanhã possa retomar a programação habitual. Se já conseguir dormir esta noite...