sexta-feira, dezembro 31, 2010

O drama, o horror, a tragédia...

O Mats apontou no seu blog o que ele considera ser uma uma falha terrível no processo científico: «Cientistas com 8 anos publicam artigo em jornal revisto pelos infalíveis pares». Pergunta o Mats «Como é possível que uma revista científica sujeita a revisão de pares publique material escrito por crianças?»(1). Depois cita excertos seleccionados de uma notícia da ABC News (2), como «Os cientistas que comentaram o trabalho das crianças afirmam que, embora as experiências fossem modestas e não tinham análise estatística, elas aguentavam-se bem quando comparadas com o trabalho de especialistas treinados.»(ênfase do Mats), concluindo então que «Talvez esta falta de rigor nas revistas científicas actuais explique a sua devoção em torno da teoria da evolução.»

Infelizmente, não ocorre ao Mats que possa ser falta de rigor não consultar o artigo original, ou nem sequer mencionar a parte da notícia que diz «Trabalhando com um neurocientista do University College London, as crianças documentaram cuidadosamente a sua metodologia e discutiram os dados que recolheram.» Esse neurocientista, que investiga os mecanismos neurológicos da visão, é um dos autores do artigo, “Blackawton bees”, que relata a descoberta que «abelhões conseguem usar uma combinação de relações espaciais e de cores na decisão da cor ou flor de onde vão recolher o néctar»(3).

É verdade que o artigo não tem uma análise estatística sólida. Mas a publicação, Biology Letters, especializa-se em artigos curtos de interesse multi-disciplinar. E esta descoberta das crianças, mesmo que ainda por confirmar com um estudo mais detalhado, é interessante pelo que revela do potencial de aprendizagem visual nesta espécie (Bombus terrestris, os comuns abelhões castanhos e amarelos). E é um artigo de interesse multi-disciplinar pelo que revela do ensino da biologia a crianças. Uma das descobertas relatadas pelas crianças é que «a ciência é gira e divertida porque se pode fazer coisas que mais ninguém fez antes»(3).

Esta abordagem de permitir às crianças fazer ciência, mesmo que tenham apenas 8 anos, é certamente interessante para a maioria dos biólogos. Não só porque muitos dos investigadores são também professores, mas porque todos têm interesse em que as crianças aprendam como a ciência funciona. O futuro da investigação depende disso. É excelente que estas crianças tão novas já tenham aguçado a sua curiosidade e tenham apreciado o valor desta metodologia rigorosa e objectiva que lhes permitiu descobrir coisas novas.

Mas suspeito que seja precisamente isto que mais preocupa o Mats.

1- Mats, Cientistas com 8 anos publicam artigo em jornal revisto pelos infalíveis pares
2- ABC News, UK Science Journal Publishes Study by 8-Year-Olds
3- Blackawton et al, Blackawton bees Biol. Lett. (Published online before print December 22, 2010, doi: 10.1098/rsbl.2010.1056)

Engenharia.

Bill Hammack, ou engineerguy, é professor no departamento de Engenheira Química e Biomolecular da Universidade de Illinois e tem um canal no YouTube com vídeos sobre uma data de coisas. São episódios curtos, com menos de 3 minutos, que não aprofundam muito, mas que focam aspectos interessantes de engenharia e design. E têm piada. Deixo aqui o primeiro, como aperitivo, e a recomendação de que vejam o resto.



Mais episódios no YouTube, e mais informação na página dele, www.engineerguy.com.

Obrigado ao Daniel Martins e ao Pedro Amaral Couto por me viciarem nisto.

quinta-feira, dezembro 30, 2010

Desobediência civil.

Na sequência do post anterior, e num acto arrojado de protesto contra a tal coisa da “propriedade” intelectual, decidi disponibilizar aqui a público uma representação da obra White Painting, do Robert Rauschenberg (da qual mostro apenas parte do primeiro painel, por falta de espaço) ao som da música 4'33'', do John Cage (apenas os primeiros minutos, por falta de tempo). Estas obras são propriedade intelectual, respectivamente, da Visual Artists and Galleries Association e da editora musical Peters Edition.

Peço-vos, no entanto, que apreciem esta pintura durante mais do que um minuto para que não se confunda a música com A One Minute Silence, dos The Planets, porque a confusão com a “propriedade” intelectual dessas duas já é demais até para mim.

















Acima: Wite Painting, Robert Rauschenberg, 1951 (excerto)
Está a ouvir: 4'33'', John Cage, 1952.
Peço desculpa, mas não arranjei maneira de evitar que a música toque automaticamente...

Isso é meu!

A propósito da tal “propriedade” intelectual, um demo do BeatBearing, um controlador de sintetizadores criado pelo Peter Bennett como parte do seu doutoramento acerca do uso de “interfaces tangíveis” para instrumentos musicais (1).



A minha pergunta, para os defensores da propriedade intelectual, é se acham que a configuração das esferas no tabuleiro é algo do qual alguém possa ser dono, legitimando a proibição legal de outra pessoa pôr esferas na mesma configuração ou de divulgar as posições das esferas correspondentes à música “proprietária”.

1- Science Daily, New Musical Instrument Drums Up YouTube Hit

quarta-feira, dezembro 29, 2010

Treta da semana (passada*): A ACAPOR, a partilha e a pirataria.

«A ACAPOR compromete-se […] a realizar, todos os meses, 1000 (mil) denúncias crime» da partilha, «sem a devida autorização», de obras cinematográficas (1). Nesta primeira fornada, que irão apresentar no dia 5, incluem 30 queixas contra endereços IP de onde alegam terem sido partilhados os arquivos com a correspondência electrónica da ACAPOR, obtidos pelo hacking do seu site. Concordo que a ACAPOR se queixe de quem lhes copiou e partilhou a correspondência, violando a privacidade das pessoas envolvidas.

Partilho também da opinião da ACAPOR quando diz que «não concorda com esta lei. [...] Não nos parece que a remissão deste tipo de actividades para os Tribunais Criminais comuns seja o mais adequado e eficiente». O Código do Direito de Autor e Direitos Conexos prevê até três anos de prisão pela partilha de ficheiros sem autorização, a mesma pena da condutora que matou duas mulheres no Terreiro do Paço (2). Não me parece que partilhar o Iron Man mereça o mesmo castigo. Mas enquanto a ACAPOR quer uma lei mais célere, que puna apenas com base na denúncia, eu acho que a partilha gratuita de material publicado nem deve ser regulada por lei. Não só porque o direito de acesso e de partilha é mais importante do que o alegado direito ao lucro por coação legal, mas também porque o custo de policiar esta actividade é absurdo (3).

A acção da ACAPOR tem também vários problemas. O primeiro é que a lista de endereços IP que a ACAPOR submete na sua denúncia é tão fiável como uma lista de matrículas que eu submeta a denunciar estacionamentos abusivos. São apenas alegações. Infelizmente, quem não saiba que estes registos podem ser editados ou até gerados a gosto (4) pode julgar que se tratam de evidência. Outro problema é que a ACAPOR não é detentora dos direitos de autor dos filmes. É uma associação de clubes de vídeo e revendedores. Por isso, se confirmou que as pessoas que acusa da prática destes crimes estavam mesmo a partilhar material protegido – coisa que só pode ter feito descarregando, pelo menos, partes desses ficheiros – então cometeu o mesmo crime do qual acusa os outros. E em muito larga escala, a julgar pelos números. Por outro lado, se não confirmou a partilha então está a acusar pessoas sem fundamento, porque a lista de endereços dada pelo tracker, por si só, não é minimamente fiável fiar (5). E acusações falsas são, justamente, puníveis por lei.

Também importa questionar a legitimidade da ACAPOR recolher este tipo de dados acerca de milhares de pessoas. A MediaSentry, a empresa contratada pela RIAA para detectar partilhas ilegais, teve problemas em vários estados nos EUA por não estar licenciada para fazer investigações destas (6). Na Suíça, a Logistep foi banida, por decisão do Tribunal Superior, porque recolhia sistematicamente esta informação sem conhecimento dos visados (7). E, por cá, a legislação também protege os cidadãos contra este tipo de actividades (8). Se a ACAPOR se dedica a recolher os endereços de IP e os ficheiros partilhados por indivíduos privados sem os informar dessa recolha pode estar a incorrer num ilícito ainda mais grave do que aqueles que denuncia.

Mas o problema maior talvez seja a imbecilidade desta acção. Não sei onde a ACAPOR terá ido buscar a ideia de que processar pessoas lhes vai trazer mais clientes. Da RIAA não foi com certeza (9). O medo das acções legais não é um bom incentivo nem uma boa base para um negócio de entretenimento. Mesmo que a polícia e os tribunais conseguissem condenar uma fracção significativa dos milhões de pessoas que descarregam ficheiros, isso dificilmente ia pôr as pessoas com vontade de dar dinheiro aos responsáveis por esses processos.

E o único efeito destas acções é mudar a tecnologia. Já é assim desde o Napster. Dez anos devia ser o suficiente para aprender a lição. Até para os dirigentes da ACAPOR. É possível reunir os endereços IP de quem partilha ficheiros em redes desprotegidas e não oculta o seu endereço. Mas basta usar um serviço de proxy por VPN (10), ou serviços gratuitos como o Rapidshare (11) em vez do P2P, que isto deixa de ser possível. A resposta à ameaça da ACAPOR não será uma corrida aos clubes de vídeo. No máximo, será instalar um programa diferente para descarregar os ficheiros que se quer.

Finalmente, confundem partilha e pirataria. Durante quatro séculos, este uso de “pirataria” referiu sempre actos ilícitos com fins comerciais. Só nos últimos anos é que se tem forçado a criminalização da partilha para uso pessoal e chamado “pirataria” a tudo. Isto é um problema porque a partilha gratuita de ficheiros foi o que acabou com a verdadeira pirataria de filmes e músicas. O mercado da contrafacção destes bens praticamente colapsou desde que se tornou tão fácil encontrar isto na Internet. O resultado foi haver mais dinheiro para a indústria do entretenimento. As pessoas podem alugar menos DVDs, mas gastam mais dinheiro no cinema (12); compram menos CDs, mas têm mais dinheiro para concertos (13). Se medidas como esta da ACAPOR tiverem algum impacto no acesso aos ficheiros – o que, felizmente, é muito improvável – só levarão ao ressurgimento deste mercado paralelo. É inevitável, pela enorme diferença entre o preço e o custo de reprodução destes bens. E quanto mais dinheiro se gastar em contrafacção menos haverá para o mercado legítimo. Feitas as contas, querem salvar o navio abrindo rombos no casco.

* Precisava de 'net como deve ser para esta...

1- ACAPOR, ACAPOR apresenta 1000 denúncias por pirataria online
2- Expresso, 2010-4-7, Três anos de prisão para autora de atropelamento no Terreiro do Paço
3- Em interferência com casos prioritários, custos para todos os consumidores, custos em advogados, e isto além do peso no sistema judicial.
4- Aqui podem criar screenshots a gosto para “provar” a actividade pirata de quem quiserem.
5- Os servidores que registam os endereços de quem partilha não confirmam se são os endereços correctos, guardam-nos durante bastante tempo e o ISP pode entretanto atribui-los a outra pessoa, etc. Por exemplo, estes investigadores da universidade de Washington receberam acusações de que a sua impressora estava a partilhar ficheiros.
6- P2PNet, Is RIAA’s MediaSentry illegal in YOUR state?
7- TorrentFreak, How an Anti-Piracy Firm Became Banned In Its Own Country
8- Segundo a Comissão Nacional de Protecção de Dados:
«No momento em que os seus dados são recolhidos, ou caso a recolha dos dados não seja feita directamente junto de si, logo que os dados sejam tratados, tem o direito de ser informado sobre: Qual a finalidade do tratamento, Quem é o responsável pelo tratamento dos dados [...etc]»
9- Wall Street Journal, 2008-12-19, Music Industry to Abandon Mass Suits
10- ZeroPaid, WikiLeaks: Sweden Anti-Piracy Law “Doing Little” to Fight P2P
11- TorrentFreak, Piracy Rises In France Despite Three Strikes Law, e Six Ways File-Sharers Will Neutralize 3 Strikes
12- TorrentFreak Damned Pirates: Hollywood Sets $10 Billion Box Office Record
13- TorrentFreak, Artists Make More Money in File-Sharing Age Than Before It

Apoio ao cliente.

A Maria João Nogueira teve uma desventura com a Ensitel, que recusou trocar um telemóvel avariado apesar do estipulado na garantia. Mas o que me interessa nesta saga, que já dura desde Fevereiro de 2009, é que agora a Ensitel intimou a Maria João com um procedimento cautelar, para que o tribunal mande apagar os posts que ela escreveu sobre o assunto. Podem ler os detalhes no blog jonasnuts.com, neste post: Ensitel.

O que aconteceu à Maria João é chato, mas sinto-me solidário com a Ensitel. Obviamente, os administradores desta empresa são pessoas sensíveis que ficaram muito incomodadas com as críticas da Maria João. Se assim não fosse, não tentariam censurá-la. Temos de ter consideração por essa sensibilidade. Assim, o melhor será que os clientes da Ensitel evitem dar destas ralações à empresa e passem a comprar os telemóveis a outros revendedores. Proponho que dêem preferência aqueles cujo apoio ao cliente não seja feito na barra do tribunal.

Obrigado ao Bruno pela referência no FaceBook

Adenda: está aqui um bom resumo do sucedido (via o Helder Sanches, no FaceBook):



Segunda adenda (2011-1-1): A Ensitel reconsiderou e decidiu retirar o processo.

domingo, dezembro 26, 2010

O mal pela cura.

O Luís Miguel Sequeira contou o caso sórdido de uma colaboração entre a sua empresa e um grupo de investigação, para modelar edifícios antigos. Uma tentativa de parceria com a Câmara Municipal de Lisboa acabou com esta a adjudicar o trabalho a outra empresa que aproveitou as técnicas já desenvolvidas sem dar crédito aos autores (1). O Miguel explica que o problema é a cultura ser diferente. Enquanto que, no meio académico, «uma apropriação indevida» leva ao «ostracismo por parte da comunidade, declarando determinado investigador como sendo pouco honesto», a actividade comercial «não está “comprometida” com este código de conduta ético [...]. Se há apropriamento indevido de material de terceiros, cabe a estes o recurso aos tribunais.» Mas o Miguel confunde dois sentidos diferentes de “indevido”.

O que se considera indevido no mundo académico é mentir, aldrabar os resultados ou dizer-se autor do trabalho de outrem. O que é indevido em qualquer contexto. Em contraste, os monopólios a que se chama “propriedade intelectual” criam uma noção única de “indevido”. Nesse contexto, o “indevido” é usufruir ou divulgar a informação, mesmo que dando crédito aos autores. Ou seja, chama-se indevido ao que, fora deste contexto, se louva como sendo generosidade, educação, cultura e civismo.

E este é que é o problema. Como ninguém pode ser dono de uma descoberta científica, em ciência não há grande incentivo para usurpar a autoria. O aldrabão pode ganhar alguma reputação como o autor da descoberta mas a prática é invulgar porque a aldrabice é fácil de descobrir e a perda de reputação é grande, nesse caso. Apesar da reputação também ser importante para as empresas, para quem a má publicidade custa dinheiro, valor monetário destes monopólios é muito superior e a decisão é tomada em tribunal, onde tem vantagem quem tem mais dinheiro para advogados. É este sistema que incentiva a apropriação indevida, no sentido normal. Isto não tem nada que ver com uma diferença de cultura. É apenas uma distorção causada pala legislação. Sem monopólios sobre ideias isto não aconteceria.

Um exemplo, entre muitos, é o que aconteceu com o Gecode, uma plataforma livre para programação por restrições(2). Da última versão tiveram de retirar a pesquisa por discrepância mínima (least discrepancy search, LDS) por causa de uma queixa alegando que a LDS está patenteada nos EUA (3). Este método de pesquisa, usado há quase duas décadas, consiste simplesmente em procurar soluções a distâncias cada vez maiores de uma solução aproximada. Por exemplo, se temos um horário já feito e é preciso acrescentar uma aula podemos experimentar primeiro manter todas as outras iguais, se não der bom resultado podemos experimentar alterar só uma de cada vez, ou alterar só duas e assim por diante.

Se ninguém pudesse ser dono desta ideia não haveria incentivo para se fazerem passar por seu autor, até porque já tanta gente a conhece que a aldrabice seria óbvia. Mas a patente disto pode dar muito dinheiro e ser dispendioso disputar em tribunal. Por isso, uma empresa que tenha um papel a dizer que é dona disto não vai querer saber do que é honesto ou devido. Vai dizer “é meu” e processar quem se atrever a usá-lo.

O Miguel está a confundir o mal com a cura. É este sistema de concessão de monopólios que incentiva a aldrabice e a injustiça. É a mesma confusão que leva o Miguel a criticar o que chama a minha «cruzada para acabar com o direito aos artistas de poderem trabalhar como querem.» O “direito de trabalhar como querem” não faz sentido se levado à letra. Não é por querer ganhar dez mil euros por mês como provador de chocolates que tenho o direito a esse emprego. Tenho direito apenas de oferecer este serviço e esperar que alguém queira pagar por ele. O direito de trabalhar como se quer é apenas o direito de vender o trabalho numa transacção voluntária em troca de uma compensação acordada entre as partes envolvidas.

O sistema de monopólios sobre a cópia, que dantes regulava a concorrência entre editores e que agora serve para coagir a compra do que se pode copiar de graça, não tem nada que ver com o direito de transaccionar o trabalho. Não é preciso monopólios para garantir aos profissionais o direito de se recusarem a trabalhar sem terem primeiro uma promessa de remuneração. Mas se um matemático publica a demonstração de um teorema não pode cobrar depois pelo seu uso. A remuneração deve ser negociada antes de fazer o trabalho e, em geral, o profissional que trabalha sem um acordo prévio de remuneração prescinde do direito a ser remunerado.

É só no contexto daquilo a que chamam arte que este “direito” toma um significado diferente. Como a lei concede monopólios sobre expressões artísticas, o artista dificilmente pode negociar a venda do seu trabalho sem vender também os direitos sobre aquilo que cria. Por regra, só os artistas mais ricos é que podem usufruir dos monopólios sem ceder direitos aos distribuidores. E o papel desses monopólios é limitar os direitos a quem não encomendou nem prometeu nada ao artista. A lei que me proíbe de copiar um CD emprestado não serve para dar ao artista o direito de só trabalhar contra a promessa de um salário. Pelo contrário. É essa mesma lei que acaba por impedir o artista de exigir um salário antes de fazer o trabalho, obrigando-o a trabalhar primeiro e depois vender os seus direitos aos gestores dos monopólios. Que, obviamente, têm muito mais interesse pelo lucro que esses monopólios podem dar do que pela honestidade, justiça ou criatividade artística.


1- Luís Miguel Sequeira, Política académica…
2- www.gecode.org
3- Michael Trick's Operations Research Blog, More patent madness!. Obrigado pelo email com o link.

sexta-feira, dezembro 24, 2010

O rapaz que comia aranhas.

Eu e os miúdos somos fãs do Tim Burton. Talvez seja por isso que eles gostaram desta história. Com um agradecimento especial ao Vincent Malloy, aqui fica, à laia de prenda. Bom Natal.

O Rui não parecia um menino invulgar.
Era meigo, educado, adorava brincar,
e tinha nove anos, uma altura da vida
em que todos pregamos uma ou outra partida.

Mas nunca fazia nada por maldade,
só as tropelias normais da idade.
Como uma que fez a uma amiga na escola:
pôs-lhe lesmas num bolso e uma osga na gola.

Um dia escondeu um par de óculos da tia,
mesmo à frente dela que, sem eles, não via.
Coitada, apalpou as cadeiras, o chão,
a mesa, o sofá, mas tudo isso em vão.
À volta dos óculos, um dia inteiro,
e eles mesmo ali, presos ao candeeiro.

Mas o Rui, normalmente, portava-se bem,
e era a alegria do pai e da mãe.
Só mesmo uma coisa lhes dava ansiedade:
Ele comia tão pouco para aquela idade...

A comida, para as mães, é uma coisa sagrada
(e as mães preocupam-se por tudo e por nada).
Mas, nisto, a mãe dele até tinha razão
porque era sempre o mesmo, a qualquer refeição:
o Rui só dizia: “Mãe, não tenho fome...”
e a mãe insistia: “Está bem, Rui, mas come.”

Mas o Rui não comia e, por nunca comer,
marcaram consulta para o médico o ver.
“O que faço, doutor?” perguntou a sua mãe.
“Nada, senhora. O seu filho está bem.”

O Rui estava bem porque ele até comia,
a sós no jardim, ou com a casa vazia.
E boas refeições, se bem que algo estranhas.
Sem ninguém saber ele comia aranhas.

Nisto ele não era um menino normal
porque, se fosse, fazia-lhe mal.
Mas não havia, para ele, nada mais nutritivo
do que uma aranha gorda ou um aranhiço vivo.

Há aqui outra coisa ainda mais intrigante:
uma aranha não é um pernil de elefante.
Só com as aranhas que há num jardim
o Rui nunca iria crescer tanto assim.
Para se alimentar ele tinha de comer
muito mais aranhas do que é regra haver.

Por sorte que sempre que a fome surgia,
elas apareciam, como por magia.
Pretas, às cores, grandes, pequenas,
aos molhos, às dúzias e até às centenas,
vinham ter com o Rui, a fazer suas teias
e ele saciava-se comendo às mãos cheias.

Era assim que jantava, sempre, nesses dias.
No fim só sobravam as teias vazias.

Mas a infância passou, como o tempo obriga,
e ele lá se habituou a encher a barriga
com petiscos daqueles que achamos normais:
como o peixe, os legumes e os cereais.

E não mudou só nas coisas que comia,
que crescer muda todo o nosso dia-a-dia.
Mudou os amigos, os jogos que tinha
e até como olhava para a Ana, a vizinha.

Tinha a idade dele, mas quando eram pequenos
falavam-se pouco e, brincar, ainda menos.
Só que, mais tarde, um olhar de relance
foi o que bastou para atear o romance.
O tempo passou, juntaram-se os dois,
e a Alice nasceu uns anos depois.

Com a escola, o amor, o emprego e o lar
o Rui acabou por já nem se lembrar
das suas brincadeiras, partidas e manhas,
ou do hábito estranho de comer aranhas.
Essa parte da infância, agora esquecida,
iria assim ficar até ao fim da vida
se não fosse, um dia, o que a Ana lhe disse
que tinha encontrado no quarto da Alice.

“Ela estava a dormir, com um ar tão satisfeito,
abraçada ao ursinho, apertando-o no peito.
E à volta do berço, que coisa tão estranha.
Um monte de teias mas nem uma aranha...”

quinta-feira, dezembro 23, 2010

Dinheiro, take 2 (ou 3).

O dinheiro, como o conhecemos hoje, foi surgindo gradualmente. A princípio usava-se, para as trocas, qualquer coisa desejável, suficientemente rara e de valor aproximadamente uniforme, como sal, ouro ou prata. Depois começou-se a cunhar moedas, acrescentando um valor simbólico ao do metal e, mais tarde, a guardar coisas nos cofres dos ourives e a trocar apenas os recibos. Os ourives tornaram-se banqueiros, o dinheiro já nem representa nada de material e os bancos e os Estados podem inventá-lo sempre que precisam.

Neste processo, o dinheiro deixou de ser propriedade. A minha madeira pode ser lenha ou mobília, mas não posso transformar nem destruir o “meu” dinheiro. Só o posso trocar porque o dinheiro em si é abstracto e as notas e moedas não são minhas. Nas coisas que são propriedade há diferença entre o que é meu e o que me emprestam, ao passo que com o dinheiro que me emprestam posso fazer o mesmo que faço com o dinheiro que me dão. E enquanto os direitos de propriedade não garantem que as coisas tenham valor, o dinheiro, no fundo, não passa da garantia de um valor constante, se medido naquela moeda.

Para evitar a ilusão de propriedade criada pelo desenvolvimento gradual do dinheiro, proponho uma experiência conceptual. Imaginemos que nunca tinha havido dinheiro, só trocas directas. Agora, para evitar trocar galinhas, conchas e pepitas de ouro, coisas chatas de carregar e de valor muito variável, criávamos um sistema de pontos de troca. Os pontos ficavam registados em servidores e, pela Internet, podia-se consultar as quantias e transferir pontos para outras pessoas.

Este sistema de pontos de troca não precisava ficar subordinado às regras da propriedade privada. Era possível criar um sistema fingindo que os pontos eram propriedade, mas também se podia instituir qualquer outro conjunto de regras sem criar problemas morais. Por exemplo, podia ser um sistema no qual todos começavam com 100 pontos no dia 1 de cada mês, independentemente de quantos tinham no mês anterior; ou, a quem tivesse mais de 500 pontos, descontava-se metade do excesso e distribuía-se esses pontos igualmente por todos; ou taxava-se uma percentagem das transferências, ou uma percentagem dos pontos acumulados, ou qualquer outra coisa. Moralmente, um sistema de pontos de troca pode ser como se quiser.

É claro que um sistema assim só é útil as pessoas o quiserem usar, o que impõe restrições de ordem prática para evitar que volte tudo à troca de pepitas e galinhas. Mas, dentro dos sistemas que funcionem, não é preciso ficar preso ao respeito pela propriedade privada dos pontos de troca.

É isto que se passa com o dinheiro, que não é mais que um sistema de pontos de troca cujas regras, à partida, podem ser as que quisermos. Há restrições de ordem prática, e também de ordem moral por haver contratos já estabelecidos, como os que a legislação codifica. Mas é incorrecto invocar os direitos de propriedade como um obstáculo às medidas de gestão deste sistema porque os pontos de troca não precisam ser propriedade privada.

O dinheiro tem um potencial imenso. Pode ser um sistema que facilita a troca de bens e serviços, que ajuda a corrigir injustiças e infortúnios, que estimula o progresso e nos traz prosperidade. Mas só podemos usufruir das vantagens plenas deste sistema de pontos de troca se largarmos a bagagem do tempo em que o dinheiro feito de objectos materiais com dono.

terça-feira, dezembro 21, 2010

A importância de ser falsificável.

Muita gente sabe que a ciência exige modelos falsificáveis. Infelizmente, muitos julgam que é uma regra arbitrária, como a do bispo andar na diagonal, e pensam que basta mudar de jogo para já se poder ter deuses invisíveis e milagres. Como não se pode falsificar essas hipóteses, defendem, então a ciência não se pode pronunciar acerca do mistério da fé. Do vale tudo, por outras palavras. Mas isto não é bem assim.

Exigir hipóteses falsificáveis não é mera mania da ciência. Em primeiro lugar, é uma condição necessária para descobrir quando nos enganamos. Não poder testar uma alegação não garante que esta esteja correcta, e uma opinião acerca de um deus invisível tem tanta possibilidade de estar errada como qualquer especulação infundada. Ser infalsificável implica apenas que o erro não pode ser detectado. Serve para enfiar barretes mas falha como conhecimento.

Além disso, só se justifica confiar num modelo se a concordância com os dados não for trivial nem houver alternativas melhores. Por exemplo, que a maioria dos criminosos come pão não justifica considerar o pão um factor de criminalidade; quase toda a gente come pão, pelo que esta observação é trivial. Em contraste, quando um modelo relativista da órbita de dois pulsares prevê que se vão aproximar a sete milímetros por dia, e a previsão concorda com medições cuja margem de erro é de apenas 0.05%, é pouco plausível que o modelo esteja a acertar por mero acaso. Uma hipótese impossível de falsificar merece tanta confiança como a pontaria de quem dispara contra a parede e pinta o alvo no sítio que atingiu.

Apesar das hipóteses não falsificáveis não poderem ser incompatíveis com os dados, podem ser incompatíveis com as alternativas. Por exemplo, a hipótese da Torre Eiffel ter sido criada a semana passada por uma magia que criou a torre, todos os registos da sua construção e memórias falsas em toda a gente, não pode ser rejeitada recorrendo aos dados. Mas pode, e deve, ser rejeitada em favor da explicação alternativa que os historiadores nos dão. Esta merece muito mais confiança e é incompatível com a hipótese da criação por feitiçaria.

Finalmente, a diferença entre falsificável e não falsificável está muitas vezes na atitude dos proponentes e não na hipótese em si. Se eu propuser que peso apenas 20Kg, quando a balança indicar 100Kg posso alegar que está avariada. E que o valor da outra balança, que deu o mesmo resultado, foi mal interpretado. E que a terceira balança foi enfeitiçada pelo mágico do parágrafo anterior. Com desculpas destas posso insistir que peso só 20Kg sejam quais forem os dados. Isto é obviamente desonesto, mas não é menos desonesto do que antecipar a marosca e formular, logo à partida, a hipótese de forma impossível de falsificar. Hipóteses dessas, na ciência ou fora dela, são sempre aldrabice.

As especulações religiosas acerca dos vários deuses sofrem destes problemas. Os seus aspectos não falsificáveis não merecem qualquer confiança porque não se lhes pode corrigir os erros e porque a sua concordância com os dados é trivial. Também não explicam nada. Dizer que Jahve criou o universo ou que Zeus cria as trovoadas deixa-nos na mesma. A mecânica quântica e a meteorologia dão descrições muito mais concretas e úteis. E esse acrescentos sobrenaturais são incompatíveis com os modelos que a ciência nos dá. Quando a física diz que pulsares a orbitar-se mutuamente dissipam energia na forma de ondas gravíticas não acrescenta “se Deus quiser”. Isso seria um modelo fundamentalmente diferente e incapaz de previsões rigorosas, deixando sempre em aberto a possibilidade de, afinal, Deus não querer.

Pior ainda, as especulações religiosas têm muitos aspectos que seriam falsificáveis a menos da atitude dos seus proponentes. A existência de um ser omnipotente e bondoso, por exemplo, é incompatível com os dados que temos. Mas continuam a insistir que tal coisa existe só porque não se pode provar o contrário. Ora também não se pode provar que eu não pese 20Kg. É possível, ainda que improvável, que todas as balanças em que me pese dêem o valor errado. Ninguém pode provar o contrário. Mas não é sensato confiar numa hipótese dessas, e não é honesto defendê-la como sendo conhecimento.

1- Science Daily, 14-9-2006, General Relativity Survives Gruelling Pulsar Test: Einstein At Least 99.95 Percent Right

domingo, dezembro 19, 2010

Treta da semana: dinheiro, legitimidade e propriedade.

No Blasfémias, o Rui Albuquerque escreveu que «Se alguém tem fortuna própria [...] ou foi adquirida por meios lícitos ou foi adquirida por meios ilícitos. Neste ultimo caso, as instituições policiais e de justiça [...] devem aplicar a lei. [...] Mas, se o dinheiro é ganho legitimamente, o que legitima terceiros a porem e disporem sobre ele, ou seja, sobre aquilo que não é seu?» (1)

Vou começar pela pergunta, assumindo que o dinheiro foi ganho de forma legítima. Por exemplo, por um mecânico que arranja automóveis na sua oficina. Uma ideia comum é que o dinheiro que o mecânico arrecada é só dele porque o trabalho também foi só dele. É uma ideia errada. O mecânico ganha dinheiro a arranjar automóveis porque há estradas, pessoas com educação e salários que permitem guiar e comprar automóveis, um sistema judicial, electricidade e assim por diante. O mecânico não transforma o seu trabalho em dinheiro sem o trabalho adicional de muitos cujo trabalho também custa dinheiro. Por isso é legítimo taxar a riqueza legítima porque esta depende de muita coisa que o Estado providencia.

Além disso, a dicotomia é falsa. Entre o legítimo e o ilegal há folgas de milhares de milhões, como mostrou a crise do crédito subprime. Os bancos empacotaram as hipotecas e venderam-nas estratificadas. Por exemplo, agregando 300 hipotecas em 3 camadas de 100, de forma a que a primeira recebesse, mensalmente, os primeiros 100 pagamentos, a segunda os 100 pagamentos seguintes e a terceira os pagamentos restantes. Assim, o primeiro pacote parecia um investimento seguro, protegido pelos outros 200 devedores. Mas estes esquemas milagrosos não aguentam o aumento de escala. A apetência pelo investimento ilusoriamente seguro, aliada à possibilidade legal dos bancos emprestarem muito mais dinheiro do que têm – ou seja, de inventar capital – levou-os a conceder demasiado crédito a quem não podia pagar. A inevitável execução de imensas hipotecas demoliu o sector imobiliário e afundou uma data de empresas. Agora os responsáveis reformam-se milionários e os contribuintes tapam o buraco.

Pior ainda é a especulação com contractos de futuros. Estes contratos permitem a um produtor fixar antecipadamente o preço do que vai produzir. É uma forma de seguro que o protege das flutuações do mercado: se o preço subir tem menos lucro do que teria, mas se descer não tem tanto prejuízo. Mas açambarcando o mercado destes derivados financeiros consegue-se inflacionar o preço. Concentrações de capital e a possibilidade dos bancos inventarem o dinheiro que emprestam, para leverage, permitem fazer fortunas com dinheiro que nem existe. Enquanto uns poucos ganham centenas de milhões, centenas de milhões de outros morrem à fome. Em 2006, por exemplo, o preço do arroz triplicou por causa desta especulação. Foi uma flutuação lucrativa para quem teve dinheiro para comprar todo o arroz com um ano de antecedência mas um desastre para quem mal tinha para o arroz da refeição seguinte (2).

Isto demonstra que a legitimidade das transacções não depende apenas da lei ou da polícia mas, principalmente, do equilíbrio no poder de negociação. O mecânico e o seu cliente negoceiam em igualdade, pelo que a transacção e o lucro são legítimos. Mas não é legítimo o lucro da sociedade de investimento que compra todo o arroz para ganhar com a fome de milhões de pessoas, porque o mercado só é livre se os intervenientes também forem. Isto demonstra também que não podemos contar com a lei e a polícia para impedir todos os problemas. A regulação é necessária mas não chega, não só pelo inevitável compadrio entre ricos e políticos, mas também porque a regulação não consegue acompanhar a inovação nas maroscas.

A medida mais importante é a redistribuição. Prevenir ou corrigir os maiores desequilíbrios resolve os problemas mais graves e pode ser feito à medida que eles surjam. Por isso, redistribuir parte dos lucros ou do dinheiro acumulado não é apenas legítimo. É moralmente obrigatório e, na prática, é essencial para manter o sistema capitalista e o mercado livre. O dinheiro só tem valor enquanto as pessoas aceitarem que tem. Se a miséria se torna intolerável a moeda passa a ser o pau, a catana, o dinamite e a Kalashnikov.

O que me traz ao problema fundamental do dinheiro como propriedade privada. Se compro calças por 50€, as calças são propriedade minha mas o seu valor não é. Se as vender podem não valer nada, que é o mais provável, ou valer uma fortuna se entretanto me tornar famoso. Mas com 50€ que tenha no banco passa-se o contrário. Por um lado, não correspondem a nenhum objecto que seja meu, porque já nem os posso levantar em ouro. Mas, por outro lado, a sociedade garante-me que esses 50€ vão sempre valer o mesmo que quaisquer outros 50€. Ou seja, enquanto que para ter propriedade privada preciso apenas que não interfiram no meu usufruto das coisas – a minha casa, as minhas calças ou os meus livros – para ter dinheiro preciso também que toda a gente dê aos meus euros o mesmo valor que dá aos euros dos outros.

As calças são minhas mesmo que mais ninguém as queira. Mas se ninguém quiser o meu dinheiro fico sem dinheiro nenhum. Portanto, o meu dinheiro não é propriedade privada. É uma quantificação convencional de promessas e notas de dívida que só funciona como propriedade privada porque um sistema legal e social garante o seu valor. Mais uma boa razão para aplicar parte do dinheiro na manutenção dessa garantia.

1- Rui Albuquerque, Blasfémias, Propriedade privada
2- Johan Hari, How Goldman Sachs gambled on starving the world's poor - and won, via o friendfeed do Miguel Caetano.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Nova abertura...?

Depois dos comentários acerca do preservativo, talvez o Papa esteja a considerar uma maior abertura da Igreja Católica a aspectos ainda mais polémicos da sexualidade humana.



Via Boing Boing

quarta-feira, dezembro 15, 2010

Adorar ou crescer.



Obrigado ao sxzoeyjbrhg pela ligação ao vídeo.

segunda-feira, dezembro 13, 2010

Definição.

Comentando o meu post às missas na legislatura do Havai, o Lord Submisso criticou a minha afirmação apontando que «Uma religião não se define como "uma organização que visa regular crenças e que procura sempre o máximo de poder que possa para o fazer." Não encontro essa definição em nenhum dicionário.»(1)

Tem razão. A definição do termo “religião” não implica que vise regular crenças ou que procure poder para o fazer. É muito mais abrangente que isso. Poderia haver religiões que celebrassem a liberdade de crença, que admitissem que o que dizem dos deuses é apenas especulação, que encorajassem o debate e a crítica aberta, que desencorajassem a doutrinação de crianças e que tratassem todos os crentes de forma igual. Mas não há. E não é por acaso.

Para uma religião durar tem de manter constantes e salientes aquelas características que a distinguem de outras, perpetuando-as de geração para geração. Quer no passado, quando as religiões faziam parte do poder político e activamente reprimiam a concorrência, quer agora nos países em que o Estado está separado das religiões e estas têm de competir pelos clientes, uma religião demasiado permissiva, tolerante da diversidade de opiniões e respeitadora da liberdade das crianças, em poucas gerações acaba por se fragmentar e desaparecer. As pressões selectivas sobre as religiões fazem com que a pequena fracção que prospera, no fervilhar constante de novas seitas e cultos, tenha características que dêem vantagens sobre a concorrência.

Além deste mecanismo de selecção, as religiões também são moldadas por desígnio. A função principal de qualquer religião é sustentar uma classe de crentes profissionais. São estes que servem de mediadores e intérpretes da vontade divina, que preservam os rituais e que gozam das honras e privilégios devidos aos escolhidos dos deuses. Isto exige que a crença seja apregoada como conhecimento; que haja autoridades, mais ou menos infalíveis, em matérias de dogma; que uns crentes sejam mais iguais que outros; e que a crença de cada um seja regulada pela hierarquia da organização.

É verdade que o termo “religião” abarca muitas coisas, das quais algumas até poderiam ser boas. Mas, na prática, o que perdura como religião acaba por ser um sub-conjunto tendencioso, vergado pelas pressões da concorrência e enrolado nos interesses dos profissionais da área. O que leva à separação cada vez maior entre a religião e a fé. Conforme as pessoas se tornam mais educadas, e mais livres, mais se acentua a diferença entre a crença pessoal e os interesses das organizações que a pretendem regular. É por isso que muitos crentes se dizem católicos, por exemplo, mas sorriem embaraçados quando se fala da transubstanciação, da proibição do sacerdócio feminino, da assunção corporal de Maria ou dos preservativos. Porque enquanto esses têm como crença, fundamentalmente, um conjunto de valores pessoais, a religião onde os inscreveram precisa de dogmas fossilizados que justifiquem a autoridade dos sacerdotes e que possam ser impingidos às gerações futuras para glória perpétua do santo tacho.

1- Dar (n)a outra face.

domingo, dezembro 12, 2010

Outro...

Só agora descobri esta preciosidade do Alberto Gonçalves, as suas “revelações bombásticas” no Diário de Notícias (1):

«Nas palavras do seu fundador, o WikiLeaks justifica-se pelo interesse público. Faltava esclarecer de que público fala o sr. Lassange. Esta semana, ficámos esclarecidos. Algumas das recentes revelações do site versam os pontos do globo estratégicos para a América, desde uma mina de cobalto no Congo até à maior petrolífera da Arábia Saudita, passando por laboratórios farmacêuticos europeus. […] Obviamente, o público do WikiLeaks são os terroristas. […] trata-se de um manual de instruções para bombistas.»

Isto é como arrumar o escritório. Nem sei bem por onde começar... Talvez pelo método insidioso que Assange (ou Lassange, como prefere o Lalberto) escolheu para divulgar esta informação aos terroristas. Tendo perdido o email do Osama bin Laden, teve de começar em 2006, para disfarçar, publicando até agora uma data de coisas desde abusos de direitos humanos a trafulhices de empresas. Depois enviou todos os telegramas para os jornais. E, agora, está a publicar 250,000 para que ninguém note que tudo isto serviu apenas para dar aos terroristas esta lista de alvos.

E que lista. Imaginem um terrorista fanático, suicida, a querer comprar a eternidade no paraíso matando-se a ceifar a vida ao maior número de infiéis que possa, e lançar o terror por entre as hostes do Grande Satã Ocidental. Põe os explosivos à volta da cintura, às costas uma mochila cheia de pregos e, até há poucos dias, estaria limitado a alvos como escolas, autocarro, centros comerciais ou as entradas dos estádios em dia de jogo. Mas, graças ao Assange, agora pode ir rebentar-se numa mina de cobalto no Congo. Agora é que vai ser o terror.

A selecção de colunistas no Diário de Notícias pode parecer lamentável. Mas mais lamentável ainda é faltar aos terroristas o discernimento e a capacidade de raciocínio crítico de um Alberto Gonçalves. Era tão bom. Punha-se um letreiro no meio do deserto a dizer “Rebentem-se aqui, sff” e ficava resolvido o problema do terrorismo.



1- Alberto Gonçalves, DN, Revelações bombásticas

Treta da semana: o pecado da fuga.

Tenho estado para escrever sobre a WikiLeaks e a fuga dos cabos, mas tenho adiado por excesso de coisas escritas por aí de outras coisas que tenho tido para fazer. Mas anteontem recebi um email com o incentivo que faltava, a tal palha que tramou o camelo. Portanto, aqui vai um post sobre as tretas que mais me têm incomodado nesta polémica.

A primeira é a ignorância. Por exemplo, «imagina-se que o nome seja uma paródia de gosto duvidoso à Wikipedia» (1), como se a WikiLeaks fosse um site a gozar. Uma wiki é um site cujo conteúdo pode ser editado por quem o visita. A WikiLeaks restringe os direitos de edição das suas páginas, como acontece a algumas páginas da Wikipedia, mas, originalmente, era uma wiki, e é daí que vem o nome. Este problema não afecta só os opinadores nacionais. Lá fora há jornalistas que pensam que a WikiLeaks é controlada por hackers «a tentar descobrir segredos industriais e militares» bisbilhotando os computadores das pessoas (2), há diplomatas a propor a “obliteração dos electrões da WikiLeaks” (3) e há senadores a mandar tirar o sal da sopa (4). Isto é preocupante porque estas pessoas influenciam a legislação que regula a Internet, que acaba por ser como um Código da Estrada escrito por quem julga que o automóvel é um carro de bois.

Há também a treta do terrorismo, a inevitável desculpa para qualquer disparate. Os terroristas usam a violência para aterrorizar. Põem bombas em autocarros, atiram aviões contra prédios ou tentam rebentar com pessoas que andam ás compras (5). Isso mete medo. Mas a preocupação com a lista de instalações que a WikiLeaks divulgou é ridícula (ou desonesta). Imaginem o terror de um ataque terrorista a uma fábrica de antídoto para veneno de cascavel. E a notícia a denunciar a “lista de alvos terroristas” acrescenta que esta não inclui instalações governamentais como «o centro de comunicações Pine Gap perto de Alice Springs e a estação de comunicação por satélite de Kojarena, perto de Geraldton»(6). Parece que mencionar estas já se pode. A trapalhada chega ao ponto, pelo menos por cá, de defenderem que a WikiLeaks faz “terrorismo digital”(1). Pelo que percebo, esta nova forma de terrorismo consiste em aterrorizar a população com detalhes embaraçosos acerca das asneiras dos políticos.

Há também o argumento de que a WikiLeaks peca por revelar segredos, quando a questão é se estes segredos o deviam ser. Os diplomatas americanos e chineses conspirarem para sabotar negociações sobre poluição e emissões de carbono (7) ou a a Arábia Saudita insistir com os EUA para que ataquem o Irão (8) eram segredos. Mas não é óbvio que seja do nosso interesse mantê-los secretos para que nos lixem o ambiente ou bombardeiem centrais nucleares sem sabermos porquê. Segundo o Pacheco Pereira, a «perda da confidencialidade levará a uma enorme retracção na franqueza das conversas que embaixadores». Mas este é um falso problema porque o que está em causa aqui não é a franqueza. É a trafulhice.

Esta é talvez a treta maior. Muita gente defende que devemos respeitar a confidencialidade dos telegramas entre embaixadas, ou dos políticos e militares em geral, porque é importante para fazerem o seu trabalho. Mesmo que com isto escondam comportamentos reprováveis. Mas temos de considerar qual é o trabalho destas pessoas e, sobretudo, para quem trabalham elas.

Apesar de haver ainda quem gostaria de ser súbdito, já há séculos se reconhece que um Estado deve ser um contrato entre cidadãos, celebrado em liberdade e igualdade, mesmo que a fraternidade seja pedir demais. Vamos regularmente às urnas seleccionar candidatos para cargos administrativos, contratamos os escolhidos, pagamos-lhes o ordenado dos nossos impostos e é suposto trabalharem para nós. Não é razoável que o empregado da caixa proíba o patrão de contar o dinheiro, e se o patrão for na conversa até merece ser roubado. As pessoas que contratamos para nos representar, para negociar em nosso nome e para administrar o que é nosso só muito excepcionalmente devem esconder de nós o que andam a fazer. Um grande problema hoje em dia é essa rara excepção ser aceite como norma.

Além disso, a WikiLeaks não é um centro de espionagem. Apenas facilita a divulgação de informação, de assuntos tão diversos como condições em prisões, relatórios que os políticos escondem de quem os pagou, corrupção, fuga ao fisco e documentos sobre seitas religiosas (10). O que a WikiLeaks faz deve ser protegido pela liberdade de expressão, mas é mais do que o exercício de um direito.

Os diplomatas americanos que receberam ordens para espiar na ONU (11), os oficiais da justiça espanhola pressionados para sabotar o processo pela morte de José Couso (12), e muitos outros em casos análogos, tinham a obrigação de denunciar essas irregularidades. A liberdade de expressão é um direito, mas a denúncia, nestes casos, é uma obrigação moral. A WikiLeaks preocupa muita gente no poder porque facilita que se cumpra esse dever de denúncia, tornando impotentes as leis que declaram ser crime não encobrir os crimes de verdade.

1- Paulo Pereira de Almeida, Diário de Notícias, A WikiLeaks inaugurou o terrorismo digital
2- Trudi Rubin, Columbus Dispatch, WikiLeaks cannot be tolerated
3- John Bolton, Guardian, Barack Obama is a bigger danger than WikiLeaks
4- Guardian, WikiLeaks website pulled by Amazon after US political pressure
5- BBC, Swedish shoppers caught in blasts
6- Sidney Morning Herald, Leaks offer targets for terrorist attacks
7- Der Spiegel, The US and China Joined Forces Against Europe
8- Guardian, Saudi Arabia urges US attack on Iran to stop nuclear programme
9- Pacheco Pereira, AS FUGAS DO WIKILEAKS
10- Wikileaks, About
11- Guardian, US diplomats spied on UN leadership
12- El País, "Los ministros españoles trabajan para que no prosperen las órdenes de detención"

Editado para acrescentar um "não" antes do "inclui", que devo ter apagado sem querer ao retocar o texto...

quarta-feira, dezembro 08, 2010

Intrigante...

Há uns tempos, a ACAPOR, a associação dos clubes de vídeo, denunciou à IGAC a Cooperativa do Vídeo por prestar o mesmo serviço mas pela Internet, em vez de obrigar o cliente a ir à loja alugar rodelas de plástico. Como a lei está sempre vários anos atrás da tecnologia, em boa parte graças ao esforço de quem tem um negócio estabelecido e não quer concorrência inovadora, é possível que a Cooperativa do Vídeo não seja legal (1). Mas até aqui, é só a treta do costume.

O que me intriga é a notícia no site da ACAPOR, segundo a qual «a IGAC enviou para a [ACAPOR] cópia de três relatórios de inspecção realizados à sede» da Cooperativa do Vídeo. Diz também a notícia que não se podem alongar «sobre o conteúdo dos relatórios pois, como perceberão, poderia afectar futuras diligências uma vez que a investigação não está concluída.»(2)

Uma possibilidade é que são relatórios de acesso público e estão só a armar aos cágados com isto de não poder revelar o que lá consta. Mas outra possibilidade, mais preocupante, é que a associação dos clubes de vídeo possa ter acesso a documentos confidenciais detalhando inspecções às empresas concorrentes.

Hoje enviei um email à IGAC a pedir esclarecimentos sobre isto. Quando souber mais alguma coisa, aviso.

1- Cooperativa do Vídeo
2- Houve diligências, diz IGAC

terça-feira, dezembro 07, 2010

Dar (n)a outra face.

Em Abril, Mitch Kahle e Kevin Hughes foram agredidos pela polícia no Senado do Havai por levantarem objecções à celebração cristã costumeira no início das sessões da Legislatura do Estado do Havai. As objecções deviam-se à inconstitucionalidade destes actos, que violam tanto a constituição dos EUA como a do Havai (1).



Mitch Kahle é o presidente da associação Hawaii Citizens for the Separation of State and Church, e por ter falado durante sete segundos a apontar a inconstitucionalidade da missa legislativa, foi detido por “conduta desordeira”. Levado a tribunal no final do mês passado, o juiz que Kahle estava inocente de qualquer conduta desordeira, que tinha todo o direito de se manifestar num fórum público como aquele e que a Legislatura do Havai estava a violar a constituição desse Estado e dos EUA ao permitir invocações religiosas durante as sessões oficiais. Acrescentou também que, como legisladores, deviam pelo menos conhecer a Constituição (2). Neste momento estão pendentes processos civis contra os piedosos cristãos que desataram à batatada por causa dos sete segundos de protesto (3).

Religião é isto. Falam muito da caridade, da tolerância, da humildade e da benevolência porque isso atrai quem tem fé. Mas uma religião não é fé. Não é a sensação individual de uma presença divina, não é a crença pessoal nem os ideais que cada crente exprime naquilo em que acredita. Uma religião é um bicho com vida própria, que luta pela sua sobrevivência e por vencer à concorrência. Se está por baixo, vira a barriga para cima e põe as patas no ar. Mas se está por cima, morde.

1- Disinformation, Atheist Speakers Assaulted at Hawaii State Capital for Objecting to Senate Prayer (Video)
2- Hawaii news now, Capitol protestor found not guilty
3- Hawaii news now, Protestor suing State and Senate staff

Editado a 8-12 para substituir o "levantar" por "levantarem", pois a primeira frase tem vários sujeitos diferentes (os activistas e a polícia) pelo que se deve usar o infinitivo flexionado. Aprende-se muita coisa nisto dos blogs...

Obrigado ao Daniel Martins, que me apontou o problema no FaceBook, a quem me enviou os links por email e aos voluntários do ciberduvidas.

domingo, dezembro 05, 2010

Treta da semana: saúde evangélica (ou telepadres, parte 2).

O Mats acha que o Serviço Nacional de Saúde deve pagar padres, desde que sejam cristãos. Isto porque, segundo o Mats, há um «Estudo controlado» com «Resultados significativos» e «Confirmação independente» que demonstra a eficácia terapêutica dos padres cristãos. O Mats até referiu dois, desafiando-me com esta pergunta: «o que é mais importante para ti: restringir a influência cristã na sociedade ou a saúde dos doentes?»(1)

A ver se consigo descalçar esta bota.

Um dos estudos referidos pelo Mats (2) é um inquérito postal sobre a religiosidade e a prática da medicina. Segundo o artigo que o Mats refere, 54% dos respondentes acha que um ser sobrenatural por vezes intercede pela saúde das pessoas, 56% acha que a religião e espiritualidade têm influência na saúde e alguns dos médicos dizem ter rezado com os seus pacientes. No entanto, o artigo que o Mats referiu omite o resultado principal do inquérito, cujo objectivo não era aferir a eficácia dos padres como medida terapêutica, como se compreende facilmente por apenas perguntar a opinião dos médicos e nem sequer mencionar padres.

O comunicado de imprensa da Universidade de Chicago, onde trabalha o autor, relata que o estudo mostra não haver correlação entre a religiosidade dos médicos e o tratamento de doentes desfavorecidos. Enquanto 35% dos médicos que declaravam não ser religiosos se dedicam a tratar pessoas mais pobres, apenas 31% dos médicos religiosos o fazem, uma diferença que não é estatisticamente significativa (3). Em suma, um estudo mostrando que ser religioso não faz os médicos dedicar mais tempo aos menos favorecidos não é uma demonstração conclusiva dos efeitos terapêuticos dos padres. Pelo contrário, sugere que a religião serve para menos do que os seus defensores apregoam.

O outro estudo citado pelo Mats foi um inquérito presencial a 345 pacientes terminais com cancro (4). Os resultados foram que os pacientes com fé num deus que os ama e zela por eles tinham mais propensão para pedir tratamentos agressivos e tentar prolongar ao máximo a sua vida. Tinham também «níveis de educação mais baixos e menos probabilidade de ter seguro médico ou serem casados, em comparação com os pacientes que diziam ter pouca fé religiosa». Tinham também menor probabilidade de se ter preparado para a morte (testamentos, procurações e afins) e mais relutância em aceitar o diagnóstico dos médicos.

Um resultado importante foi que a insistência nestes tratamentos mais agressivos, como ressuscitação e ventilação artificial, não resultou em «quaisquer diferenças na taxa de sobrevivência nem conduziu a um final de vida com mais qualidade». Essencialmente, este estudo demonstra que as pessoas mais religiosas, e com menos educação, têm mais dificuldade em lidar com estas situações extremas. Tal como no outro estudo, este também não mencionava padres.

Se isto é o melhor que o Mats encontra em defesa do investimento público na padroterapia, devo dizer que fica muito aquém do que seria razoável exigir. Não são estudos controlados, apenas inquéritos, e não têm resultados significativos, ou sequer relevantes, para determinar a eficácia terapêutica dos padres. Além disso, para justificar tais verbas seria preciso também demonstrar ser melhor gastar dinheiro em padres do que noutras coisas e que sem investimento público não haveria padres suficientes. Nenhuma destas condições parece verificar-se.

Assim, sendo a saúde dos doentes e a boa gestão do dinheiro público mais importante do que a religião do Mats, concluo que mais vale investir em medicamentos ou outras terapias. Ou mesmo na educação, que parece ser um bom substituto para a religiosidade.

Para terminar, deixo uma sugestão, caso o Mats também se preocupe mais com a saúde das pessoas do que com os preceitos arbitrários da religião que lhe calhou. É uma técnica barata e acessível. Em nome da saúde, proponho que seja divulgada e encorajada onde quer que as pessoas precisem de se sentir melhor. É profilática para vários problemas de saúde e até pode atenuar os sintomas da evangelite crónica, se praticada com regularidade. Aqui fica o meu estudo, como complemento aos do Mats.

FOXSexpert: The Health Benefits of Masturbation

1- Comentários na treta da semana passada, telepadres
2- American Medical News, Most doctors believe that faith helps patients cope
3- University of Chicago, Religious doctors no more likely to care for underserved patients
4- Not Alone, Religious Faith Helps Cancer Patients

sábado, dezembro 04, 2010

Equívocos, parte 11. A confusão da evolução.

O Alfredo Dinis considera que a incompatibilidade entre criação e evolução é um equívoco do ateísmo (1). No entanto, o equívoco é confundir a evolução com a teoria que a explica. O Alfredo começa por mencionar que a transferência genética na natureza não é unicamente vertical, de pais para filhos como Darwin propôs, mas também horizontal. Na verdade, de retrovírus e transposões à simbiose entre Bacteria e Archaea, há muitas complicações que Darwin desconhecia. Mas daqui afirma que vários autores ateus consideram que «Criação e evolução excluem-se reciprocamente» e que «O que podemos responder a esta tese é que a evolução se dá por um processo de interacção entre o acaso e a necessidade imposta pelas leis naturais». Isso não é uma resposta à tese. Isso é a tese.

A evolução é a variação que, ao longo das gerações, observamos na distribuição de características herdadas em populações. A hipótese de um criador omnipotente, que o Alfredo defende, é compatível com estes dados porque deuses omnipotentes dão para tudo e um par de botas. Sendo omnipotentes, tanto podem criar o mundo em seis dias como ir fazendo tudo em treze mil milhões de anos. Quaisquer que sejam os dados, a hipótese do Alfredo é compatível.

A incompatibilidade que existe é entre este relato do Alfredo e a teoria da evolução. Não os dados mas a explicação do processo. Estes relatos são incompatíveis entre si porque contam a história de forma contraditória. A biologia assume que não há inteligência nem objectivo na evolução porque só assim se pode deduzir a teoria da evolução que temos. Caso contrário, se assumirmos haver um plano e um deus omnipotente, nada se pode inferir porque um deus omnipotente pode fazer qualquer coisa.

O Alfredo assume que o ateu vê uma incompatibilidade entre os dados e a sua hipótese apenas por exigir que a criação divina seja um processo «unidireccional e contínuo, sem desvios nem recuos nem becos sem saída, e claramente racional e identificável pela ciência.» Refuta esta ideia contando como pode viajar, intencionalmente, de Braga a Lisboa, mas parando em Santarém para visitar um amigo e voltando a Fátima por se ter esquecido de uma coisa. Diz assim completar um percurso intencional guiado por «uma lógica não linear». Mas o problema não é esse.

Vamos imaginar que só sabemos que o Alfredo saiu de Braga, parou em Santarém, voltou a Fátima e acabou em Lisboa. Uma explicação possível é que o Alfredo queria ir a Lisboa mas lembrou-se de algo que tinha de fazer em Fátima depois de ter parado em Santarém. Outra hipótese é que estava apenas a passear, distraído e sem objectivo, e o percurso por Santarém, Fátima e Lisboa podia igualmente ter sido por Coimbra e Viseu. Apesar de ambas as hipóteses serem compatíveis com o percurso, são incompatíveis entre si. É contraditório defender que o Alfredo planeava ir a Lisboa e, ao mesmo tempo, que foi parar a Lisboa sem intenção prévia.

A evolução, o processo que observamos, é análoga ao percurso neste exemplo. São os dados. A hipótese do Alfredo é que um deus percorreu esse caminho de propósito. Pode ter tido mais ou menos aleatoriedade, mais ou menos intenção, mais ou menos revezes e becos sem saída, mas a hipótese do Alfredo é que quando a evolução começou esse deus já tinha em mente onde queria chegar. A teoria da evolução diz o contrário. Diz que não havia plano nem intenção, que a vida foi evoluindo ao sabor de cada momento, de cada mutação, de cada morte e cada nascimento.

A teoria da evolução dá uma margem apertada para o que, segundo ela, pode ter acontecido. E, até agora, tem acertado de forma notável. A hipótese do Alfredo é um fato de treino XXL, onde cabe qualquer coisa. Por isso, mesmo sendo ambas compatíveis com os dados que temos, justifica-se ter confiança na teoria da evolução mas não na hipótese do Alfredo porque esta seria compatível com quaisquer dados que surgissem. Mais importante ainda, estas explicações são mutuamente exclusivas, porque ou evoluímos de propósito ou não evoluímos de propósito. As duas coisas é que não pode ser.

No entanto, na boa tradição teológica, o Alfredo tenta escapar deste problema tornando a sua hipótese ainda mais vaga. O exemplo da viagem sugere um plano e propósito, mas o Alfredo explica a seguir como «compatibilizar criação e evolução por selecção natural» imaginando «uma infinidade de seres vivos [...] em milhares de milhões de planetas em todo o universo, e que em cada um desses planetas o processo evolutivo tenha conduzido a formas de vida inteiramente diversas». Ou seja, evolução sem plano nem propósito em cada planeta. Só que, diz o Alfredo, «Deus seria ainda a condição de possibilidade e de inteligibilidade de todos os processos produtivos que se actualizariam no espaço e no tempo.»

Faz pouco sentido. A teoria da evolução descreve um processo que é possível mesmo sem deuses. Assim, para ser condição de possibilidade, o deus do Alfredo nem sequer precisa existir. Mesmo com um deus meramente fictício, a evolução é sempre possível. Quanto à inteligibilidade, essa vem das explicações. E é das explicações que a biologia nos dá, porque estas da teologia têm muito pouco de inteligível.

1- Alfredo Dinis, Décimo primeiro equívoco: a incompatibilidade entre criação e evolução

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Deus e a não-ingerência.

A minha posição pró-NATO (1) levou a várias conversas, aqui e noutros lugares, sobre a moralidade de um país se ingerir nos assuntos de outro. Várias pessoas me apontaram esta coisa da não-ingerência como sendo um critério importante para avaliar acções como a da NATO no Afeganistão. E ocorreu-me que, nisto, a não-ingerência é muito semelhante a Deus.

Como fundamento ético, nenhum dos dois serve. É fácil de ver que, se uma coisa é moralmente condenável – como roubar, matar, torturar ou violar – não passa a ser moralmente louvável só porque Deus manda. Tem-se investido um número enorme de teólogo-horas na reinterpretação do Antigo Testamento só por causa deste problema. E se uma coisa é moralmente louvável também não se torna condenável só por causa de Deus. O mesmo se passa com a não-ingerência que, no fundo, é apenas uma divisão arbitrária entre “nós” e “eles”, geralmente sem nada que ver com a ética. Se alguém está prestes a ser agredido é moralmente louvável acudir seja qual for a etnia ou nacionalidade dos envolvidos.

Há quem sugira que a não-ingerência não é um valor ético em si mas, por se correlacionar com eventuais valores, por especificar, é uma ferramenta moral útil. Se convencermos as pessoas a acreditar nesta regra, defendem, comportar-se-hão melhor. É como a crença em Deus, que muitos dizem tornar as pessoas melhores independentemente de ser verdadeira ou falsa. Isto não funciona, porque é óbvia a facilidade com que ambas são descartadas sempre que se tal revela conveniente, tanto a crença nos alegados preceitos divinos como no suposto princípio da não-ingerência. A história mostra bem que, nestas coisas, há mais excepções do que regra.

Uma desculpa é que as regras são boas mas, infelizmente, pouco usadas. Esta desculpa não serve. Serviria se tivessem um valor ético intrínseco, que seria o mesmo fossem ou não usadas. Mas se são ferramentas só têm mérito pelo seu efeito prático. E, na prática, Deus e a não-ingerência são tão úteis como um martelo de gelatina ou brocas de algodão doce.

Pior que isso, são prejudiciais. A crença num deus serve para fingir serem legítimos muitos actos condenáveis, desde a discriminação das mulheres até aos atentados bombistas. E da não-ingerência à indiferença vão apenas algumas letras. O princípio fundamental da não-ingerência é que os problemas de uns não devem ser resolvidos pelos outros. Por este princípio tolera-se que os ciganos tirem as raparigas da escola aos doze e as casem aos quinze, ou que os países mais desenvolvidos dediquem apenas três milésimas do seu PIB em auxílio aos países em desenvolvimento (2).

Dizem que a não-ingerência é importante para evitar guerras e conflitos e para proteger os direitos dos povos. Mas há mil milhões de pessoas subnutridas no mundo. Enquanto a Segunda Guerra Mundial matou sessenta milhões de pessoas em seis anos (3), a fome mata setenta milhões a cada dois (4). Hoje, a não-ingerência é o perigo maior.

Admito que, em teoria, haja uma diferença entre ajudar quem quer auxílio e interferir nos assuntos de quem não o quer. Mas, na prática, esta diferença é difícil de ver. Porque quando se trata de milhões de pessoas é difícil dizer a quem nos referimos quando dizemos que “o país” quer ou não quer algo. Quando dizem que o Afeganistão não quer lá europeus e americanos não é claro se falam dos milhares de afegãos armados ou dos milhões que ficarão à sua mercê se ninguém os ajudar. Além disso, muitas vezes é difícil saber sequer o que cada pessoa quer. Não é fácil distinguir entre as mulheres muçulmanas que andam andam de burka porque querem e as que apenas dizem querê-lo por hábito, medo ou doutrinação. Finalmente, e acima de tudo, porque o fundamento é o mesmo. É “nós” tratarmos dos nossos problemas, “eles” traterem dos deles e ninguém se meter nos assuntos dos outros. Esta regra alinha tão bem com o comodismo que quaisquer outras considerações acabam por passar despercebidas.

Em suma, se disserem que há problemas em intervenções como a do Afeganistão, Iraque, Bósnia e afins, concordo plenamente. Se defendem que é preciso mais transparência, menos corrupção e mais responsabilidade nessas coisas, assino por baixo. Mas condenar uma acção destas só por causa da não-ingerência é treta. É como dizer que não se deve mandar preservativos para África porque o menino Jesus fica triste.

1- Treta da semana: contra a NATO, pela paz.
2- Wikipedia, Official Development Assistance
3- Wikipedia, World War II
4- Wikipedia, Starvation

quarta-feira, dezembro 01, 2010

O Equívoco ateu da Crítica pela Caricatura.

Post convidado da autoria de D. Mário Neto, blinólogo.

O Ludwig, como muitos ateus, comete frequentemente o equívoco de criticar a religião por meio de caricaturas. É um equívoco porque a caricatura não afecta a religião. Por exemplo, em 1992 um caricaturista português desenhou uma figura religiosa com um preservativo no nariz e, em 2005, foram publicadas várias caricaturas de um profeta em jornais estrangeiros. Ninguém ligou. Os crentes não se incomodam com isso. Nem sequer aqueles que procuram religar-se aos Blin por religiões blinologicamente menos esclarecidas se preocupam com caricaturas, porque a Fé faz parte da Razão Humana e o crente, qualquer crente, usa a Razão acima de tudo.

É certo que a caricatura pode, pelo exagero, salientar algum problema ou imperfeição. Orelhas grandes, nariz peludo ou outros defeitos engraçados. Mas as caricaturas que os ateus traçam da religião não são relevantes porque não há qualquer imperfeição a apontar. A religião não é uma obra humana. A religião é uma dádiva dos Blin; é pura, perfeita e infalível. Por isso é impossível caricaturá-la. É verdade que certas pessoas, menos esclarecidas, cometem erros blinológicos ao venerar deuses falsos e alegadas virgens, pedir coisas e tentar bajular divindades sem a orientação correctora da blinologia. Isso pode-se caricaturar, mas só porque não é religião de verdade. De resto, aquilo que os ateus caricaturam são apenas os equívocos do ateísmo.

Por exemplo, o testemunho. A Racionalidade da Fé vem da confiança no testemunho escrito em livros antigos quando devidamente interpretado à luz do dogma blinológico. Sendo Racional, esta confiança não se pode caricaturar. Além disso, o testemunho não é exclusivo das religiões. Os tribunais, por exemplo, aceitam o testemunho como evidência. Quando a testemunha se contradiz a si própria, ou contradiz outras testemunhas, o Juiz interpreta os testemunhos de forma a substanciar a sua primeira impressão acerca da culpa do acusado. Se tem cara de meliante, pois é isso que os testemunhos todos dirão, se devidamente interpretados.

Mesmo quando a testemunha relata algo que pareça impossível ou contradiga as Leis da Física, o Juiz deve aceitar esse testemunho como verdadeiro se for um testemunho sincero. Porque um testemunho sincero é mais fiável do que as Leis da Física. Isto é fácil de ver. Basta reconhecer o grande conjunto de milagres que as várias religiões relatam. Considerando esses relatos vemos que as Leis da Física, apesar de tão apreciadas pelos ateus, estão sempre a falhar. Não são leis, mas sim meras sugestões de apresentação. Muito mais valor tem o testemunho de um crente.

Perguntam também os ateus “Porque existe o encarnado?” ou “Porque existe o mal?” se os Blin são omniverdes e omnibenevolentes. Ou seja, a Falácia da Pergunta Inconveniente. Mas cerejas, crianças a morrer de cancro ou pessoas soterradas em terremotos não são problemas que belisquem a religião porque não são nada de importante. A única pergunta que importa fazer é “Se eu acreditar sinceramente na existência dos Blin, na sua omnibenevolência e omniverdura, ficarei convicto de que os Blin existem mesmo?”. E a resposta é obviamente que sim. A Razão da Fé esclarece cabalmente as dúvidas ridículas do ateísmo.

O ateísmo gosta também de pintar as religiões como intolerantes. Conta-se histórias de religiões que perseguiram quem discordava dos seus dogmas, de religiões que condenam pessoas à morte por apostasia ou até que defendem o sofrimento eterno para quem rejeitar um certo deus. É verdade que uma caricatura serve para exagerar os defeitos, mas isto não é exagero. Isto é pura ficção. As religiões não têm nada que se assemelhe a essas coisas. Nenhuma religião quer coagir ninguém, nenhuma religião exige nada e, sobretudo, os religiosos não querem, nem nunca quiseram, poder económico ou político. Os ateus acusam as religiões de intolerância apenas por projectar nelas a intolerância do ateísmo. São os ateus que são intolerantes, chegando até ao extremo de escrever livros a dizer que não existem deuses.

Assim, a caricatura acaba por não ser da religião. É uma caricatura do ateísmo. Isto é tão inevitável quanto irónico, porque quem afirma, convicto, que “os Blin não existem e são mera ficção” está apenas a revelar a fé que tem acerca dos Blin. É um crente, mesmo que o seja no modo da rejeição. E esta caricatura é um perigo porque é perigoso caricaturar os ateus. Os ateus rejeitam as legítimas interpretações blinológicas da Blínia Sagrada. Por isso, rejeitam a Fé Verdadeira e, com ela, uma boa parte da Razão humana. O resultado é que os ateus são irracionais e intolerantes. Ai de quem os caricaturar! Desenhem uma figura de um ateu com um preservativo no nariz e verão, certamente, milhares de ateus a mobilizar-se para censurar a imagem e condenar o caricaturista. E se alguém desenhar um profeta do ateísmo haverá certamente violência e ameaças de morte.