sábado, dezembro 31, 2011

A Lua e a idade do universo.

Vi isto ontem no Pharyngula (1) e concordo que é um bom contra-exemplo para a alegação criacionista de que tudo foi criado há cerca de dez mil anos. A imagem abaixo mostra o “lado de trás” da Lua, o que está sempre a virado no sentido oposto ao da Terra. Vê-se bem a abundância de crateras. No canto superior esquerdo está representado Portugal, para dar uma ideia da escala.

esburacada

A Lua tem umas centenas de crateras com mais de cem quilómetros de diâmetro. A Terra, maior e com mais massa do que a Lua, atrai mais meteoróides e asteróides, pelo que por cá terá havido ainda mais impactos, se bem que maior parte das crateras já desapareceu devido à erosão.

Mas vamos supor que a Terra só existe há dez mil anos, como dizem alguns criacionistas, em vez de ter surgido há quatro mil e quinhentos milhões de anos. Comprimindo todos os impactos nesse período quinhentas mil vezes menor, teríamos, em média, um ou dois impactos gigantes por geração. Quando digo gigantes, não estou a falar de impactos como os que dizem ter demolido Sodoma e Gomorra. Estou a falar no tipo de pedregulho que, se caísse em Coimbra, obliterava tudo de Lisboa ao Porto. Basta ver o tamanho das crateras na Lua onde, sem atmosfera, permanecem claramente visíveis mesmo depois de muitas centenas de milhões de anos.

Esta imagem não é só uma boa razão para rejeitar que o universo tenha apenas dez mil anos de idade. É também um bom teste para qualquer criacionista que perceba minimamente o que a fotografia mostra. Se lhe ocorrer que a sua crença talvez não seja verdadeira – afinal, errar é humano – há esperança de o ajudar a perceber melhor a realidade. Mas se se arrogar da humildade de julgar que o criador do universo mandou uma saraivada de asteróides só porque Adão comeu a fruta errada, então está a ser parvo porque quer e só adianta continuar a conversa quando mudar de atitude.

Montagem de imagens da Wikipedia e Google Maps.

1- Nice argument for the ageof the earth.

PS: Bom ano novo.
PPS: E a gata já tem família.

quinta-feira, dezembro 29, 2011

Treta da semana: direitos, graças a Deus.

No blog do Expresso, o Henrique Raposo escreveu esta semana que «o Direito Natural precisa de uma base religiosa, precisa de uma comunicação com a transcendência divina. [Porque] sem uma noção de transcendência, sem algo que nos liberte da prisão do aqui-e-agora, o poder político fica com as portas abertas para limitar os direitos inalienáveis dos indivíduos.» Desta premissa conclui que «os tais "direitos inalienáveis" (a base ética e constitucional das nossas vidinhas) têm uma raiz bíblica» pelo que há «necessidade de Deus (e de Cristo)»(1). Que grande confusão.

A inferência da “noção de transcendência” para “raíz bíblica” e, daí, para o Deus cristão e Cristo, apesar de costumeira neste tipo de argumentação, é obviamente inválida. Há muitas “noções de transcendência” que nada têm que ver com a Bíblia e, mesmo entre as que têm, muitos milhões de pessoas seguem aquelas que não incluem Cristo. Mesmo que os direitos naturais precisassem de uma transcendência divina, nada permitiria concluir que esta seria Cristo ou um deus como os cristãos imaginam.

Também não é preciso um deus desses para justificar direitos naturais. A ideia de que há um conjunto de direitos e deveres inerentes ao ser humano, independentes das leis que os humanos criam, é uma parte fundamental de muitas filosofias éticas que não dependem de um deus pessoal como o dos cristãos, desde as mais antigas, como o estoicismo grego e o dharma hindu, até ao libertarianismo moderno. O Henrique argumenta que é preciso essa transcendência cristã porque senão «o poder político fica com as portas abertas para limitar os direitos inalienáveis dos indivíduos.» Mas só ignorando dois mil anos de cristianismo é que se pode julgar que a crença em Cristo impede o atropelo desses direitos que consideramos inalienáveis.

Além disso, as teorias éticas mais influentes hoje em dia – utilitarismos e contractualismos – não se baseiam em direitos naturais. Nestas, os tais direitos que as leis devem respeitar são derivados de factores como a capacidade de sentir ou aquilo que agentes livres e racionais concordariam em estabelecer. A ética moderna não precisa de assumir direitos naturais. O que é uma vantagem porque, como premissa, sempre foram muito frágeis e facilmente descartados por quem estava no poder.

Se o Henrique tiver o cuidado de ler a Bíblia e a Constituição da Republica Portuguesa verá certamente que a relação entre as duas é muito mais de contraste do que de semelhança. O Novo Testamento tem pouco acerca de direitos, deveres, leis ou política. Como fundamento ético, “ama o próximo” tanto dá para lhe lavar os pés como para o queimar vivo para lhe garantir o Céu. Os Autos de Fé eram praticados no mais pio espírito de amor e compaixão. E as partes do Antigo Testamento que lidam com leis e deveres parecem um manual de ditadorismo escrito por facínoras ignorantes. Provavelmente porque são isso mesmo.

Nos primeiros dois artigos, a nossa Constituição declara que Portugal se baseia na «dignidade da pessoa humana e na vontade popular» e que «é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas». Há de me dizer o Henrique quando é que o cristianismo, ou qualquer outra religião de peso, declarou basear-se na soberania popular, no pluralismo e na democracia. Depois temos o princípio da igualdade, que manda a lei tratar todos de forma independente de «ascendência, sexo, raça, língua, […] religião, […] condição social ou orientação sexual.» Gostava que o Henrique mostrasse onde é que isso está na Bíblia, ou na prática das igrejas cristãs destes vinte séculos. Ou, por exemplo, «Em caso algum haverá pena de morte. […] A integridade moral e física das pessoas é inviolável. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos»(2). Faz-me pensar se o Henrique alguma vez leu a Bíblia, nem que fosse de relance. Ou a história da Europa cristã. Ou sequer reparou no símbolo do cristianismo. Se os direitos humanos que hoje reconhecemos nos tivessem vindo dos tempos bíblicos, Jesus nem sequer teria sido preso, quanto mais torturado e morto na cruz.

É verdade que a nossa cultura é cristã, entre muitas outras coisas. Aqui em Portugal já se vendeu escravos, já se proibiu mulheres de votar, já se prendeu muita gente só por discordar de quem estava no poder e já se torturou pessoas por terem a religião errada. A “nossa” cultura é uma mistura de actos e tradições de muita gente, com coisas boas e coisas más. A nossa noção de direitos humanos universais, acima de qualquer legislação ou governo, vem no seguimento de toda esta história. Isso é inegável. Mas é um disparate dizer que surgiu por causa do cristianismo. Mais correcto será dizer que surgiu apesar do cristianismo, e de muitas outras tradições também contrárias à igualdade, à liberdade e à democracia.

1- Henrique Raposo, A necessidade de Deus (e de Cristo)
2- Parlamento, Constituição da República Portuguesa

quarta-feira, dezembro 28, 2011

Portátil no forno.

Há umas semanas, felizmente só depois de terem acabado as aulas deste semestre, o meu portátil pifou. No arranque apareciam uns caracteres estranhos e linhas no ecrã, e ao fim de uns minutos bloqueava. O problema era obviamente na placa gráfica e, como neste portátil (um HLB2 da Compal*) a placa gráfica faz parte da motherboard, tinha poucas esperanças de o salvar. Mas uma pesquisa na 'net surpreendeu-me com uma solução. Os portáteis aquecem muito e as flutuações de temperatura vão causando pequenas fracturas nas soldaduras. Isto acontece geralmente no processador gráfico, que é a parte que aquece mais. E uma maneira de tentar resoldar estes circuitos é aquecer a placa no forno, a 200ºC, durante uns minutos (1).

Porque havia o risco da cura não funcionar, porque mesmo que resultasse ficaria sempre com receio do bicho morrer em tempo de aulas, e porque estamos no Natal, comprei logo um novo**. Mas hoje tentei ressuscitar o defunto. Deu um bocado de trabalho, desmontar a cangalhada toda, mas tirei quase tudo da motherboard. Os cabos de alimentação não se desencaixam, por isso embrulhei-os em folha de alumínio para os proteger do calor. Fiz o mesmo com a pilha do relógio, que parecia estar colada, o que foi asneira. Como era de esperar, pilhas a 200ºC não sobrevivem.

Depois de assar 8 minutos e arrefecer, encaixei os cabos do monitor e de alimentação, liguei, e nada. Só então me lembrei que não tinha montado o CPU. Com esse no sítio já funcionou. Apareceu o ecrã de arranque sem riscas estranhas nem gatafunhos. Depois de montar a tralha toda, fiquei com o portátil a funcionar como velho (que é o mesmo que funcionar como novo mas sem ter de instalar o software). Falta só comprar uma pilha para ter as horas certas no portátil e, à cautela, pasta térmica boa para ver se não frita outra vez tão cedo.

Três vivas para a Internet!

* Não a dos sumos. Esta.
** Clevo W150HNM. Muito porreiro, para o preço, mas como a placa gráfica é uma NVIDIA Optimus, tive de instalar o Bumblebee. Deixo aqui a dica porque perdi umas horas até descobrir por que raio não conseguia pôr o GLX a funcionar.

1- Addictive tips, Fix Your Graphics Card By Baking In Oven.

domingo, dezembro 25, 2011

Treta da semana: adopção natural.

Num texto aparentemente publicado no Público de dia 16, Gonçalo Portocarrero de Almada apresenta um argumento fascinante contra a adopção por casais homossexuais. Fascinante por ser uma inferência falaciosa assente numa premissa falsa, maximizando assim a treta na argumentação. «Na realidade, só há dois modelos para a adopção: o natural e o que, por ser o seu contrário, é não-natural. Só um homem e uma mulher podem "ser" pai e mãe […] A adopção não-natural é um mal maior, contrário ao bem do menor, que é o superior interesse que a lei deve tutelar.»

A falácia, querida dos defensores de qualquer “é assim porque sim”, consiste em inferir uma norma moral a partir da mera constatação de um facto. É a falácia naturalista. Neste caso, o Gonçalo Portocarrero, assumindo que a forma natural de adopção é por um casal heterossexual, deriva daí a regra de que só estes casais devem poder adoptar. Isto faz tanto sentido como concluir que a violação é moralmente aceitável, ou que temos a obrigação moral de comer comida crua, apenas porque na natureza é assim que as coisas acontecem. A justificação normalmente invocada é que nem tudo na natureza é moralmente relevante, mas alguns aspectos da natureza são. Infelizmente, isto apenas substitui a falácia naturalista pela falácia da petição de princípio, continuando a faltar a justificação para decidir que este implica restrições morais. Seja por onde for, não se justifica restringir a adopção a casais heterossexuais só porque, biologicamente, é necessário os dois sexos para fazer um filho. Entre outras coisas, tal salto de fé implicaria ser também imoral a adopção por um casal infértil.

Além disso, a premissa do Gonçalo é falsa. Ridícula, até. Não há nenhuma “adopção natural”. Ocasionalmente, pode acontecer a cadela amamentar um gatinho ou coisa do género mas, na natureza, há uma forte pressão selectiva contra o investimento em prole alheia, mais forte ainda do que contra o suicídio. A adopção é uma invenção humana, nada natural, que só se tornou prática generalizada recentemente e apenas em algumas culturas.

O argumento invoca também premissas como «Se a adopção tem por modelo a família natural» e «Se se entende que se deve proporcionar ao menor uma família análoga à que o gerou». Mas não há razão nenhuma para assumir isto. O problema fundamental é decidir o que é melhor para a criança. Dada uma criança sem os pais biológicos, a viver numa instituição, e um conjunto de candidatos para a adoptar, é necessário avaliar qual a melhor opção para a criança. Segundo o Gonçalo, «A questão não pode ser equacionada em termos casuísticos ou sentimentais, mas em função do fim a que tende a adopção: facultar uma verdadeira família à criança desvalida.» Mas não é bem isso. O propósito da adopção é dar à criança o melhor ambiente possível. Isso tem mesmo de ser avaliado caso a caso, e não conforme uma definição arbitrária de “verdadeira família”.

Mas numa coisa dou razão ao Gonçalo. Há mesmo aqui «Um Mal Maior Contra o Bem do Menor». Só que não é a homossexualidade nem a adopção “não natural”. O mal maior é o crédito que se dá a preconceitos bacocos só porque têm origem religiosa.

1- Real Associação do Médio Tejo, Um mal maior contra o bem do menor, via perspectivas.

sábado, dezembro 24, 2011

Caridadezinha.

No post sobre o conto do César das Neves mencionei, de passagem, o problema de «adoçar [os] males com pós de caridadezinha para evitar a chatice de os corrigir». Em resposta, o Nuno Gaspar criticou aos ateus a falta de «engajar-se com os miseráveis, os mais frágeis, os deficientes»(1), e o João Silveira citou a história da viúva, no evangelho de Marcos (12, 41-44), que dá as duas únicas moedas que tem e, por isso, o acto dela vale muito mais do que o muito dinheiro que os ricos possam dar, pelo sacrifício que isso representa.

Hoje vemos a sociedade de uma forma única na história. Consideramos que todas as pessoas são iguais perante a lei; que não há escolhidos dos deuses, com mais direitos do que os outros. Reconhecemos a todos alguns direitos inalienáveis, independentes de serem nossos “irmãos”, da nacionalidade, sexo ou religião, ou até de gostarmos dessas pessoas. E compreendemos que a sociedade é um contrato colectivo para o qual todos devem contribuir. Isto tem duas consequências importantes. Leva-nos a encarar a injustiça, a miséria e a doença como problemas a resolver. Não são fatalidades nem desígnios misteriosos, mas sim algo que se deve prevenir ou remediar. E leva-nos a assumir, entre todos, o dever de os resolver. Não é por piedade que respeitamos os direitos dos outros, nem por caridade que pagamos os impostos, nem por santidade que toleramos diferenças ideológicas ou culturais. É por dever e decência. É o que esperamos de qualquer cidadão como parte do seu papel na sociedade.

O cristianismo tem uma abordagem muito diferente. Assenta na premissa de que toda a existência terrena é um apenas um teste. Deus dá-nos vida, decide se nascemos ricos ou pobres, inteligentes ou burros, feios ou bonitos, e nós temos de viver assim até que ele nos tire de cá. Nem podemos sair mais cedo, porque é pecado. Conforme o nosso desempenho durante estas décadas, teremos uma eternidade de alegria ou de sofrimento. Por isso, o que importa é a devoção de cada um, porque as circunstâncias são só cenário. Como comentou há tempos o Miguel Panão, «A grande diferença entre nós está [...] nas diferentes visões de uma cultura da ressurreição e cultura da morte. A implicação de uma criança que morre de um mal natural é mais problemática do ponto de vista da cultura da morte do que de uma cultura da ressurreição. [Se] em Deus a vida continua, onde está a morte?» (2).

Isto tem também implicações importantes. A injustiça social, o sofrimento dos mais pobres, a doença ou a discriminação não são problemas a resolver. São a vontade de Deus, que cria pessoas em diferentes condições sociais, com diferentes sexos, nacionalidades, religiões e cores, e se o faz assim alguma razão terá. Nem se pode assumir que somos moralmente iguais e que, por exemplo, uma mulher pode dirigir a Igreja Católica ou celebrar missas. Portanto, aquilo que se faz por terceiros conta por quanto custa fazer e não pelo bem que faça aos outros. Isto vê-se claramente por todo o cristianismo.

A passagem da bíblia que o João Silveira citou enaltece a dádiva da viúva pelo sacrifício desta e não pelo parco benefício que as duas moedas tenham trazido a alguém. Perante qualquer desgraça, os cristãos rezam pelas vítimas. Para quem esteja soterrado nos escombros ou à deriva num bote salva-vidas, as vigílias, orações e promessas dos crentes não servem de muito. Mas o que conta é a devoção de quem reza. Afinal, se a vida continua em Deus, pouco importa que morra gente em terremotos, afogada, ou o que calhar. O que importa é que alguém se sacrifique por isso. Jesus é o melhor exemplo. Podia ter feito tanto por tanta gente, como ensinar noções básicas de medicina preventiva, abolir a escravatura, condenar o racismo e discriminação sexual ou defender a liberdade de crença e opinião. Nos séculos que se seguiram, isto teria poupado muito sofrimento a muitos milhões de pessoas. Mas não. Umas bem-aventuranças, umas parábolas irrelevantes, e depois deixou-se matar. Morreu por nós e deixou tudo na mesma.*

A consequência disto é que a caridade cristã não se preocupa muito em resolver problemas e nem sequer é acerca de quem precisa. É uma caridade umbiguista, focada no sacrifício do caridoso em detrimento das carências do necessitado. A Madre Teresa é louvada pela sua dedicação aos pobres, por ter segurado a mão de quem morria e amado quem era miserável. Se tivesse organizado saneamento básico, campanhas de vacinação ou de medicina preventiva, salvando muita gente em vez de os amar até à morte, os cristãos não lhe ligavam nenhuma. Mas sacrificou-se e sofreu com quem sofria e, por isso, é uma santa.

Esta divergência ideológica faz-me suspeitar que estaríamos melhor sem a caridade cristã. Em vez da esmola e do esforço despendido em gestos simbólicos, era preferível dedicarmo-nos a resolver os problemas da sociedade de uma forma justa e eficaz. Não por caridade ou pena dos pobrezinhos, mas porque é dever de todos mitigar as injustiças cometidas pela natureza. Uma natureza que não nos ama nem nos está a testar, mas que é indiferente ao que fazemos ou sofremos. As crenças na vida depois da morte, num deus bondoso, no valor do sacrifício pelo sacrifício e na premissa pouco pragmática de que o “amor” resolve tudo só atrapalham. Na melhor das hipóteses, levam a menosprezar os problemas e a avaliar incorrectamente as soluções. E, na pior das hipóteses, servem de desculpa para se aproveitarem da miséria alheia.

* Excepto para os judeus, que muito se tramaram com a desculpa de terem morto o deus dos cristãos.

PS: Boas festas.

1- Comentários em ”Conto de Natal”
2- Comentário em Bondade

sexta-feira, dezembro 23, 2011

A cópia privada.

O PS vai propor alterações ao Código do Direito de Autor para «atualizar os conceitos legais», «garantir aos titulares de direitos uma razoável e justa compensação pelos danos sofridos pela prática social da cópia privada» e reforçar o «combate às várias formas de pirataria»(1). Isto preocupa-me.

Preocupa-me, enquanto cidadão, que o Estado se intrometa na nossa vida privada para defender alguns interesses económicos. Esses “danos sofridos”, na pior das hipóteses, são apenas a perda de oportunidades para vender. Não se justifica legislar só por isso. E estas leis, que colocam actos privados de cópia e partilha sob a alçada de tribunais, advogados e polícia, criam um desequilíbrio injusto entre empresas e cidadãos. Mesmo que a lei ainda conceda ao cidadão alguns direitos de privacidade e de liberdade para usar o seu equipamento, para se exprimir e para partilhar informação, a dificuldade de defender esses direitos em tribunal contra quem tem muito mais dinheiro para processos e advogados torna esta legislação numa ferramenta de chantagem, de censura e de extorsão.

Preocupo-me também como autor. Não sou um autor que a Sociedade Portuguesa de Autores reconheça, porque essa, sendo uma sociedade de cobrança, exige que os autores recebam por seu intermédio. Como eu ganho por contrato e não exijo pagamento se ninguém me encomenda o trabalho que faço, a SPA não deve querer nada comigo. Mas o que crio – material para aulas e avaliações, artigos, dissertações, software e até posts no blog – é, à luz desta lei, obra original e protegida. Nos tempos do analógico, a concessão de monopólios financiava a infraestrutura de produção, distribuição e revenda necessária para o acesso a obras publicadas. Agora, a adaptação das leis «às novas realidades do mundo digital» tem o efeito contrário. Cada vez mais, a lei é um empecilho. Se um autor quer vender o seu trabalho directamente ao público, não só enfrenta uma máquina publicitária subsidiada por estes monopólios, como ainda é forçado a contribuir para a sustentar. Por exemplo, se eu quiser distribuir o que criei em CD, cobram-me um imposto para dar aos Tonys Carreira e afins. Este projecto de lei vai estender essa taxa aos discos rígidos, pendisks e cartões de memória. Até pelas fotografias das férias terei de pagar às editoras discográficas. E ainda me dizem que é para eu não “sofrer danos” por copiarem o que eu publico.

Finalmente, como professor acho isto tudo uma péssima ideia. Esta legislação assume que a cultura e a criatividade têm de ser protegidas restringindo o acesso, cobrando licenças e controlando a distribuição, mas isso é o pior que se pode fazer à cultura. A cultura protege-se divulgando-a o mais possível e integrando-a nas nossas formas de comunicar. E a criatividade precisa de acesso à cultura. Ninguém cria a partir do nada, e não são só as pessoas com dinheiro para pagar licenças que devem poder desenvolver e exprimir a sua criatividade. Isto transmite mensagens erradas às gerações mais novas. Que partilhar é imoral, que a cultura é um bem de consumo, e que quando compramos algo não ficamos seus donos, apenas detentores de uma licença provisória até alguém decidir cancelar o DRM. Pior ainda, isto ensina que a lei não merece respeito, ao criminalizar algo tão inofensivo e vulgar como copiar um ficheiro. Se estas leis fossem levadas a sério, quase não haveria ninguém fora das cadeias que soubesse ligar um computador.

1- TEK, PS avança com proposta para reforçar direitos de autor

terça-feira, dezembro 20, 2011

“Conto de Natal”

No de Dickens, Ebenezer Scrooge transforma-se radicalmente. Aprende quanto pode fazer por si e pelos outros e, com isso, torna-se numa pessoa melhor. O João César das Neves não é um Charles Dickens, obviamente, mas também não era preciso fazer o oposto. Num texto apressado, conta como um tal André lida com a crise: «Queres saber o segredo da minha calma? Queres saber como consigo não ficar desesperado? É que o meu Pai é dono disto! […] Estou a referir-me Àquele a quem digo todos os dias 'Paí Nosso', que é dono de tudo o que tenho e sou, de tudo o que vejo e existe no universo. Nada me preocupa porque Deus é dono da minha vida. A confiança em Deus é a melhor coisa da existência.»(1) A mensagem parece ser que, ao contrário do que se passou com Scrooge, o melhor para nós é aceitar tudo como é: «esta crise tem me feito muito bem. Ao princípio assustou-me, mas um dia percebi que acima dela está Deus [e] desde que Lhe entreguei, mais uma vez, a minha vida senti uma liberdade e alegria profundas [...] 'Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus' (Rm 8, 28)».

Além de promover a bovinidade, a historieta salienta algumas inconsistências do fatalismo cristão. O André não se preocupa porque o seu “Pai” está encarregue de tudo, mas também não estranha que o “Pai” trate os filhos de forma tão injusta. É difícil imaginar que um pai fique indiferente ao filho que passa fome numa cubata na Somália enquanto outro vive luxuosamente num chalé suíço. Pior, esse tal André diz-se descansado da vida porque «se ao Seu Filho Deus deixou que nós O crucificássemos, tudo o que eu sofrer é pouco». Chiça. Felizmente sou ateu e não acredito ser filho de um pai desses. Senão é que andava aterrorizado.

Isto de aceitar a injustiça com passividade e enaltecer o sofrimento absurdo já é treta antiga. Vê-se na história de Jó, na desculpa de que Jesus se sacrificou para nos “redimir”, na adoração dos mártires e no adoçar dos males com pós de caridadezinha para evitar a chatice de os corrigir. Como se o principal problema da pobreza fosse não ter uma sopa quente no Natal. Como somos intuitivamente sensíveis à injustiça, é preciso este barrete. Quem se diz infalível, vive num palácio e veste roupa bordada a ouro tem de louvar a humildade e a pobreza. Ponham a vida nas mãos deste deus, dizem, e dêem graças pelas migalhas que vos calham. Sobretudo, portem-se bem.

Mas nós somos pessoas, não somos ovelhas, e esta crise não é obra dos deuses. Não é o nosso destino nem um teste para ganhar uma nuvem mais fofa no céu. É um problema humano, de actos e de atitudes. É o problema de estar tudo a mando de Scrooges e não de um “Pai” que nos ama a todos. E nota-se nos detalhes. Quem enaltece os mártires com histórias da carochinha não se martiriza a si próprio; quem elogia a pobreza não vive na miséria; e quem exorta a que cada um aceite, sorridente, a sua condição goza geralmente de condições melhores do que as dos outros. É a estes que convém a crença generalizada do destino como obra divina em vez de tarefa humana. Caso contrário, teriam de se assumir responsáveis por terem ficado com a maior parte daquilo que é de todos.

A crença pessoal num deus, na vida depois da morte ou afins é um direito de cada um e não faz grandes estragos. Mas, à volta disso, há sempre quem invente religiões para controlar os outros, disfarçar injustiças e ir mantendo tudo como lhes convém. Promessas de paraíso além-morte, o pai celestial que criou o universo mas precisa que se gaste dinheiro em igrejas imponentes e luxos para os seus representantes, e a ideia de que os miseráveis têm muita sorte por sofrer, são tudo embustes. O ateísmo tem a grande vantagem de nos inocular contra tais aldrabices, e encorajar-nos a enfrentar os fantasmas dos natais futuros como algo que temos o dever de tornar tão bom quanto pudermos. Se o André da historieta não se preocupa, isso não é sinal de fé. É sinal de irresponsabilidade.

1- João César das Neves, Conto de Natal

domingo, dezembro 18, 2011

Treta da semana: Transcomunicação Instrumental.

O Blog de Espiritismo tem uma entrevista com François Brune, um «conhecido estudioso e teólogo francês [...] especialista em misticismo oriental e ocidental, sacerdote ordenado em 1960 […] Graduado pela Sorbonne em Latim e Grego, com cinco anos de estudos de pós-graduação em Filosofia e Teologia no Instituto Católico de Paris e um ano adicional na Universidade de Tuebingen, na Alemanha, ele possui os mais altos graus de Teologia, Grego e Hebraico Bíblico, Hieróglifos Egípcios e Babilônicos da Assíria. E é, ainda, pós-graduado em Escrituras Sagradas pelo Instituto Bíblico de Roma.» É também o autor do livro “Os Mortos Nos Falam” e «é desde 1987 considerado um observador atento da investigação psíquica e da chamada Transcomunicação Instrumental (TCI).»(1)

Esta curiosa disciplina «estuda a comunicação entre vivos e mortos através de aparelhos eletrónicos como por exemplo rádio, televisão, telefone e computador»(2). É muito útil, esta capacidade de aparelhos electrónicos transmitirem comunicações de pessoas falecidas. Por exemplo, e infelizmente, sem algo como o computador e o YouTube os meus filhos hoje não teriam podido ver e ouvir a Cesária Évora a cantar.

Mas os aficionados do espiritismo propõem algo mais assombroso, se bem que menos melodioso. A moderna TCI começou com Friedrich Jürgenson, em 1959, quando este gravou cantos de pássaros e, ao ouvir a gravação, notou que a fita começava com umas vozes gravadas e só depois tinha a sua gravação dos pássaros. Não lhe ocorrendo que alguém pudesse ter usado a fita antes e ele tivesse gravado os pássaros por cima, concluiu imediatamente que se tratava de espíritos do outro mundo, comunicando pela modulação cuidadosa do magnetismo na fita do gravador (3).

Como qualquer técnica paranormal que se preze, a TCI dá para tudo. Segundo François Brune, «a maior parte das vezes comunicamo-nos com os mortos, que vivem agora numa outra dimensão. Mas por vezes temos tido contactos também com extraterrestres, creio eu, até porque muitos pesquisadores o afirmam. Parece-me também possível o contacto com energias, simplesmente». O testemunho é sempre a evidência mais importante para a teologia, pelo que, se os pesquisadores afirmam, então certamente que é verdade. Mortos, extraterrestres, ou até energias, tudo fala na gravação. Basta um pouco de imaginação. Ou, como se diz na gíria, fé.

Para que «descubra o Espírito», a ciência «deve adaptar-se a uma realidade que lhe escapa neste momento. Podemos fazer uma comparação: se eu for à pesca, para apanhar peixes tenho de lançar a linha e tenho de adaptá-la à posição do peixe. Não posso pedir ao peixe que siga o atalho que corresponde à posição da linha! As linhas são as teorias científicas para “apanhar” a realidade. […] É, pois, necessário que a Ciência aceite mudar esses paradigmas» Também se podia fazer a comparação com gambuzinos em vez de peixe, mas acho que nem vale a pena.

No entanto, já tive uma experiência destas, e posso dar o meu testemunho. Os miúdos nasceram quando eu estava a escrever a dissertação, o que me levou a fazer muitas noitadas. Numa noite quente de Verão, enquanto escrevia, bocejava e suava, comecei a ouvir a Alanis Morissette a cantar “You oughta know”. Desliguei a ventoinha, pensando em quem seria o vizinho maluco a ouvir música tão alto àquelas horas, e a rapariga calou-se. Quando liguei a ventoinha, recomeçou a cantoria. O zumbido do aparelho, o adiantado da hora e as noites mal dormidas conspiraram para criar uma espantosa ilusão auditiva. Parvo, fui-me deitar e perdi a oportunidade de uma carreira na comunicação paranormal com cantoras canadenses. Seria até mais interessante do que falar com mortos, a julgar pelas banalidades que estes debitam.

A quem quiser saber mais sobre isto, recomendo o artigo do James Alcock, ”Electronic Voice Phenomena: Voices of the Dead?” Tem até um exemplo de uma gravação misteriosa na qual se ouve uma alma do outro mundo a dizer fshsh fsshsh. A alma de um creeper, talvez...

1- Blog de Espiritismo, Padre François Brune, autor de "Os Mortos Nos Falam"
2- Wikipedia, Transcomunicação instrumental
3- Wikipedia, Electronic voice phenomenon

quinta-feira, dezembro 15, 2011

Mais disparates...

Christian Noyer, director do banco central francês, diz que as agências de notação deviam baixar a classificação da dívida britânica antes da francesa porque o Reino Unido tem «mais défice, a mesma dívida, mais inflação, menos crescimento»(1). Até pode ter esses problemas todos, mas o Reino Unido tem uma grande vantagem em relação à França. Pode imprimir as libras que quiser. Os credores sabem que, se o Reino Unido criar muitas libras, a moeda vai desvalorizar. Mas o valor nominal do empréstimo está garantido, e a inflação não é um problema que afectará apenas o credor; será um mal distribuído por todos. A França está à mercê do Banco Central Europeu, cuja prioridade é manter a inflação a 2% nem que destrua o Euro no processo. Neste momento, com a política kamikaze da austeridade, o Euro é um grande risco. Vê-se o mesmo efeito nas taxas de juro da dívida soberana da Finlândia e da Suécia, por exemplo (2).

É fácil de perceber que, se o banco central não empresta dinheiro aos Estados, assim que alguma coisa corre mal está tudo tramado. Não há pensamento positivo que convença “os mercados” a ter confiança numa coisa dessas.

1- BBC, French banker says UK should be downgraded first
2- Krugman, The Euro Curse, e também Reuters, Gilts safer bet than Bunds for first time since 2009 e Bloomberg, Sweden is Safest as Crisis Upends Bond Market

domingo, dezembro 11, 2011

Treta da semana: o “Coelho da Merkel”.

Num blog do Expresso, o Tiago Mesquita escreveu que «A subserviência do nosso Primeiro-ministro e da tropa instalada neste miserável governo à chanceler alemã e sua agenda privada só não se torna mais escandalosa porque é, em certa medida, um traço distintivo da nossa nacionalidade, uma característica tipicamente portuguesa»(1). Tenho visto várias vezes esta ideia de que o nosso governo está a instituir políticas de austeridade com grande empenho por mera subserviência ou parolice. É evidente que as medidas recessivas são um disparate, tal como a conversa de que temos de ficar com menos salários e pensões, ou trabalhar mais horas, porque andámos a viver à grande e a esbanjar dinheiro. Não foram os trabalhadores e os pensionistas que afundaram a economia, não é cortando nos rendimentos que o PIB vai crescer e se todos os países desatam a poupar ninguém vai conseguir pagar o que deve. Mas é um erro perigoso julgar que nos estamos a afundar por os políticos serem parvos. É precisamente o contrário.

Os próximos anos vão ser desnecessariamente difíceis para a grande maioria. Os salários vão baixar, o desemprego vai aumentar e muitos negócios vão falir porque haverá menos procura por esses bens ou serviços. Mas para aquela pequena minoria que vive de ter muito dinheiro e apostar as dívidas dos outros, vão ser anos de grandes oportunidades. A privatização de empresas públicas, o spread crescente das dívidas soberanas, os empréstimos para recapitalização dos bancos, a deflação causada pela austeridade, entre outros, trarão muito lucro a quem tenha capital e contactos para beneficiar disto. Como o Passos Coelho. Nestes últimos anos foi director, administrador, presidente ou vice-presidente de várias empresas. Catorze em sete anos, se não me enganei a contar (2). Ser administrador de uma empresa durante sete anos sugere alguma competência administrativa. Mas de catorze, só sugere bons contactos.

É isto que se passa pela Europa. Na Itália trocaram o governo eleito – mau, mas eleito – por empregados dos banqueiros. Na Grécia quase houve um referendo, mas logo se deixaram de democracias. A Irlanda endividou-se até às orelhas para pagar as apostas falhadas dos bancos. E, por cá, somos “administrados” como se vê. Cortes, austeridade, emagrecimento e aumento da competitividade para, supostamente, se atingir o objectivo impossível de todos aumentarem as exportações sem ninguém importar. Economicamente, é óbvio que é a solução errada para o problema errado (3). Mas isto nem é economia, nem democracia, e muito menos parvoíce. É uma burla tão grande, tão arrojada e tão óbvia, que muita gente até prefere acreditar que os políticos são parvos só para não ver o barrete que enfiam.

1- Tiago Mesquita, Obama tem um cão de água português. Merkel tem um Coelho
2- Tretas.org (sem afiliação a este blog) Pedro Passos Coelho
3- Por exemplo, Krugman, Killing the Euro; O'Rourke, A Summit to the Death) mas ; Haldane & Madouros, What is the contribution of the financial sector?; Sachs, Jeffrey Sachs: 'That's not a free market, that's a game'.

sábado, dezembro 10, 2011

Interlúdio: como (não) minar ferro.

Especialmente dedicado aos fãs, mas quem não conhecer este jogo e não tiver paciência de ver tudo, pode saltar para os 7m30s e ver a parte dos creepers. Ssssssss....

sexta-feira, dezembro 09, 2011

Compatibilidade, agora com aspas.

No De Rerum Natura, o Carlos Fiolhais publicou há dias um texto sobre ciência e religião. É pena que não tenha abordado este tema com o rigor com que normalmente escreve. A ciência, começa, «trata do conhecimento do mundo natural» enquanto a religião «trata da relação do homem com o “transcendente”, com o qual ele toma conhecimento através da “revelação” ou “graça”.» (1) Pôs as aspas, mas não tocou no problema de sabermos se existem tais coisas como as religiões assumem, cada uma à sua maneira e sem consenso. Além disso, as religiões também dizem conhecer o mundo natural. Quase todas as religiões têm alguma versão de criacionismo, relatando como e porquê o universo foi criado, e alegações acerca do nascimento de Jesus, milagres ou a assunção de Maria não são estritamente sobre o “transcendente”. Têm implicações acerca do mundo natural também. E, em rigor, também não podemos dizer que «Na nossa cultura, [o transcendente] é o Deus da Igreja Católica.» O máximo que se pode dizer é que muita gente acredita que seja, mas daí a ser verdade ainda falta um bom bocado.

Depois, aponta que a ciência e a religião têm, em comum, «a procura de um sentido», o que também é pouco rigoroso. A ciência é uma procura por modelos que correspondam aos aspectos da realidade que visam modelar. É verdade que podemos encontrar sentido nisso, tal como podemos encontrar sentido na pintura, na literatura, no desporto, na família ou em qualquer aspecto da nossa vida. Até numa religião. Mas as religiões, que são muitas, não são necessariamente uma procura. Algumas, como o hinduísmo, deixam em aberto as questões fundamentais e toleram abordagens diversas. Outras, como o catolicismo ou o cristianismo evangélico, são mais dogmáticas e, por livros sagrados, inspiração divina ou líderes infalíveis, declaram que o essencial já está encontrado. E ai de quem procurar alternativas.

O Carlos Fiolhais aponta que «a observação e a experimentação permitem decidir se uma dada hipótese a respeito do mundo está errada. O reconhecimento do erro logo que haja evidência suficiente para ele tem assegurado à ciência uma notável capacidade de progressão ao longo dos tempos». Mas, depois, alega que «a religião não assenta no mesmo tipo de racionalidade, nem na observação e na experimentação, mas sim na fé, a crença que é obtida pela “graça” ou “revelação”» e que «existem diversas religiões, com diferentes verdades, cuja unificação é na prática impossível». Não me parece que recusar admitir a possibilidade de erro e o hábito de chamar “verdades diferentes” a alegações contraditórias mereça o rótulo de “racionalidade”, seja de que tipo for. O panteísmo hindu afirma que todos somos Brahman, enquanto o monoteísmo (triteísmo?) católico diz sermos criação do Pai-Filho-e-Espirito-Santo mas separados deste(s). Parece-me que o mais racional é chamar a isto crenças e admitir que não há razão objectiva para as considerar verdadeiras. Se chamamos a ambas “verdades” ficamos a precisar de uma palavra nova para designar a verdade a sério.

Depois, o Carlos Fiolhais parece confundir correlação com causalidade quando afirma que «Importa sublinhar que a ciência moderna surgiu no contexto do pensamento cristão e católico. Não se deu no quadro cultural do judaísmo ou do islamismo, nem no quadro de outras religiões». Antes da maturação da ciência nos dar alternativas persuasivas, todo o mundo estava dominado pelo pensamento religioso. O instante exacto em que a ciência começou é arbitrário. Há com certeza bons candidatos entre os arquitectos egípcios, filósofos gregos, engenheiros romanos e matemáticos árabes. Mas, onde quer que se ponha o “surgir” da ciência moderna, calhará sempre “no contexto” de uma religião qualquer. Ter calhado no cristianismo não nos diz se isso foi uma vantagem, desvantagem ou irrelevante. À partida, isto é tão importante como os primeiros cientistas serem todos homens, viverem em climas moderados ou saberem latim.

Finalmente, o «facto de que se pode ser crente e ao mesmo tempo cientista» e a alegação de que basta «abandonar a ideia de que a Bíblia é um livro de ciência» para que a ciência seja compatível com “a religião”. Isto não serve. A incompatibilidade não está na pessoa. Está no método. A ciência progride pela correcção de erros e, por isso, não pode aceitar como verdadeira uma proposição que não se possa testar ou à qual falte evidências que o justifiquem. Não me parece que o Carlos Fiolhais considere compatível com a ciência a alegação de que, pela “revelação” e fé, eu possa saber verdades transcendentes sobre os duendes invisíveis que habitam os núcleos dos átomos ou as fadas da quinta dimensão. A possibilidade um cientista acreditar nestas coisas – ou no criacionismo, ou nas pulseiras com hologramas – também não prova que estas crenças sejam compatíveis com a ciência.

Estes argumentos pela compatibilidade entre religiões e ciência mostram bem como estas são incompatíveis. Porque, invariavelmente, para argumentar isto é preciso abdicar do rigor e da exigência de fundamento que caracterizam a ciência.

1- Carlos Fiolhais, EM BUSCA DE SENTIDO: CIÊNCIA E RELIGIÃO

segunda-feira, dezembro 05, 2011

“ludwigs asquerosos”

Alguém assinando “Nuno Pereira , Acapor” comentou isto no Público, a propósito do vandalismo electrónico do site do PS:

«Do que está o PS á espera para propor ao Governo a erradicação de todo o tipo de criminosos e piratas da internet portuguesa? Do que está o Governo á espera para erradicar "partidos pirata", tugaleaks, anonymous adolescentes ou adultos, de paulas não sei quantas e ludwigs asquerosos cujas mentes apenas servem para desestabilizar a nossa muito fragilizada sociedade uma vez que são eles os mentores da criminalidade informática que aterroriza o nosso País? Esses animais precisam de ser punidos exemplarmente. Senão é o descalabro declarado. Quem manda em Portugal afinal?»(1)

Sinto-me honrado por este comentador me agrupar com o partido pirata e “as paulas”, que presumo ser a Paula Simões (2). Também concordo com os princípios defendidos pelo Tugaleaks (3), se bem que não conheça o suficiente deste grupo para avaliar o que fazem. E, se for mesmo o Nuno Pereira da ACAPOR, fico satisfeito por ter causado uma impressão tão forte, e aproveito para lhe deixar um abraço, na esperança de causar ainda mais asco.

Mas não me parece competência legítima do governo erradicar partidos políticos nem impedir que os cidadãos os formem. E erradicar adolescentes anónimos não é muito prático. Quanto a ser mentor de criminosos, isso depende do que consideramos crime. Por exemplo, quando distribuíram os emails da ACAPOR, eu escrevi que «Concordo que a ACAPOR se queixe de quem lhes copiou e partilhou a correspondência, violando a privacidade das pessoas envolvidas.»(4) e até defendi a imoralidade desse acto no Torrentfreak, onde muitos manifestavam aprovação por esta violação dos direitos de pessoas (5). Afinal, não considero que pessoas como o Nuno Pereira sejam «animais [que] precisam de ser punidos exemplarmente», mesmo que queiram ganhar dinheiro à custa dos direitos dos outros.

Também não concordo com esta moda dos ataques indiscriminados. Há dias divulgaram dados pessoais de uma centena de polícias sem haver razão para castigar aqueles indivíduos em particular. Mais útil, e justo, seria divulgarem os detalhes, as ordens e os responsáveis por mandar para as manifestações polícias à paisana bater na polícia de choque (6). No entanto, ao contrário do que alega o Nuno Pereira, não é esta «criminalidade informática que aterroriza o nosso País». Mais preocupante é o desrespeito, irresponsabilidade e abuso da parte de quem tem o poder. Como o chefe da PSP que tinha a lista com os contactos dos polícias num documento Word no seu portátil, provavelmente numa pasta partilhada e sem firewall (7), à mercê de qualquer pessoa com conhecimentos básicos de informática. Desculpam-se dizendo que os “piratas” “invadem” os computadores, mas quem deixa o computador configurado para dar acesso a qualquer um também devia ser responsabilizado.

Nestas coisas não sou mentor de criminalidade nenhuma. Mas, a julgar pela conversa que tive com o Nuno Pereira, para ele o crime mais asqueroso é o de lesa-videoclube. É isso que está a «desestabilizar a nossa muito fragilizada sociedade». Não é a ganância, nem os lobbies, nem os abusos de poder, nem a corrupção, nem a burocracia opaca, nem as leis feitas à medida de interesses como os do Nuno. Claro que não. O grande problema é a privacidade dos cidadãos e a partilha gratuita de ficheiros.

1- Público, Site do PS atacado, Sócrates é o alvo (primeiro comentário, último da lista). Obrigado pelo email com a deliciosa notícia.
2- Blog da Paula Simões.
3- Tugaleaks, Sobre
4- Treta da semana (passada*): A ACAPOR, a partilha e a pirataria.
5- Comentários no Torrentfreak, Movie Rental Outfit Hacked, Emails Leaked, Redirected to The Pirate Bay
6- 5 Dias, O DILEMA DO MACEDO: DEMITIR OU DEMITIR-SE!, via Esquerda Republicana
7- I Online, Chefe da PSP violou segurança e facilitou a vida aos piratas

domingo, dezembro 04, 2011

Treta da semana: pescoços de peixe.

O pescoço da girafa é provavelmente o mais famoso. É também interessante porque não há consenso acerca das pressões selectivas que o moldaram assim. Mas, ao contrário do que sugere o Mats, o problema não é que «Não se afigura possível que os evolucionistas construam um cenário cientificamente plausível para a origem quer do pescoço da girafa quer do seu complicado sistema de regulação da pressão sanguínea.»(1) O problema, como é comum nestas coisas, é que as características de cada espécie evoluem em conjunto e sujeitas a muitas pressões selectivas.

Há evidências de que as girafas usam o longo pescoço – e longas pernas – para chegar às folhas mais altas. Isto não quer dizer, ao contrário do que o Mats julga, que as girafas só possam comer folhas altas. «Se as girafas mais baixas morreram porque não conseguiram chegar aos ramos mais elevados, o que é que aconteceria às girafas bebés ou ainda em desenvolvimento físico?» As girafas mais baixas, ou bebés, comem folhas mais baixas, obviamente. O que acontece é que, se a altura maior permite acesso a mais comida, em média esses indivíduos terão uma vantagem sobre os outros. Passam menos fome, resistem mais em tempos de escassez, tornam-se mais corpulentos e têm mais probabilidade de deixar filhos.

Mas as girafas também usam o pescoço comprido para combater, especialmente os machos, para se equilibrar quando correm e para conseguir chegar ao chão(2). Podemos considerar até que a girafa, ao contrário de ter um pescoço grande, tem-no demasiado curto para o tamanho das pernas, o que a obriga a uma ginástica incómoda cada vez que quer beber água (3). A dificuldade em compreender a evolução da girafa – não só do pescoço, mas de toda a sua anatomia – vem de ser preciso testar hipóteses acerca de quais destes factores são os mais importantes. Isto é difícil, não só pela complexidade da interacção de todos estes elementos, anatómicos e evolucionários, mas também pela complicação adicional de aquilo que é mais importante para as girafas hoje não ser necessariamente o mesmo que moldou a sua evolução nos últimos milhões de anos. Como os biólogos exigem um bom fundamento para qualquer modelo, isto não pode ser despachado com dois pais nossos e uma avé Maria.

Para o Mats, isto (e quase tudo) é muito mais simples. Foi o deus dele. E o Mats até sabe porquê. Esse deus criou o pescoço da girafa assim porque desta forma «Refuta o naturalismo ao mostrar que o pescoço nunca poderia ser o resultado de forças naturais». Esta hipótese parece perfeitamente razoável até ao momento em que se pensa nela. Ou que se pensa, seja em que for.

Primeiro, não há evidências que justifiquem concluir, em definitivo, que algo “nunca poderia ser o resultado de forças naturais”. Se um fenómeno não encaixa na nossa compreensão das forças naturais talvez se justifique concluir, provisoriamente, que tem origem sobrenatural. Durante muitos séculos foi isso que a biologia fez. Mas é incorrecto concluir que “nunca poderia ser” devido a forças naturais. Isso exige que já se saiba tudo o que há a saber acerca da natureza. Parece-me pouco modesto da parte do Mats presumir tal coisa, especialmente tendo em conta o que ele escreve acerca da biologia.

Em segundo lugar, o pescoço da girafa desenvolve-se e funciona de acordo com os processos naturais que compreendemos. É preciso válvulas especiais para manter a pressão sanguínea na cabeça, um coração mais forte, artérias mais resistentes e até compressão adicional nas pernas para compensar as diferenças de pressão num animal com seis metros de altura. Todos os problemas da estatura e anatomia da girafa são resolvidos por processos naturais. Não há nada de milagroso na girafa. Se o deus do Mats quisesse refutar o naturalismo devia ter criado fadas, dragões ou unicórnios. Para esse propósito, a girafa não serve.

Finalmente, e ao contrário do que o Mats alega, temos muitas evidências da evolução do pescoço da girafa por processos naturais. Não só pelo registo fóssil (4) e pelo seu parente vivo mais próximo, o okapi (5), mas também pelos vestígios que ainda persistem na anatomia da girafa. Um exemplo claro é o nervo laríngeo recorrente, que liga o cérebro à laringe mas passa sob as artérias do coração. Mesmo em animais como nós, de pescoço modesto, isto já implica uma volta considerável. Na girafa obriga a metros de nervo para percorrer meros centímetros. Nos peixes que foram nossos antepassados, o predecessor do nervo laríngeo ligava directamente o cérebro às brânquias, passando atrás dessas artérias. Mas como a evolução não tem inteligência, não prevê o futuro e depende da acumulação de pequenas mutações, o trajecto foi-se mantendo enquanto o pescoço evoluía e o coração se ia afastando do caminho mais curto. Ficou assim este legado, entre muitos, demonstrando claramente a ausência de um plano inteligente para a criação dos seres vivos.


Richard Dawkins Demonstrates Laryngeal Nerve of... por blindwatcher

1- Mats, O pescoço da girafa
2- Steven Novella, Giraffe necks
3- Craig Holdrege, The Giraffe's Short Neck
4- Mitchell, G.; Skinner, J.D. (2003). On the origin, evolution and phylogeny of giraffes Giraffa camelopardalis. Transactions of the Royal Society of South Africa 58 (pdf)
5- Wikipedia, Okapi

sexta-feira, dezembro 02, 2011

A (i)moralidade do free ride.

Numa discussão enterrada em comentários, o Wyrm e o João Vasco defenderam que a copiar de graça obras sob exploração comercial é imoral por ser free riding, aproveitar-se do investimento de outros sem dar qualquer contributo. Acrescentou também o João Vasco que, se é preciso ponderar vários direitos, há margem para discordar legitimamente acerca da moralidade da cópia: «Se admites que há dois pratos na balança e só é imoral quando um prato pesa mais que o outro, e que a tua percepção é que este pesa muito e o outro pesa pouco, é fácil discordar, basta ter a percepção de que aquele que dizes pesar pouco pesa bastante mais.»(1) Mas o problema é mais claro do que isto.

Vou assumir que as consequências de um acto são importantes para avaliar a sua moralidade, de tal forma que, se um certo acto é moralmente aceitável, então um outro acto que tenha as mesmas consequências será também moralmente aceitável. Se alguém defender o contrário, que dois actos com as mesmas consequências podem ter valores morais muito diferentes, tenho de exigir uma boa justificação para isso. À partida, não faz sentido que assim seja, e penso que o João Vasco, pelo menos, concordará com este princípio.

Isto ajuda a compreender porquê, e quando, é que o free riding é imoral. Penso ser consensual que cancelar o contrato com a EDP e, às escondidas, ligar a minha casa à rede eléctrica seria um exemplo de free riding e seria imoral. A questão interessante é porquê. Muitos dirão que isto é imoral porque, se muita gente o fizer, a distribuição de electricidade deixa de ser rentável. O problema económico do free riding é esta perda de um bem útil por haver poucos que o paguem. A premissa é que esta consequência faz pender o tal “prato da balança” e justifica classificar o acto de imoral. Mas este raciocínio tem de estar errado porque reconhecemos a qualquer pessoa o direito moral de não ter contrato com a EDP. Até mesmo se, no limite, o exercício desse direito por parte de muitas pessoas destruir a rentabilidade comercial da distribuição. Por isso, a imoralidade de usar electricidade da rede sem pagar tem de se justificar por outras consequências que distingam este acto do simples cancelamento do contrato. Neste caso, o problema moral vem de usar aquela electricidade, um bem escasso, aumentando os custos de produção e reduzindo a disponibilidade de energia para os outros que pagam por ela. É isto, e não o perigo do colapso do sistema, que torna este acto imoral.

Podemos aplicar os mesmos critérios à cópia privada de obras sob exploração comercial. É preciso pesar os “pratos da balança”, mas tanto o João Vasco como o Wyrm (e qualquer pessoa que conheço) reconhecem ser um direito moral de cada individuo não comprar um CD ou DVD, mesmo que o exercício desse direito por parte de muita gente leve as editoras à falência. Assumindo que dois actos com as mesmas consequências são moralmente equivalentes, só podemos considerar imoral o acto de copiar um DVD ou CD para usufruir gratuitamente da obra se esse acto tiver consequências para além de não se comprar o CD ou DVD. Mas, ao contrário do exemplo da electricidade, neste caso não há outras consequências. Copiar um CD, mp3, avi ou algo do género não consome nenhum bem escasso nem encarece a produção, nem tem qualquer efeito para além da eventual venda perdida. Por isso, não é razoável classificar de imoral a decisão de não comprar tendo copiado se aceitamos como moralmente legítimo não comprar sem ter copiado.

Além disso, se não comprar é um direito moral quer se copie quer não, visto as consequências serem as mesmas, então é imoral coagir a compra restringindo a cópia. Medidas como “regular” a cópia privada, proibir a partilha ou proteger pela lei as restrições digitais não são uma forma aceitável de resolver o suposto problema de free riding. Digo "suposto" porque não me parece ser um problema a exploração comercial de uma obra ficar em risco por cada um só comprar o que quer. Mas se o free riding puser em causa a criação de algo que queremos incentivar, então a solução mais justa é usar o dinheiro dos impostos. É o que se faz com muitos problemas deste tipo, desde bibliotecas públicas e escolas de arte até à defesa nacional. Imoral é tentar obrigar as pessoas a comprar, seja por via legal seja inventando obrigações morais.

1- O argumento moral.

quarta-feira, novembro 30, 2011

“Orgulhe-se”

Tenho visto uns cartazes a exortar que me orgulhe por o fado ser património da humanidade. Alguns até têm o Figo, sei lá eu porquê. Acho bem que o fado seja património de todos, mas não vejo porque me hei-de orgulhar, visto não ter contribuído nada para isso. O pouco fado que canto é no duche e, felizmente, nenhum representante da UNESCO teve o azar de me ouvir. Eu sei que estamos em crise, que anda tudo deprimido e que é um passatempo nacional sentir orgulho pelos feitos alheios. De futebolistas, fadistas, f-istas em geral. Mas esse orgulho sabe-me a falso. Prefiro tentar fazer eu coisas de que me possa orgulhar. Mesmo sendo mais modestas, ao menos o orgulho é autêntico.

Mas o pior deste “património da humanidade” é não ser nada disso. A ideia é boa, tomar «medidas que visem assegurar a viabilidade do património cultural imaterial, incluindo a identificação, documentação, pesquisa, preservação, protecção, promoção, valorização, transmissão, essencialmente através da educação formal e não formal, bem como a revitalização dos diferentes aspectos desse património»(1). Mas a prática dá-lhe um tiro. Em Setembro, a UE prolongou de 50 para 75 anos o monopólio sobre gravações musicais. A AFP aplaudiu porque, entre outros, os discos que a Amália Rodrigues gravou há cinquenta anos «estavam em risco de cair no domínio público»(2). Este “património da humanidade” continua a ser propriedade privada de alguns.

Bom era que declarassem toda a cultura património da humanidade. Que é o que devia ser. Mas a sério. Deixarem o agricultor plantar, o programador programar, o compositor compor e qualquer um partilhar os frutos da criatividade humana sem proibições legais só para proteger monopólios. No fundo, declarar de uma vez por todas que a cultura é mais importante como património de todos do que como fonte de lucro pelo licenciamento da cópia. Mas isso suspeito que terá de ser pela tecnologia e pela desobediência civil, porque para ser pela via legal era preciso democracia primeiro.

1- Comissão Nacional da UNESCO, Portugal, Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial
2- AFP, Notícias

domingo, novembro 27, 2011

Treta da semana: o primo Raposo.

No seu blog, no Expresso, o Henrique Raposo publicou uma mensagem de um primo que pergunta ao funcionário público se «está disponível para trocar o seu vínculo-vitalício-ao-Estado por um contrato-ameaçado-pela-falência-e-pelo-desemprego? Quer trocar 12 meses certíssimos por 14 meses incertos?»(1) Eu saía a ganhar. O salário médio, no sector privado, para cargos que exijam dedicação exclusiva e doutoramento é bastante melhor do que os menos de dois mil euros mensais com que fico depois de pagar os impostos e a multa por ser funcionário público. Quanto à incerteza, passei oito anos a bolsas anuais, durante mestrado, doutoramento e pós-doutoramento, só para me candidatar a este cargo. Quando finalmente consegui um contrato de trabalho, ainda fiquei cinco anos à experiência. E agora, mesmo tendo a nomeação definitiva, ainda não pertenço ao quadro da instituição onde tenho trabalhado e estudado estes últimos vinte anos. Quem apregoa por aí que na função pública está tudo garantido geralmente não faz ideia do que é exigido primeiro. Perguntem lá isso aos milhares de professores que vivem sem saber onde, ou se, vão ficar colocados no próximo ano.

Seja como for, esta proposta é demagogia da treta. Há muitos factores envolvidos, além do dinheiro. Eu escolhi esta carreira porque gosto do que faço e das pessoas com quem trabalho. Por outro lado, conheço pessoas no ensino secundário que trocariam de bom grado o público pelo privado só para não aturar a burocracia, os filhos mal criados dos outros e os pais que os mal criaram. A ideia do sector como um paraíso é uma deturpação grosseira e ignora que a diversidade de factores e situações dentro de cada grupo é muito maior do que a diferença média entre eles. O primo Raposo que não proponha isso a muita gente, porque pode bem arrepender-se com o que lhe sai. Mas o problema principal nestas comparações é descurar a diferença fundamental entre o sector privado e o sector público.

A economia privada emerge da tentativa individual de ganhar dinheiro como melhor se entende ou pode. Uns vendem o seu trabalho, outros compram trabalho e lucram vendendo o produto desse trabalho, e outros alugam os recursos que têm e vivem das rendas. Os detalhes são pouco relevantes. Tanto faz se é a vender revistas, cortar cabelos ou fabricar telemóveis. A motivação principal é o lucro e, mais coisa menos coisa, o que se faz em concreto é apenas um meio para esse fim. A função principal de uma fábrica, escola ou clínica, no sector privado, é a mesma. Dar dinheiro a quem lá investiu. Isto não é bom pelo resultado. Sem regulação ou redistribuição, cada um querer ganhar mais do que os outros resulta em grandes injustiças e sofrimento. Mas é bom por si, porque há um valor intrínseco na liberdade de negociar, ganhar dinheiro e enriquecer. São direitos que se deve garantir. E é por isso que o sector público é fundamentalmente diferente.

Se o primo Raposo se dedicar ao empreendedorismo na Somália, por exemplo, irá deparar-se com muitas dificuldades que não tem por cá. Graças aos funcionários públicos. É preciso infraestrutura, educação, segurança, justiça e mais uma data de outras coisas antes de se poder ter um sector privado funcional. Enquanto que o sector privado consiste em cada um seguir os seus interesses com os recursos que tem à sua disposição, o sector público é o que garante que o possam fazer e o que impede que descambe tudo em tiroteios de AK-47.

A história que nos contam é que estamos na miséria porque temos um Estado gordo e os funcionários públicos levam o dinheiro todo. A realidade é diferente. A percentagem de funcionários públicos em Portugal é menor do que nos EUA e metade da Suécia, Dinamarca, Noruega ou Finlândia (2). Os principais problemas da economia portuguesa são o baixo nível de educação (3), um sistema de justiça ineficaz, que só beneficia os ricos e aldrabões (especialmente os que são ambas as coisas) e, sobretudo, a corrupção institucionalizada, e legalizada, que a influência política do sector privado tem comprado. O problema não é gastar-se dinheiro público com pessoas que prestam serviços públicos. O problema é o imenso dinheiro público que vai para os bolsos daqueles privados que têm os contactos certos. A narrativa da gordura estatal e dos supostos privilégios da função pública é mais um barrete para tapar os olhos a quem está a ser roubado.

1- Henrique Raposo, Caro funcionário público, quer trocar?
2- Richard Posner, The Becker-Posner Blog, Too Many Government Workers?
3- Wall Street Journal, A Nation of Dropouts Shakes Europe

sábado, novembro 26, 2011

Equívocos, parte 13. A imagem de Deus.

Na sua série sobre os «Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo», o Alfredo Dinis continua a insistir que o «Equívoco fundamental [do ateísmo] é […] estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos». Este uso do termo “equívoco” faz-me lembrar as sábias palavras de Inigo Montoya. O Alfredo insiste também na falsa dicotomia de que o ateísmo «ou tece críticas inteligentes [...] à religião, e nesse caso só pode ser benéfico para ela; ou as suas críticas não são nem inteligentes, nem objectivas [e] não beliscam a religião.»(1) Omite a possibilidade mais importante, a do ateísmo desmascarar como infundada a confiança com que cada crente caracteriza o seu deus.

Neste episódio, o Alfredo Dinis aproveita novamente a ambiguidade da expressão “leitura literal” para induzir o equívoco de que os ateus estão «ao lado dos fundamentalistas cristãos que fazem uma leitura literal [da Bíblia]»(1). Consideremos o exemplo menos polémico do “Édipo Rei”, de Sófocles. Se por “leitura literal” se diz considerar todo o texto literalmente verdadeiro, então é óbvio que ninguém faz uma “leitura literal” desta peça dramática. É uma obra de ficção, baseada em lendas da época. Mas também não seria correcto ignorar o que lá está escrito e interpretar a obra como retratando a partilha de responsabilidade entre pais e filhos e a emancipação da mulher, fingindo que a morte de Laio e o incesto com Jocasta são apenas metáforas para o amor filial e a liberdade sexual. Ou qualquer outra coisa que se quisesse impor à leitura do texto. A intenção de Sófocles era que se lesse essa história como a tragédia que lá está descrita, e não como uma metáfora hippie sobre paz e amor.

É isto que os ateus fazem com a bíblia. O ateu não faz a “leitura literal” dos fundamentalistas. Eu não julgo que Deus tenha mesmo transformado a mulher de Lot num pilar de sal. Mas essa história não é uma metáfora para os perigos de comer sal em excesso, ou qualquer outra interpretação que agora possam dar-lhe para que Deus pareça mais bonzinho. É evidente que o autor queria transmitir literalmente o que escreveu: se desobedecem a Deus, por muito insignificante que seja a falta, ele lixa-vos com F grande. Principalmente às mulheres.

Segundo o Alfredo, «Dawkins e os demais autores do novo ateísmo ignoram que os diversos textos bíblicos foram redigidos em épocas, circunstâncias e culturas diferentes». Claro que não. Todos sabem que a Bíblia é uma selecção de histórias de muitos autores, com muitas ideias e prioridades diferentes. Se fosse tudo do mesmo, seria de esperar que Deus ou fosse o Kal-El ou o General Zod. Só essa diversidade explica que ora seja um ora seja o outro, conforme calha. Ao contrário do que o Alfredo defende, a divergência entre ateus como eu e crentes como ele não vem de julgarmos que a Bíblia é literalmente verdade nem de sermos ignorantes quanto à sua origem.

É precisamente pela diversidade cultural e ideológica dos seus autores que discordo do Alfredo quando afirma «que se deve ter em mente o sentido do conjunto dos textos bíblicos». Assumir um sentido conjunto para as histórias da Bíblia é que implica o erro de ignorar «que os diversos textos bíblicos foram redigidos em épocas, circunstâncias e culturas diferentes». Além disso, discordo também que «contextualização histórica e cultural» seja interpretar textos antigos de acordo com o que agora se considera aceitável numa religião, relegando para “metáfora” (de quê, nunca é claro) tudo o que pareça moralmente reprovável ou factualmente implausível, e retendo apenas o que for aceitável por critérios modernos. A «contextualização histórica e cultural» é precisamente o contrário. É ler Sófocles como Sófocles pretendia, e dar aos textos da Bíblia o significado que os seus respectivos autores lhes queriam dar.

Mas a divergência mais fundamental é outra, e resulta também de um equívoco. Escreve o Alfredo que «A imagem de Deus que os novos ateus recolhem da Bíblia baseia-se em passagens do Antigo Testamento nas quais Jahvé é descrito com traços vingativos e cruéis [… mas …] há que considerar que a imagem de Deus que se encontra na Bíblia é um conjunto de imagens sucessivas cujo pleno significado se atinge somente em Jesus Cristo.» Os ateus não “recolhem uma imagem de Deus”. Os ateus sabem que há muitas “imagens” de Deus. Os muçulmanos têm umas, os evangélicos outras, os budistas outras e até católicos como os meus avós têm uma “imagem” de Deus diferente da imagem que o Alfredo tem. Se assim não fosse eu não teria sido logo baptizado com medo que parasse no inferno por falta de bênção. O problema principal é não haver fundamento para qualquer destas “imagens” de Deus.

O Alfredo diz que o «pleno significado se atinge somente em Jesus Cristo», mas o peso das evidências não favorece essa hipótese sobre as do muçulmano, judeu ou budista. Mais importante ainda, se considerarmos o contexto em que surgiram as tradições religiosas e a diversidade das “imagens” de Deus, o mais plausível é que sejam apenas fruto da imaginação humana. Esta é uma hipótese crucial porque, se as religiões forem obras de ficção – como tudo indica serem – deixa de se justificar a teologia, o sacerdócio e o poder eclesiástico. A prestidigitação argumentativa acerca da definição de Deus, das interpretações da Bíblia e dos alegados equívocos dos ateus apenas serve para disfarçar a incapacidade de responderem à pergunta mais básica: como é que sabem que essa religião é verdadeira? Sem resposta para isto não há razão para dar crédito a qualquer “imagem” de Deus.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

quinta-feira, novembro 24, 2011

A crise, a causa e a greve.

Esta crise, que uns dizem ser de valores, outros de competitividade, e outros por “nós” termos vivido acima das nossas posses e agora não haver dinheiro, é, sobretudo, uma crise política. Por decisão política, uns poucos têm muito e muitos quase nada. Desta desigualdade nascem problemas sociais, económicos e até de saúde.


(obrigado ao xovan pelo link)

Mas se a fonte de tantos males é simplesmente uma redistribuição defeituosa, tem de haver algo que impeça a resolução do problema. Redistribuir melhor é simples, e nem é preciso eliminar todas as desigualdades. Afinal, não somos todos iguais. Há quem goste mais de campo, de ganhar muito dinheiro, de escrever em blogs, etc. E, pelo menos desde Rawls, é fácil perceber que a desigualdade só é justa enquanto beneficiar todos, especialmente os que ficam com menos. A possibilidade de vir a ser um dos ricos pode ser uma boa fonte de sonhos, ambição e motivação para trabalhar por algo. Mas quando a desigualdade é grande demais e se mostra inescapável, o efeito é o contrário. Quase todos perdemos com isso.

O problema é o quase. Os tais 1%, cuja influência na política é muito maior do que deveria ser.



(Este é comprido, mas vale a pena ver todo. Obrigado pelo email com o link)

Hoje muita gente fez greve, em protesto contra isto. Outros dizem não perceber porquê. «Nas presentes circunstâncias, com a greve geral, as reivindicações não são atendidas. O desemprego não diminui. A produção não aumenta. A legitimidade democrática das instituições não se altera. A crise não se resolve. Ninguém lucra absolutamente nada com ela, a começar pelos participantes.»(1) É verdade. Os movimentos de indignados, as manifestações e a greve geral não propõem soluções concretas. Não dizem como corrigir o problema. Não dão emprego, prosperidade, riqueza ou essas coisas. Mas o problema não é a falta de soluções concretas. O problema é não haver sistema que as implemente. Das PPP à austeridade, do BPN ao descartar de promessas eleitorais, do João Jardim ao sistema judicial, por todo o lado é evidente que não é desconhecer as soluções que impede a resolução destes problemas. Isto não se resolve simplesmente porque aqueles com poder para o fazer preferem manter as coisas como estão. A greve não é uma solução para este problema. É um aviso.

Outra crítica é que não é um aviso eficaz. Depende de o levarem a sério; se ninguém ligar, então a greve não serve para nada. Mas a greve mostra que há muita gente capaz de sacrificar, pelo menos, um dia de ordenado só para protestar. É um aviso que devia ser credível, e é preferível que comecem por estes avisos em vez dos outros, mais eficazes. Como na Líbia e no Egipto, por exemplo.

É pena que tanta gente tenha ido na conversa do Passos Coelho, quando era evidente que as promessas dele valiam menos que os títulos da dívida grega.

1- Vasco Graça Moura, Greve Geral

domingo, novembro 20, 2011

Treta da semana: a cultura.

Uma reportagem na Sábado da semana passada mostra um «teste de cultura geral» concebido por jornalistas da revista. Aplicaram o teste a «a 100 alunos de universidades de Lisboa», seleccionaram as maiores argoladas, e o resultado foi um vídeo que tem dado que falar(1).

Alguns apontam-no como evidência de que «uma parte considerável dos estudantes inquiridos não tem conhecimentos básicos. Por exemplo, 44% dos estudantes não soube dizer quem pintou o tecto da Capela Sistina, 24% não sabe quem é a chanceler da Alemanha...»(2) Um problema deste “não sabe” é a distância entre não terem mesmo conhecimento e não lhes ocorrer a resposta certa, imediatamente, com a câmara e o microfone apontados. Além disso, «Na totalidade dos 100 entrevistados, apenas cinco conseguiram acertar em todas»(2). Isto seria o valor esperado se cada um, em média, acertasse 85% das perguntas. Nem é assim tão mau. Em 100 alunos há certamente alguns cromos e, admito, é triste que tantos vivam desligados da política. Mas, dadas as condições deste “teste de cultura geral”, não são as respostas o que mais me preocupa.

A qualidade da peça é um pouco mais preocupante. Uma das perguntas era sobre o “símbolo” químico da água. Se bem que não concorde que se rotule alguém de ignorante só por não saber que os símbolos químicos representam elementos, e que a água tem uma fórmula química, parece-me que mesmo uma peça destas teria merecido uma consulta rápida da Wikipedia para confirmar se as perguntas estavam bem. Mas o pior é a noção de cultura, ignorância e “conhecimentos básicos” partilhada por jornalistas, entrevistados e boa parte da audiência. Isso sim, é preocupante.

Quando eu tinha uns dez anos, o meu avô contou-me como a escola no tempo dele era muito mais exigente. Na segunda classe já sabia de cor todos os rios de Portugal, e todas as linhas férreas. Com a falta de diplomacia característica da idade, perguntei-lhe para que é que isso servia. A ideia de cultura e “conhecimentos básicos”, subjacente à peça e a quem se indignou com a ignorância dos jovens, segue a mesma linha. As vinte perguntas focam dados triviais, inúteis e que qualquer um encontra no Google em segundos. É tão fácil encontrar esta informação que, mesmo sabendo quem pintou o tecto da Capela Sistina, se alguma vez eu precisasse de o referir iria confirmar na Wikipedia primeiro, não fosse a memória pregar-me uma partida. E, quando digo que estes factos são inúteis, não me refiro a uma eventual utilidade prática. Para mim, o conhecimento tem valor intrínseco, e não apenas instrumental. Mas para ser conhecimento a sério os dados têm de encaixar. O conhecimento explica e esclarece. Não papagueia.

No contexto da química ou da história da arte, a fórmula da água e o Michelangelo são peças importantes do puzzle. Mas como informação avulsa, como “cultura geral”, não são grande coisa. O que esta peça revela, e as reacções a ela, é que se dá muito pouco valor à compreensão e à capacidade de explicar. O que importa é saber os nomes dos rios todos. Antigamente, isto até se compreendia. Quando a informação era escassa, saber estas coisas impressionava e indicava pertença à elite dos que sabiam ler e tinham acesso a livros. Mas hoje chove-nos informação em cima, constantemente, e ser culto já não devia ser só ter nomes e datas na ponta da língua.

Para testar a cultura geral e conhecimentos básicos devia-se pedir explicações em vez de factos decorados. Por exemplo, porque é que os planetas são redondos, o que é a inflação, porque é que o suor refresca a pele, porque é que Portugal não participou na segunda guerra mundial, porque é que a água sobe se chupamos a palhinha e se há uma altura máxima à qual pode subir. Saber encaixar a informação e compreender a realidade é muito mais importante do que ganhar queijinhos no Trivial Pursuit. Excepto, é claro, se for para jogar Trivial Pursuit.

1- Sábado, Vox Pop: A ignorância dos nossos universitários (vídeo)
2- Nuno Gouveia, A ignorância universitária

sábado, novembro 19, 2011

Definições.

Comentando o post de há dias, sobre metafísica, ciência e filosofia, o Mats/Lucas escreveu que «A filosofia precede a ciência uma vez que a ciência opera segundo princípios filosóficos. Antes de saberes correr, tens que saber andar. Antes de fazeres ciência, tens que definir o que é ciência.»(1) De certa forma, é verdade que a filosofia precede a ciência. Antes de se poder testar modelos, fazer experiências e reunir dados, necessário para a ciência, é preciso pensar nas questões, discutir conceitos e conceber hipóteses, o que já é filosofia. É por isso que grande parte daquilo que hoje é ciência antigamente foi classificado como filosofia.

Mas não é verdade que a filosofia tenha de definir a ciência para se poder fazer ciência, nem que a ciência opere «segundo princípios filosóficos», como o xadrez e a bisca “operam” segundo as respectivas regras. Regras que, por isso, é necessário definir antes de se poder jogar. A diferença está na direcção do ajuste. Enquanto as regras do xadrez e da bisca determinam como se joga, e é o jogo que se ajusta às regras, quando a filosofia estuda a ciência tenta descrever e perceber o que a ciência é. E se bem que a ciência seja uma categoria mais restrita do que a filosofia, exigindo testes às hipótese que considera, não há razão para expulsar uma investigação da filosofia só porque se tornou científica. A ciência é uma parte integrante dessa paixão pelo sabedoria a que chamam filosofia. Por exemplo, a filosofia da ciência é claramente científica. Não se limita a analisar conceitos e procurar relatos consistentes do seu objecto de estudo. Também apresenta hipóteses testáveis que confronta com evidências históricas. Pelos critérios que a própria filosofia da ciência propõe para identificar ciência, este ramo da filosofia, pelo menos, é claramente científico.

A confusão entre os dois tipos de definição é comum pela sua utilidade na propagação de tretas. Por um lado, temos o problema de definir conceitos arbitrários como kryptonite ou futebol que, sendo produto da nossa imaginação, se moldam à definição que lhes impusermos. Por outro lado, temos o problema de definir termos que referem aspectos da realidade. Podemos definir “pardal” como quisermos, mas só se a definição se subordinar às características dos pardais é que vai corresponder ao que queremos que corresponda.

Se alguém propõe uma terapia alternativa, uma previsão astrológica ou um milagre, importa saber se a alegação corresponde à realidade. Mas quando se questiona essa correspondência, é costume mudarem de assunto e discorrer sobre a definição de “terapia”, de “astrologia”, de “deus” e afins. A conversa torna-se então num monólogo fútil sobre definições arbitrárias, descurando o mais importante. Por exemplo, há tempos o Alfredo Dinis criticou-me assim: «Como te referes tantas vezes ao carácter absurdo das crenças na ressurreição de Cristo e na transubstanciação, pensei que soubesses do que estavas a falar. Afinal não sabes.»(2). Realmente, desconheço qual será a definição preferida do Alfredo. Mas o que me importa é que “ressurreição de Cristo” refere algo supostamente milagroso que Jesus terá feito e que, violando a ordem natural, lhe permitiu vencer a morte. Ao contrário do que acontecia aos seus contemporâneos. E “transubstanciação” refere a hipotética alteração da substância da hóstia quando o padre profere certas palavras, que não ocorre, por exemplo, quando eu digo hocus pocus a uma bolacha Maria. Os teólogos podem definir estes termos como quiserem; há até um longo historial de dedicação a esta prestigiosa actividade. Mas o que interessa saber é se aconteceu mesmo alguma coisa de especial a Jesus ou à hóstia. Porque, se não aconteceu, então por muito que definam e redefinam, estes termos não passarão de perlimpimpim teológico. Daí a importância de obter primeiro dados concretos acerca do sucedido antes de se tentar definir o que ocorreu.

É também isto que os criacionistas querem fazer com a ciência e os vendedores de banha da cobra fazem com a medicina. A ciência e a medicina são actividades humanas, mas têm objectivos concretos: gerar conhecimento e curar maleitas. Por isso, é preciso definir esses termos de forma a referirem os processos mais adequados para atingir esses fins. Mas quando isto choca com a fé numa interpretação da Bíblia ou um negócio de mezinhas, fazem de conta que se pode redefinir tudo a gosto. E, no fim, a questão daquilo que alegam ser verdade acaba também por depender de definições. Nomeadamente, depende de se definir “verdade” como sinónimo de treta.

1- Ciência, metafísica e filosofia.
2- Em cheio, na palha.

domingo, novembro 13, 2011

Treta da semana: fé nos tecnocratas.

Esta semana, no “Edição da Noite”, o Alfredo Barroso e o António Capucho conversaram sobre os “tecnocratas” da Europa (1). São a figura mitológica do momento, estes supostos crânios da economia, isentos de ideologia política e unânimes a recomendar austeridade como cura para qualquer maleita (2). O António Capucho chegou até a defender que era bom esses tais “tecnocratas” tomarem o poder na Grécia e na Itália, acabando com aquelas mariquices da democracia como eleições e referendos, e disse serem «homens de pouca fé»(1) aqueles que não confiarem na austeridade tecnocrata para nos salvar. Isto é uma treta.

Em detalhe, a situação económica da União Europeia é um caos. Mas, em traços largos, nem é muito complicada. Como em qualquer Estado, há partes mais ricas, que produzem mais, vendem mais e têm de conceder crédito para escoar o que produzem. E há partes mais pobres, que compram mais do que podem pagar e contraem dívidas. Em qualquer Estado, estes desequilíbrios resolvem-se de várias maneiras. A mobilidade laboral leva pessoas das zonas pobres para as mais ricas, deslocando também o consumo, as transferências do erário e a política fiscal contrariam as transferências privadas, e o banco central pode sempre garantir liquidez e, pela inflação, ir diminuindo o peso das dívidas.

Infelizmente, a UE não é um Estado. Línguas e hábitos diferentes dificultam a mobilidade. Se umas dezenas de milhões de gregos começassem a procurar emprego na Alemanha, provavelmente muita gente repensava isto da austeridade. Mas é pouco provável que o façam e, mesmo que em teoria o pudessem fazer, se tentassem acabava-se logo a UE. As transferências de dinheiro público dentro da UE também são pequenas, muito abaixo do que acontece dentro de qualquer país e muito aquém do que seria preciso para equilibrar as contas. E o Banco Central Europeu foi concebido por banqueiros que convenceram os políticos – mais com lugares de administração do que com argumentos, presumo – de que o ideal é um banco central que não pode emprestar dinheiro aos Estados, só aos bancos privados, e que serve principalmente para manter a inflação baixa. Dê lá por onde der. Agora, o BCE fica a soprar o chá enquanto a casa arde.

A austeridade não vem dos tecnocratas. Economicamente, a melhor solução para o problema financeiro da UE seria a inflação. Aumentava as exportações para fora da UE, aumentava o PIB nominal de cada país – tornando as dívidas mais leves – e evitava a recessão. As medidas de austeridade são um disparate porque são medidas recessivas que vão contrair o PIB dos países devedores e levar inevitavelmente ao default (3). Em parte, o problema é político no bom sentido, no sentido da democracia e da vontade da maioria. Os eleitores nos países mais ricos, como a Alemanha, terão naturalmente relutância em aceitar uma perda de poder de compra para safar os outros. Mas este não será o problema principal, porque há vantagens claras para todos em manter a UE a funcionar. Afinal, o emprego dos eleitores alemães depende de haver quem continue a comprar os produtos e serviços que eles fornecem.

O problema principal é político no pior sentido. Não pela influência da maioria nos países mais ricos, mas pela influência da minoria dos mais ricos em todos os países. Mesmo em Portugal, na Grécia e na Itália, há gente com muito dinheiro, e bolsos cheios de políticos, a quem a inflação não convém mas a austeridade não preocupa. Desde que sobre polícia para arrear nos manifestantes, os milionários aguentam bem os cortes no subsídio de desemprego, pensões e serviço nacional de saúde. A austeridade até lhes permite comprar empresas públicas ao preço da uva mijona. É a esses que convém a ilusão da austeridade vir dos “tecnocratas”. Tem de ser mesmo assim, são questões técnicas complexas, os economistas é que sabem, e assim por diante.

Ainda a propósito deste assunto, uma menção honrosa para o “raciocinio” do José Manuel Fernandes: «Depois do preço elevadíssimos que os trabalhadores do sector privado estão a pagar em desemprego, em empregos sub-pagos, em intranquilidade, em diminuições salariais e por aí adiante, falar em equidade quando se propõe que paguem ainda mais taxas e impostos é próprio de quem, bem ou mal, quase só conhece o relativo conforto de se ser empregado do Estado.»(4) Não é verdade que, para o mesmo nível de formação, se ganhe mais no sector público do que no privado. Pelo contrário. E as maiores reduções salariais, recentes e propostas, são nos funcionários públicos. Mas a maravilha do raciocínio está em inferir que não se deve cobrar tanto ao sector privado porque «o número de desempregados [...] saltou de 425 mil para perto de 700 mil». Cobrar o subsídio de Natal e de férias aos trabalhadores do sector privado que ganhem mais dificilmente prejudicaria os desempregados. E sempre se podia subir menos o IVA ou não cortar tantas prestações sociais, isso sim coisas que prejudicam os que mais sofrem com a crise.

E a razão principal, em maiúsculas e tudo, é que «NÃO HÁ DINHEIRO.» Se o dinheiro crescesse nas árvores, o José até poderia ter razão. Mas o dinheiro faz-se nos bancos. Economicamente, a decisão é apenas quanta inflação vamos aceitar, porque para fazer dinheiro é só imprimir. Ou nem isso, hoje em dia. Infelizmente, a maioria de nós está mais habituada à economia da família do que à dos bancos centrais, e facilmente cai nesta treta. Como a desculpa dos “tecnocratas”, o “não há dinheiro” é outra forma fácil de fingir que ideologias são factos.

1- Edição da Noite, Alfredo Barroso e António Capucho
2- I, Isto só lá vai com heróis da tecnocracia: Super Mario e Capitão Papademos
3- Obviamente, não vão por mim. Vejam, por exemplo, aqui, ou aqui, e, especialmente, aqui.
4- José Manuel Fernandes, Peço desculpa aos funcionários públicos, mas…

sábado, novembro 12, 2011

Para adoptar.

gata

A minha mulher e um dos nossos filhos encontraram esta gata ontem à noite, a miar debaixo de um carro. Tem um palmo de tamanho, é meiga e parece saudável. Está provisoriamente aqui em casa, mas com uma criança de quatro meses e uma cadela em time-sharing não nos dá jeito ficar também com a gata. Alguém aqui está interessado?

quarta-feira, novembro 09, 2011

Direitos e “direitos”.

A propósito do meu último post sobre copyright, o sofrologista católico comentou «Quando dizes que é imoral o direito de propriedade sobre bens que não implicam pelo seu uso a exclusão do uso de outrém estás [...] apenas a enunciar o teu critério de delimitação dos direitos de propriedade.» Penso que o problema principal aqui é uma ambiguidade no termo “direitos”. Esta ambiguidade afecta também outras discussões, como acerca dos direitos dos animais e de Deus como fundamento para a moral.

No sentido mais lato, que referirei com aspas, “direitos” são tudo o que for moralmente permitido fazer. Se eu estiver numa ilha deserta tenho o “direito” de me espreguiçar deitado na areia, por exemplo. Mas, num sentido mais estrito, sem aspas, um direito é uma obrigação moral da parte de terceiros, que têm o dever de zelar por algum interesse daquele que tem o direito. Por exemplo, o direito à educação, à justiça e ao voto. Isto não tenho numa ilha deserta porque não há lá ninguém com o dever de zelar por estes meus interesses.

No entanto, se eu estiver na ilha deserta, os animais de lá terão alguns direitos. Por exemplo, o direito de que eu não os torture. Não porque os animais da ilha percebam de ética – e é essa a confusão de muitos que questionam a noção de direitos dos animais – mas porque eu percebo o problema ético da tortura, o que me torna moralmente responsável por não torturar os bichos. Esta obrigação moral limita os meus “direitos” e concede direitos aos animais, porque torna ilegítimo que me entretenha a torturá-los. Esta distinção é importante porque há “direitos” que temos pelo simples facto de se tratar de actos moralmente irrelevantes, como espreguiçar, direitos (no sentido estrito) que temos por haver quem tenha obrigações morais para connosco, e há aquilo que temos de excluir dos nossos “direitos” (sentido lato) por termos obrigações morais para com outros.

A moral religiosa também sofre desta confusão. A diferença entre um direito e um pecado é atribuída à vontade de um deus, aparentemente pressupondo que, se alguém tem de traçar a linha entre o que é permitido e o que é proibido, mais vale que seja o Chefe a fazê-lo. Por exemplo, a masturbação é condenada por muitas religiões, alegando que o deus assim estipulou. Mas a restrição dos “direitos”, no sentido lato, só se justifica por uma obrigação moral de zelar por interesses de outrem. Como se costuma dizer, o direito de um acaba onde começa o direito do outro. Assim, a vontade de um deus só torna a masturbação é imoral se tivermos para com esse deus o dever moral de não nos masturbarmos. E, a menos que a omnipresença seja um atributo físico em vez de metafísico, isto não faz sentido. Nem um deus tem legitimidade para impor restrições dessas a tais actos privados.

É também esta confusão entre “direitos” e direitos que o sofrologista faz quando diz que eu estou «apenas a enunciar o [...] critério de delimitação dos direitos de propriedade», ao defender que não se pode ser proprietário de categorias abstractas. Não se trata apenas de delimitar os direitos do proprietário, porque os direitos de propriedade não são meros “direitos”. São direitos no sentido estrito. São o reverso de uma obrigação moral que todos os outros têm, de respeitar a propriedade dessa pessoa. Por isso, o problema não é apenas o limite dos “direitos” de um mas sim o de justificar essas obrigações por parte de todos os outros.

Com objectos materiais, é um facto que alguns usos por parte de uma pessoa excluem forçosamente um usufruto igual por parte de outros. Objectos materiais podem ser propriedade com ou sem direitos morais; a bem ou a mal. Por isso, os direitos morais de propriedade sobre bens materiais servem para resolver os conflitos associados às limitações que a natureza impõe. A decisão não é se todos temos o direito moral de usar a mesma escova de dentes ao mesmo tempo. Isso simplesmente não dá. O que a moral nos dá é o conjunto de regras que determinam quem usa qual.

Com bens imateriais isto não acontece. É possível usarmos o mesmo verbo, todos, e ao mesmo tempo. Ou a mesma música, ideia, equação ou sequência de bytes. Quando me oponho à concessão de direitos de propriedade sobre estas coisas não estou a querer limitar os “direitos” do proprietário. É o contrário. Estou a opôr-me às restrições que é preciso impor a todos os outros só para conceder a uma pessoa exclusividade sobre aquilo que pode ser livremente usado por todos.

Este problema é ainda mais grave quando, em nome dos direitos de propriedade sobre bens imateriais, se viola direitos de propriedade sobre bens materiais. Aqueles para os quais é mesmo preciso haver direitos de propriedade. Por exemplo, para que uma editora tenha exclusividade sobre a cópia de ficheiros mp3, por um injustificável direito de propriedade sobre essa sequência de números, é preciso que usurpe o meu direito de propriedade sobre o meu computador pessoal.

Como muita gente, o sofrologista acha que excluir categorias abstractas daquilo de que se possa ser proprietário é limitar os “direitos” dessa pessoa. Do cantor, do editor, do autor. Isto é falso. O que se passa é que conceder direitos de propriedade a essas pessoas implica impor a todos os outros obrigações que, pela natureza desses bens, não são moralmente justificáveis.

1- Comentário em O argumento moral.

domingo, novembro 06, 2011

Treta da semana: a Cultura Racional.

«A Cultura Racional é a cultura do desenvolvimento do raciocínio. A cultura natural da Natureza . É o conhecimento da origem do ser humano. De onde ele veio, como veio, porque veio e o retorno a sua origem, mostrando como o homem voltará ao seu estado natural de ser Racional puro, limpo e perfeito. Tudo isto através das mensagens do RACIONAL SUPERIOR, um ser extraterreno, publicadas nos Livros "UNIVERSO EM DESENCANTO".»(1) No site, a imagem com os pingos de água e a explicação em maiúsculas dão também uma boa ideia do que trata a Cultura Racional.

Há vários aspectos interessantes nisto, além do efeito soporífero das palestras do fundador do movimento, Manuel Jacinto Coelho, ideais para quem sofra de insónias.



Manuel Jacinto Coelho nasceu em 1903 e faleceu em 1991(2). No entanto, segundo testemunham os seus seguidores, quem alcança a Imunização Racional «continua a viver normalmente neste mundo físico, porém deixa de estar subordinado a ele e às vicissitudes da vida orgânica.»(3) Ou seja, pela Cultura Racional, seguindo os ensinamentos daquele que nos foi enviado pelo Racional Superior, podemos ter a esperança de vencer a morte tal como ele a venceu. Não a morte física, deste plano material, mas a morte num sentido metafísico e transcendente.

A Cultura Racional tem também um vasto corpo de conhecimento. A série Universo em Desencanto tem 1000 volumes, «3 livros do Obra Inicial […] 21 livros da Obra Básica […] 21 livros da Réplica […] 21 livros da Tréplica [e] 934 livros do Histórico ou Fascículos»(4). E todo este conhecimento foi revelado ao Manuel pelo Racional Superior, que habita no Mundo Racional, por meio da Energia Racional. Não se trata de teorias falíveis criadas por seres humanos limitados ao mundo empírico.

Finalmente, a ciência natural não pode provar que isto seja falso. Não há, nem pode haver, qualquer descoberta científica que refute as alegações do Manuel Jacinto Coelho ou o testemunho dos seus seguidores.

No entanto, apesar do testemunho de esperança de que podemos vencer a morte, do vasto corpo de conhecimento que alega ter, da sua fonte alegadamente infalível e transcendente, da impossibilidade de se refutar a doutrina da Cultura Racional e de estar até na Wikipedia, parece-me que a maioria das pessoas que ler este post vai concluir que isto é uma treta. E com razão. Nem é preciso acreditar, ler os 1000 livros que o Manuel escreveu, estudar aprofundadamente esta doutrina ou procurar provas materiais que a refutem.

O cepticismo justifica-se porque inventar tretas acerca do transcendente, do significado profundo, do destino último de tudo e do que acontece depois da morte não só é trivial como sempre foi um passatempo popular. Da história antiga à Internet, nunca faltaram tretas. Por isso, o mais sensato não é dar crédito a uma tese só porque parece atraente, ou sequer dar-lhe o benefício do agnosticismo só porque não se pode provar o contrário. Cada alegação é apenas mais uma num mar imenso de disparates, pelo que só se justifica considerar como minimamente plausíveis aquelas, poucas, que se destacam das restantes por algum fundamento objectivo. Não quando um diz que sim, outro acredita ou vem num livro, mas apenas se as forçam até o cepticismo a admitir que essa hipótese possa ser menos treta do que as outras. É esse crivo que leva a maioria a rejeitar doutrinas como a da Cultura Racional. É um bom primeiro passo. Falta agora dar o passo seguinte e perceber que o crivo não serve apenas para as crenças dos outros.

1- www.mundoracional.com.br. Obrigado pelo email com esta revelação.
2- Wikipedia, Manuel Jacinto Coelho
3- Wikipedia, Imunização Racional
4- Wikipedia, Universo em Desencanto