domingo, dezembro 30, 2012

Treta da semana: o que é preciso é saúde.

Esta é curtinha porque, na verdade, não há muito a dizer. Fernando Leal da Costa, o secretário de Estado da Saúde, disse ser «importante que a sustentabilidade do SNS comece a ser encarada como obrigação de cada um de nós», que assim devemos fazer «qualquer coisa para reduzir o potencial de um dia sermos doentes» (1). Sem contexto até parece boa ideia. Vamos todos comer de forma mais saudável, praticar exercício, reduzir o stress e fazer exames médicos regulares para prevenir e detectar doenças atempadamente, e tomar todos os medicamentos como o médico manda. A treta é mandarem uma destas quando cortam salários e pensões, fazem contrair a economia, aumentam os despedimentos e cortam os subsídios. O tabaco faz mal e o exercício faz falta mas, se querem apostar na prevenção, talvez fosse melhor começar por garantir que a malta tem que comer.

PS: Pelas minhas contas, esta é a 300ª treta da semana.

1- Público, Ministério da Saúde pede aos portugueses para recorrerem menos aos serviços

Empréstimos.

Ainda a propósito do Artur Baptista da Silva, a Priscila Rêgo apontou o que diz serem três erros na ideia de aliviar a crise da dívida pública cobrando aos Estados taxas de juro como as que o BCE cobra pelos empréstimos aos bancos privados:

«O erro nº1 está em presumir que as operações do BCE podem ser equiparadas a empréstimos da Troika. Não podem. Os empréstimos do BCE são feitos a um dia ou a uma semana, e é isso que justifica a taxa de juro tão baixa»; o «erro nº2, qualquer revisão da taxa efectiva aplicar-se-ia apenas à nova dívida, e não à que já está em stock, pelo que o impacto no orçamento seria sempre muito mais pequeno do que se poderia supor pela mera aplicação mecânica de uma taxa de juro de 0,5% ao stock de dívida actual» e, erro número 3, «a taxa actual já é bastante baixa - pouco mais de 3,2%»(1).

Apesar da Priscila ter alguma razão nestes três pontos, perpetua o erro fundamental de sugerir que o impedimento é económico. Não é. É político.

Os empréstimos do BCE são especiais, mas não só no prazo. Normalmente, os juros de um empréstimo compensam riscos e custos de oportunidade porque o credor não pode aplicar o dinheiro que empresta e arrisca ficar sem ele. Para o BCE, que é quem cria os euros, isto é irrelevante. Nem arrisca o seu dinheiro nem precisa de procurar bons investimentos. Os juros que o BCE cobra servem apenas para controlar a inflação. Por seu lado, os empréstimos que os bancos contraem ao BCE também são especiais. Como a Priscila explicou, são contraídos a prazos de poucos dias, pelo que são inúteis para os Estados e para a maioria dos agentes económicos. Mas os bancos são especiais.

Quando depositamos dinheiro num banco o dinheiro deixa de ser nosso. O banco tem a obrigação de nos pagar quando o pedirmos de volta mas, até lá, pode fazer o que quiser com ele. Isto permite aos bancos criar dinheiro emprestando e voltando a emprestar o mesmo dinheiro. Por exemplo, a Ana deposita €1.000. Esse banco empresta €900 ao Bruno que os paga à Carla que, por sua vez, deposita o dinheiro no banco. Agora, o banco pode emprestar €810 ao David. Com isto, os €1.000 da Ana já vão em €2.710 e ainda com muitas voltas por dar. Há duas restrições a esta multiplicação dos euros. Uma é o limite mínimo de reserva que os bancos têm de guardar, imposto pelos bancos centrais, à volta dos 10%. A outra é o banco precisar de dinheiro em caixa para cobrir os levantamentos. É aqui que os empréstimos a curto prazo são importantes. Todos os dias o banco recebe e devolve dinheiro, mas os valores variam. Se num dia sai mais do que há em reserva, o banco tem de pedir um empréstimo a curto prazo até a coisa estabilizar. Se a taxa de juro desses empréstimos for baixa compensa guardar menos em reserva e conceder mais crédito. Ou seja, a banca cria mais dinheiro. Se a taxa de juro for alta os bancos evitam pedir emprestado guardando mais reservas, o que obriga a conceder menos crédito e reduz a quantidade de dinheiro em circulação. Desta forma (simplificando), o BCE controla a inflação com as taxas de juro. Assim, houve duas coisas importantes que ficaram escondidas na explicação da Priscila. Uma é que, para os bancos, os empréstimos a curto prazo sãp úteis á longo prazo porque permitem multiplicar o dinheiro que os bancos podem usar. A outra é que a taxa de juro do BCE não é determinada por prazos, oportunidades ou riscos, como acontece noutros empréstimos. No caso do BCE o que determina a taxa de juro é simplesmente a política monetária.

Os outros “erros” são mais fáceis de comentar. É verdade que se devo 200 mil milhões a 3,2% e peço 200 mil milhões a 0,5%, os 0,5% só se aplicam à nova dívida. Mas se pagar o primeiro empréstimo com o segundo passo a pagar 0,5% de juros em vez de 3,2%. E se bem que 3,2% seja uma boa taxa de juro em relação ao que o Estado português conseguiria nos mercados de dívida, daí a 0,5% ainda vão uns bons milhares de milhões de euros por ano.

É claro que, havendo mais dinheiro, o dinheiro vale menos e tudo sobe de preço, pelo que emprestar dinheiro a 0.5% aos Estados aumentaria inflação. Se bem que um pouco de inflação seja saudável – o BCE tem como alvo mantê-la a 2% – quando se descontrola é uma desgraça porque deixa de haver confiança na moeda. No entanto, entre 2% de inflação e o dólar do Zimbabwe ainda há uma grande margem de manobra, pelo que, e ao contrário do que muitos economistas querem fazer parecer, esta via da austeridade não é uma inevitabilidade económica. É a escolha política de optar pela contracção da economia e a redução nominal dos salários nos países mais pobres em vez de reduzir o peso das dívidas e as diferenças de competitividade aumentando a inflação e os salários, principalmente nos países mais ricos (que é onde o dinheiro extra iria quase todo parar, eventualmente).

Escolheram a opção errada. A inflação é má, mas é má para todos enquanto a austeridade afecta quase exclusivamente quem está pior. Os senhores engravatados que chegam de motorista às conferências de imprensa para falar dos sacrifícios que “nós fazemos” sentem muito pouco os despedimentos e os cortes nas escolas públicas, nos serviços de saúde e nas prestações sociais. Mas enquanto convencerem a maioria de que não há alternativa, de que tem mesmo de ser assim e não se pode fazer nada, vão continuar a safar-se tramando os outros.

1- Priscila Rêgo, O que o caso Artur Batista da Silva nos ensina. Obrigado ao Nuno Gaspar pelo link.

sábado, dezembro 29, 2012

Treta da semana (passada): a burla.

Artur Baptista da Silva disse que era economista, professor catedrático e que trabalhava na ONU. Deu entrevistas e foi convidado para programas como este, na SIC:



Só dias depois é que os jornalistas se lembraram de verificar se o Artur era tudo o que dizia ser. Não era nada. Por isso desataram a despejar notícias acerca do Artur, que é um terrível burlão (1) e que até já esteve preso (2). Como se descobrir um burlão ainda fosse notícia.

Eu não sei o que o Artur é, mas bom burlão não é certamente. Não parece ter ganho grande coisa com isto, cometeu o erro crasso de procurar exposição mediática – coisa que um burlão só pode fazer depois de eleito por algum partido – e a burla parece ter sido essencialmente imprimir um cartão de visita e inscrever-se na Academia do Bacalhau(3). De resto bastou dizer “nós na ONU” e esperar que ninguém olhasse bem para o cartão. Mais do que burlar, parece-me que o Artur só queria que lhe dessem ouvidos e, para isso, fez-se parecer importante (4).

Nem me sinto especialmente enganado pelo Artur. Dele só ouvi o que está neste vídeo e pouco me rala se é da ONU. A história do Hypo Real Estate (5) é duvidosa, porque dificilmente o governo alemão terá lucrado com a nacionalização de um banco falido, mas mais inverosímil ainda é a proposta do outro interveniente de que podemos repetir o que se fez em Portugal na década de 60, quando o crescimento ultrapassou os 6%. Nos cinquenta anos que passaram mudou muita coisa. O Artur disse também que 41% da dívida pública se deve à comparticipação portuguesa em projectos da UE. É uma simplificação enganadora mas o número não deve estar muito errado. Se Portugal tiver comparticipado, em média, 15% do financiamento, isto equivale a uns 20 mil milhões de euros de financiamento europeu por ano, o que parece correcto (6). Finalmente, o que ele diz dos juros acerta em cheio. Em 2012 o Estado português pagou quase nove mil milhões de euros só em juros da dívida pública(7). Se se baixasse a taxa de juros para um valor mais próximo dos cerca de 1% que o BCE cobra aos bancos privados reduzia-se o défice em mais de seis mil milhões de euros, quase tanto como o governo prevê conseguir com os aumentos de impostos e cortes nos apoios sociais em 2013 (8). O Artur pode ser aldrabão por alegar qualificações que não tem, mas tem mais razão e faz menos mal do que alguns outros que aparecem nos jornais.

Sinto-me mais enganado pela comunicação social. Não pela asneira de paparem as aldrabices do Artur durante semanas. Não inspira confiança nos critérios com que os jornalistas seleccionam os peritos que nos apresentam mas, de qualquer forma, nas notícias não me fio em argumentos de autoridade. Por isso aí o mal é menor. Mais grave foi o que fizeram depois. Enganaram-se, pronto. Diziam enganámo-nos e acabava aí a história. Em vez disso puseram-se a desenterrar uma data de podres do Artur, o que talvez fosse material adequado para a Caras mas já incomoda ver o homem em todo o lado quando procuro alguma notícia minimamente relevante. Nem percebo o que querem provar com isto. Demonstrar que o Artur tinha um longo passado sórdido de crimes e aldrabices só revela a gravidade de não terem percebido isso logo do início. Pior ainda foi a atitude de alguns, como a TSF (9), de já não permitirem o acesso às entrevistas do Artur. Apresentar um aldrabão como um perito legítimo é negligência, mas esconder a asneira “despublicando” o que publicaram é coisa de aldrabão.

No fundo, a maior burla aqui é a dos media profissionais. Ganham dinheiro alegando-se especialmente competentes para nos proteger das asneiras da publicação amadora. No entanto, nem parecem ser tão competentes quanto alegam nem respeitam os princípios básicos que exigimos dos amadores. Como, por exemplo, admitir os erros sem os “despublicar” para disfarçar. Depois querem convencer-nos de que é importante refrear a comunicação social amadora para garantir a qualidade da informação.

1- DN, RTP, CM, I Online, etc...
2- TSF, Dinheiro Vivo, DN, etc...
3- TSF, Artur Baptista da Silva: Academia do Bacalhau poderá ter sido ponto de partida para contactos e Expresso, O Expresso e Artur Baptista da Silva.
4- Condecoração para Artur Baptista Silva
5- Wikipedia, Hypo Real Estate.
6- QCA III, Fundos Estruturais.
7- AF, Quase todo o IRS vai para pagar juros da dívida.
8- CM, Salários e reformas pagam 2,8 mil milhões
9- TSF, Esclarecimento sobre papel de Artur Baptista da Silva nas Nações Unidas, «por precaução e perante dúvidas ainda por esclarecer, a TSF decidiu retirar de antena e da página na internet os conteúdos relacionados com Artur Baptista da Silva.»

quinta-feira, dezembro 27, 2012

Uma nota sobre a nota, parte 1.

N'«Uma nota sobre a ciência»(1), o Desidério Murcho faz tal confusão que esta nota sobre a nota acabará maior do que a original. Começa por afirmar que «não há só ciências empíricas como a física ou a biologia. Também há ciências puramente conceptuais, como a matemática.» Não há ciências, no plural. Só há ciência, que é, por um lado, o método de compreender a realidade confrontando o que se pensa com o que se observa e, por outro lado, o conjunto de modelos, hipótese e teorias que esse método produz. Antes do século XX talvez se pudesse dividir este conjunto em pedaços independentes. Quando se pensava que a química orgânica e a química inorgânica eram fundamentalmente diferentes, por exemplo. Mas hoje já não. O método é, como sempre foi, fundamentalmente o mesmo e o corpo de conhecimento está todo interligado. A física e a biologia não são ciências; são partes interligadas da ciência.

Também não há «ciências puramente conceptuais, como a matemática». A matemática é uma linguagem. Como tal, é mais do que só conceptual porque o propósito é descrever coisas que estão além da linguagem. Newton, por exemplo, não inventou o cálculo diferencial e integral só para manipular símbolos. Fê-lo para calcular órbitas, exigindo que fizesse corresponder os símbolos que usou a aspectos da realidade que conhecia empiricamente. Mesmo as noções mais elementares como números e operações algébricas são formalizadas para descrever elementos da nossa experiência. Se lidamos com moedas ou bananas convém que 1+1 seja igual a 2, mas para descrever a adição de rebanhos ou variáveis booleanas dá mais jeito formalizar que 1+1 = 1. A matemática é uma parte importante da ciência porque é uma linguagem rigorosa e excelente para lidar com quantidades mas dizer que «O que há de informativo nas ciências empíricas são as teorias muitíssimo explicativas, e estas baseiam-se na matemática» é como dizer que a poesia de Camões se baseou no Português. Não é mentira, em certo sentido, mas baralha mais do que esclarece.

A seguir, o Desidério afirma que «se formos realmente lúcidos e corajosos, defendemos até o impensável para o dogma empirista: que podemos saber muito sobre a realidade empírica sem fazer uma só observação e sem ter uma só experiência. E esse conhecimento é exactamente o que nos dá a matemática.» Pondo de parte a falácia – se o Desidério achar que discordar dele me torna néscio e cobarde, paciência, é irrelevante para o argumento – vou afirmar exactamente o contrário. Sem uma só experiência ou observação não saberíamos nada da realidade. Nem sequer teríamos ideia desse conceito.

Vamos imaginar que algures existe um génio matemático que nunca teve qualquer experiência e nunca observou nada da realidade. O primeiro obstáculo à tese do Desidério é não haver qualquer razão para esse génio se dedicar à matemática. O que vai contar? O que vai somar ou dividir? Porque há de definir axiomas ou algoritmos? Mesmo ignorando esta dificuldade e assumindo que o génio se dedica à matemática, o segundo obstáculo é que formalismos vai preferir. Por exemplo, matemáticos como Euclides dedicaram-se a explorar o conceito formal de polígono, um conjunto finito de segmentos de recta formando um percurso fechado, mas não perderam tempo com o conjunto de segmentos de recta tal que a maior distância entre dois segmentos seja inferior a um quarto do comprimento do segmento maior, ou os conjuntos de segmentos de recta em que pelo menos metade sejam paralelas. Recorrendo à experiência e observação vemos que o conceito de polígono é mais útil do que estas alternativas, mas «sem fazer uma só observação e sem ter uma só experiência» só por bruxaria é que o génio matemático iria calhar no que interessa em vez ficar atolado nas infinitas alternativas que nada adiantam para descrever este universo a que chamamos realidade.

O terceiro obstáculo é «saber muito sobre a realidade empírica». Vamos admitir que, por milagre, o génio se tinha dedicado precisamente àqueles formalismos matemáticos que nós descobrimos descreverem bem aspectos da realidade, acertando magicamente em todos os axiomas. Mesmo assim, para saber não basta formar uma ideia acertada. É preciso conseguir justificar que essa ideia é correcta. Se eu disser que o número de cabelos do Papa é par e o Desidério disser que é ímpar, um de nós de certeza que acerta. Mas nenhum de nós sabe se o Papa tem um número par ou ímpar de cabelos. Para essa parte que falta é preciso observação. Sem observação, mesmo que se acerte por sorte não se sabe nada.

Para não fazer deste post um lençol tenho de me ficar, por agora, só pelos dois primeiros parágrafos da nota do Desidério. Mas, enquanto escrevo o próximo, pedia ao Desidério que me desse uma definição puramente matemática do conceito de realidade, sem recorrer a qualquer informação vinda de observações ou experiência. Ou, se admitir que a matemática sozinha não nos pode dizer o que é realidade e o que é imaginação, então que explique concretamente o que se pode saber acerca da realidade sem dar à matemática uma semântica fundamentada na experiência. Por exemplo, o que é que E=mc2 diz acerca da realidade se não soubermos o significado dessas letras?

1- Desidério Murcho, Uma nota sobre a ciência.

segunda-feira, dezembro 24, 2012

Treta da semana (passada): designer dos piratas.

Na Suécia, um homem foi condenado pelo design do StudentBay, um fórum, agora defunto, onde se podia partilhar ligações para ficheiros na rede BitTorrent. Em primeira instância tinha sido ilibado por só ter participado na concepção do site mas a acusação recorreu da sentença e agora foi condenado porque, «apesar de ser só um designer, ele devia ter sabido que o propósito do StudentBay era infringir os direitos de cópia das editoras de livros»(1).

Excepto para os defensores mais acérrimos de um copyright totalitário, esta sentença é obviamente absurda. Mesmo que ele soubesse o propósito do site, não faz sentido ser condenado pela infracção dos tais alegados direitos só por ter concebido o aspecto gráfico das páginas. No entanto, esta condenação vem na linha da restante perseguição judicial à partilha para uso pessoal. O prejuízo que se pode atribuir ao designer, individualmente, nunca justificaria privá-lo do direito de conceber um site na Web. Nem sequer se consegue contabilizar quanto dinheiro as editoras perderam por causa daquele design em particular. Mas isto é verdade também para quem cria um fórum como o PirateBay, no qual o StudentBay se baseou. São meios de partilha de ligações e comentários. O alegado impacto nas vendas não surge dos actos de quem funda o site mas sim da interacção de milhares, ou milhões, de utilizadores. Tal como este designer, também os fundadores do PirateBay não foram condenados pelo que eles fizeram mas sim pelo que milhões de outras pessoas fizeram. E o mesmo se aplica a cada pessoa condenada por partilhar ficheiros. Numa rede como o BitTorrent, a distribuição de milhares de cópias por milhares de pessoas não vem do acto de nenhum utilizador em particular mas sim da colaboração desses milhares de pessoas, e não faz sentido culpar um pelos actos dos outros. Mas é isso que os tribunais fazem sempre que condenam alguém que partilha, que gere o site ou, neste caso, que fez as páginas.

Até à Internet ninguém aplicava monopólios sobre a cópia fora do contexto comercial. Sempre fora uma lei para empresas e não se metia na vida das pessoas. Agora, os detentores destes monopólios estão aflitos. A Internet tornou obsoletas a reprodução e distribuição do suporte físico e milhões de pessoas podem ter acesso gratuito a qualquer obra publicada. No entanto, a justificação para não aplicar estas leis a cidadãos privados continua a ser a mesma. Individualmente, o “crime” de partilhar uma canção ou filme é tão irrisório como era há vinte anos o “crime” de copiar uma cassete. O prejuízo de cada acto individual é muito inferior ao prejuízo de proibir, policiar e punir esse acto. O impacto é maior agora porque há mais pessoas a fazê-lo, mas isso é um efeito colectivo. Não é culpa do indivíduo que partilha, do gestor do site nem do web designer.

1- TorrentFreak, Court Sentences Web Designer For Creating Infringing Torrent Site

domingo, dezembro 23, 2012

Disto e daquilo, 4.

Que mal tem?
O Mats afirma que «se Deus não existe, não há forma absoluta na base da qual se distinguir o bem do mal»(1). Eticamente, não há forma absoluta de distinguir se um certo efeito é bom ou mau. Nem mesmo se Deus existir. Isto porque o valor ético de qualquer efeito depende também de outros factores como a consciência de quem o causou e as alternativas. Matar uma criança a tiro é eticamente condenável em muitos casos mas será moralmente neutro se o atirador for um bebé que estava a brincar com uma pistola. Ao contrário do que o Mats afirma dos ateus, eu não defendo que «há coisas que são absolutamente erradas, enquanto há outras que são absolutamente certas». Eticamente, o certo e o errado é sempre relativo ao contexto e a valores subjectivos. O Mats até reconhece a subjectividade dos valores ao citar um texto que questiona como se pode condenar o massacre de crianças «se nós nada mais somos que pó das estrelas […] Que diferença faz para o átomo se ele passa a fazer parte do arranjo X em vez do arranjo Y?» Para o átomo não faz diferença nenhuma. Para fazer diferença é preciso um sujeito que dê mais valor ao átomo estar no arranjo X do que em Y. Os crentes resolvem o problema da subjectividade do valor inventando um tal deus que avalia tudo à sua maneira. Sua, dos crentes, porque o deus é sempre um mero fantoche para os preconceitos do grupo que o inventou. Mas isso, além de treta, é desnecessário, porque se os átomos estão na configuração de um ser humano já configuram o sujeito que precisamos para lhes dar valor. É o próprio. Uma vida humana vale mais do que a de um cogumelo ou de uma barata porque um ser humano dá mais valor à sua vida do que o cogumelo ou a barata conseguem dar às deles. Não é preciso deuses para isto nem adianta de nada inventá-los.

Má analogia
O Carlos Guimarães Pinto propõe, com sarcasmo, que o PCP resolva os seus problemas financeiros aumentando os salários dos funcionários, construindo uma nova sede, acabando com o voluntariado e assim por diante (2). É mais um exemplo da falsa analogia entre a economia toda do país e o pedacinho que corresponde a uma pessoa, família ou, neste caso, partido. Se eu ganhar X e conseguir gastar menos que X sobra-me a diferença. Como o que gasto não afecta o que ganho, a contenção nas despesas melhora as financas. Isto é verdade, em geral, para cada agente económico, individualmente. Mas se consideramos o mercado interno do país, o que se gasta é exactamente o que se ganha porque o rendimento de cada um é sempre despesa de algum outro. Quando o Estado corta pensões e salários não afecta apenas pensionistas e funcionários públicos. Afecta restaurantes, mercearias e supermercados, todos os fornecedores destes, mecânicos, pedreiros e carpinteiros, e todos os fornecedores destes também, e assim por diante. Quanto mais o Estado corta na despesa mais corta nos rendimentos do sector privado, o que acaba por cortar os próprios rendimentos do Estado. É por isso que, em tempos de crise, o Estado deve endividar-se e gastar mais para contrariar a contracção da economia, e é em tempos de crescimento que deve cobrar mais e gastar menos para consolidar as contas. Se apertamos todos o cinto ao mesmo tempo, Estado e privados, os únicos que saem a ganhar são os que estão nas comissões de privatização das empresas públicas. Que, logo por azar, são os que mandam apertar o cinto à gente.

Ensino Superior
Parece que um curso de pós-graduação na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica tem alguns docentes que são a favor da legalização do aborto. Ou, como escreve o Nuno Serras Pereira, «uma série de pessoas gravissimamente responsáveis por uma matança imensamente maior de crianças do que a de Herodes.»(3) Para o Bernardo Motta isto é uma «completa falta de noção de decência, de coerência, de dignidade» porque estão «a leccionar sobre temáticas que interceptam [intersectam?], em muitos aspectos, o Magistério da Igreja Católica»(4). É uma visão estranha do ensino superior. O objectivo é ensinar adultos e formar especialistas em matérias complexas. Seria de esperar que os docentes fossem escolhidos de acordo com a sua experiência, conhecimento e capacidade pedagógica, e que alunos de uma Pós-Graduação em Serviço Social na Saúde Mental(5) tivessem contacto com diferentes opiniões e valores éticos. Certamente que, no exercício da sua profissão, não poderão assumir que todos os portugueses seguem incondicionalmente os dogmas católicos. Mas católicos como o Bernardo e o Nuno querem que a Universidade Católica só tenha professores com opiniões iguais às da Igreja Católica. Por mim, que façam o que bem entenderemm, mas uma instituição que não permita a discussão livre e aberta de opiniões divergentes não merece a designação de universidade.

1- Mats, Qual é o mal em matar crianças?
2- Carlos Guimarães Pinto, Salvem o PCP, via alguém no Facebook.
3- Logos, UCP escancara as portas a Herodes - por Nuno Serras Pereira.
4- Bernardo Motta, no Facebook.
5- UCP, FCH, Pós-Graduação em Serviço Social na Saúde Mental

domingo, dezembro 16, 2012

Treta da semana (passada): o ridículo.

O João César das Neves, num título ironicamente apropriado, manifesta-se preocupado porque «esta geração muda a milenar definição de matrimónio»(1), um campo «em que se situam as grandes calamidades desta geração». No entanto, acrescenta que isto «não envolve nada de realmente importante» porque «É literalmente uma questão de secretaria.»

O ridículo, parece-me, vem da confusão entre a definição de matrimónio e aquilo que o Estado regula. A pista está até nas próprias palavras do JCN: «Durante milénios, o Estado não casava ninguém, deixando isso ao costume social ou às entidades religiosas. Em Portugal, o casamento civil só surgiu em 1832». O casamento civil. Não o matrimónio, nem o casamento, nem a união de duas almas gémeas que decidem partilhar uma vida. O que o Estado permite é um contrato. O resto é com as pessoas.

Para muitos, o matrimónio é uma união de duas pessoas da mesma religião. Muitos cristãos, muçulmanos ou judeus podem pensar que casar com um ateu ou um religioso de outra equipa seria inaceitável para o seu deus e, por isso, não seria casamento a sério. Estão no seu direito. Mas o Estado não tem nada que ver com isso e, por isso, o casamento civil é cego à religião dos nubentes. O mesmo para a cor da pele, idade ou virgindade. Qualquer pessoa é livre de definir o que entende por matrimónio, se tem de cumprir estas ou aquelas condições para ser legítimo. O que não pode é exigir do Estado uma intromissão nas definições dos outros. Por isso, a legalização do casamento homossexual não é uma grande vitória para os homossexuais. Para alguns pode dar jeito, admito, mas são provavelmente uma minoria pequena da população. A vitória é para todos, porque esta alteração permite cumprir um importante princípio constitucional: tal como o Estado não se mete com a raça, religião ou opinião política de cada um, também não vai discriminar ninguém quanto ao seu sexo ou orientação sexual. Isto não impede o João César das Neves de definir o matrimónio como lhe der na gana. Basta perceber a diferença entre a vida a dois e o contrato de casamento civil.

A analogia com o contrato laboral é mais evidência da confusão entre o matrimónio e a burocracia. «Neste momento, em Portugal, custa mais despedir a criada do que o marido, pois o contrato de casamento é mais frágil do que o de trabalho ou sociedade.» Os contratos são diferentes. O contrato de casamento presume-se simétrico, com os contratantes participando como iguais, enquanto que o contrato laboral é assimétrico. A empregada – a criada, tradicionalmente, não tinha contrato – pode-se despedir simplesmente notificando o empregador com um mês de antecedência mas este, se a quiser despedir, tem de a indemnizar. No casamento ninguém despede ninguém mas, seja como for, a dificuldade principal do divórcio não é burocrática, e esta é novamente a grande confusão do JCN. Se confunde o matrimónio com o contrato, então parece-lhe que facilitar a burocracia do divórcio fragiliza o casamento. Mas isso é treta. A decisão de continuar ou terminar com uma vida a dois é difícil por todas as mudanças que implica, por todo o investimento nessa vida partilhada, pela casa, pelos filhos e tudo o mais. O papel é irrelevante. Nem compete ao Estado decidir quem se divorcia nem, muito menos, tentar preservar casamentos por força da burocracia.

O ridículo, que não é só desta geração, é confundir o matrimónio com o contrato de casamento. O matrimónio é algo pessoal, que cada um tem de ir definindo ao longo da vida como quiser e puder. O casamento civil é uma ferramenta burocrática para regular heranças, propriedades, decisões médicas e o IRS. Confundir estas coisas é tão ridículo como confundir o conforto do lar com o pagamento do IMI.

1- João César das Neves, O ridículo da geração

Factos, valores e raciocínio, parte 2.

O Desidério perguntou «Como pensar correctamente sobre conflitos morais e políticos?»(1). Como a resposta dele não me satisfez (2), aqui vai uma alternativa. Antes de mais, o problema não está tanto no pensar, que cada um faz na sua cabeça e como bem entender, mas na argumentação e diálogo, que só são produtivos se contribuírem para resolver estes conflitos. Para isso, as inferências que cada argumento descreve têm de ser válidas e o argumento deve partir de premissas consensuais porque não será persuasivo se partir de pressupostos que o interlocutor rejeita. Isto é especialmente importante quando se discute valores, porque enquanto com premissas acerca de factos ainda se pode resolver dissensões com algum teste objectivo, quando se trata de valores, como o Desidério escreveu, «não há um tribunal de última instância a que possamos recorrer»(1). Assim, no diálogo sobre conflitos morais e políticos temos de ter o cuidado de assentar argumentos em premissas consensuais. Esse é um dos problemas com o argumento do Desidério, dependente de afirmações como «[é] óbvio que não tem qualquer relevância que os tresloucados realmente sejam tresloucados e não tenham razão.»(1)

Seguindo este critério, vou apresentar dois argumentos contra a certificação estatal da homeopatia partindo de afirmações do próprio Desidério. Uma é que as escolhas das pessoas «têm sempre de ser respeitadas, desde que não prejudiquem terceiros»(3). Se alguém quiser comprar água destilada muito mais cara para tomar gotas quando tem gripe, temos de respeitar essa opção. Se quiser acreditar que a água tem memória e essas tretas, tem todo o direito. No entanto, para que isto seja uma escolha tem de ser uma decisão informada, o que implica que a pessoa não seja induzida em erro. Se o Estado certifica alguém como profissional de saúde, muita gente confiará nisso como indicação de que esse profissional sabe o que faz. Tal como confiamos que a ponte não vai cair, que não vamos ser electrocutados pela torradeira e que a pasta de dentes não está envenenada. Não é por fazermos uma investigação aprofundada dos projectos, montagem e composição de tudo o que usamos, mas porque confiamos na regulação estatal que certifica a qualidade desses bens e serviços. Mas isto só funciona se a certificação do Estado for honesta. Se o Estado autoriza a venda de gato por lebre deixamos de poder confiar na certificação para tomar as nossas decisões. Em casos complexos como o da homeopatia, a consequência é as pessoas ficarem privadas da possibilidade de escolha. Se queremos defender o direito de escolher não podemos pôr o Estado a enganar as pessoas.

Outra premissa que suporta esta conclusão é que «não temos mais direito a viver harmoniosamente na nossa própria sociedade do que os outros»(2). Ou seja, que todas as pessoas têm o mesmo direito às suas crenças, sejam correctas ou disparatadas. Isto implica que não seja legítimo ao Estado discriminar crenças só porque uns acreditam numa coisa e outros noutra. Os factos podem justificar discriminação. Na construção civil, por exemplo, há muitas regras para garantir estabilidade e durabilidade às estruturas. Mas as crenças, por si só, não podem ser alvo de regulação estatal sem violar o tal direito que o Desidério defende. Se «não temos mais direito a viver harmoniosamente na nossa própria sociedade do que os outros» e um homeopata tem o direito a uma certificação estatal para vender os seus frasquinhos de água só porque acredita que aquilo cura, sem evidências, então eu também tenho direito a uma certificação estatal para vender gotas da minha água da torneira como cura para a unha encravada, para dar sorte ou como protecção contra vampiros. Se o Estado certifica as tretas de alguns e todos têm direito um tratamento igual das suas tretas e crendices, então o Estado tem de certificar as tretas todas. Parece-me contraproducente.

Tenho mais razões para ser contra a certificação dos homeopatas – e afins – como profissionais de saúde. Mas algumas, aparentemente, partem de valores diferentes daqueles que o Desidério assume. Por exemplo, eu dou valor suficiente à verdade para considerar má ideia que o Estado pregue mentiras às pessoas. Mas, sem «um tribunal de última instância a que possamos recorrer» para determinar quem tem os melhores valores, a forma mais produtiva de tentar persuadir o Desidério é recorrendo aos valores dele. Resumidamente, o direito à escolha implica que o Estado não engane as pessoas e o direito à crença de cada um implica que o Estado não discrimine crendices. Em ambos os casos, isto leva a rejeitar a certificação estatal de actividades como a homeopatia (ou a oração, a astrologia, a pintura, o humor, e assim por diante).

1- Desidério Murcho, Saber pensar sobre problemas morais e políticos.
2- Factos, valores e raciocínio, parte 1.
3-Desidério Murcho, Em defesa da liberdade

domingo, dezembro 09, 2012

Treta da semana (passada): o melhor do universo.

O Mats, aparentemente dotado de sabedoria extra-galáctica, alega que o ADN é «O melhor sistema de armazenamento de informação do universo»(1). No entanto, para suportar a alegação considera apenas a densidade de informação por grama de ADN, cerca de 700 terabytes, e compara-a com a dos discos rígidos que temos neste momento, talvez assumindo serem o segundo melhor sistema de armazenamento de informação do universo:

«uma grama de ADN pode armazenar 700 terabytes de dados. […] Para armazenar o mesmo tipo de dados em discos rígidos – o meio de armazenamento de dados mais denso actualmente – seriam precisos 233 3TB discos, totalizando mais de 151 quilos.»(2)

Para mostrar que tudo neste universo foi criado pelo menino Jesus em seis dias, o Mats afirma que «Nada feito pelos seres humanos se aproxima desta notável eficiência biológica. [...] Quem diria que o ADN pode armazenar informação de modo mais eficiente que nós?» A resposta é simples. Ninguém com dois dedos de testa diria tal disparate.

Mesmo em densidade de informação, o ADN não é assim tão bom. Um metro quadrado de uma fina película polimérica, pesando alguns grama, pode armazenar cerca de mil terabytes (3). Usando padrões de interferência de electrões numa superfície condutora é possível armazenar dezenas de bits por electrão (4), numa relação de bits por massa milhares de vezes superior à do ADN, com uma vintena de átomos por bit.

Além disso, não é só a densidade da informação que conta. O acesso à informação também é importante. No caso do ADN, talvez em breve seja possível sequenciar – “ler” – mil milhões de bases em poucos minutos e por poucas centenas de dólares (5). Isto é extraordinário, como tecnologia de sequenciação. Mas como armazenamento fica muito aquém de um disco rígido comum, que lê essa informação num segundo pelo preço de 0,000003 kilowatt-hora em electricidade.

Mas o Mats não está a falar apenas da nossa tecnologia. A mensagem importante é que «Nada feito pelos seres humanos se aproxima desta notável eficiência biológica». Nas células, o ADN é transcrito em ARN por enzimas naturais e não por máquinas de sequenciação automática. Talvez seja essa a “notável eficiência” que o Mats refere. Se for, pior ainda. A polimerase do ARN é uma enzima muito rápida, transcrevendo o ADN em ARN a uma velocidade de 50 bases por segundo(6). Não é mau, para uma proteína. Mas isto são 50 bits por segundo. Um disco rígido debita informação a uma taxa de mil milhões de bits por segundo. À velocidade «desta notável eficiência biológica» um filme de duas horas em alta definição demoraria uns mil e quinhentos anos a ver. Nem o Manoel de Oliveira aguentava.

Outro aspecto importante é a fiabilidade. A taxa de erro na leitura do ADN para ARN, em sistemas biológicos, é de um em cada dez mil bases lidas. Mais uma vez, para biologia não está nada mal. Mas isto equivale a cerca de um erro de leitura por kilobyte, mil e quatrocentos erros por disquette, setecentos mil por CD, quatro milhões por DVD e mil milhões de erros por disco rígido. Na terminologia informática, um computador com esta «notável eficiência biológica» designa-se por avariado.

Ironicamente, estes exemplos que os criacionistas apresentam em defesa da criação por intervenção divina só suportam a alternativa, de que os sistemas biológicos surgiram por processos naturais de evolução e não por design inteligente. A grande vantagem que o ADN tem em relação a um disco rígido ou um cartão de memória não está no armazenamento de dados. Enquanto um disco rígido acede a um bloco específico em milissegundos e transmite centenas de megabytes em poucos segundos, o ADN é transcrito por tentativa e erro, um pedaço aqui e outro ali, por batalhões de proteínas cegas, com cada uma “lendo” poucos bytes por segundo. A grande vantagem do ADN é que, ao contrário de circuitos electrónicos e discos rígidos, é algo que pode resultar de um processo gradual de evolução a partir de moléculas orgânicas modestas e comuns. Um cartão de memória ou um leitor de DVD não pode resultar da acumulação de características hereditárias sob selecção natural. Estas coisas têm mesmo de ser produzidas sob supervisão de algum ser inteligente. Os sistemas biológicos são muito menos eficientes para certas coisas, como armazenamento de dados, mas são muito mais robustos e autónomos. As células reproduzem-se, alimentam-se, desenvolvem-se e, em conjunto, com o passar das gerações, evoluem. É isso que os sistemas biológicos têm de extraordinário. Mas é precisamente por isso que não precisam de um criador inteligente.

1- Mats, O melhor sistema de armazenamento de informação do universo
2- Traduzido daqui:Harvard cracks DNA storage, crams 700 terabytes of data into a single gram
3- Science news, New Method Of Self-Assembling Nanoscale Elements Could Transform Data Storage Industry
< 4- Stanford News, Reading the fine print takes on a new meaning (fonte: Wikipedia).
5- Science now, DNA Sequencing, Without the Fuss
6- Stryer, Biochemistry. 5th edition, Section 28.1Transcription Is Catalyzed by RNA Polymerase

sexta-feira, dezembro 07, 2012

Factos, valores e raciocínio, parte 1.

No seguimento da conversa sobre a homeopatia (1), o Desidério tentou descrever como devemos «pensar sobre problemas morais e políticos»(2). A intenção foi boa. A execução é que não. Concordo que o problema principal é não haver «um tribunal de última instância a que possamos recorrer» para determinar os valores correctos. Os valores são critérios de preferência, necessariamente subjectivos, pelo que é inútil argumentar com quem discorda dos nossos valores assumindo como premissa que os nossos são melhores. Infelizmente, o Desidério ignora as suas próprias recomendações. «Um aspecto curioso do cientificismo é a ideia de que tudo o que não é ciência não tem qualquer interesse nem valor cognitivo. Logo, é irrelevante o conhecimento da história e da filosofia, porque essas coisas não são científicas. A ironia é que quem assim pensa depois raciocina sobre questões políticas e morais à toa, sem qualquer conhecimento do que distingue um raciocínio plausível nestas áreas de um raciocínio ingénuo.»(2)

O Desidério considera que um raciocínio moral que descure a história e a filosofia é ingénuo porque o Desidério dá valor à história e à filosofia. Não dando o mesmo valor à astrologia, por exemplo, o Desidério não considera que um raciocínio moral será ingénuo só por ignorar signos e horóscopos. Mas isto resulta dos valores do Desidério. Se à pessoa hipotética que o Desidério critica só importa “o que é ciência”, ela também não julgará ingénuo ignorar a filosofia. Isto não é um problema no raciocínio. É apenas consequência dos seus valores e, sem um “tribunal de última instância” para estes, não se pode classificar um raciocínio de “ingénuo” só por partir de valores diferentes. Além disso, o Desidério critica um espantalho. Qualquer pessoa dá valor a coisas “que não são ciência”, nem seja ir à casa de banho quando está aflito, dormir descansado e não levar pontapés na cara. O Desidério assume um ser inexistente que só dá valor ao “que é ciência” para concluir que é ingénuo ter valores diferentes dos do Desidério e depois afirma que «temos de levar muito a sério o que as pessoas que estão em conflito connosco realmente pensam». Ao contrário dos valores, que são subjectivos, um raciocínio pode ser objectivamente incorrecto. Este é um bom exemplo disso.

Mais à frente, o Desidério agrava a confusão quando invoca Rawls. Uma forma de conceber a justiça é imaginar que estamos a criar leis e regras morais para uma sociedade antes de saber se vamos nascer ricos ou pobres, rapazes ou raparigas, bonitos ou feios, fortes ou fracos e assim por diante. Esta ideia de Rawls é boa porque, atrás deste véu de ignorância, podemos identificar valores consensuais distintos dos que somos tentados a defender quando já sabemos o que nos calhou. Por exemplo, um rico pode achar que não devia pagar tantos impostos mas, se não soubesse se ia nascer numa família rica ou pobre, provavelmente veria com melhores olhos a redistribuição fiscal. No entanto, a abordagem de Rawls não serve quando os próprios valores estão em causa. Quem gosta mais de arriscar irá preferir uma sociedade com menos redistribuição e mais oportunidades de enriquecimento enquanto que alguém avesso ao risco preferirá mais apoio social mesmo à custa de mais impostos. Esta experiência conceptual de Rawls é boa para identificar os nossos valores mais fundamentais e derivar deles regras sociais mas não serve para resolvermos divergências entre esses valores.

É por isso que esta forma de pensar sobre o problema da homeopatia não serve: «eu não sei se serei como sou — sensato, científico e tudo isso — ou um tresloucado. [...] Fazendo este simples exercício torna-se óbvio que não tem qualquer relevância que os tresloucados realmente sejam tresloucados e não tenham razão [e] a minha preocupação [é que todos se sintam] tão bem nessa sociedade quanto possível, sem prejudicar o outro». Isto pode ser óbvio para o Desidério mas não é consensual. O Desidério prefere uma sociedade onde as pessoas se “sintam tão bem quanto possível” mesmo que vivam enganadas. Eu, pelo contrário, dou mais valor à verdade e prefiro uma sociedade que distinga entre verdade e falsidade mesmo que isso seja desconfortável. Principalmente quando se trata do Estado certificar profissões, que é o que estamos a discutir para a homeopatia. Nesse caso parece-me óbvio que importa saber se estão a certificar algo que é verdade ou as parvoíces de algum tresloucado.

Finalmente, o Desidério alega que «no caso da homeopatia [e] no caso do ensino do criacionismo aos filhos dos criacionistas [não] há conflitos inequívocos de interesses. De uma parte há apenas um interesse vago em excluir da nossa sociedade pessoas de um certo tipo.» Não é verdade. Vender água da torneira como cura ou ensinar disparates a crianças criam conflitos inequívocos entre os interesses de quem o faz e os interesses de quem é enganado. Quanto à treta da exclusão, é outro espantalho. O que está em causa é apenas a sensatez de pôr o Estado a certificar crenças como as da homeopatia ou do criacionismo.

O raciocínio do Desidério não serve para pensar em problemas morais e políticos. Não parte das premissas certas, ataca espantalhos, tem inferências inválidas e contradiz-se, ora chamando ingénuo a quem não dá valor à filosofia do Desidério, ora dizendo que é «é completamente irrelevante o que nós achamos que [os outros] deviam preferir». Mas a pergunta é boa. «Como pensar correctamente sobre conflitos morais e políticos?» Como este post já vai longo e ando atrasado com outras tretas, agora tenho de ficar por aqui. Mas na segunda parte, daqui a uns posts, tentarei responder a esta pergunta.

1- A incompreensão profunda das diferenças cruciais. 2- Desidério Murcho, Saber pensar sobre problemas morais e políticos.

domingo, dezembro 02, 2012

Treta da semana (passada): desinformação.

Segundo o Pinto Balsemão, é necessário limitar a “desinformação” na Internet, onde há informações relevantes mas onde também, «misturado com isto tudo, há rumores que nunca são confirmados». Além disso, «As redes sociais vieram agravar este fenómeno”» (1). Achei curioso. O Pinto Balsemão é o presidente da Impresa, detentora de revistas como a Caras (2) e a Activa (3), além da SIC, onde a Maya deita cartas, o que sugere muito pouca exigência e rigor na informação. Defende também que «sejam colocados limites a essa desinformação» e pergunta «Até que ponto devemos ser tolerantes com a intolerância?»

A primeira parte é a hipocrisia costumeira de uma indústria habituada aos monopólios. Era fácil fazer dinheiro com publicações da treta vendendo opiniões escritas à pressa com fotografias de stock para dar cor. Hoje faz-se isso nos blogs, que são de borla e aos montes. O mercado dos posts em revista e televisão está a contrair, prejudicando a empresa do Pinto Balsemão. Mesmo no conteúdo de qualidade, o gratuito tira cada vez mais negócio ao pago. Se bem que seja necessário pagar a um profissional para produzir regularmente, e por encomenda, material de qualidade, há muitos amadores com capacidade e vontade para criar, mesmo que esporadicamente, conteúdos de valor sem cobrar nada por isso. Com milhões desses a um click de distância é difícil competir. Veja-se, por exemplo, o que a Wikipedia tem feito ao negócio das enciclopédias. Quando Pinto Balsemão diz “limitar a desinformação” o que quer dizer é restringir a publicação amadora para limitar a concorrência que esta lhe faz.

A conversa da intolerância tem, basicamente, o mesmo objectivo. «Até que ponto devemos ser tolerantes com a intolerância?» Até ao ponto em que se torne intolerável. Aquém disso, tolera-se. Se alguém for intolerante aos meus posts, tolero perfeitamente que não os leia. Se quiser criticar, escarnecer, troçar ou insultar, que fique à vontade. Tanto me faz. A intolerância só é intolerável se nos impõe algo que não podemos evitar. A censura, por exemplo, é uma forma intolerável de intolerância. Logo por azar, é essa que o Pinto Balsemão defende. «Os cidadãos “que defendem a liberdade de expressão” poderão ser levados a exigir que “sejam colocados limites a essa desinformação”». Queixa-se de que «há dificuldade em saber quem é quem» e defende que «os meios ditos tradicionais mantenham as suas funções de mensageiro de filtrador, de veiculador de opiniões e de ‘aguilhão’ da opinião pública». Ou seja, quer limitar a liberdade de expressão e o direito à manifestação anónima só para combater a tal “desinformação”. Quer impedir que se diga por aí o que ele não quer que se diga. Essa intolerância é que é intolerável.

É verdade que a tecnologia moderna ampliou muito a nossa liberdade de expressão e que essa liberdade exige alguma sensatez para usar de forma proveitosa. Daí se terem agravado problemas antigos como o rumor e a difamação, e terem surgido problemas novos como o dos melgas que enchem caixas de comentários com divagações ininteligíveis ou ladainhas repetitivas. Mas a mesma tecnologia que agrava esses problemas dá a cada um de nós as ferramentas para os resolver. É fácil testar o fundamento dos rumores, desmentir difamações e ignorar ou filtrar o ruído. Em vez de estarmos dependentes do tal “mensageiro filtrador e veiculador de opiniões” do Pinto Balsemão, com um pouco de conhecimento e espírito crítico cada um safa-se bem por si sem precisar que censurem o que quer que seja.

Mas este, é claro, acaba por ser o problema fundamental. A carreira de pessoas como o Pinto Balsemão, quer na política quer à frente de empresas como a que ele lidera agora, seria muito mais difícil com um público informado, céptico e proficiente a topar-lhes a treta. O melhor é colocar já “limites à desinformação” não vá o pessoal aprender a distinguir entre o que é verdade e o que se vende como o sendo.

1- I Online, Pinto Balsemão admite que será necessário "limitar desinformação" da Internet
2- Por exemplo, Irmã de Penélope Cruz pode estar grávida Também pode não estar. Não querem dar azo a rumores infundados.
3- Por exemplo, Kim Kardashian confessa inveja de irmã Kendall Jenner, «Kim Kardashian escreveu, no twitter, que tem inveja relativamente à meia-irmã, Kendall Jenner, que acabou de fazer capa da Vogue Austrália». Claramente, é preciso acabar com esta coisa das redes sociais e deixar as notícias a cargo de profissionais competentes que saibam escolher o que é importante sabermos.

sábado, novembro 24, 2012

A incompreensão profunda das diferenças cruciais.

O David Marçal escreveu ser «uma péssima notícia» a de que o governo vai certificar cursos e profissionais das medicinas alternativas (1) porque isto «Induz o público em erro, levando as pessoas a pensarem que estas terapias têm uma validade equivalente à medicina convencional, o que não é verdade.»(2) O Desidério Murcho opôs-se ao post do David «por enfermar de uma incompreensão profunda de uma diferença crucial», alegadamente «uma enorme, uma gigantesca diferença entre argumentar e mostrar que não funciona, e impedir as pessoas de a praticar, ensinar, divulgar, etc.»(3) Parece-me que a incompreensão está mais do lado do Desidério.

No texto do David não encontrei nada que sugerisse proibição, repressão ou censura destas ideias. Encontrei apenas a opinião de que o Estado não deve certificar coisas como homeopatia, e nisso estou inteiramente de acordo. Penso que estamos todos de acordo que quem criar um curso de Ecologia de Gambozinos não deve ser preso, silenciado ou proibido de ensinar tal coisa. Mas o que o David defende, e eu concordo, é que não seria correcto o Ministério da Educação certificar cursos ou profissionais de Ecologia de Gambozinos porque não há qualquer critério objectivo para identificar autoridades nessa matéria. Isto não é «Impor aos outros as nossas ideias»(3). É simplesmente o problema de não existirem gambozinos e, por isso, não haver maneira de certificar gambozinices. O Desidério está a confundir a oposição a que o Estado certifique disparates com a repressão de ideias.

Mas não é só essa confusão. Escreve também o Desidério que «A única coisa relevante é haver pessoas que querem consumir homeopatia. Essas pessoas têm o direito de errar e é por isso que é irrelevante, para efeitos legislativos, saber se a homeopatia é “científica” ou não»(3). Depende dos efeitos legislativos que estamos a considerar. A falta de fundamento científico (sem aspas) para a homeopatia não justifica que se proíba as pessoas de tomar gotas de água ou comprimidos de sacarose. Mas justifica que se proíba a venda de preparados homeopáticos como se fossem medicamentos, porque se não tratam nada isso será publicidade enganosa. Ou seja, o Desidério está a confundir o direito de fazer anéis de latão com a aldrabice de dizer aos compradores que são de ouro.

O Desidério engana-se ao julgar que «A homeopatia não prejudica seja quem for, involuntariamente.» Atrasos no tratamento de problemas graves, como o cancro, sobrecarregam o sistema de saúde. O tratamento ineficaz de doenças infecciosas põe em risco a saúde de terceiros, tal como a má prevenção, por exemplo com oscillococcinum em vez de vacinas. Alem disso, muitos produtos homeopáticos são dados a crianças por decisão dos pais. Mas neste ponto o Desidério está apenas mal informado. A confusão é esta: «É irrelevante se a homeopatia realmente ajuda as pessoas ou as prejudica, dado que as pessoas a escolhem em liberdade.» Aqui o Desidério confunde duas noções de liberdade crucialmente diferentes.

Uma é a liberdade como mera ausência de impedimentos externos. Se o Desidério andar à noite numa rua escura pode cair num buraco destapado. Neste sentido, podemos dizer que é livre de cair porque nada impede que o faça. Mas esta liberdade não é necessariamente boa. O outro sentido, o bom e crucialmente diferente, é aquele em que o Desidério só cai no buraco se o deseja consciente das consequências dessa escolha. Se cai por não saber que tiraram a tampa é queda livre mas não é vontade livre. Nas medicinas alternativas passa-se o mesmo. Quem toma um preparado homeopático porque o comprou na farmácia e está convencido que aquilo cura cai num buraco que teria escolhido evitar se soubesse que aquilo não serve para nada.

Finalmente, parece que o Desidério confunde um outro detalhe. «Isto porque sempre que excluímos dos nossos arranjos legislativos quem acredita nisto ou naquilo ou quem vive desta ou daquela maneira, estamos a oprimir essas mesmas pessoas, não lhes reconhecendo o direito a sentirem-se tão realizadas e aceites quanto nós mesmos.» A certificação de cursos e profissionais não tem como propósito fazer as pessoas sentir-se aceites ou realizadas. O objectivo é proteger o consumidor. Por exemplo, para que quando está doente e consulta um profissional de saúde possa confiar que este sabe diagnosticar e tratar doenças.

O que o David Marçal defende não é uma imposição de ideias. Mesmo sem a certificação oficial da homeopatia e afins as pessoas seriam livres de pensar o que quisessem. Também não é a proibição da prática de disparates; é apenas que o estado não seja cúmplice na venda enganosa de disparates inúteis como se fossem tratamentos eficazes. E não é um ataque à liberdade das pessoas. Pelo contrário, o problema que o David Marçal aponta é que a certificação estatal destas tretas retira liberdade de escolha porque induz as pessoas em erro. Ironicamente, o título do post do Desidério é «Em defesa da aldrabice.» Mais uma confusão entre dois conceitos crucialmente diferentes. Uma é a aldrabice no sentido de trapalhada. A essa todos têm direito. Mas outra, bem diferente, é a aldrabice ardilosa que serve para enganar. Essa não é um direito. É uma violação da tal liberdade que o Desidério diz defender, e é crucial distinguir cuidadosamente entre a liberdade de escolher e a liberdade de aldrabar os outros.

1- Público, Vai ser preciso tirar um curso para praticar acupunctura
2- David Marçal, Regulamentação das medicinas alternativas é uma aldrabice convencional
3- Desidério Murcho, Em defesa da aldrabice.


Adenda: os gambosinos (com s) afinal existem. Obrigado, D. Barbosa, por esta espantosa novidade. No entanto, não são o mesmo que os gambozinos (obrigado, António Parente).

sexta-feira, novembro 23, 2012

Contar feijões.

O Pedro Cosme Vieira sugeriu que a educação em Portugal deixasse de ser sem custos para o utilizador e passasse a «SCUMA - Sem custos para o utilizador no momento da apropriação do bem»(1), mas paga mais tarde, em prestações, descontando-se ao ordenado de cada um o custo da sua educação. Penso que é um bom exemplo de dois problemas comuns neste tipo de argumento económico: seleccionar tendenciosamente os factores a considerar e, pior do que isso, inferir dos alegados factos juízos de valor.

Estima o Pedro que a educação custa uns 70.000€ ao Estado, 100.000€ se for de medicina, pelo que acha «interessante a canalhada brava, esquerdista, recém licenciada vir para a rua gritar que não contribuiu em nada para a dívida pública quando mamou 70000€ no Estado (mais aos país e pelos anos de chumbo).» Como provavelmente sou o que ele considera “canalhada esquerdista”, devo esclarecer este ponto. O Estado gasta uns 100 mil milhões de euros por ano, cerca de dez mil euros por pessoa. Eu pago uns quinze mil em impostos directos, mais uns três ou quatro mil em IVA e nem sei quanto em impostos que o Estado cobra à produção e que se reflecte no preço de venda. Contas por alto, devo pagar ao Estado o dobro do que o Estado gasta em média por pessoa. É provável que, ao longo da minha carreira, acabe por dar mais do que recebo. O que é justo, porque o posso fazer com menos sacrifício do que muitos outros, mas pago do meu trabalho o que o Estado me dá e ainda pago por quem não pode dar tanto.

Mas o argumento central do Pedro é que Quem tem mais escolaridade [tem] um salário mensal mais elevado [e] a probabilidade de um licenciado estar desempregado é 30% menor que a média [...] Desta forma, cria-se a injustiça social de as pessoas que não usufruem da escola terem que pagar o ensino de quem usufrui.» Esta análise falha em dois pontos que deviam ser óbvios até para um economista. Primeiro, se o salário é 30% maior, os impostos que paga são maiores numa percentagem ainda mais elevada, pois quem ganha mais paga uma fracção maior do que ganha. Em segundo lugar, a educação gratuita, mesmo que só alguns tirem um curso, tem benefícios para todos. Se o curso de medicina custasse 100,000€ ao médico, mesmo que descontados mais tarde, haveria menos pessoas a seguir medicina e quem seguisse cobraria mais pelo seu trabalho, por um lado por haver menos oferta e, por outro, para compensar os custos. Isto ia aos bolsos de todos. O que o Estado poupasse nas faculdades de medicina pagava depois nos hospitais públicos e o que o cidadão poupasse nos impostos que não pagava para os estudantes de medicina pagava depois nas consultas ou, pior ainda, ficava sem médico a quem recorrer.

Isto não é só para medicina. Saber ler e escrever, por exemplo, não parece grande coisa mas quem quiser investir numa empresa precisa de empregados capazes de fazer contas, gerir stocks, preencher papelada e afins. Se cada pessoa tivesse de pagar 50.000€ do seu ordenado para ter educação o custo desse trabalho seria muito maior. Isso não só prejudicava todos os clientes da empresa como também prejudicava os donos. No fundo, quem beneficia mais, individualmente, da educação gratuita são os grande accionistas. Pode ser que um empregado da Sonae ganhe mais umas centenas de euros do que ganharia sem a educação que tem. Mas o Belmiro de Azevedo ganha muitos milhões por não ter de pagar a educação dos seus empregados e por poder comprar, mais barato, o trabalho de tantas pessoas qualificadas.

A ideia de que quem tira um curso é o único beneficiário desse investimento é um disparate. A educação beneficia muita gente, e não é só em euros. Quanto maior o nível de educação dos meus vizinhos, nem que sejam licenciados em literatura medieval ou escrita cuneiforme, é mais provável que vacinem os seus filhos, que tomem os antibióticos de forma responsável, que não sejam criminosos e que sejam melhores vizinhos do que se não tiverem ido à escola. Mas assumir que o licenciado é o único beneficiário da licenciatura nem é o maior problema do argumento do Pedro. O pior é inferir daqui que, por isso, cada um deve pagar a sua educação. É uma inferência falaciosa, que parece fazer sentido quando não faz. O propósito do Estado não é cada um comprar o que pode. Não é preciso Estado para cada diabético pagar a sua insulina, cada habitante pagar o seu pedaço de estrada e cada um pagar a investigação do crime de que foi vítima. O papel fundamental do Estado é garantir a todos certas coisas importantes – como saúde, segurança e educação – distribuindo equitativamente o esforço de as pagar. Quando os economistas conseguirem garantir que todos nascem em famílias igualmente ricas e generosas podemos deixar estas coisas por conta do mercado. Se todos puderem participar nas transacções com igual poder de negociação, o princípio do utilizador pagador pode ser justo. Mas, até lá, as coisas mais importantes não podem ficar só para quem pode pagar, e a educação é das coisas mais importantes. Para todos.

1- Económico-Financeiro, Cortar na despesa - a educação.

domingo, novembro 18, 2012

Treta da semana: Biomusicologia®.

O “Instituto de Ciências do Som e Bioterapias” oferece consultas de Biomusicologia®. Atribuindo a Leonardo Coimbra a afirmação de que «a evolução biológica é a construção progressiva que a direção e a herança tenham feito num tempo determinado pelo conjunto das noções geológicas, físicas e químicas», explica a página no instituto que a Biomusicologia® Terapeutica é «Uma Terapia harmoniosa que permite o funcionamento total de um organismo vivo.»(1) Não percebi o que uma coisa tem que ver com a outra. Nem sequer percebi ao certo o que isto quer dizer. E se bem que o funcionamento total do organismo me pareça uma coisa boa, o vídeo deixou-me na dúvida.



Como qualquer pessoa que tem crianças pequenas a acordar todas as noites, percebo o apelo de fazer barulho enquanto alguém tenta dormir numa cama cheia de cordas e tambores. É uma forma de restabelecer um pouco de justiça ao universo, seguindo o princípio milenar do “lixa os outros como te lixaram a ti”. A dúvida é se é o paciente quem tenta dormir enquanto o terapeuta faz barulhos irritantes. Com o que tenho dormido ultimamente, temo que uma sessão destas acabasse com o terapeuta a engolir os instrumentos da terapia.

Além disso, há aspectos destas ciências do som e quejandos que me deixam preocupado. Por exemplo, que «Somos constituídos por um corpo físico, feito de matéria e por uma aura, mais súbtil, ou seja anti-matéria, que é o que reveste os nossos campos de energia.» Espero que se tenham enganado nisto. Não sei o que é um campo de energia, mas se está revestido de anti-matéria quero-o bem longe de mim. Com E=mc2 não se brinca.

No que toca ao espiritual e transcendente, a Biomusicologia® caracteriza-se pela «experiência de ser agarrado, ou levado por uma outra dimensão da realidade, que está para além da materialidade do ambiente que nos rodeia, e mais relacionada com a ambiente último que é infinito no seu desígnio e inesgotável no seu mistério.»

Peço desculpa. A citação anterior é do Miguel Panão, acerca da religião católica (2). A Biomusicologia® é «apreender a transpessoalidade implicada no sentido da existência. É reconhecer o poder de transformar a consciência que adoeceu ao longo do tempo através do despertar consciênte da imortalidade da alma.»(3) Por alguma razão estranha, às vezes confundo estas coisas.

A Biomusicologia® é tão especial, tal com uma data de outras crendices, porque não se sujeita a testes empíricos e porque ninguém pode provar que é falsa. Por exemplo, «A ciência oculta ensina na sua 3ª Lei A LEI DA VIBRAÇÃO, que a vida é movimento e o movimento é a essência da própria matéria. Tudo é incessante vibração. A substância são modos de movimento, distinguindo-se por diferentes velocidades de vibração.»(4) Esta lei da vibração não é como as teorias da física ou da biologia. Não é para se por à prova ou confrontar com observações. Estas “leis” brotam da contemplação de gurus iluminados cujos umbigos são verdadeiras janelas para os maiores mistérios do universo. Basta um olhar de relance e surgem umas dúzias de terapias, bruxarias e seitas. Para os iniciados, afirmações que ninguém pode verificar mas que ninguém consegue refutar são exemplo de conhecimento, sabedoria e até de Verdade, maiúscula e infalível. Eu chamo-lhes tretas a todas, mas deve ser mania minha.

1- Instituto de Ciências do Som e Bioterapias, Biomusicologia® Terapeutica
2- Miguel Panão, A religião é boa
3- Instituto de Ciências do Som e Bioterapias, Biomusicologia® Regressiva
4- Instituto de Ciências do Som e Bioterapias, Biomusicologia®

sexta-feira, novembro 16, 2012

Discernimento.

Segundo o Henrique Monteiro, uma coisa “do arco-da-velha” «é acreditar que um polícia, depois de hora e meia a levar pedradas, tem discernimento para, durante uma carga, saber quem prevaricou e não prevaricou.»(1) Seja com arco ou velha, eu diria que um polícia tem a obrigação de manter o discernimento e distinguir entre culpados e inocentes mesmo que lhe atirem pedras. Afinal, o papel da polícia é fazer cumprir a lei. Para desatar a bater quando se enervam já há bestas que chegue e que o fazem de borla.

A caracterização do Henrique Monteiro, de que «o que não é possível é durante uma carga, um polícia que esteve sob uma tensão enorme durante horas, indagar e interrogar-se sobre a justeza da sua ação», não só é um disparate como desprestigia o corpo de intervenção. A bastonada indiscriminada de uma carga policial não é – pelo menos, não deve ser – por nervos ou frustração. É um procedimento bem ensaiado do qual depende a segurança de cada polícia. Para uma dezena de homens com bastões enfrentarem uma multidão em tumulto não podem parar para distinguir culpados de inocentes. Se fazem isto no meio de uns milhares de adeptos em fúria pelo seu clube ter perdido acabam no hospital, ou pior. Por isso, quando carregam não podem parar a bastonada enquanto não estiver tudo a fugir ou a sangrar no chão. Nem pode, cada agente, decidir por si se acompanha os colegas se fica a identificar meliantes.

A questão importante, neste caso, é se se justificava dar a ordem de carregar desta maneira sobre os manifestantes. Como se pode ver neste vídeo, os imbecis que estavam a apedrejar os polícias estavam mesmo ali ao pé, sem ninguém entre eles e a polícia. Também é aparente nestas imagens que a polícia não enfrentava uma multidão violenta mas sim uma dúzia de arruaceiros e muita gente que não fazia mal nenhum. «Mas porque não foi ao meio da manifestação buscar os apedrejadores? Bem, porque era arriscado.» Isso não pode ser assumido gratuitamente. O que se tem de apurar é se quem ordenou aquela carga policial tinha indícios de algum perigo se simplesmente mandasse prender os arruaceiros. É duvidoso que tivesse. Não houve nada no comportamento dos restantes manifestantes que sugerisse violência contra os agentes nem necessidade de suspender a presunção de inocência e correr tudo à bastonada. É essa também a opinião da Amnistia Internacional (2).

O mais preocupante nisto é tanta gente assumir implicitamente que a polícia fez tudo bem. O Henrique Monteiro justifica a violência da polícia sobre inocentes com um «Quem ainda estava na praça sabia o que ia acontecer». O Carlos Guimarães Pinto pergunta, retoricamente, «se não será apropriado concluir que as restantes pessoas que se mantiveram na manifestação muito tempo depois do tiro ao polícia ter começado estavam ou não a validar com a sua presença as acções daqueles indivíduos.»(3) Todos no governo, e até o Presidente, que devia fiscalizar o governo, limitam-se a dizer que a polícia fez tudo como devia. Mas nem estar na rua onde ocorre um crime nem saber que a polícia vai bater justificam esta violência indiscriminada. Esta atitude de achar que quem levou bastonadas mereceu porque estava lá, que os polícias não precisam de justificar o que fazem e que se bateram em quem não deviam é porque estavam enervados, coitados, é completamente errada. Concedemos autoridade à polícia para fazer cumprir a lei, mas essa autoridade vem com a obrigação de respeitar criteriosamente a lei que queremos cumprida. E a lei não permite bastonadas a alguém só porque “estava mesmo a pedi-las” ou porque quem bateu estava nervoso.

Numa «nota final para os ignorantes que comparam estas cargas às que existiam antes do 25 de Abril», o Henrique Monteiro escreveu que esta foi completamente diferente porque dantes «Batiam em quem podiam, sem que nada fosse arremessado contra eles.» Não é isso o mais importante. A diferença principal entre a polícia de uma ditadura e a polícia de uma democracia está na responsabilidade de justificar o que faz. Ainda temos de ver se esta é das que presta contas aos cidadãos ou se faz o que dá jeito a quem manda sem nos dar satisfações.

1- Expresso, O sôr desculpe, por acaso estava a apedrejar?
2- TVI 24, Amnistia Internacional condena «uso excessivo da força»
3- O Insurgente, As bestas (2)

domingo, novembro 11, 2012

Treta da semana: os bifes da Maria.

Nasceu Maria Isabel Torres Baptista Parreira, cresceu na Linha, formou-se na Católica, casou com Nuno Maria Mariano de Carvalho Jonet, trabalhou em Bruxelas mas acabou por deixar a vida profissional para «acompanhar a integração escolar dos filhos» (1). Talvez tenha sido este percurso de vida que levou Isabel Jonet a expor-se recentemente a críticas por dar como exemplos de austeridade não comer bifes todos os dias ou ter de escolher entre ir a um concerto ou tirar uma radiografia depois de uma queda na ginástica (2). Uns dizem que deve abandonar a presidência do Banco Alimentar (3), outros defendem o seu trabalho «no combate à pobreza e à fome em concreto»(4) e a própria já esclareceu que «não estava a falar para os mais pobres»(5), o que quer que isso queira dizer. Esta polémica interessa-me pouco. Penso que uma pessoa com tempo disponível e contactos pode bem administrar voluntários e stocks de alimentos mesmo que as suas opiniões acerca da austeridade não estejam sequer na vizinhança da realidade. Por outro lado, os bancos alimentares combatem a pobreza da mesma forma que o paracetamol combate a pneumonia. Disfarçam alguns sintomas, o que pode ser melhor que nada, mas importa não os confundir com uma cura. O pobre auxiliado continua pobre à mesma.

Mais importante do que as metáforas infelizes da Isabel Jonet é a ideia de que quem sofre com a austeridade é quem esbanjou o dinheiro. O “nós” implícito em «Vivemos nos últimos anos muitas vezes acima das nossas reais possibilidades»(5). É como se pagássemos agora, todos por igual, uma asneira da qual somos todos igualmente responsáveis. Esta visão predomina na direita política, talvez por ser tão confortável para quem a austeridade é assim, sei lá, tipo não poder ir ao concerto por causa da queda na ginástica. Mas é completamente errada.

Quem paga mais caro esta situação são aquelas pessoas, muitas e cada vez mais, que trabalharam durante anos numa profissão e que agora estão sem emprego. Porque a fábrica fechou, ou o restaurante teve de despedir metade dos empregados, e não há mais ninguém que as contrate. O problema não é terem de comer menos bifes. O conceito pode ser difícil de compreender para alguém como a Isabel Jonet, mas o problema é que todo o rendimento destas pessoas vinha de venderem o seu trabalho. Sem comprador não têm dinheiro. Nenhum. Tanto faz se têm muitas dívidas ou poucas, se comiam muito ou se eram magrinhas. Agora ficaram com zero e não têm como viver.

Ao contrário do que explicou a Isabel Jonet, não perderam o emprego por falta de qualificações ou por alguma “restruturação” do mercado de trabalho. Não foi um enorme avanço na ciência da hotelaria que as tornou irrelevantes. A causa imediata foi a contracção do mercado. Se as pessoas compram menos há menos capacidade para manter empregados. A austeridade pode parecer uma virtude quando olhamos para quem decidiu poupar cortando despesas desnecessárias. Menos bifes, por exemplo. Mas quando o bairro todo faz isso várias pessoas perdem o emprego e já não o conseguem recuperar. O custo do reajustamento não é repartido por todos de forma equitativa.

Esta poupança é consequência dos cortes nas prestações sociais, cerca de metade do orçamento público, e nos salários da função pública, que é cerca de um quinto. Isto corresponde a uns 20% da economia portuguesa, só que estas pessoas gastam quase todo o seu rendimento em bens e serviços, pelo que cortes aqui têm um impacto grande na economia, agravado pela expectativa de mais cortes no futuro.

Por sua vez, estas medidas advêm da ideia de reduzir o défice cortando na despesa do Estado em vez de aumentar a receita. Dito assim soa bem, mas o que quer dizer é redistribuir menos. O Estado, supostamente, obtém mais receita de quem tem mais e gasta com quem mais precisa. Ajustar as contas pela despesa é cobrar o défice aos pobres. Não pagam todos por igual.

Também não somos todos igualmente responsáveis pelo défice. Parte do problema está em diferenças estruturais de logística, tecnologia, formação e cultura que tornam Portugal menos eficiente a vender coisas caras do que outros países como a Alemanha. Isto não é culpa de ninguém vivo hoje nem se pode resolver em poucas décadas. Mas o problema principal é os governos, principalmente os de direita, terem cobrado menos do que gastaram. As Jonets dirão que é culpa dos pobres que se fartaram de comer bifes, mas não é. O défice deve-se, por um lado, a dar dinheiro aos ricos em coisas como PPPs e resgates bancários e, por outro lado, a aumentar quase somente impostos sobre os salários evitando aumentar impostos sobre lucros de empresas, especulação financeira e qualquer coisa que incomode os mais ricos (6). Os ricos preferem dizer que o problema foi gastar-se muito em hospitais e escolas, mas parece-me que o mal foi eles não pagarem o que deviam ter pago e levarem mais do que deviam ter levado.

Ajustar o défice pela austeridade é injusto porque penaliza mais severamente quem tem menos culpa. E é um disparate porque deprime a economia tanto ou mais do que um aumento nos impostos sobre lucros e especulação com a agravante de reduzir o apoio aos mais necessitados. Daí ser tão prejudicial esta ideia hipócrita de que “nós” vivemos acima dos nossos meios e, por isso, “nós” temos de aceitar privações, coitadinhos de “nós”. Uns são mais nós do que outros.

1- Visão, Novembro de 2011, A Sra. Banco Alimentar
2- Alfredo Pereira (YouTube), O inacreditável discurso de Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome.
3- Por exemplo, Petição Isabel Jonet: Demita-se !
4- Expresso, Isabel Jonet, as palavras e os atos
5- Rádio Renascença, OPINIÃO DE ISABEL JONET
6- Correio da Manhã, Estado duplica receita com o IRS cobrado

sábado, novembro 10, 2012

Treta da semana (passada): espetar para preservar.

«Perceberam agora?», perguntou a Helena Matos, «Que se acabarem as touradas acabam os touros bravos?»(1) e, como exemplo, deu uma notícia que não tem nada que ver com touradas mas com gado abandonado (2). À parte da incoerência, o argumento de continuar as touradas para preservar os touros bravos é uma treta.

O touro bravo não é uma espécie. É seleccionado e criado para ser agressivo mas não tem importância para a diversidade genética dos bovinos. Nem é uma coisa muito natural. «A raça Brava resulta de um processo de selecção e transformação, até à obtenção de um animal que, não perdendo as suas características de investida, permite ser submetido, através do toureio»(3). É um bicho de circo. Se deixarem de criar estes animais, biologicamente não se perde nada.

O argumento de que se crie o touro bravo pelo valor ecológico do montado também não colhe, e até é inconsistente. É verdade que o montado é um ecossistema importante, com grande biodiversidade e abrigando espécies em perigo como o Lince Ibérico e a Águia Imperial. Tem também um grande valor económico, por exemplo pela produção de cortiça. Mas o touro não faz lá falta e, se o montado é assim tão importante, certamente que não vai desaparecer só por se deixar de fazer touradas. Os montados em Portugal estão legalmente protegidos e, ao contrário do que este argumento assume, o mais plausível é que os proprietários das ganadarias simplesmente aproveitem os montados para criar estes touros. Não é plausível que os montados só sejam úteis por causa dos touros. Parece-me contraditório afirmar que o montado é muitíssimo importante mas que sem o touro bravo ninguém quer montados para nada.

Mas o maior erro da Helena Matos é julgar que torturar os animais em espectáculos públicos é uma forma adequada de os proteger. Se quisermos preservar o touro bravo, então o melhor será criar reservas naturais para esses animais. A solução da Helena faz tanto sentido como incentivar as lutas de cães para promover a criação do Dogue Argentino. Mas isso, dirão os aficionados da tauromaquia, é uma coisa completamente diferente. A tourada é uma tradição milenar na qual o bravo animal é homenageado pelo público por enfrentar o sofrimento até à sua gloriosa morte. A luta de cães, pelo contrário, é um espectáculo bárbaro e antiquada no qual a assistência se entretém vendo animais a sofrer até à morte. Perceberam agora?

1- Blasfémias, Perceberam agora?
2- Esta, no Jornal de Notícias, mas ver também esta, no Público, mais detalhada.
3- Café Portugal, Touro bravo é estudado na Faculdade de Medicina Veterinária

Disto e daquilo, 3.

Aonde?
Num canal qualquer vai dar o filme “Aonde é que pára a polícia?”. Talvez seja da idade, mas estas coisas incomodam-me cada vez mais. Se pára, não é aonde. É onde. Até podem experimentar ler devagar: a onde é que pára. Não faz sentido. Apesar do filme vir com este título em vários sítios (1), quando noticiaram a morte do Leslie Nielsen ou puseram o título original (2) ou corrigiram o português (3). Ao menos isso.

Um milhão de milhões.
Segundo uma notícia no Expresso, a «França exige à Google um milhão de milhões de euros»(4) em impostos. Não sei se terá sido uma tradução apressada de “billion” ou “milliard” para bilião, mas é estranho que passado mais de uma semana não tenham corrigido o título. Possivelmente pensaram meh, mil vezes mais, mil vezes menos, tanto faz. Além disso, quem escreveu isto para o Expresso esqueceu-se das partes mais interessantes. Por um lado, a pressão que Estados como a França e a Alemanha estão a fazer sobre indexadores como a Google para pagarem um género de “direitos acessórios” pelos excertos de algumas palavras que citam acompanhando as ligações para páginas de notícias. Segundo a legislação vigente é perfeitamente legítimo citar pequenos trechos sem pedir autorização ou pagar licenças. Mas na Alemanha já há propostas de lei para obrigar a tais pagamentos e na França estão a pressionar a Google para chegar a acordo com as “empresas de conteúdos” (5). Bem feito era se simplesmente deixassem de indexar sites que exigissem pagamento. Por outro lado, há a situação fiscal escandalosa da Google. No ano passado, tiveram 4,7 mil milhões de dólares de lucros nos EUA, dos quais pagaram 43%. Mas dos 7,6 mil milhões de dólares que ganharam no resto do mundo pagaram apenas 3,2% em impostos (6). E, ao que parece, isto é legal. Talvez se largassem um pouco a austeridade e se dedicassem a tapar os rombos na legislação fiscal para as empresas as coisas aqui na Europa melhorassem um pouco.

Copy right e copy wrong.
No Canadá, o supremo tribunal declarou inválida a patente da Pfizer sobre o Viagra por não incluir os detalhes necessários à recriação do invento (7). Isto é um resultado importante para combater a ideia errada de que a “propriedade intelectual” é um direito do criador. Na verdade, estes monopólios só devem ser concedidos em benefício da sociedade. No caso das patentes, concede-se um monopólio temporário sobre a exploração de uma invenção em troca da divulgação detalhada daquilo que foi inventado. No caso das obras literárias ou artísticas, concede-se monopólios sobre a cópia como incentivo e subsídio à divulgação e distribuição das obras. Em ambos os casos, só faz sentido a sociedade conceder esses monopólios se tirar daí benefícios que compensem os custos. Um exemplo do que não devia ser aceite é a patente que a Microsoft submeteu sobre um método para bloquear a exibição de conteúdos se o número de pessoas a assistir for superior ao permitido pela licença (8). Não é só a parvoíce de conceder um monopólio sobre esta ideia (a troco de quê?) mas a parvoíce ainda maior do sistema legal servir para que, por exemplo, se alugue um DVD com a restrição de só poder ser exibido a quatro pessoas e cobrar extra se a audiência chegar à meia dúzia. Há tempos o Icarus perguntou-me como eu achava que seria o futuro destas coisas (9). Acho que vão acabar. Cada vez é mais fácil ignorar estes monopólios, cada vez é preciso leis mais absurdas para os tentar proteger e enquanto os custos para a sociedade são cada vez maiores os benefícios são cada vez mais pequenos. É uma questão de tempo até o eleitorado abrir os olhos.
1- Por exemplo, aqui e aqui.
2- Visão, Morreu o ator Leslie Nielsen
3- Blitz, Morreu Leslie Nielsen, ator das sagas Onde Pára a Polícia e Aeroplano
4- Expresso, França exige à Google um milhão de milhões de euros.
5- NY Times, A Clash Across Europe Over the Value of a Click
6- Reuters, Google denies 1 billion euro French tax claim.
7- Michael Geist, Supreme Court Voids Viagra Patent as Insufficient Disclosure Means It Fails the "Patent Bargain"
8- US Patent and Trademark office, CONTENT DISTRIBUTION REGULATION BY VIEWING USER (via Boing Boing).

9- Comentário em Treta da semana (passada): 312€ + IVA.

domingo, novembro 04, 2012

Treta da semana (passada): cadeia com eles.

Em Itália, seis sismólogos e um oficial do governo foram condenados por homicídio negligente de 29 pessoas em L'Aquila. no sismo de 2009. As notícias em alguns jornais alegaram que teriam sido condenados por subestimar os riscos do sismo (1) mas, ao contrário do que as notícias dão a entender, os sismólogos não foram condenados pela dificuldade de prever os sismos. O caso é ainda mais sórdido.

Depois de uns tremores que assustaram as pessoas, um responsável pela protecção civil, Bernardo De Bernardinis, convocou um painel de sismólogos para uma reunião com o intuito de assegurar a população de que tudo iria correr bem. Terminada a reunião, foi isso que De Bernardinis disse numa conferência de imprensa. Podiam ir todos para casa beber vinho que os tremores até eram bom sinal, pois descarregavam a energia acumulada e reduziam a probabilidade de sismos mais graves. Só que não foi nada disso que os sismólogos lhe disseram. O que disseram foi, basicamente, que era uma zona de risco mas que não se podia prever que iria ocorrer um sismo forte só porque tinha havido tremores fracos (2). O tribunal não os condenou por subestimar o sismo mas condenou-os porque o oficial do governo, que não era sismólogo, decidiu dizer parvoíces diante das câmaras. Se já é questionável que condenem De Bernardinis por homicídio negligente, que condenem os sismólogos por algo que este tipo decidiu dizer é totalmente absurdo. E as consequências serão trágicas.

Por um lado, dificilmente os cientistas italianos voltarão a colaborar com o governo em problemas importantes para a segurança ou saúde pública. Com esta responsabilização legal arriscam a serem presos pelos disparates que os políticos dizem. Por outro lado, desvia a atenção da verdadeira causa da tragédia de L'Aquila, onde morreram mais de 300 pessoas. Não se pode prever em que dia irão ocorrer sismos como aquele. Não havia nada que os sismólogos pudessem afirmar, com fundamento científico, que salvasse aquelas pessoas naquela situação. A única forma fiável de prevenir aquelas mortes teria sido preparar os edifícios antigos para não soterrarem toda a gente em caso de sismo. O problema é que isso custa muito dinheiro e, por isso, a legislação apenas obrigava os edifícios novos a resistir aos sismos. Aos antigos não era preciso fazer nada. Foi essa decisão que matou 300 pessoas.

1- Por exemplo, o Exresso e o Sol
2- Para mais detalhes ver Cientistas condenados a seis anos de prisão por homicídio no De Rerum Natura, Italy puts seismology in the dock, na Nature News, e Italian earthquake case is no anti-science witch-hunt e Seismologists found guilty of manslaughter na New Scientist.

Moral e ética.

Nos comentários ao post sobre a dignidade, o João Vasco escreveu que «A moral surge da necessidade de conciliar vontades»(1). Se bem que concorde que sem conflito não é preciso moral nem ética, o conflito, por si, não produz moral. A necessidade de conciliar vontades sem qualquer moral é muito comum. A águia quer comer o coelho, a este isso não dá jeito mas algum irá ceder, resolvendo o conflito. Mesmo quando há moral, no sentido lato de normas sociais, esta pode não servir para conciliar vontades de forma justa. A moral da alcateia dita que o lobo dominante coma antes dos outros. A moral no Irão dita que a apostasia deve ser punida. Muitas regras morais parecem ter como propósito impor comportamentos em vez de conciliar seja o que for. Recorro novamente à citação de Pio XII que colei no outro post: «A ninguém, pois, seja lícito infringir esta nossa declaração, proclamação e definição, ou temerariamente opor-se-lhe e contrariá-la.» As religiões são exímias a inventar regras morais que lhes convenham.

Concordo, no entanto, que conciliar vontades é um problema ético do qual a moral devia depender*. Mas, se bem que o problema só se ponha se houver conflitos, como o João Vasco escreveu, não é do conflito em si que surge a ética. O fundamental é uma escolha pessoal. A ética vem da opção de submeter as regras morais ao crivo de valores imparciais, independentes das nossas tradições, do hábito ou do que nos dá jeito. Basicamente, da decisão de ter consideração pelos outros e conciliar as vontades de forma justa.

O Nuno obstou porque «Se a dignidade humana dependesse de algo tão subjectivo quanto o apetite à consideração que cada um tem por cada qual, era num estalar de dedos que alguém ta podia retirar se para aí estivesse virado.» Precisamente. «E que fundamento materialista arranjas tu para esse respeito automático pela subjectividade alheia? É e deve ser automático porquê?» Não é automático nem tem “fundamento materialista”. É uma escolha e, por ser opcional, pode sumir num estalar de dedos. Pior ainda, apesar de facilmente aprendermos regras morais, a ética tem sido uma coisa rara na nossa história. Basta ver, por exemplo, o tempo que demorou até a maioria perceber que a escravatura é uma coisa má e o que ainda hoje custa, em tantos sítios, explicar que devemos ser todos iguais perante a lei e governados por quem nos representa. Temos muito mais facilidade em aprender a fazer coisas porque “é assim que se faz” do que aferir, de forma crítica, se será essa a opção mais justa.

A ética é frágil precisamente porque é opcional. Entre as tribos do Afeganistão e até aqui por Lisboa, em certos sítios, pode-se ver facilmente como a dignidade e os direitos humanos valem pouco quando a opção de lhes dar valor não é consensual. E um dos maiores perigos para a ética é ignorar essa fragilidade com a ilusão de um fundamento sólido e transcendente que mantenha o universo nos eixos. O Faroleiro comentou que «Para determinar o Mal é necessário um referencial exterior ao sistema senão esse "Mal" é sempre relativo, dependente das relações de força vigentes na sociedade». A ética, realmente, procura uma perspectiva fora de qualquer sujeito. O objectivo não é ver as coisas como eu quero, como tu queres ou como Deus quer mas sim encontrar normas independentes de qualquer sujeito em particular. Mas isso não é um referencial exterior ao sistema. Isso é o sistema, e é um erro confundir a opção pessoal de procurar esses critérios com a imposição de critérios alheios: «Se o amor não corresponder a um mandamento divino, a sua validade lógica é a de uma simples idiossincrasia pessoal ao mesmo nível de uma outra idiossincrasia pessoal qualquer.» Se o amor corresponder a um mandamento divino então não terá nada que ver com a ética. A ética não tem que ver com obediência mas sim com autonomia e responsabilidade.

O que queremos da ética não é uma simples idiossincrasia pessoal mas só podemos ter ética se compreendermos que é uma opção pessoal. Se nos comportamos de certa forma por mandamento, por medo do castigo ou por hábito então temos apenas uma moral sem fundamento ético. As regras estão lá, mas não somos responsáveis por elas nem por garantir que são justas ou boas. Foi essa atitude que permitiu milhares de anos de escravatura, opressão, injustiças e desrespeito até que, nos últimos séculos, finalmente se começou a perceber que a ética não vem de fora – de deuses, bispos ou reis – mas que tem de ser criada por cada um de nós. Infelizmente, delegar os juízos de valor nos “superiores” continua a dar jeito aos que se dizem superiores. O José Policarpo, por exemplo, desaconselha protestos (2) e recomenda respeito pelos órgãos de soberania (3). Em grande parte, a tolerância que a maioria tem pela injustiça que vem de cima – de legisladores, ministros, juízes, bispos e afins – deve-se à ilusão de que a moral também vem de cima, dos soberanos, deuses ou seus representantes, em virtude de estarem lá em cima, e o que importa cá em baixo é obedecer aos mandamentos.

É importante desfazer esta ilusão. A compreensão de que ninguém é “dono” da moral só por ser rei, papa ou deus foi uma grande conquista dos últimos séculos. Deu-nos a democracia, a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei e assim por diante. Mas implica que todos nos temos de responsabilizar pela avaliação crítica das normas sociais. É trágico quando a maioria se esquece desta responsabilidade e aceita cegamente ideologias políticas ou mandamentos divinos. É esse o perigo do «referencial exterior». Por outro lado, se tivermos consciência de que cada um só é tão ético quanto queira ser estaremos muito mais atentos às tretas que nos querem impingir e teremos muito mais cuidado com o poder que damos aos que nos governam e aos que policiam o nosso comportamento.

* Há quem use “moral” e “ética” como sinónimos, mas eu prefiro distingui-las e chamo moral às normas de conduta e ética à avaliação crítica dessas normas com o intuito de as fundamentar em princípios justos e imparciais.

1- Dignidade, graças a Deus.
2- Económico, ”Não se resolve nada contestando”
3- Expresso, Cardeal aconselha prudência no exercício dos direitos constitucionais

domingo, outubro 28, 2012

Treta da semana (passada): na maior.

Soube recentemente da publicação de um livro que pretende ensinar aos alunos universitários como tirar o curso. «Faz o curso na maior – Estuda o mínimo, vive ao máximo», de Nuno Ferreira e Bruno Caldeira. O Francisco Delgado já dissecou várias alegações do livro ou, pelo menos, do primeiro capítulo e da forma como o livro foi apresentado (1). Eu gostava de abordar um problema mais geral.

A ideia fundamental do livro parece ser minimizar o tempo de estudo recorrendo a apontamentos de colegas que se dedicaram a identificar a matéria mais importante, concentrando-se na resolução de exames de anos anteriores e estudando na véspera das avaliações. Parece-me uma ideia muito pouco original. Talvez um título mais adequado fosse “Como descobrimos a roda e como a podes descobrir também”. E não merece ser tão generalizada como os autores propõem.

Resolver exames de anos anteriores é boa ideia. Como o exame visa testar o conhecimento do aluno tem de cobrir, pelo menos, a matéria mais importante e não pode variar muito de ano para ano. Estudar de véspera também dá para safar. Fica tudo amontoado no cérebro, desmorona uns dias depois mas, se mantiver alguma coerência até a dia da prova lá fica a disciplina feita. O problema é que mecanizar exercícios em cima da hora dá trabalho, é chato e não satisfaz. Depois do exame só sobra uma baralhada de truques para resolver alguns exercícios e não fica nada que faça sentido. Penso que qualquer pessoa com um curso superior conhece a sensação mas, se queremos optimizar o retorno do investimento, é má ideia fazer disto a norma.

Mas o maior erro dos autores parece-me ser a premissa de que «O importante é passar às disciplinas com boas notas», seja por que truque for. O autor até dá um exemplo: «Tive colegas de curso que sabiam muito mais do que eu sobre determinada cadeira mas no final acabaram por chumbar ou por ter uma nota mais baixa do que a minha.» Que tansos, subentende-se. Mas o que é importante depende da pessoa e da disciplina. Para mim também houve disciplinas de fazer e esquecer, como química orgânica ou mecanismos das reacções químicas. Hoje guardo apenas uma vaga memória de umas setinhas nas fórmulas que pareciam surgir mais por magia do que por ciência. Na maioria fiz precisamente o contrário do que este autor que «Raramente estudava pelos livros recomendados, porque sabia que alguém já os tinha lido e havia algures uns apontamentos resumidos com a matéria que era preciso saber». Eu preferia ler os livros. Em alguns casos, como química inorgânica e química física, com livros do Atkins, até os lia de ponta a ponta sem me importar se era matéria da disciplina ou não. Gostei imenso do que aprendi e fiquei com uma ideia muito mais clara do que se tivesse estudado por apontamentos dos colegas ou decorado exercícios e as disciplinas em que tive boas notas, quer na licenciatura quer no mestrado, foram aquelas que não me custou estudar porque gostava da matéria. Nessas não fazia sentido minimizar o tempo de estudo. Em geral, sempre me pareceu mais importante perceber o que estava a aprender do que treinar para o exame. Isto prejudicou-me as notas em muitos casos, admito, mas deixou-me muito mais satisfeito do que ficaria se tivesse optado pelo método recomendado neste livro. E deu-me muito menos trabalho porque ler coisas com interesse não é trabalho nenhum.

Mas isto sou eu. Outros terão outras experiências e preferências. É precisamente esse o maior problema deste livro. Não há uma receita para o “sucesso académico”. Não só pela complexidade de factores que condicionam o percurso do estudante e pelas diferentes prioridades e objectivos que cada um tem mas até, mais fundamentalmente, pela subjectividade do conceito de sucesso. A entrevista para a Visão dá uma ideia do que é sucesso segundo este livro: «Ir a festas e fazer muitos amigos, pois, no futuro, essas pessoas podem ser determinantes - eis uma das ideias-chave do livro. "Há uns anos, fui convidado para fundar uma revista de economia, por um colega de turma; é assim que as coisas acontecem"». Talvez sim, e mais vezes do que deviam. Mas não é correcto assumir que fazer as coisas “na maior” é necessariamente isto.

1- Francisco Delgado, Uma ova. Ver também a entrevista na Visão e o capítulo online.