domingo, dezembro 29, 2013

Treta da semana (passada): Cacique Cobra Coral.

Um leitor brasileiro enviou-me notícias de uma interessante parceria público-privada no Rio de Janeiro, cujo prefeito acabou de «renovar o contrato com a Fundação Cacique Cobra Coral. Esta fundação tem poderes mentais que desviam a chuva»(1). Segundo o site da fundação, «A Fundação Cacique Cobra Coral foi criada para intervir nos desequilíbrios provocados pelo homem na natureza. Fundada por Ângelo Scritori e tendo a frente sua filha Adelaide Scritori», uma médium que “incorpora” o espírito do Cacique Cobra Coral, alegadamente o mesmo espírito que já fora «Galileu Galilei e Abraham Lincoln» antes de se tornar cacique. A Adelaide nasceu «acompanhada de uma profecia» do espírito do Padre Cícero que, manifestando-se por intermédio do pai dela, anunciou que a Adelaide teria «poderes para se comunicar com [...] um ente poderoso o suficiente para alterar fenômenos naturais»(2).

Além do ridículo de pagar ao espírito do cacique para levar a chuva para outras bandas, há também um aspecto trágico nesta parvoíce. As chuvas torrenciais no Estado do Rio de Janeiro são um perigo real para muita gente que vive em zonas sensíveis a inundações e derrocadas. Em Janeiro de 2011, por exemplo, morreram mais de novecentas pessoas num só dia de chuva (1). Investir em espiritismos quando há necessidades tão prementes devia ser crime.

Independentemente da gravidade das consequências, não se deve gastar o erário neste tipo de coisas. Nem é por serem fantasia. É legítimo haver investimento público em arte e cultura; não é obrigatório que o Estado invista apenas no que é factual ou útil no sentido prático. E, ao que parece, estas coisas do espiritismo têm muitos adeptos no Brasil, provavelmente ainda mais do que por cá. Mas não se deve gastar dinheiro público nisto porque o investimento presume que há mesmo espíritos com esses poderes, e pessoas especiais que os contactam, sem que haja quaisquer evidências objectivas de que tal premissa seja verdadeira. Não se pode provar que seja falsa, mas nada indica que seja verdade e, por isso, é um mau investimento.

Por cá temos um problema análogo. Não parece tão ridículo, talvez por ser mais discreto ou talvez pelo hábito, mas é fundamentalmente o mesmo. É o dinheiro que o Estado gasta com algumas organizações religiosas, especialmente a Igreja Católica. Desde isenções fiscais ao financiamento da propaganda religiosa nas escolas públicas, passando pelas capelanias dos hospitais e forças armadas, há muito dinheiro que vai dos impostos para estas organizações por uma premissa tão infundada como a da Adelaide falar com o espírito do cacique e este intervir na meteorologia. É a premissa de que os sacerdotes de algumas religiões falam com um Deus que lhes comunica doutrina e, ocasionalmente, faz um milagre ou outro.

Isto não tem nada que ver com a liberdade de crença, que não nego a espíritas ou religiosos, nem com a tradição e cultura de cada povo. Não me choca que o Estado invista na recuperação de mosteiros ou igrejas nem me oporia a uma disciplina sobre religiões na escola pública. Já várias vezes tive de relatar aos meus filhos trechos da Bíblia para poderem perceber referências que surgem em filmes ou livros, por exemplo. As religiões são uma parte significativa da nossa história e cultura e penso que o Estado deve contribuir para preservar essa memória. Mas isso não é o mesmo que pagar professores escolhidos por organizações religiosas, padres em hospitais e quartéis ou espíritas para fazer a chuva parar. Esses investimentos pressupõem mais do que um significado cultural ou valor histórico. Pressupõem que essas pessoas têm mesmo uma ligação especial ao sobrenatural e essa premissa é treta.

1- Jornal do Brasil, Garotinho condena convênio entre Paes e Fundação Cacique Cobra Coral. Obrigado pelo email com o link.
2- Fundação Cacique Cobra Coral, A Fundação

domingo, dezembro 22, 2013

Treta da semana (passada): isso é meu.

O Amazon Instant Video é um serviço da Amazon que permite ao utilizador ver os vídeos que comprou sem precisar de os guardar no seu computador. Geralmente. A semana passada, a pedido da Disney, a Amazon retirou deste serviço o filme “Prep & Landing”, que a Disney quer transmitir em exclusivo no seu canal durante a época natalícia. O filme não só deixou de estar disponível para compra como também deixou de estar acessível a quem já o tinha comprado. A Amazon alega ter sido um erro (1), apesar de ter dito a alguns clientes que era uma prerrogativa da Disney retirar o acesso ao filme mesmo depois de comprado (2) e apesar deste tipo de medidas já ter precedentes. Ironicamente, com o livro “1984” (3). Seja como for, o facto é que o vendedor pode facilmente “desvender” o produto sem consentimento do comprador.

Este problema não se limita aos ficheiros que o cliente confie aos servidores da empresa. Qualquer ficheiro com DRM, mesmo guardado num aparelho do comprador, pode ter a sua utilização condicionada pelo vendedor. A cópia, a instalação em novo hardware ou até o simples acesso podem carecer de uma ligação aos servidores da empresa para obter autorização, pelo que o vendedor pode inutilizar o produto comprado a qualquer momento (4). Nem sequer é um problema apenas de ficheiros e programas. Os próprios aparelhos, maioritariamente consolas de jogos e telemóveis mas cada vez mais tipos de equipamento, podem vir com limitações impostas pelo vendedor. Alegadamente, isto é para defender direitos de propriedade, mas só defende a “propriedade intelectual” de quem vende à custa dos direitos de quem compra.

A minha posição é a de que a noção de propriedade intelectual é absurda. É a ideia de que se pode vender peças de xadrez mas ficar dono das jogadas ou vender calculadoras e reter direitos de propriedade sobre contas e números. Os direitos de propriedade regulam o uso de objectos materiais em concreto e não de informação, categorias ou conceitos abstractos. Mas mesmo quem discorda desta rejeição cabal do conceito geralmente concorda ser ilegítimo que os direitos de “propriedade intelectual” do vendedor violem os direitos de propriedade do comprador. Devo esclarecer que esta violação não vem do DRM em si. Um fabricante podia tentar vender torradeiras que só funcionassem a certas horas do dia na esperança de convencer cada cliente a levar uma para o pequeno-almoço e outra para a ceia. Isso não violaria quaisquer direitos de propriedade. Mas parece-me consensual que uma lei proibindo o cliente de modificar a torradeira que comprou para contornar essa restrição violaria os direitos de propriedade do comprador. O problema fundamental é essa proibição, que retira direitos ao dono da coisa para favorecer os interesses económicos de quem já a vendeu. Como acontece com as consolas, por exemplo. É ilegal modificar uma consola de jogos para permitir usar DVD copiados, mesmo sendo a cópia privada um direito consagrado na lei, pelo qual pagamos taxa em nos DVD graváveis, e mesmo sendo legítimo fazer cópias de segurança do software que compramos.

Até aqui, penso que mesmo os leitores que normalmente discordam de mim nestas coisas do copyright estarão de acordo. Se compro algo, seja filme, livro, torradeira ou consola de jogos, não são os direitos de “propriedade intelectual” de quem mo vendeu que legitimam tirarem-me o acesso ao que é meu ou impedirem-me de desaparafusar, cortar, colar ou soldar como entender. Mesmo que isto não pareça evidente em todos os casos, neste exemplo da Amazon deve ser. Seria (ou foi?) abusivo negar a alguém o acesso ao filme que comprou só porque a Disney quer mais gente a ver os anúncios no seu canal de TV. O lucro do vendedor não justifica violar os direitos de propriedade do comprador. Dito assim, é quase uma verdade de La Palice.

Falta apenas aceitar as implicações deste princípio para rejeitar, como eu, qualquer restrição legal à cópia e distribuição não comercial de obras publicadas. Por um lado, porque a única justificação para estas restrições é proteger os lucros de quem vende essas obras. E, por outro lado, porque proibir alguém de copiar um ficheiro, de o descarregar ou de o partilhar com outras pessoas restringe o que essa pessoa pode fazer com o seu computador, violando os seus direitos de propriedade sobre aquilo que comprou. Neste aspecto, não há diferença fundamental entre limitar os dias em que uma pessoa pode ver o filme que comprou e limitar os ficheiros que uma pessoa pode copiar com o computador que comprou.

1- The Guardian, Amazon accidentally removes Disney Christmas special from owners' accounts
2 - BoingBoing, Amazon takes away access to purchased Christmas movie during Christmas
3 - The Guardian, Amazon Kindle users surprised by 'Big Brother' move
4- Na página da Wikipedia sobre DRM há uma lista com vários exemplos dos problemas que isto traz aos compradores: DRM, Obsolescence

domingo, dezembro 15, 2013

Treta da semana (passada): numerologia.

Em 1948, o psicólogo Bertram Forer pediu aos seus alunos que preenchessem um questionário para receberem uma análise individualizada da sua personalidade. Depois, quando entregou os resultados, pediu a cada aluno que classificasse a sua, de 0 a 5, para avaliar quanto correspondia à sua personalidade. A maioria dos alunos achou que a análise era muito acertada e a pontuação média foi de 4.26. Só depois é que Forer lhes disse que todos tinham recebido o mesmo texto, um agregado de banalidades que ele tinha recolhido das secções de astrologia de revistas: «Sentes necessidade de ter pessoas que te admirem e gostem de ti. Tens tendência para auto-crítica. Tens muitas capacidades que ainda não usaste em tua vantagem. Se bem que tenhas algumas fraquezas na tua personalidade, em geral consegues compensá-las» e assim por diante(1).

O segredo deste “efeito de Forer” é a combinação de uma descrição que aponte alguns aspectos positivos e negativos suficientemente genéricos com algum mecanismo que convença o visado de que a descrição lhe é específica. Na experiência de Forer isto foi conseguido com o questionário e a confiança no professor mas também se pode usar a data de nascimento, a palma da mão, o nome da pessoa ou qualquer outra coisa que disfarce o carácter genérico e banal da descrição. Desde que a vítima se convença de que o prognosticador sabe do que fala, o engodo funciona. É este também o fundamento da numerologia.

Um programa recente na TVI ilustra este truque psicológico (2). A convidada, Marta Pica Rodrigues, é formada em psicologia mas dedica-se também «a terapias holísticas utilizando a Astrologia, a Numerologia e o Tarot.»(3). Pelo que ouvi do programa, não consegui perceber se a Marta estudou o efeito de Forer, se o domina ou se é mais uma vítima deste enviesamento cognitivo. Mas é fácil perceber como a sua simpatia, o seu ar confiante e a alusão a coisas como “as energias dos números” ou “a energia dos pináculos ou dos ciclos de vida” conseguem convencer alguém como a Cristina Ferreira* de que as análises da Marta são quase tão boas como as do Bertram Forer.

A numerologia é um bom exemplo das dificuldades cognitivas que a ciência moderna enfrenta. A ideia fundamental da numerologia é a de associar a cada número de 1 a 9 algumas características antropomórficas. Individualidade, união, experiência de vida, família e assim por diante (4). Com estes elementos, depois pode-se criar narrativas, mais ou menos complexas, que parecem muito mais importantes do que os números em si. Isto porque o nosso cérebro está mais vocacionado para lidar com histórias, personagens e propósitos do que com quantidades, hipóteses rigorosas e a forma de as testar. Por exemplo, para um aficionado da numerologia é muito mais fascinante associar ao 3 a capacidade de comunicação, ao 4 a capacidade de criação e inventar histórias a partir daí do que pensar como raio se descobriu essa associação, como se pode testar se o 3.5 tem características intermédias ou quantificar o peso relativo destes atributos para cada valor real. O problema disto é que, ao contrário do que se julgou durante milénios, a realidade não é governada por personagens, intenções e características humanas. Para a compreender é preciso lidar com quantidades e testar hipóteses com critérios objectivos e não apenas pela confiança que quem as enuncia nos inspira. O que é tramado, porque isto exige usar o cérebro de formas para as quais este não está bem adaptado.

Mas nem tudo é mau neste enviesamento. Como memorizar histórias é muito mais fácil do que memorizar sequências de números, um truque para memorizar o PIN do telemóvel, números de telefone ou a página em que ficámos no livro é adaptar os princípios da numerologia e associar a cada algarismo um personagem e ao número uma história com esses personagens. Por exemplo, eu uso o Buda para o zero, uma garça para o um, um boi para o dois, um caranguejo para o três e assim por diante. Se fiquei na página 130 posso pensar na garça a dar bicadas no caranguejo e o Buda a dizer-lhe para não fazer isso. Não só é mais fácil recordar essa cena como fico com várias vias diferentes que posso usar para chegar ao número – o número em si, os nomes dos personagens, as imagens dos personagens e a história – o que me permite tirar umas pelas outras se me falhar algo. Não dá tanto dinheiro como usar o efeito de Forer na televisão, mas é útil no quotidiano e variantes mais sofisticadas desta técnica até servem para coisas como truques de mentalismo ou contar cartas no casino.

O Goucha talvez tenha só ido na conversa porque é o trabalho dele.

1- Wikipedia, Forer effect
2- Vídeo disponível aqui. Obrigado pela dica no Facebook.
3- Terapias do Equilíbrio, Sobre Mim
4- Wikipedia, Numerology

segunda-feira, dezembro 09, 2013

Austeridade, parte 3: a irresponsabilidade da dívida.

A narrativa deste governo, e de muitos comentadores, é a de que o despesismo irresponsável dos governos anteriores levou “os mercados” a cortar-nos o crédito e daí veio esta crise e o imperativo da austeridade. A tese é facilmente refutada pelo facto da dívida pública portuguesa ter rondado os 60-70% do PIB entre 1991 e 2008, sendo semelhante à da Alemanha até ao início da crise (1). Em Portugal, o excesso de dívida pública veio depois da crise. Mas, mesmo quando os defensores da austeridade admitem que não foi a dívida que causou a crise, ainda apontam que se Portugal não tivesse dívida pública não precisaria de resgate e que contrair dívidas é irresponsável. É protelar os custos para gerações futuras, hipotecar a nação, gastar mais do que se produz e outros vícios que tal. Além de isto não resolver o problema da dívida – quase metade da presente dívida pública de Portugal, e quase toda no caso da Irlanda, surgiu depois do inicio da crise na banca internacional – é um disparate pensar que o endividamento é sempre imoral e irresponsável. Há muitas situações em que se justifica contrair dívidas. Se vou demorar vinte anos a juntar dinheiro para comprar uma casa mais vale comprá-la com dinheiro emprestado do que viver vinte anos ao relento. Se uma fábrica pode lucrar com maquinaria nova pode ser mais proveitoso comprar a crédito do que perder oportunidades de negócio enquanto juntam dinheiro para comprar a pronto. Com um país o princípio é o mesmo, com algumas diferenças importantes.

Há poucas décadas, Portugal estava muito atrás da Europa ocidental em educação e saúde. Por exemplo, em 1970 a esperança média de vida à nascença em Portugal era quatro anos menor do que na Alemanha. Em 1990 ainda era quase três anos e meio menor. Mas em 2012 a diferença já era inferior a meio ano (2). É verdade que muito dinheiro do Estado português foi mal aplicado, enriquecendo alguns em negócios duvidosos que agora são investigados até à prescrição sem que nada se resolva. Era bom ter-se poupado esse dinheiro ou, pelo menos, punir os culpados. Mas isso não eliminaria a dívida pública nem o problema que agora enfrentamos porque grande parte da dívida contraída até 2008 foi mesmo necessária para resolver problemas como, por exemplo, a mortalidade infantil. O Estado tem a obrigação de zelar por direitos fundamentais e seria muito mais imoral e irresponsável deixar crianças morrer só para não pedir empréstimos a taxas de juro que, na altura, eram baixas.

Mesmo ignorando o desenvolvimento social e humano do país e focando apenas o desenvolvimento económico, justifica-se contrair dívidas para estimular a economia, construir infraestruturas e melhorar a qualidade da força laboral investindo em saúde e educação. Não só porque, eventualmente, o crescimento da economia compensa a despesa mas também porque o investimento público é necessário num país democrático que queira reduzir as desvantagens que tenha em relação aos seus vizinhos. A China pode desenvolver-se pelo trabalho escravo da sua população mas, desde 1974, essa opção deixou de ser viável em Portugal. E ainda bem.

Finalmente, a dívida pública é muito diferente da dívida de um cidadão privado. Quando um de nós pede dinheiro emprestado tem de o pagar ao longo de uns anos. Não se pode ir refinanciando com novos empréstimos porque os prazos que consegue aos setenta anos não serão os mesmos que conseguia aos trinta. O Estado faz investimentos com retorno a várias gerações e endivida-se a prazos muito mais longos, mais longos até do que os que qualquer credor aceitaria. Mas como o Estado não tem uma esperança de vida curta, pode “rolar” a dívida indefinidamente, contraindo novos empréstimos para pagar os anteriores. E nem precisa de saldar as dívidas. O Sócrates foi muito criticado por dizer isto, mas tinha razão. Por exemplo, em 1946 a dívida pública dos EUA era de 242 mil milhões de dólares, correspondendo a 113% do PIB. Em 1974 atingiu o mínimo de 24% do PIB. Mas a dívida em 1974 era de 344 mil milhões de dólares (3). A dívida pública dos EUA não passou de 113% para 24% do PIB por ter sido paga mas simplesmente por crescer abaixo da inflação e do crescimento económico do país. Este é um exemplo extremo, mas ilustra o mecanismo mais conveniente de redução da dívida pública: inflação e crescimento. A regra para um indivíduo é pagar o que deve mas para os Estados modernos basta que o crescimento económico somado à inflação acompanhem o crescimento nominal da dívida. A situação de Portugal não mudou pelo despesismo público mas pelo buraco do sector bancário privado que, por um lado, cortou a possibilidade de refinanciamento e, por outro, trouxe ao Estado encargos acrescidos com o impacto económico desse desastre.

O endividamento do Estado português não foi imoral nem irresponsável. Apesar de parte desse dinheiro ter sido mal usada, muito foi necessário para pagar o desenvolvimento social e económico do país. Imoral e irresponsável é a arquitectura do Euro e a falta de regulação da banca. Um banco central que não pode emprestar dinheiro aos Estados e cujo mandato é controlar a inflação dificulta a redução da dívida pelos mecanismos normais de crescimento e inflação e põe os Estados à mercê dos “mercados”. Por outro lado, o sector bancário privado, que sempre cobrou juros pelo risco de incumprimento dos empréstimos que ia refinanciando, por se expor demasiado a negócios especulativos agora não só corta o refinanciamento como é incapaz de assumir esses riscos de incumprimento pelos quais cobrou. É verdade que o governo que agora temos, por muito mau que seja, não é responsável pelas verdadeiras causas desta crise nem pode resolver sozinho esses problemas. Mas este governo é culpado de propagar uma mentira e de a aproveitar para faltar às suas promessas eleitorais, vender ao desbarato o que é de todos e impor uma política de direita que só beneficia alguns em detrimento da maioria, algo que dificilmente conseguiria sem este engodo.

* Em teoria, o BCE não pode emprestar dinheiro aos Estados. Na prática, toda a gente sabe que se os grandes, como a França ou a Alemanha, estiverem aflitos muda-se as regras do BCE num instante. Por isso para esses as coisas funcionam de maneira diferente.

1- Ver episódios anteriores: Parte 1 e Parte 2.
2- Contryeconomy, Portugal; Alemanha
3- The Atlantic, The Long Story of U.S. Debt, From 1790 to 2011, in 1 Little Chart

domingo, dezembro 01, 2013

Treta da semana: a prova.

O Henrique Monteiro escreveu sobre o exame a que alguns professores do ensino secundário público serão sujeitos para determinar se podem continuar a ensinar. O Henrique presume ser contraditório que se indignem «com a ideia de exame em si e outros pelo facto de esse exame ser fácil de mais»(1), invoca uma ideia estranha de marxismo onde «Cada um dava conforme as capacidades e recebia consoante as capacidades» e defende este exame para acabar com «um mundo imutável, ou em que a mudança, a haver, era lenta, segura e sempre para melhor». Não explica porque quer acabar com um mundo onde a mudança fosse para melhor nem como isto advém da razão que aponta – «Quem tinha um curso, tinha-no porque era filho de quem já o tinha, ou porque os pais tinham feito um esforço incrível para que os filhos o tivessem» – e ainda menos o que o exame tem que ver com isto, pois continua a ser preciso curso para ser professor. O Henrique só se safa de ter um raciocínio falacioso pelo requisito formal de um raciocínio falacioso ter de ser, primeiro, um raciocínio.

Um exame escrito avalia conhecimentos pela via indirecta de determinar quanto o avaliado consegue, naquele momento, fazer corresponder as suas respostas àquilo que o avaliador considera merecer a cotação completa. À partida, é uma forma pouco adequada de avaliar conhecimentos. Excepto se estes defeitos forem colmatados por várias medidas complementares. Tipicamente, os alunos têm tempo para se preparar especificamente para o exame, meses de prática com aquele tipo de exercícios escritos e as respostas esperadas, mais do que uma oportunidade para fazer o exame e o exame é apenas um de vários elementos de avaliação. Sem estas medidas, a margem de erro de um exame escrito é considerável.

Isto torna-se especialmente relevante se o exame for muito fácil. Quando a taxa de reprovação ronda os 30%, como é típico nos exames do ensino superior, podemos ter alguma confiança de que a maioria dos reprovados não sabia o essencial. Há sempre uma percentagem de erros devidos a problemas pessoais, distracções ou outros factores independentes do conhecimento do avaliado mas, se estes influenciarem o resultado em um ou dois porcento, serão uma fracção pequena dos 30%. No entanto, se o exame é tão fácil que 99% dos avaliados é aprovado, aqueles 1% de reprovações podem ser mais ruído do que sinal. Se for para fazer um exame com 99% de aprovação o melhor é não fazer porque um exame escrito não se adequa a esses casos.

Se bem que para alguém como o Henrique Monteiro pareça contraditório protestar por não querer fazer o exame e por o exame ser demasiado fácil, qualquer pessoa com experiência nestas coisas percebe que ser demasiado fácil é uma das razões para essa inadequação. Por azar, ou por desígnio do governo, as pessoas que melhor percebem os defeitos desta prova são aqueles que a prova pretende avaliar.

Há também a ideia de que sem esta prova os professores não seriam avaliados. Como escreve o Henrique, «Hoje, todos estamos colocados em causa [...] há 'rankings', há hierarquias, há prevalências e... há provas e exames.» Mas além das várias formas de avaliação regular a que os professores estão sujeitos, todos os candidatos “estão colocados em causa” logo à partida. A todos é exigido, pelo menos, um curso superior adequado numa instituição acreditada pelo Estado. Ou seja, que tenham obtido aprovação a dezenas de exames de dezenas de disciplinas ao longo de vários anos. Essa foi sempre a primeira prova que quem queria ser professor teve de prestar. Dirá então o Henrique, e outros que tal, que nesse caso não faz diferença aos professores fazer mais um exame. Mas faz.

Logo à partida, porque nenhum exame é perfeito. Há gralhas no enunciado, problemas nas salas, erros na avaliação e outras complicações que, se bem que raras e facilmente corrigidas quando um professor prepara e dá um exame a uma centena de alunos, passam a um problema grave quando se põe trinta mil pessoas pelo país inteiro a fazer um exame que os colegas vão avaliar. Depois, não é mais um exame. É um exame que substitui todas as provas feitas durante anos de formação universitária, toda a formação complementar e até a experiência profissional. Esses anos de trabalho e provas valerão menos do que esta prova individual. E o exame têm custos significativos porque, sendo uma prova eliminatória, naturalmente vão andar bastante preocupados com o exame quando deviam estar a dedicar-se aos alunos. O custo para os alunos destes professores será ainda maior do que os €20 por prova ou o trabalho de as avaliar.

Além de obrigar os professores a prestar provas a meio do ano lectivo, julgar que um exame escrito é mais fiável do que anos de estudo e exames em universidades acreditadas e inventar um enunciado ridículo (2), esta medida finge atacar um falso problema à custa de agravar o problema mais sério do ensino público. Ao exigir no mínimo vários anos de formação à frente da matéria que vai leccionar, o Estado reduz muito a probabilidade de um professor não saber a matéria. Mas, por outro lado, ensinar não exige apenas saber a matéria. Exige a capacidade e a motivação para perceber as dúvidas de quem está a aprender e guiar essa aprendizagem. Medidas como esta prova, cortes salariais, aumento do número de alunos e a burocratização do ensino, servem acima de tudo para desmotivar quem saiba e queira ensinar e seleccionar para o ensino público quem melhor souber lidar com a papelada, que ganha cada vez mais importância em detrimento dos alunos.

1- Henrique Monteiro, As provas dos professores
2- IAVE, Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades

Fine-tuning e verosimilhança, parte 2.

Os modelos da física moderna são muito sensíveis aos valores de certos parâmetros. Este é um problema de fine-tuning porque é necessário afinar cuidadosamente os parâmetros para obter previsões correctas. Tradicionalmente, estes problemas têm se sempre resolvido descobrindo princípios mais fundamentais que unificam ou restringem os parâmetros livres. Mas como há pouco a dizer acerca de princípios que ninguém ainda descobriu, é mais interessante especular sobre o que seria se estes parâmetros pudessem mesmo variar na realidade e não apenas nos modelos. Multiversos, megaversos, universos exóticos com leis estranhas e assim por diante. Infelizmente, isto baralha algumas pessoas que depois julgam que este problema de fine-tuning está na realidade e não no modelo. É como julgar que a Terra é plana porque o mapa também é. Esse foi o tema da primeira parte (1). Esta é sobre uma aplicação incorrecta do princípio da máxima verosimilhança (PMV) para resolver esse problema meramente hipotético.

O argumento apresentado pelo Bernardo Motta, mas originalmente do Robin Collins, alega que, por um lado, a probabilidade de observarmos um universo como este assumindo os modelos da física é muito baixa por causa desses parâmetros soltos que é preciso ajustar mas, por outro lado, a probabilidade de haver um universo como este é muito alta se assumirmos que existe um deus que quer criar um universo assim. Assim, alegadamente, o PMV leva-nos a crer num deus criador. Isto é persuasivo para quem souber o suficiente sobre o PMV para reconhecer a sua importância mas não o suficiente para perceber o embuste desta aplicação. Como só consigo explicar isto num post chato, peço desde já desculpa pelo que se segue.

Vamos imaginar que lançámos uma moeda dez vezes e queremos saber se a moeda é equilibrada. O resultado foi:

Cara, coroa, coroa, coroa, cara, coroa, coroa, coroa, coroa, coroa.

Se assumirmos que a moeda é equilibrada, com 50% de probabilidade de calhar cara ou coroa em cada lançamento, a probabilidade de ter só duas caras em dez lançamentos é de 4%*. Isto pode justificar rejeitarmos como inverosímil que a moeda seja equilibrada. É mais plausível que esteja torta.

Podemos também usar o PMV para determinar os melhores parâmetros para uma família de modelos. Vamos chamar p à probabilidade de calhar cara, sendo 1-p a probabilidade de coroa. Isto define uma família de modelos onde cada modelo tem o seu valor de p entre 0 e 1. O melhor modelo, pelo PMV, é aquele em que p=0,2 porque assim maximizamos a probabilidade de obtermos os nossos resultados, duas caras e oito coroas.

Para comparar famílias de modelos a coisa complica-se um pouco. Vamos imaginar uma família alternativa de modelos com os parâmetros p1 a p10 definindo a probabilidade da moeda calhar cara em cada lançamento. Se fizermos p1 e p5 ser 1 e os restantes 0, a probabilidade de obter aquela sequência acima será 100%, enquanto a outra família de modelos, mesmo com p=0,2, tem uma verosimilhança de apenas 0,5% para esta sequência de lançamentos. No entanto, é obviamente errado estar a usar os dados para maximizar a verosimilhança atribuindo, a posteriori, uma probabilidade específica a cada lançamento**.

Para compensar este efeito, quando se compara famílias de modelos integra-se as probabilidades por todos os valores dos parâmetros. Neste caso, temos de variar p entre 0 e 1 para a primeira família e todos os p1 … 10 independentemente para a segunda. Apesar daquele pico alto quando os parâmetros da segunda estão exactamente certos, o espaço onde falha é muito maior e a primeira será a mais verosímil. É isto que acontece se compararmos a hipótese dos grãos de areia do estuário do Tejo estarem naquela configuração por acaso ou porque um duende invisível de Caxias usou poderes mágicos para pôr a areia exactamente assim. Havendo tantas possibilidades diferentes, seria improvável calharem naquela posição por acaso. Mas a hipótese do duende tem muitos parâmetros indeterminados. Podia querer pôr a areia exactamente como está mas também podia ter preferido pôr os grãos de outra maneira, mandar a areia toda para Marte, transformar tudo em gelatina de morango ou qualquer outra coisa. Quando consideramos todas estas variantes a verosimilhança da hipótese do duende torna-se ainda mais baixa do que a da hipótese da areia estar assim por acaso. E ainda bem.

Quando o Robin Collins estima a verosimilhança dos modelos da física moderna não usa apenas os valores ajustados dos parâmetros, o que daria uma verosimilhança de 1 porque foram escolhidos para prever este universo. Correctamente, considera toda a variação hipotética desses parâmetros e estima uma verosimilhança muito baixa. Mas depois faz batota com a alternativa. É que isso de Deus ter criado o universo também é uma família de modelos e também tem parâmetros livres. Deus podia querer um universo como este, ou um universo onde aparecesse inteligência logo ao fim de mil milhões de anos ou só ao fim de cem mil milhões de anos. Podia querer um universo completamente diferente e inimaginável com seres de energia, almas desencarnadas ou animais com 15 dimensões. A verosimilhança dos modelos físicos é baixa porque integramos as probabilidades por todo o espaço de possibilidades dos parâmetros livres. Mas um deus omnipotente tem infinitos graus de liberdade. Sem fazer batota na aplicação do PMV a verosimilhança dessa família de modelos é nula, sempre menor do que qualquer alternativa.

* Assumindo que não me enganei nas contas. Mas se me enganei não faz mal porque o que importa aqui é perceber a ideia.
** Se alguém estiver interessado em pesquisar mais sobre este problema, chama-se overfitting.

1- Fine-tuning e verosimilhança, parte 1. Ver também o post do Bernardo

sexta-feira, novembro 29, 2013

O crime.

No dia 27 de Outubro, o João Galamba perguntou no Twitter «Há link para o Porto-Sporting?»(1). Várias pessoas prontamente responderam com ligações para sites que disponibilizavam streams de canais como o da Sport TV. Mais recentemente, a ACAPOR decidiu solicitar a «renúncia de mandato ao Sr. Deputado João Galamba»(2) por pedir «à comunidade que lhe facultasse um link com a transmissão não autorizada do jogo entre o FC Porto e o Sporting CP»(2). A ACAPOR alega que o deputado teria violado o disposto na alínea e) do artigo 14º do Estatuto dos Deputados, o dever de «Respeitar a dignidade da Assembleia da República e dos Deputados» e que este pedido seria uma «incitação à prática de crime à comunidade». Segundo algumas notícias, a FEVIP acusou o deputado de «solicitar links ilegais para o visionamento do jogo»(3).

Quem ler o tweet do João Galamba com alguma atenção – não é um texto extenso – notará que ele não pediu um link ilegal. Perguntou se havia um link, apenas isso, não exigindo que fosse ilegal. Outro detalhe pertinente é que não parece existir na legislação portuguesa o conceito de “link ilegal”. O Uniform Resource Locator, aquela coisa que começa com “http://” e forma o link, é um endereço na World Wide Web. A nossa legislação não parece prever que um endereço em si possa ser ilegal por muito grave que seja o crime lá cometido.

Além do João Galamba não ter pedido links ilegais e não parecer existir tal coisa na nossa legislação, também não se percebe como é que ver o jogo seria ilegal. A carta da ACAPOR alega que a ilegalidade advém de ser «uma transmissão desportiva com exclusividade de visionamento por subscrição paga»(1) mas esta afirmação está certamente incorrecta porque a Sport TV só pode ter negociado o direito exclusivo de transmissão e não o direito exclusivo de visionamento. Ou seja, pode haver um contrato que regula quem está autorizado a transmitir o jogo, onde o contrato tiver valor legal, mas nunca um contrato que regule quem pode legalmente olhar para a televisão ou para o ecrã do computador durante o jogo. É certo que seria muito vantajoso para os clubes de vídeo poder cobrar o aluguer por cabeça, em função do número de pessoas que fosse ver o filme mas, por enquanto, a lei não parece permitir essa modalidade. Não se pode culpar o João Galamba por um crime de “visionamento não autorizado” quando não existe tal coisa na lei. A transmissão do jogo pode carecer de autorização. O visionamento não.

Nem sequer o streaming do jogo pelo site que o João Galamba alegadamente teria visitado é necessariamente ilegal. Por exemplo, um dos endereços fornecidos em resposta ao pedido do João é «http://www.sporttvhdmi.com/Sporttv1.html»(1). Segundo a WHOIS, este URL remete para um servidor localizado em Kirkland, no estado de Washington, EUA. Ao abrigo do Digital Millenium Copyright Act, para que o provedor deste serviço não cometa qualquer ilegalidade basta que bloqueie o acesso a conteúdo cuja transmissão viole a lei vigente nos EUA após a denúncia de quem tenha o direito legal para impedir essa transmissão. Se o stream está disponível é porque, provavelmente, nenhuma lei vigente nos EUA está a ser violada. Ou porque ninguém ainda denunciou essa transmissão como ilegal ou porque o contrato de exclusividade celebrado entre a SportTV e clubes portugueses não tem valor legal nos EUA. Se alguém pode ter cometido uma ilegalidade foi quem enviou esse stream para o servidor nos EUA. No entanto, não se pode averiguar se esse acto foi mesmo ilegal sem saber quem o praticou, onde o praticou e que legislação vigora no país onde o acto foi praticado, pois nem todos os países pertencem à OMPI. Seja como for, esta questão não parece ser da responsabilidade do João Galamba, porque se fosse ele quem estava a fazer o upload do stream provavelmente não teria pedido o link pelo Twitter.

Estas considerações são importantes porque, segundo o artigo 180º do Código Penal, «Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias», com pena agravada se o lesado for membro de um órgão de soberania. Se bem que discorde, em geral, de se legislar a ofensa da “honra ou consideração” por ser demasiado subjectiva, concordo que se puna a imputação infundada da prática de um crime por lesar objectivamente a reputação do visado e a presunção da sua inocência. Por isso, parece-me grave que a ACAPOR impute publicamente ao João Galamba a prática de instigação pública a um crime – punível com até 3 anos de prisão pelo artigo 297º do código penal – sem qualquer indício de que o João Galamba tenha praticado ou incitado à prática de actos ilegais.

Pondo de parte as palhaçadas destas associações inúteis, há uma mensagem importante neste episódio ridículo. É revelador como abandonaram qualquer tentativa de legitimar as suas reivindicações com apelos aos direitos de autor, à protecção da cultura, ao incentivo à criatividade e essas desculpas que normalmente invocam para justificar os monopólios sobre a distribuição. A carta consiste apenas de um choradinho pela perda de lucros e a acusação, infundada, de que perguntar onde se pode ver o jogo de futebol que uma empresa apropriou como exclusivo seu é uma incitação ao crime. A reivindicação da ACAPOR ilustra bem dois problema do sistema que esta associação defende. Por um lado, o absurdo, a injustiça e o custo para a sociedade de conceder direitos exclusivos sobre informação que se torna pública e, por outro, os extremos a que a lei teria de chegar para proteger esses monopólios, ao ponto de ter de ser crime “visionar sem autorização”, divulgar um URL ou perguntar «Há link para o Porto-Sporting?»

1- Twitter, 27-10-2013, 20:24
2- ACAPOR, ACAPOR solicita renúncia de mandato ao Sr. Deputado João Galamba
3- Exame Informática, João Galamba e o link pirata para ver derby
4- WHOIS, sporttvhdmi.com

quinta-feira, novembro 28, 2013

Fine-tuning e verosimilhança, parte 1.

«... imagine uma poça a despertar de manhã e a pensar “Este é um mundo interessante em que me encontro – e um buraco interessante em que me encontro – acomoda-me perfeitamente, não é? De facto, espantosamente bem, deve ter sido feito de propósito para me conter aqui dentro!” Esta é uma ideia tão poderosa que, conforme o Sol se ergue no céu, o ar aquece e a poça vai ficando mais pequena, mantém-se freneticamente agarrada à noção de que vai tudo correr bem porque o mundo foi feito de propósito para si; por isso, o momento em que se evapora apanha-a de surpresa. Penso que é algo que todos temos de ter em conta.»
Douglas Adams, The Salmon of Doubt

No passado dia 21 o Bernardo Motta e o Ricardo Silvestre debateram a (in)existência de Deus na Universidade Católica. Enquanto espero pela gravação do debate queria dar já uma achega ao argumento do fine-tuning que o Bernardo apresentou nos slides e resumiu no blog (1). Este argumento diz que Deus deve existir porque os modelos da física moderna contém parâmetros cujos valores não são determinados pela teoria e, se fossem diferentes, o universo não comportaria vida como a conhecemos. Por exemplo, se a energia libertada na fusão de hidrogénio em hélio fosse maior as estrelas não durariam o suficiente para que vida como a nossa evoluísse e se fosse menor as estrelas não dariam energia suficiente (2). Assim, defende o Bernardo, tem de haver um deus que assegure os valores certos para estes parâmetros de modo a que nós possamos existir. Ou seja, que faça o buraco à medida da água da poça.

A primeira confusão deste argumento é logo a definição do problema. O problema do fine tuning é um problema do modelo. O modelo tem demasiados parâmetros soltos que têm de ser ajustados para prever correctamente o que observamos. Isto não é desejável. É sempre melhor minimizar as pontas soltas. Mas este problema do modelo só é um problema do universo se o modelo estiver completo. O problema de fine-tuning que o Bernardo invoca não é o problema real do modelo ser muito sensível a parâmetros soltos mas sim o problema meramente hipotético do modelo estar correcto nesse aspecto e o universo sofrer do mesmo excesso de parâmetros. Tanto os dados que temos como a experiência contradizem esta premissa.

O modelo standard das partículas subatómicas tem 25 parâmetros que não são determinados pela teoria subjacente. Além disso, o modelo do universo a grande escala tem mais um parâmetro solto, a constante cosmológica (4). Mas uma razão forte para não concluir logo que o universo tem estes parâmetros soltos é estes modelos serem incompatíveis. Como a descrição relativística da gravidade não encaixa nos modelos da mecânica quântica para as restantes forças não se justifica assumir que estes modelos estão completos e que o que falta neles falta no universo.

Além disso, o problema do fine-tuning é frequente na história da ciência. Antes da teoria atómica dos elementos a química era um pantanal de parâmetros aparentemente arbitrários e leis que não se sabia de onde vinham. Quando se percebeu que todas as moléculas eram compostas por átomos de umas dezenas* de elementos diferentes o número de parâmetros soltos diminuiu drasticamente. Quando se descobriu que as propriedades químicas e físicas de cada elemento são determinadas pela combinação de apenas três partículas diferentes – protões, neutrões e electrões – o número de parâmetros soltos caiu novamente. Este ciclo ocorre em todas as áreas da ciência pela forma como a ciência progride. Inovações teóricas e tecnológicas permitem novas experiências, estas revelam dados novos que os modelos precisam de explicar o que, por sua vez, obriga a formular novas relações e parâmetros conforme os dados vão surgindo. Só quando alguém finalmente percebe como as coisas encaixam é que há tal “mudança de paradigma” que leva a novas teorias que atam as pontas soltas. É disso que estamos à espera agora.

Há também explicações propostas para o eventual problema do universo ter parâmetros soltos. Uma bastante intuitiva é a desta bolha de espaço-tempo ser apenas uma de infinitas, cobrindo, no conjunto, todas as combinações de valores para esses parâmetros. Naturalmente, aquela onde nós existimos tem de ser uma das que permitem a nossa existência, pela mesma razão que o planeta em que nascemos foi o único do sistema solar, aparentemente, que comporta vida. O Bernardo alega que isto não resolve o problema da afinação mas está enganado porque se há infinitos universos não é preciso afinar nada. Por muito improvável que seja a combinação de valores que permite a vida, entre infinitas bolhas de espaço-tempo será inevitável haver universos que comportem vida sem qualquer afinação prévia. Tem mais razão ao apontar que esta explicação «é ainda especulação sem suporte experimental» (1) mas isso não é uma objecção relevante. A hipótese deste universo ser único é igualmente especulativa e até menos plausível porque se é possível haver uma bolha de espaço-tempo então também deve ser possível haver outras. Não se justifica assumir que esta é a única. Além disso, a proposta do Bernardo, de que um deus criou este universo com os parâmetros certos, é igualmente especulativa. Finalmente, o próprio problema do universo exigir fine-tuning é especulativo. Apenas sabemos que os modelos que temos agora precisam de afinamento. Não se justifica para já concluir que todo o universo sofre do mesmo.

Resumindo, este argumento do Bernardo é um apelo à ignorância. Invoca Deus apenas porque não sabemos o que determina os parâmetros que deixamos soltos nos modelos. Com isto o Bernardo tenta demonstrar que “Deus existe” é a hipótese que maximiza a verosimilhança porque assim é mais provável o universo ser como é. Mas desmontar essa confusão exige explicar um pouco desse método de selecção de modelos e tem de ficar para a segunda parte.

*São mais de cem mas, na altura, só conheciam uns 60.

1- Bernardo Motta, Debate "Deus (não) existe?"
2- Para outros exemplos: Wikipedia, Martin Rees's Six Numbers
3- Wikipedia, Fine-tuned universe

sábado, novembro 23, 2013

Treta da semana: o rato.

Esta semana fez 85 anos que foi publicada pela primeira vez uma representação do Rato Mickey, no filme Steamboat Willie. Pela legislação em vigor na altura, isto conferia à Disney um monopólio de 28 anos sobre esta obra, renovável por mais 28 anos, se a obra fosse publicada com um aviso de copyright em conformidade com a lei. O que aparentemente não foi o caso (1). Fosse como fosse, quando Walt Disney criou este personagem, a lei conferia um monopólio sobre a obra por um período máximo de 56 anos. Foi esse o contrato. Em troca da Disney publicar e registar esta obra recebeu o direito exclusivo de a reproduzir e transformar até 1984. Mas, ao aproximar-se a data em que o Rato Mickey passaria ao domínio público, foi aprovado o Copyright Act of 1976(2) que estendeu retroactivamente o período de monopólio sobre estas obras de 56 anos para 75 anos. Assim, a sociedade prescindiu das obras por mais 19 anos sem receber qualquer contrapartida. Não se tratava apenas de um incentivo para a criação de obras novas mas também de uma recompensa a autores já falecidos, como Walt Disney. Ficou assim adiada para 2003 a entrada do Mickey no domínio público. Até 1998.

Em 1997 e 1998, a Disney contribuiu cerca de 800 mil dólares para campanhas políticas de senadores em comissões relevantes para o copyright, fossem democratas ou republicanos (3). Em 1998 o Copyright Term Extension Act aumentou o período do monopólio legal para 95 anos após a publicação da obra, novamente com efeitos retroactivos. O Mickey ficou assim “protegido” até 2023. Pelo menos. E isto não se passa apenas nos EUA. O lobbying destas empresas é internacional, por via de tratados internacionais e da OMPI. Ainda recentemente, cá em Portugal foi aprovada a Proposta de Lei 169/XII (4) que estende de 50 para 70 anos os “direitos conexos” dos intérpretes e executantes de fonogramas. Nem sequer são direitos de autor. É um monopólio concedido a artistas contratados para gravar a música.

Mas a culpa não é só do rato e dos seus amigos, como o Donald, o Pateta e companhia, que iriam cair no domínio público logo a seguir. O que se passa é ainda mais maquiavélico do que aumentar a duração do monopólio para proteger algumas obras mais lucrativas. O problema é a razão para essas obras serem tão lucrativas e é bem visível neste gráfico (6).



O gráfico mostra o número de edições novas à venda na Amazon em função da década em que a obra foi escrita. Os livros escritos antes de 1923* estão em domínio público e qualquer editora pode vendê-los. Os livros mais recentes estão sob copyright e só os detentores dos monopólios respectivos os podem editar. O mais saliente deste gráfico é a queda abrupta no número de edições novas quando se passa de obras no domínio público para obras sob copyright, na década de 1920. Ao contrário do propósito desta legislação, quando as editoras detêm direitos exclusivos sobre uma obra têm muito mais relutância em editá-la. O que acontece é que uma editora que detenha o monopólio sobre um conjunto de obras pode maximizar os lucros editando apenas algumas para reduzir a concorrência. O monopólio sobre a maioria das obras não serve para incentivar a venda mas apenas para evitar que outros distribuam ou transformem essas obras. Isto vale para livros, músicas e para os filmes da Disney. O período estabelecido em 1790 para estes monopólios foi de 28 anos. Se ainda fosse essa a duração do copyright, todos os filmes da Disney anteriores a 1985 estariam no domínio público, bem como os seus personagens e, se bem que a Disney já não ganhe muito a vender cópias do Herbie, da Branca de Neve ou do Tron original, a liberdade de distribuir esses clássicos e de os usar em obras novas traria muita concorrência que a Disney prefere não ter de enfrentar.

Ao contrário do que muitos defendem, o problema não está só na duração do copyright. É óbvio que quanto menos durar menor será este efeito nefasto. Mas o problema principal é que o sistema de incentivos pela concessão de monopólios sobre a cópia é mais prejudicial do que benéfico. Não só pela rapidez com que agora se rentabiliza o investimento – quando se estabeleceu um período de 28 anos de monopólio seria impensável uma obra render mil milhões de dólares no primeiro dia de vendas (7) – mas, principalmente, pela forma como os autores podem interagir com a audiência. Antes da industrialização da cópia, um músico ou escritor era como um cabeleireiro ou um escultor. Se queria ganhar mais dinheiro tinha de encontrar clientes ricos que comprassem o seu trabalho. Não pela venda do produto do seu trabalho mas pelo trabalho de criar esse produto. A indústria de distribuição mudou isto. Quem criava obras que pudessem ser reproduzidas ficou dependente dos industriais da cópia e o trabalho de criar algumas obras – livros e músicas, mas não de cozinhados ou penteados – passou a ser pago em função da cópia do produto final. Toda a legislação de copyright reflecte este conflito entre os distribuidores e certos tipos de autor, com clara vantagem para os primeiros porque a distribuição era o factor dominante.

A Internet mudou novamente esta relação. Agora, o autor pode vender o seu trabalho directamente a milhões de potenciais interessados sem depender de quem faz as cópias. Por isso, o que importa agora é a criatividade e não a reprodução mecânica da obra feita. A concessão de monopólios sobre a cópia financia o distribuidor à custa do autor e da sociedade, um mal que já não é necessário. Eliminar este sistema anacrónico iria exigir uma transição do modelo de negócio assente na cópia para a venda directa do trabalho do autor mas traria várias vantagens imediatas. Facilitaria muito o acesso à cultura; incentivaria a criação de novas obras por permitir a transformação de muito material que, neste momento, está legalmente inacessível; e corrigiria os efeitos nefastos das pressões que esta indústria tem exercido sobre os legisladores.

*À data em que o gráfico foi feito, em 2012.

1- Douglas A. Hedenkamp, Free mickey mouse: copyright notice, derivative works, and the copyright act of 1909
2- Wikipedia, Copyright Act of 1976
3- CNN All Politics, Disney In Washington: The Mouse That Roars
4- Wikipedia, Copyright Term Extension Act
5- Parlamento, Proposta de Lei 169/XII
6- Techdirt, Copyright Extension: A Way To Protect Hollywood From Having To Compete With The Past.
7- Pocket Lint, Call of Duty: Ghosts sales at over $1 billion on first day, beats GTA V - sort of

sexta-feira, novembro 22, 2013

O caso Pepsi.

A Pepsi sueca fez um anúncio com um boneco do Ronaldo amarrado à linha do comboio, o que gerou uma onda de protestos nas internets portuguesas. Em resposta, surgiu também um número considerável de críticas a esses protestos por darem demasiada atenção a insignificâncias na Suécia em detrimento do que se passa por cá. O diagnóstico consensual foi de que os portugueses não prestam atenção ao que importa porque, como escreveu o Raúl Santos, andam com «a cabeça [...] dentro do cú»(1). A página contra a Pepsi consegue 140 mil “likes” nos primeiros dias (2) quando «uma petição [da DECO para] acabar com as taxas injustas e imorais que os bancos cobram» teve apenas 81 mil assinaturas. «Hoje soube-se que o governo vai arcar com uma dívida de 17 milhões de Euros, que era do Luís Filipe Vieira ao BPN» e não há protestos. O diagnóstico do Raúl, como vários outros que tenho lido, é que as pessoas estão alheadas da realidade, que «não damos valor absolutamente NENHUM ao que é nosso» e que «queremos é futebol, imperial e tremoços.»(3)

Concordo que há aqui um problema e, quando comecei a ver várias pessoas a defender que a causa deste problema é a indiferença, insensatez ou mesmo cegueira generalizada do nosso povo até me pareceu que poderia ser essa a explicação certa. Afinal, entre os que votaram enganados e os que nem votaram, foi a maioria que contribuiu para termos este governo. Mas alguma experiência a lidar com pessoas iludidas fez-me estranhar a ausência de contraditório. Não vi ninguém a tentar justificar preocupar-se mais com o Ronaldo do que com a corrupção ou o estado em que o país está. Talvez porque não é essa a causa.

Há outra diferença entre a Pepsi e os 17 milhões de dívida do Luís Filipe Vieira, as comissões dos bancos ou o estado da nação. Castigar a Pepsi é fácil. Basta não beber mais desse refrigerante, um sacrifício modesto, e os accionistas recebem menos dividendos. Os outros problemas são mais graves mas é mais difícil cada um de nós agir contra os responsáveis. Podemos protestar, mas muita gente já começou a ver que ir para a rua fazer barulho preenche tempo no noticiário mas não tem grandes efeitos. Os 140 mil “likes” na página contra a Pepsi não são um protesto vazio como seriam 140 mil “likes” contra as comissões bancárias ou o Luís Filipe Vieira. No caso da Pepsi, a página é apenas um sinal visível de 140 mil pessoas a deixar de beber Pepsi. É esse protesto que é eficaz.

Também seria possível protestar contra a corrupção, o governo ou as comissões dos bancos de forma tão eficaz como este protesto contra a Pepsi. Só que, nesses casos, um protesto que os visados não pudessem ignorar exigiria medidas muito mais drásticas do que deixar de comprar refrigerantes de certa marca. Por exemplo, se cada pessoa pegasse num tijolo e partisse os vidros à agência bancária mais próxima os bancos certamente prestariam mais atenção do que a uma página com não sei quantos “likes”. Mas, naturalmente e ainda bem, há uma grande relutância da parte de qualquer pessoa normal em tomar este tipo de medidas. Esta parece-me ser a explicação mais plausível. O que leva mais pessoas a protestar em defesa do Ronaldo do que em defesa da justiça ou da decência nas contas públicas não é burrice nem apatia. É a natureza do protesto. No primeiro caso o protesto eficaz é fácil e, por isso, facilmente um grande número de pessoas alinha. Nos outros casos ou se protesta de forma socialmente aceitável e de nada serve ou, para ser um protesto eficaz, é preciso tomar medidas demasiado drásticas que não se justificam a não ser em situações extremas.

O que é preocupante é que, em Portugal e pela Europa, os políticos, a mando dos banqueiros, têm esticado cada vez mais a corda. Talvez muitos julguem que o povo anda iludido, desinteressado ou apático. Mas casos como este da Pepsi sugerem uma possibilidade diferente. As pessoas percebem o que se passa e estão dispostas a agir mas percebem também que, em muitos casos, as medidas eficazes terão de ser violentamente drásticas. Por isso, nesses casos, não agem. Não querem protestar em vão mas também não querem desatar a partir tudo. Por enquanto. Essa é a parte mais preocupante. Se a situação continuar a degradar-se e a pressão sobre as pessoas não deixar de aumentar, eventualmente o desespero será mais forte do que a relutância. Se quem está no poder assumir que a passividade se deve a falta de inteligência ou de percepção estará à espera de um lento acordar que talvez possa ser manipulado pela propaganda do costume. Por isso, não andará muito preocupado com os efeitos sociais da austeridade e de outras roubalheiras. Mas se esse modelo estiver errado a resposta não será gradual. Será súbita e explosiva. E, quando ocorrer, como aconteceu à Pepsi, será tarde demais para resolver o problema pedindo desculpas e prometendo mudar de rumo.

1- Raúl Santos, Pepsi, Cristiano Ronaldo e os Portugueses
2- Facebook, Nunca mais vou beber Pepsi
2- Raúl Santos, (Facebook)

segunda-feira, novembro 18, 2013

Omnitretas.

O Bernardo Motta, por alguma razão convencido de que o meu ateísmo se deve ao Richard Dawkins, recomendou-me que lesse autores filosoficamente mais sofisticados como o Edward Feser que, segundo o Bernardo, “limpa o chão” com o Dawkins. Em concreto, indicou-me um post do Feser criticando a alegada ignorância do Dawkins acerca da omnipotência e omnisciência do protagonista da ficção cristã. O problema que Dawkins aponta é que um ser omnisciente não tem o poder de mudar de ideias. Sendo um poder que nós temos, então um ser omnisciente não pode ser omnipotente. Eu diria até que será impotente, incapaz de mudar o curso de acções que já sabe inevitável, como se estivesse a ver um filme.

O Feser pretende “esclarecer” Dawkins começando por apontar que «para quase todos os teístas, “omnipotência” não implica o poder de gerar contradições (e.g. criar um quadrado redondo ou uma pedra tão pesada que nem um ser omnipotente a pode erguer)» (1). Isto é irrelevante porque o poder de mudar de ideias não é uma contradição da omnipotência. É apenas incompatível com a omnisciência. Mas é interessante porque põe em causa a omnipotência em si. Em primeiro lugar, parece-me muito pouco sofisticado, filosoficamente, apresentar como estabelecido que um ser omnipotente não pode gerar contradições só porque “quase todos os teístas” acreditam que é assim. Não me parece o tipo de coisa que seja legítimo decidir só pelo voto da maioria. Mas vamos assumir que mesmo um deus omnipotente é escravo deste axioma dos sistemas formais e, como Tomás de Aquino propôs, não pode fazer nada cuja descrição seja logicamente inconsistente. Ainda assim, há o problema dos restantes axiomas.

Será que um ser omnipotente pode calcular a raiz quadrada de -1 ou criar um triângulo cujos ângulos internos não somem 180º? Até ao século XVIII provavelmente diriam que não a ambas por ser contraditório que algo seja número e multiplicado por si próprio dê -1 ou que algo seja triângulo e os seus ângulos internos não somem 180º. Depois de Euler ter popularizado os números imaginários, a resposta à primeira já seria sim porque i é um número e é a raiz quadrada de -1 por definição. E com as geometrias não-euclideanas, a partir do século XIX, passou a ser possível haver triângulos cujos ângulos internos não somam 180º. Isto porque estas contradições só o são se usarmos certos axiomas. Com outros axiomas deixam de o ser e, na verdade, se abdicarmos do axioma da identidade nem sequer haverá contradições.

Outro problema é que podemos resolver cada contradição de várias formas diferentes. Por exemplo, se Deus tem o poder de erguer qualquer pedra, então não pode ter o poder de criar uma pedra impossível de erguer porque isto seria logicamente contraditório. Mas podemos resolver o problema ao contrário: se Deus tem o poder de criar qualquer tipo de pedra, inclusivamente uma pedra impossível de erguer, então não pode ter o poder de erguer qualquer pedra porque isso seria logicamente contraditório. Em ambos os casos Deus seria omnipotente, pela definição de Tomás de Aquino, porque em ambos os casos o seu poder só ficava limitado por contradições lógicas. Mas seriam duas omnipotências diferentes, a omnipotência de erguer qualquer pedra e a de criar qualquer pedra. Há infinitos casos destes. Por exemplo, a capacidade de criar varas tão compridas que sejam impossíveis de medir contra a capacidade de medir qualquer vara por muito comprida que seja. Ou a capacidade de criar cheiros tão pestilentos que não possa suportar contra a capacidade de suportar qualquer cheiro por muito pestilento que seja. Como consequência, há infinitas omnipotências diferentes e incomensuráveis. Nem se poder saber qual delas Deus terá nem porquê essa e não outra.

Mas a parte mais importante do post que o Bernardo recomendou é como resolve o conflito entre omnisciência e omnipotência, o problema de não poder mudar de ideias. «Deus é imutável e eterno. Ele não “muda de ideias” porque ele não muda sequer. […] Deus está completamente fora do tempo. […] Para Ele, toda a criação – incluindo todos os acontecimentos em todos os pontos do tempo – segue de um único acto criativo Seu». Isto é importante porque implica que o tempo não existe. Se a passagem do tempo presente vai tornando o futuro em passado então as verdades mudam e um ser omnisciente tem de ir mudando também para actualizar o que sabe. Dantes era verdade que eu tinha cinco anos mas agora já não é. Um ser imutável não podia saber, nessa altura, que eu tinha cinco anos e agora saber que já não tenho. Se existe um ser omnisciente e imutável então todas as verdades têm de ser imutáveis. Todo o universo tem de existir como uma forma fixa e imutável espalhada no espaço-tempo em vez de algo espacial que vai mudando com o tempo porque, se assim fosse, também o que é verdade mudaria e Deus teria de mudar. Mas se o universo é imutável e o tempo é uma ilusão então nada que dependa de mudança pode ser real. Acção, vontade, causalidade, intenção, culpa, mérito, nada disso pode existir se houver um ser omnisciente e imutável.

Com esta explicação, o Edward Feser não só confirmou que a omnisciência é incompatível com a omnipotência como também demonstrou que a omnisciência divina é incompatível com um universo dinâmico e tudo o que disso depende.

1- Edward Feser, Dawkins on omnipotence and omniscience

domingo, novembro 17, 2013

Treta da semana: Ordem de S. Miguel de Ala.

Fundada a 8 de Maio de 1171 por Afonso Henriques, também conhecido por “El-Rei”, consta que é a Ordem de Cavalaria mais antiga de Portugal. Foi fundada depois da vitória sobre os Sarracenos que cercaram Afonso Henriques em Santarém e é dedicada ao arcanjo Miguel « não só na devoção do Monarca pelo Arcanjo S. Miguel, como também por ter sido visto o braço de S. Miguel a combater pelos Cristãos no mais aceso da batalha, e quando estes estavam em alegada desvantagem…»(1) Infelizmente, o relato é omisso quanto ao método usado para identificar o braço do arcanjo.

Depois do regresso relutante de João VI a Portugal, o seu filho Pedro, deixado a cuidar das coisas no Brasil, decidiu que lá é que se estava bem e em 1822 declarou-se independente, a si e ao país, merecendo assim o cognome “o guterres”*. Em 1826, João VI adoeceu subitamente e, tendo nomeado a sua filha Isabel como regente, morreu de forma suspeita. Isabel depois abdicou a favor da sobrinha, Maria da Glória, filha do seu irmão Pedro, para que esta casasse com o outro irmão, Miguel, tio da noiva, deixando assim o país seguro nas mãos de um homem e garantindo um casamento incestuoso, com todos os benefícios genéticos que essa tradição trazia à realeza. Mas o plano não correu bem. O movimento absolutista em Portugal ganhou balanço, Miguel aproveitou para dar o dito por não dito e declarou-se rei, ponto. O Pedro chateou-se por a filha ficar sem reinado e já não casar com o tio (outros tempos, outros costumes), abdicou do trono do Brasil em favor do seu filho, contratou tropas Inglesas, invadiu os Açores e, daí, desatou à batatada ao irmão. Com a ajuda dos liberais derrotou Miguel, pôs a filha no trono e morreu de tuberculose. Um final anticlimático, é verdade, mas as coisas eram assim, naquele tempo, graças à chamada “medicina tradicional”. Mas o que nos interessa aqui é o Miguel. Exilado, sem sobrinha nem reino, decide criar «uma organização secreta(por oposição à Maçonaria) a qual denominou de “Ordem de São Miguel da Ala”. O Objectivo era “confundir” esta organização secreta com a Ordem de São Miguel da Ala, fundada por D. Afonso Henriques.» Criou assim um precedente para outra confusão mais recente.

«A 4 de Agosto de 1981, através de Escritura Pública foi restaurada a actividade social dos Cavaleiros da Ordem de São Miguel da Ala» por iniciativa de Nuno da Câmara Pereira. Durante dez anos, Duarte Pio de Bragança foi considerado “protector” desta ordem (2) mas depois as coisas azedaram. O Duarte reclama o trono por descender do tal Miguel do parágrafo anterior mas o Nuno defende que o verdadeiro rei de Portugal é um Pedro de Mendoça por descender da Ana, outra irmã do Miguel, do Pedro e da Isabel. Com aquela confusão toda, não me admira que quem dê a ponta de um chavelho por estas coisas ainda ande indeciso. Vai que não volta, o Duarte foi mesmo, declarou extinta a associação criada pelo Nuno e, em 2004, registou a sua própria «Real Ordem de São Miguel da Ala». Por muito que as moscas mudem há sempre tradições a manter.

O problema é que Duarte sobrestimou a força legal das suas pretensões a ser importante. Lá por ele declarar extinta uma associação não quer dizer que ela se extinga e como o Nuno tinha registado o nome e os símbolos da ordem no Registo Nacional de Pessoas Colectivas, processou o Duarte por usurpação da sua propriedade intelectual. Agora o tribunal congelou ao Duarte «uma conta bancária com quase 96 mil euros e 17 imóveis e propriedades em seu nome.»(3)

O que me fascina nesta novela, além do ridículo intrínseco, é a forma tortuosa como tudo acaba por encaixar. O monarquismo assenta num ideal de nobreza e superioridade natural dos reis. Afonso Henriques, nobre pai de Portugal e assim por diante. Dizem defender esses valores de nobreza e justiça, que «Toda a Cavalaria é um serviço social e cívico em vista do bem comum da humanidade»(4). Mas o Afonso foi um guerreiro que matou e pilhou para obter terras e poder e toda aquela família era assim, a julgar pelo que fizeram uns aos outros. Pela história vê-se quase sempre a ganância e o apego ao poder como motivação principal para o que os reis faziam. Defender a justiça e o bem comum com base nisto seria uma contradição. Só que a contradição acaba por ser menor porque os seus actos, ao contrário das suas palavras, encaixam perfeitamente nesta tradição de sacanice, cobiça e ganância. O Nuno registou como sua propriedade um nome e simbologia que datam desde a origem de Portugal. O Duarte acha que não precisa respeitar a lei e que pode dissolver associações com um acenar do bigode. E temos um partido e movimento monárquico que nem sequer consegue decidir quem é o rei, se o que diz que é mas que descende do que foi deposto, se o outro que descende da irmã do deposto mas que, aparentemente, nem se quer meter no assunto. Se não votassem nesta gente até dava vontade de rir.



*Errata: aqui confundi o António Guterres com o Durão Barroso. Mas acho que faz pouca diferença (daí a confusão). Ambos ilustram a longa tradição governativa do meh, quero lá saber disto, vou antes por ali.

1- OSMA, Memorial
2- Wikipedia, Nuno da Câmara Pereira
3- Sol, Penhora de 100 mil euros a D. Duarte em julgamento
4- OMSA, Explicação da Cavalaria

quinta-feira, novembro 14, 2013

Sentir (aquele) deus.

«Smart: At the moment, seven Coast Guard cutters are converging on us. Would you believe it?
Mr Big: I find that hard to believe.
Smart: Hmmm . . . Would you believe six?
Mr Big: I don't think so.
Smart: How about two cops in a rowboat?»

(Get Smart)

As justificações para crer na existência de um deus abrangem uma vasta gama de categorias contraditórias. Num extremo, dizem que nada se pode observar desse deus e que só se pode provar formalmente a sua existência a partir de axiomas que o crente escolheu. Lá para o meio, o deus não pode ser observado mas dá indícios empíricos da sua existência por milagres progressivamente mais discretos, desde o dilúvio mundial a desviar, pouco, a bala que mataria o Papa ou tratar salpicos de fritura. No outro extremo, alegam que o deus é um dado empírico imediato, como a sede ou o amor, que se sente directamente e que, por isso, não se pode senão aceitar que existe. A contradição entre estas justificações não seria problema se cada crente escolhesse uma. Há tantos deuses diferentes que não é preciso atropelos. No entanto, é comum os apologistas religiosos tentarem todos estes tipos de justificação, em série, a ver se algum pega. O resultado conjunto acaba por ser ainda menos persuasivo do que cada uma das justificações individuais.

Por seu lado, mesmo individualmente estas justificações têm problemas e já abordei aqui muitas vezes os defeitos dos dois primeiros tipos. Não se prova a existência de um ser real como quem demonstra um teorema, partindo de axiomas arbitrários, e o deus milagreiro acaba por ser um deus das lacunas porque só há milagres no que não se compreende. Mas tenho descurado este último tipo de justificação, o de crer num deus porque se sente esse deus. A última vez que me lembro de ter discutido isto foi há uns anos, com o Alfredo Dinis (1), para apontar o problema de uma mera sensação não servir para fundamentar os dogmas religiosos. Uma coisa é entrar numa igreja e sentir a presença de alguém que não se vê. Outra bem diferente é sentir que se trata de Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, e Jesus Cristo, gerado do Pai antes de todos os séculos, da mesma substância do Pai, que encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria, foi crucificado, ressuscitou dos mortos ao terceiro dia e assim por diante. Não é plausível que uma sensação seja tão específica e detalhada. Mas há outros problemas.

O primeiro é que umas pessoas dizem sentir que existe um deus enquanto outras não sentem nada disso. Mesmo entre as que sentem não há consenso acerca de que deuses sentem ou quantos são. Sentir um deus é como ver auras. Há quem diga que vê auras coloridas à volta dos outros, conforme a personalidade ou estado de espírito mas, além de muita gente não ver aura nenhuma, aqueles que as dizem ver divergem nos detalhes que relatam. Assim, o mais razoável é explicar essas alegações por factores psicológicos ou sociológicos em vez de concluir que existem mesmo as tais auras. Com os deuses é a mesma coisa.

Em segundo lugar, mesmo sensações consensuais podem ser enganadoras. Por exemplo, qualquer pessoa verá luzes se fechar os olhos e os esfregar com força. Isso não prova que haja luzes dentro dos olhos. É apenas a forma do cérebro interpretar os impulsos provenientes dos neurónios da retina. Também é comum ter sonhos como o de um cão a morder-nos o braço e acordar em cima do braço dormente. Não por culpa do cão mas por uma fantasia do cérebro adormecido a interpretar os sinais nervosos do braço. Se bem que seja sempre pelos sentidos que apreendemos a realidade que nos rodeia, não é prudente saltar para uma conclusão com base apenas num tipo de experiência, sem confirmação independente. Nem nos raptos por extraterrestres, nem nos demónios e fadas e nem em deuses. Devemos confiar na confluência consistente de indícios em vez de confiar de imediato em sensações isoladas. O chavão “ver para crer” assume, incorrectamente, que se eu vir um elefante cor de rosa a esvoaçar à minha volta devo concluir que existem elefantes voadores cor de rosa mas o mais sensato, numa situação dessas, será consultar um neurologista.

Finalmente, a nossa percepção é fortemente influenciada pelas nossas expectativas. A comunicação entre o sistema nervoso periférico e o sistema nervoso central é bidireccional, muitas vezes até com mais informação do cérebro para os sentidos do que destes para o cérebro, o que condiciona muito o que os nossos sentidos nos dizem. Por exemplo, nas semanas a seguir à morte do meu pai vi-o várias vezes na rua e nos transportes públicos. De vez em quando, ao cruzar-me com alguém mesmo levemente parecido com o meu pai, o cérebro pregava-me essa partida e, por momentos, era a ele que eu via. Não é nada estranho que haja histórias de fantasmas em todas as culturas humanas, ou que haja quem alegue ter visto o Sol a rodopiar quando, movido pela fé, foi à Cova da Iria determinado a ver milagres. Também não é estranho que quem queira muito acreditar que um deus existe acabe por conseguir sentir a presença desse deus.

Sentir que um deus existe pode ser justificação suficiente para o crente. Aderir ou não a uma religião é uma opção subjectiva e nisso conta o que cada um quiser. Mas, dado o contexto e a falta de indícios independentes que o confirmem, não é evidência para a existência de Deus.

1- Experiência religiosa.

domingo, novembro 10, 2013

Treta da semana: toda a gente.

A Margarida Rebelo Pinto, escritora «introspectiva e mais centrada nas relações e nos afectos e, sobretudo, nas relações amorosas»(1), foi recentemente criticada pelo que disse na RTP acerca da situação económica e das manifestações contra o governo. Parte da culpa pela má figura é de quem se lembrou de lhe fazer perguntas sobre estas coisas. A senhora ia lá fazer publicidade ao seu último livro, uma colectânea de textos intitulada “Há sempre uma primeira vez” com o que a Margarida julga ter aprendido sobre o amor: «O melhor do amor é sabermos muito pouco sobre ele». Pedir-lhe que se pronunciasse sobre assuntos sérios era obviamente arriscado.

A Margarida disse «eu fico profundamente triste em ver este tipo de manifestações, que demonstram falta de civismo das pessoas que vão interromper e tentar perturbar o trabalho daqueles que neste momento governam o país». Pelo contexto (1), percebe-se que se referia ás manifestações dentro da Assembleia da República, interrompendo o discurso do Paulo Portas. Não acho falta de civismo porque a perturbação é mínima e a mensagem é mais eficaz se os visados não podem fingir que não ouvem. Além disso, a Assembleia da República é de todos os cidadãos. Mas esta é uma divergência legítima entre quem dá mais valor cívico à lei e quem dá mais valor à justiça. Não posso condenar a Margarida só por ter uma opinião diferente da minha acerca disto.

Mais grave é a Margarida papaguear a ladainha de que a culpa é dos governos anteriores e alegar que temos de confiar no governo que elegemos. Aqui a divergência já é mais séria porque, objectivamente, esta crise não originou no sector público. É fruto de surtos desregulados de especulação bancária e foi agravada pelo sistema monetário europeu e os desequilíbrios comerciais que dele resultam. Também o governo que temos, além das alterações que já sofreu, só foi eleito graças à promessa de fazer o contrário do que está a fazer. Estas manifestações não surgem por «falta de memória e falta de inteligência». Pelo contrário, muitos manifestam-se precisamente porque têm boa memória e porque não são estúpidos.

Mas o mais grave entre os disparates da Margarida foi, curiosamente, o menos criticado: «como todos os cidadãos, eu também tive cortes. Toda a gente teve cortes.» É grave, não por ser mentira, porque na maior parte dos casos é bem verdade, mas por fingir que não percebe as implicações dramáticas de toda a gente ter cortes. Esta incompreensão exige ou uma extraordinária falta de inteligência ou uma desonestidade, infelizmente, bastante mais ordinária.

Excepto os milionários que têm beneficiado desta política de austeridade, todos tiveram cortes. Mas nem todos tiveram cortes como a Margarida teve, ou como teve a Isabel Jonet há tempos com a rábula dos bifes. Porque cortar no que é supérfluo é muito diferente de ter de cortar no que é necessário. Eu gasto menos do que gastava há uns anos mas pouca diferença me faz. Deixei de ir ao cinema, raramente como em restaurantes e vamos de férias para a terrinha. Grande coisa. Há menos folga no orçamento mas o dia-a-dia é praticamente igual. O problema de todos terem cortes é que inclui muitos que já não tinham onde cortar. Num artigo imbecil no Público, a Sofia Silva encena um diálogo cor de rosa entre um casal que organiza o seu orçamento cortando no ginásio (vão correr juntos, que romântico), usando só um carro e pedindo aos pais que tragam carne lá da terra, onde é mais barata (2). O diálogo seria bem diferente se tivessem de optar entre os medicamentos e a comida dos filhos.

A cegueira selectiva de dizer “toda a gente teve cortes” sem ver que muita gente já não tinha onde cortar permite também fechar os olhos ao efeito global desses cortes. A mim, pouca diferença fez deixar de ir ao cinema ou ao restaurante. Mas se centenas de milhares de pessoas como eu cortam nessas coisas, muita gente que trabalha nos cinemas, nos restaurantes e em todo o comércio que fornece esse sector perde a sua única fonte de rendimento. Há 838 mil desempregados (3), já descontando os que emigraram. Em geral, não é gente preguiçosa que tenha vivido acima das suas possibilidades, esbanjado tudo em bifes, e que esteja agora a pagar os seus excessos. Muitos são simplesmente vítimas dos cortes de toda a gente. Não exijo que a Margarida perceba muito de economia, mas parece-me exagero não perceber sequer que os gastos de uns são o salário dos outros e que milhões de pessoas a cortar na despesa faz muitos ficarem sem rendimento. Dizer “toda a gente corta” como se fosse uma mera inconveniência não pode ser apenas ignorância. Não deve sequer ser falta de inteligência porque tinha de ser uma falta muito grande. Parece-me que tem mesmo de ser egoísmo e maldade.

1- YouTube, MARGARIDA REBELO PINTO comenta atualidade e falta ao respeito a todos os Portugueses (02Nov2013)
2- Público, Planear o orçamento familiar e aumentar a resiliência das famílias
3- INE, Estatísticas do Emprego - 3.º Trimestre de 2013

sexta-feira, novembro 08, 2013

Complicado.



Segundo o Bernardo Motta, esta imagem publicada pela Richard Dawkins Foundation for Reason and Science apenas demonstra uma enorme ignorância. Tão grande, de facto, que quando pedi ao Bernardo que me explicasse o que está errado na imagem ele respondeu-me que não seria possível porque eu sou demasiado ignorante acerca do cristianismo para que ele me esclareça acerca do cristianismo. O cristianismo, explicou o Bernardo, é como a física, a química e a biologia. São disciplinas complexas, que exigem anos de estudo e o Bernardo não pode explicar o pecado original a quem não aceitar primeiro que existe um deus, que é o deus do Bernardo, que esse deus se sacrificou por nós e mais uma data de coisas. É uma forma conveniente de descartar objecções como mera ignorância ao mesmo tempo que se cria uma ilusão de erudição profunda. É especialmente útil pelo paralelo com a ciência, que toda a gente sabe ser uma coisa complicada, parecendo assim uma justificação mais legítima por analogia. No entanto, é uma grande treta. A complexidade da teologia é muito diferente da complexidade da ciência.

As teorias e os modelos científicos são complexos e é mesmo preciso anos de estudo para se perceber os detalhes. As narrativas dos teólogos também são complexas e nem uma vida chega para conhecer em pormenor as resmas de papel que já escreveram sobre estes assuntos. Mas o paralelo acaba aí. Enquanto a ciência tenta descrever a realidade, a teologia apenas explora as consequências das suas próprias premissas e isso faz toda a diferença. Por um lado, a ciência tem de manter sempre alguma relação, mesmo que indirecta, com a realidade que podemos observar, o que dá sempre pontos de referência que se pode partilhar com quem levante objecções aos modelos científicos. Para perceber em detalhe os modelos da termodinâmica ou da genética de populações é preciso alguns conhecimentos que a maioria dos leigos não tem, mas para explicar princípios gerais pode-se sempre recorrer a exemplos concretos como o motor do automóvel ou a resistência aos antibióticos. Por outro lado, a ciência não inclui apenas o conhecimento dos factos mas também o conhecimento de como se apurou esses factos. Por trás de cada teoria científica há um encadeamento histórico e cumulativo de descobertas que se pode usar para esclarecer mesmo quem ainda não esteja a par dos detalhes mais recentes. A epidemiologia moderna é muito complexa mas as experiências de Pasteur e Koch, por exemplo, são fáceis de compreender mesmo para leigos. A dificuldade do Bernardo em justificar a doutrina do pecado original, do nascimento imaculado de Maria e do sacrifício de Jesus não deriva da complexidade da teologia mas da ausência de ligação entre estas doutrinas e a realidade observável e a incompreensão de como essas coisas poderiam ter sido descobertas.

Este problema não é exclusivo da teologia. É inevitável em qualquer construção conceptual que esteja desligada de validação empírica e que, por isso, não faça sentido quando aplicada à realidade. Por exemplo, é irrealista que o Peter Parker tenha adquirido poderes especiais pela picada de uma aranha radioactiva. Um fanático da Marvel poderia argumentar o mesmo que o Bernardo, com a mesma legitimidade: é uma objecção ignorante porque as narrativas acerca do Homem-Aranha somam milhares de volumes e o universo Marvel é muito complexo. Por exemplo, na Contra-Terra o Peter Parker morreu por exposição excessiva à radioactividade, na série Ultimate adquiriu os poderes pela picada de uma aranha transgénica e não radioactiva e na série Marvel 1602, Peter Parquagh, nascido quatro séculos antes do seu quase-homónimo, não tem super poderes. Assim, o fanático da Marvel podia esquivar-se, como faz o Bernardo, descartando a crítica como mera ignorância e mandando o descrente ler uma carrada de livros até passar a acreditar. Só que isto em nada contribuiria para resolver o problema inicial de que, na realidade, uma picada de aranha radioactiva não dá poderes.

Um dos dogmas fundamentais do cristianismo é este de todos os humanos nascerem com o pecado original. Excepto Maria, que Deus decidiu criar sem pecado para poder ser mãe do filho dele que era ele próprio, para depois morrer e assim perdoar o pecado com o qual ele cria cada humano. Em vez de fazer todos nascerem sem pecado, como Maria. É inegável que, ao longo de séculos, muita gente inteligente fez o possível por acreditar nisto. Como resultado desse esforço, há muitas narrativas extensas que tentam dar sentido a este absurdo. Mas todas sofrem dos mesmos defeitos das histórias do Homem-Aranha. Primeiro, não têm qualquer relação evidente com aspectos observáveis da realidade. E, em segundo lugar, simplesmente alegam que é assim sem explicarem como chegaram a tais conclusões. É por isso, e não pela complexidade das narrativas, que o Bernardo não consegue justificar estas coisas a quem não partilhe a fé dele. E é por isso que ler essas narrativas todas também não adianta de nada a quem não acreditar, à partida, nestes dogmas. Sem qualquer relação com o que se pode observar e sem se perceber como descobriram estas coisas, a teologia tem como único fundamento as próprias premissas que quer justificar. Tal como a história do Homem-Aranha, é assim porque faz de conta que é assim. As diferenças entre a Marvel e a teologia derivam apenas dos modelos de negócio. A Marvel vende os seus livros como obras de ficção e, por isso, pode admitir que é tudo fantasia. Como as religiões só vendem se fingirem ser verdade nem essa verdade podem ter.

domingo, novembro 03, 2013

Treta da semana: o guião.

O guião para “um Estado melhor” que o vice-presidente tem andado a preparar há uma data de tempo é, formalmente, uma bosta. A forma do documento, da sua estrutura e redacção às referências bibliográficas, faz parecer que foi depositado no papel com o mesmo cuidado com que um ruminante deposita na relva a obra da sua digestão. E, a julgar pelo conteúdo, a vaca vivia em Fukushima.

Segundo o Paulo Portas, a crise deveu-se ao excesso de despesa e «a totalidade da receita em IRS e IRC – os impostos pagos por trabalhadores e empresas, exceptuando, para efeitos comparativos, os que têm origem nos descontos dos funcionários públicos – não chegam senão para pagar 90% da folha salarial do Estado» (1). A conta abstrusa é pouco informativa. Em 2013, a Administração Pública gastará 16 mil milhões de euros em pessoal. A receita total será de 74 mil milhões de euros, dos quais 20 mil milhões serão em impostos directos. O défice previsto é de 11 mil milhões de euros e, para efeitos comparativos, 8 mil milhões serão só em “Juros e Outros Encargos” (2, quadro III.1.2, pg 91). A ideia que quer transmitir, com esta passagem do excesso de despesa à insinuação de que os impostos não chegam para os salários, serve obviamente para justificar que se continue a cortar nos salários. Mas é tudo aldrabice. O défice disparou devido aos problemas na economia privada, o que abateu a receita fiscal e aumentou as prestações sociais. Por exemplo, de 2008 para 2009 a receita fiscal caiu 5 mil milhões de euros enquanto o gasto em transferências subiu quase 5 mil milhões de euros. A despesa com salários, por seu lado, foi máxima em 2005, com 20,5 mil milhões de euros, e tem vindo a diminuir na maior parte dos anos. Em 2012 foi de 16,5 mil milhões de euros, menos do que no ano 2000 mesmo sem contar com a inflação (3).

Outro embuste é o de conter a despesa pública para«libertar recursos para o crescimento da economia real». A despesa pública é o rendimento directo de todos os agentes que vendem bens e serviços ao Estado e o rendimento indirecto de todos os que vendem bens e serviços a esses agentes. Se o Estado reduzir a despesa quando o sector privado está em crescimento, o impacto negativo pode não ser grande porque há outros rendimentos que compensam esses cortes. Mas quando o sector privado está endividado e cada agente tenta poupar, se o Estado também não gasta então ninguém poupa e ninguém consegue pagar dívidas. Como resultado a economia contrai e aumenta o peso relativo das dívidas. Isto não é ideologia. É álgebra. O dinheiro que uns ganham é o dinheiro que outros gastam e se ninguém gasta ninguém ganha.

O que nos traz à parte mais radioactiva. Uma das propostas deste guião é que se altere a Constituição para incluir a “regra de ouro” da disciplina orçamental acordada no Tratado de Estabilidade. Esta regra limita o défice estrutural para 0.5% do PIB, com eventuais excepções para emergências económicas. É uma regra vaga mas, se estiver inscrita na Constituição, esta ideologia orçamental ficará ao nível dos nossos direitos fundamentais. O que é especialmente preocupante porque o princípio é disparatado. O Estado gastar ou poupar só em sintonia com o sector privado é tão inteligente como inclinar a mota para o lado de fora da curva.

De resto, há muitas banalidades como «investimento nos meios de combate à corrupção, avaliação das questões de conflito e registo de interesses, no quadro das funções decisórias e consultivas nas Administrações» e frases estranhas como «Reformar o Estado, é racionalizar as suas entidades» que fazem pensar que o guião era inicialmente um discurso, com as vírgulas a marcar a pausa para ênfase, e nem sequer se deram ao trabalho de rever a gramática antes de o entregar. Mas, no meio dessa palha, escondem-se algumas propostas radioactivas que até contrariam a intenção inicialmente expressa de equilibrar as contas do Estado. Por exemplo, «um novo ciclo de contratos de associação [para haver] uma maior abertura da oferta e uma saudável concorrência de projetos de escola, mediante adequada contratualização» e «a aplicação do chamado “cheque-ensino”». Ou seja, privatizar e estratificar o ensino, sustentando do erário escolas boas para ricos nos sítios onde os ricos vivem e deixando menos dinheiro para pagar escolas onde só vivam pobres. Outra proposta nesta linha é a de «Uma reforma da segurança social que faça evoluir, parcialmente, o sistema para uma lógica de capitalização [para] garantir maior liberdade de escolha». Mais uma vez, é a liberdade dos ricos contribuírem com menos e dos pobres ficarem ainda mais pobres. Estas propostas são mera expressão da doutrina moral da direita, segundo a qual os ricos só são ricos porque se esforçam, os pobres só são pobres por preguiça e se toda a gente trabalhasse seriam todos mais ricos do que a média.

Em suma, o nosso vice primeiro ministro presenteou-nos com trinta páginas esticadas para cem pelo tamanho da letra e espaços em branco, preenchidas com banalidades, salpicadas com algumas medidas para agravar a desigualdade – o principal problema que enfrentamos – e que começam com uma introdução cheia de alegações falsas e acabam com as seguintes referências bibliográficas: «As fontes utilizadas neste documento são: EUROSTAT, INE, Banco de Portugal, Ministério das Finanças – OE 2014, DEO 2013/2017, Relatório PREMAC 2011, Ministério da economia – Estratégia para o Crescimento, Emprego e Fomento Industrial, Secretaria de Estado da Administração Local, OCDE, FMI, artigos de opinião, entre outras.» A única mensagem clara neste documento é que o vice primeiro ministro se está a cagar para todos nós. O que até se compreende, visto que foi eleito para o segundo cargo mais importante do governo com apenas 11.7% dos votos válidos (4).

1- Governo de Portugal, UM ESTADO MELHOR - GUIÃO PARA A REFORMA DO ESTADO
2- DGO, Proposta de Orçamento do Estado 2014
3- Pordata, Administrações Públicas: despesas por tipo, e Receitas do Estado: execução orçamental
4- DGAI, Legislativas 2011.

quinta-feira, outubro 31, 2013

Disto e daquilo, 5.

Bichos
Têm chovido críticas em resposta ao boato de que o Ministério da Agricultura estava a rever o número máximo de cães por apartamento. Concordo que não há justificação óbvia para o limite ser dois em vez de três, um ou quatro e que isto não devia ser uma prioridade. Mas a ministra parece pensar o mesmo (1) e, se querem criticar o governo, certamente haverá medidas mais merecedoras de indignação. Seja como for, parece-me que a maioria das críticas assenta na ignorância de que já há pelo menos uma década que esta lei está em vigor (2) e na ideia de que o objectivo é o Estado fiscalizar quantos animais as pessoas têm. Tanto quanto percebo, não anda por aí polícia a contar bóbis. O propósito desta lei é dar recursos legais a quem viva paredes meias com um maluco que tenha uma data de animais em más condições, que sejam um perigo para a saúde ou que não deixem ninguém dormir.

Suspenso
O CDS-PP suspendeu por cinco meses o deputado Rui Barreto por ter votado contra o OE de 2013 (3). Agora, o Rui Barreto só permanece na Assembleia da República porque ainda é membro do CDS-PP/Madeira, caso contrário ficaria também suspenso do cargo de deputado. Compreendo que a disciplina de voto e o poder de suspender deputados facilite os acordos entre partidos na AR. Mas não compreendo que essa conveniência se sobreponha aos princípios fundamentais da democracia representativa. O Rui Barreto foi eleito por madeirenses que votaram nele e é essas pessoas que ele tem de representar. Os deputados são, acima de tudo, representantes dos eleitores e não dos partidos. Por isso, qualquer mecanismo que um partido possa usar para coagir os votos dos representantes dos eleitores é um atentado à democracia e devia ser considerado um crime pelo menos tão grave como o de coagir os votos dos eleitores. O resultado prático desta usurpação é evidente. Os partidos do poleiro são compostos por um cerne de deputados permanentes protegidos pela carne para canhão que vai e vem conforme o sucesso eleitoral. A disciplina de voto concede a esse grupo central o poder de dirigir todos os votos do partido ao mesmo tempo que, pela manipulação das listas de candidatos e os círculos onde concorrem, se protegem do eventual desagrado dos seus próprios eleitores. A representatividade é a que se vê.

Petição
Hugo Ernano, militar da GNR, foi condenado a nove anos de prisão por ter morto uma criança quando desatou aos tiros a uma carrinha em fuga. Segundo o acórdão, os juízes foram unânimes na condenação do acto como «inadequado e desajustado» mas o arguido afirmou que «se fosse hoje voltaria a agir da mesma forma». Aparentemente, este militar da GNR ainda acha que o procedimento mais adequado no caso do furto de fios de cobre é disparar contra a carrinha em fuga para a “imobilizar”, provavelmente no fundo de algum barranco, mas sem intenção de magoar ninguém. Não sei se será de ver muitos filmes ou se será mesmo por a GNR ser demasiado militarizada para ser uma polícia adequada, mas é preocupante que não lhe tenha ocorrido que seria melhor anotar a matrícula, seguir a carrinha e depois prender os meliantes sem criar situações de perigo. Mais preocupante ainda é haver pelo menos 65 mil pessoas que julgam que é assim que as forças de segurança se devem comportar (4): primeiro dar tiros porque sim, mesmo que não seja necessário para eliminar algum perigo iminente para a vida do agente ou de terceiros, e só depois ir ver se há inocentes no caminho ou se um crime como o de roubar fio de cobre justifica execução sumária. Sim, é verdade que o criminoso foi irresponsável por ter levado o filho para uma coisa destas. Mas nem o filho merecia ser morto pelo crime do pai nem roubar fios de cobre, mesmo com uma criança ao pé, é tão grave como matar um miúdo de 13 anos desatando aos tiros sem necessidade.

Direitos
A 1ª Comissão Permanente dos Direitos Liberdades e Garantias decidiu não garantir a liberdade de contornar limitações tecnológicas quando estas impedem o cidadão de exercer os seus direitos legais de acesso e reprodução de obras culturais. Apesar dos Projectos de Lei 406/XII e 423/XII terem sido aprovados na generalidade, foram agora chumbados por esta comissão «por não terem receptividade do Governo» (5). Continuamos assim na situação curiosa de pagar taxas pelo direito à cópia privada sem podermos copiar legalmente porque o editor publica as obras com restrições digitais. Mesmo que estejam em domínio público, como é o caso dos “Clássicos Porto Editora” onde até o Camões leva DRM (6), não vá um dia o governo estender a duração dos monopólios, retroactivamente, para além dos quinhentos anos. Já faltou mais.

1- TVI 24 - Ministra deixa cair limitação de cães e gatos por apartamento
2- PGDL,  DL n.º 314/2003, de 17 de Dezembro , artigo 3º
3- Público, Deputado do CDS-PP suspenso cinco meses por ter votado contra OE2013
4- Público, Mais de 65 mil pessoas pedem absolvição de GNR condenado por matar jovem em perseguição
5- ANSOL, 1ª Comissão Reduz Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos
6- Paula Simões, Bertrand/Porto Editora ataca Domínio Público #publicdomain #drm #fail