sexta-feira, maio 31, 2013

O problema da autoridade.

A propósito do post anterior, o Carlos Leal criticou-me por «juntar no mesmo exemplo [...] a referência ao Papa (que dispensa apresentações biográficas), Gabrielle Amorth, velho gagá de 88 anos (o tal dos bispos do Mexico), um padre português irrelevante e desconhecido, e os espíritas» porque, segundo o Carlos, é preciso «citar as fontes relevantes»(1). Quando apontei que, objectivamente, não temos dados que permitam determinar qual destes senhores percebe mais de demónios e espíritos, o Carlos invocou “razões de coração” que levam as pessoas a «confiar numa história de fé que os tem ‘humanizado’ e até tornado mais exigentes do ponto de vista da fé e, sobretudo, acerca de "a quem dar fé"». Deu até o exemplo costumeiro do amor como antítese da ciência: «não levaste a hipótese de casar ao laboratório, para dentro de um modelo matemático».

O exemplo do amor depende sempre de duas confusões. Primeiro, a confusão entre valores e alegações de factos. A paixão é um critério importante em certas decisões mas não constitui uma descrição dos factos e até reconhecemos o erro de deixar que a paixão nos distorça a percepção da realidade. Enquanto a minha decisão de casar foi muito influenciada pelo que sinto, o que sei acerca da pessoa com quem casei não resulta do “coração” mas sim de um grande conjunto de dados objectivos, acumulados durante duas décadas, que me permitiu formar opiniões de forma científica, num sentido lato do termo. Esta é a segunda confusão.

A matemática e o trabalho de laboratório são ferramentas úteis para a ciência mas não a circunscrevem. O fundamental na ciência é que a confiança depositada em cada hipótese seja proporcional ao suporte que os dados dão a essa hipótese e retiram às alternativas. Isto em contraste com as abordagens tradicionais de confiar numa hipótese porque surgiu num sonho, porque gostaríamos que fosse verdade, porque dá uma desculpa para mandar nos outros, porque está escrita num livro antigo, porque o mestre a afirmou e razões afins. Neste sentido, que remete à origem etimológica de “ciência” como conhecimento, tudo o que fundamente legitimamente uma alegação factual é científico. A menos que alguém esteja cego pela paixão, formará uma ideia daquilo que o outro realmente é seleccionando as alternativas mais suportadas pelo que observa. Se não o fizer, se a paixão o convencer de que é amado por alguém que o ignora ou maltrata, então dizemos que, pobre coitado, anda iludido.

O mesmo se passa com a autoridade. Considerar uma fonte autoritária por gostar muito da pessoa, venerar o livro ou pertencer à religião é uma ilusão análoga. A opinião acerca dos factos não se justifica “pelo coração” mas apenas pelo fundamento em dados objectivos. Assim, uma fonte só é autoridade legítima sobre certas matérias se houver indícios objectivos de que as suas afirmações tendem a corresponder melhor à realidade do que, em média, as afirmações de fontes não autoritárias. Desses indícios destaco três pela sua relevância.

Primeiro, a fonte autoritária tem de ser capaz de averiguar a verdade daquilo que alega. Se não consegue saber se o que diz é verdadeiro ou falso não é autoridade nenhuma. Por isso, só podemos confiar numa fonte como autoridade se houver razões objectivas para confiar na forma como determinou a verdade do que alega. Não precisamos de saber os detalhes, mas é preciso ter indícios de que o fez de forma correcta e fiável. Por exemplo, se um astrónomo me disser a percentagem de estrelas que é da mesma categoria do Sol eu confio nele como autoridade, mesmo não dispondo dos dados, porque percebo que a forma como os astrónomos determinam essas coisas é fiável. Por outro lado, se um tarólogo me diz que descobriu por intuição que a carta do enforcado na casa de Júpiter revela dificuldades profissionais eu não lhe dou crédito nenhum. Todas as alegadas autoridades em matéria de demónios e espíritos falham este critério porque, do Papa aos espíritas, nenhum dá evidências objectivas de poder determinar a verdade do que alega de forma fiável. Especulam, nada mais.

Também é importante que a opinião da fonte que consideramos autoritária seja consensual entre os peritos que cumpram os mesmos requisitos de autoridade. Por exemplo, se o valor que o astrónomo me der for muito diferente do valor indicado por outros astrónomos, então já não me posso fiar nele. E se não houver consenso entre os astrónomos então não há autoridade na matéria, pelo menos enquanto não determinarem quem tem razão. Também nisto os espíritas, o Papa, o Gabrielle Amorth e restantes falham. Em geral, as superstições, incluindo as religiosas, têm muitos peritos, cada um reconhecido pelos seus seguidores, mas não têm qualquer consenso acerca disto dos deuses e dos demónios, nem forma de o encontrar.

Finalmente, a fonte autoritária tem de ser imparcial. A avaliação de alegações factuais exige a ponderação imparcial das evidências. Quando recorremos a uma autoridade estamos a delegar nela a tarefa de avaliar as evidências e escolher a hipótese que tem melhor suporte. Mas se o perito tem interesse pessoal na defesa de certa hipótese já não podemos confiar que a esteja a indicar por ser objectivamente a que tem melhor suporte. Também pode ser que nos diga que é aquela porque lhe dá jeito. O vendedor de automóveis pode perceber muito de mecânica mas, dado o claro conflito de interesses, não vamos simplesmente aceitar o que nos diz do carro que nos quer vender.

A razão pela qual eu junto no mesmo saco espíritas, exorcistas, padres e o Papa é porque, de facto, pertencem todos à categoria das falsas autoridades.

1- Comentários em Treta da semana (passada): o diabo das respostas.

domingo, maio 26, 2013

Treta da semana (passada): o diabo das respostas.

Segundo Paulo Ricardo, o Papa fez um exorcismo rapidinho na Praça de São Pedro (1). Segundo o Vaticano não foi um exorcismo; apenas «rezou por uma pessoa doente que foi apresentada a ele»(2). Segundo o Gabriele Amorth, exorcista-mor, foi mesmo um exorcismo e a vítima está possuída por quatro demónios que se querem vingar dos «bispos mexicanos, porque eles não se opuseram ao aborto como deveriam»(3). Infelizmente, não explica por que é que os demónios se querem vingar disso. A vingança também ficou muito aquém do que se costuma ver nos filmes. Não opuseram o aborto como deveriam? Então vamos lixar a vida a um desgraçado qualquer que vocês nem conhecem. Já para não falar de decidirem ir quatro demónios possuir a mesma pessoa. Afinal, talvez até seja mesmo como nos filmes. Dos Três Estarolas.

Entretanto, outros padres como o Fernando Calado Rodrigues defendem que o Diabo não existe. «[O] Mal é a ausência do Bem, como a doença é a falta da saúde e a escuridão é a ausência de luz. [O] diabo não é uma existência, mas uma ausência de Deus»(4). Mas católicos como o Bernardo Motta defendem que «[A] crença na existência do Príncipe do Mal é essencial ao credo cristão.»(5) Até os espiritistas se juntam à festa. Como explica o Diogo, ambos os lados estão enganados porque «não existe Diabo nem diabos [ mas o] fenómeno a que chamaos obsessão e que popularmente se chama por exemplo 'encosto', decorre da existência de um mundo paralelo ao nosso, o mundo espiritual, habitado por gente como nós, que já deixou o corpo físico, ou, em linguagem mais clara, já 'morreu'!»(6). Como sabem isso? «Se estes fenómenos não fossem bem reais, não existiriam expressões como o cofre aberto, o encosto, a morada aberta, o corpo aberto, a possessão, etc..» Claro. Seja eu já aqui um unicórnio marciano mágico se for possível inventar expressões que não correspondam a algo real.

Mas numa coisa parecem estar todos de acordo. Como escrevem os espiritistas: «Que fique bem expresso que a Medicina está sempre primeiro, e que a Ciência é uma bênção preciosa. Mas acontece com frequência a Medicina não resolver.» Ou seja, primeiro a ciência tenta determinar o que se passa. Se é epilepsia, trauma ou outra disfunção que se possa diagnosticar de forma fundamentada. Só se a ciência não conseguir é que os peritos do espiritual entram em acção para declarar de imediato a causa do problema. Só que cada um alega a sua, todos têm absoluta certezam, não se entendem e nenhum consegue explicar porque há de ter mais razão do que os outros.

Isto deve-se a uma divergência profunda na forma como ciência e crenças encaram as respostas. A propósito da relação entre ciência e religião, o Alfredo Dinis pergunta «O que poderá um neurocientista dizer a alguém a quem foi diagnosticado um tumor cerebral [?...] O neurocientista procurará ajudar os doentes a viver melhor a sua vida física, mas será essa toda a ajuda que as pessoas procuram e precisam? Poderá dar-lhes alguma ajuda quando não é possível prolongar-lhes a vida?» (7). A estas perguntas retóricas o Alfredo espera uma resposta negativa, alegando que é à religião que compete «ajudar as pessoas a encontrar o sentido do universo e da vida». Mas não é bem assim. A ciência estuda os fenómenos naturais, só que nós somos parte da natureza. Por isso, a neurologia, a psicologia e a psiquiatria têm muito a contribuir para o bem estar de pacientes em estado terminal mesmo quando não é possível curar a doença. Apesar destas disciplinas estarem ainda na sua infância, cientificamente, em casos de depressão, dor ou dificuldade em lidar com alguma tragédia pessoal é melhor consultar um médico do que um padre.

Mas é verdade que ciência não responde a tudo. Como a ciência exige rigor e honestidade, é comum ter de admitir que não sabe o suficiente para dar uma resposta fundamentada. Por outro lado, quando abdicamos destes requisitos tudo fica mais simples. Porque dar respostas sem ter de as fundamentar é trivial. É o Diabo. Não, são os espíritos. É o destino. É Deus, um milagre ou o Mistério da Fé. Nem sequer é preciso perceber a questão. Basta tirar uma resposta do chapéu. Por exemplo, segundo o Alfredo, para responder à pessoa que tem o tumor cerebral a religião coloca-se «no domínio da ética e refere os valores éticos não apenas à vida que termina com a morte mas também à existência que se prolonga para além da morte.» Além de não ser claro o que é que isto adianta ao desgraçado que tem o tumor na cabeça, há ainda o problema do consenso das evidências indicar que não há “além da morte”. É pouco plausível que a minha existência enquanto eu sobreviva à destruição do meu corpo porque tudo indica que a memória, personalidade, cognição, vontade e pensamento estão dependentes do sistema nervoso. Por isso, a ciência nunca poderá dizer ao paciente com cancro no cérebro para não se preocupar que não há de ser nada.

A ciência dá-nos as melhores respostas que conseguimos fundamentar na informação de que dispomos. Infelizmente, isso nem sempre responde a todas as perguntas que temos nem sempre dá as respostas que gostaríamos de obter. Por isso, muita gente prefere alternativas onde a perícia vem da imaginação em vez de vir do conhecimento, onde a certeza vem de ter fé em vez de ter razões e onde há sempre respostas para todos os gostos.

1- YouTube, Papa Francisco teria feito exorcismo na Praça de São Pedro
2- Globo, Vaticano nega que Papa tenha feito exorcismo na Praça de São Pedro
3- Fratres in Unum, Exorcismo do Papa – Fala quem entende: “É uma vingança do demônio contra os bispos mexicanos, porque eles não se opuseram ao aborto como deveriam”.
4- CM, Fernando Calado Rodrigues, Padre O diabo não existe
5- Espectadores, vários posts sobre o mafarrico.
6- Blog de Espiritismo, O exorcismo de ontem
7- Alfredo Dinis, (sem título)

quinta-feira, maio 23, 2013

Concluir que existe.

A Maria Madalena Teodósio perguntou-me o que eu consideraria evidência para a existência de um deus (1). Ou, por outras palavras, o que me levaria a considerar a hipótese de existir algum deus mais plausível do que a alternativa. Esta ênfase na hipótese pode parecer picuinhice mas é importante. Em rigor, nós não podemos decidir a existência de deuses em si. Ou existem ou não existem, independentemente da nossa opinião. Apenas podemos decidir que opinião formamos. Tratando-se de factos, o mais racional será preferir a hipótese mais favorecida pelo peso das evidências. Tornar explícito que estamos a seleccionar hipóteses permite excluir, logo à partida, qualquer hipótese que seja indiferente ás evidências. Por exemplo, a hipótese de existirem deuses indetectáveis que habitam fora do universo e não interferem em nada que se possa observar. Este tipo de hipótese é de rejeitar não só por falta de mérito epistémico mas também por pragmatismo. Hipóteses assim há infinitas e são racionalmente indistintas, pelo que não há razão para escolher uma em vez de qualquer outra. Por isso focarei apenas (algumas) hipóteses testáveis acerca da existência de deuses.

Uma é a de que um relato da criação divina do universo foi passado, por revelação ou inspiração, aos autores humanos de algum livro sagrado. A essa hipótese contrapõe-se a alternativa desses relatos serem apenas criação humana. As evidências favorecerão uma ou outra hipótese conforme a concordância entre o relato e o que observamos do universo. Se um relato for vago, inconsistente com a realidade em muitos pontos e acertar apenas no que era acessível aos seus autores humanos a segunda hipótese será claramente a mais plausível. É o que acontece com o livro do Génesis, se lido como pretendiam os autores originais e como muitos cristãos ainda o interpretam hoje (se for lido como alguns teólogos pretendem temos apenas mais uma daquelas infinitas hipóteses impossíveis de testar e, por isso, irrelevantes). Pelo contrário, se um relato antigo da origem do universo contivesse detalhes correctos e inacessíveis aos seus autores terrenos seria evidente uma origem sobre-humana. Por exemplo, se o Génesis descrevesse detalhadamente as partículas sub-atómicas e a formação da matéria pela interacção dessas partículas. Se, além disso, descrevesse de forma concreta e confirmável como essas partículas teriam sido criadas, a hipótese desse relato provir de alguém com a capacidade de criar universos seria muito mais plausível do que a hipótese de ter sido mera fantasia humana. Eu descarto como ficção as cosmologias dos livros sagrados que conheço porque consistem apenas daquilo que se esperaria da imaginação e conhecimento dos seus autores. Mas se algum ultrapassasse claramente esses limites eu teria de mudar de opinião.

Outra hipótese testável é a da criação inteligente em si, independentemente de haver algum relato detalhado do processo. Se processos naturais geram planetas, montanhas, vales, animais e plantas sem orientação inteligente, o que acontece em cada passo do processo depende apenas das condições nesse momento. Cada partícula numa nuvem de poeira espacial move-se em função das forças que a afectam. As placas tectónicas deslocam-se conforme o movimento do magma, a água escorre conforme o declive do terreno e as populações de seres vivos são moldadas pela competição entre indivíduos naquele ambiente, em cada instante. A falta de inteligência nestes processos impede que algo ocorra visando um resultado futuro específico. Isto é o contrário do que sucede num processo de criação inteligente, que consiste numa série de decisões tomadas tendo em vista o resultado final. As diferenças são claras, na maioria dos casos. Pedras arredondadas de textura e tamanho semelhantes espalhadas pelo leito de um rio é algo compatível com processos naturais de erosão. Pedras afiadas em pontas de seta alinhadas junto a um esqueleto humano sugerem intervenção inteligente. As características das baratas são o que se espera de milhões de anos de evolução por processos naturais. A lã das ovelhas domésticas, o milho híbrido e o tomate geneticamente modificado indicam alguma inteligência no processo. Se estrelas, planetas, montanhas ou seres vivos tivessem sido criados por um ser inteligente deveríamos notar alguns desvios em relação ao esperado por processos naturais sem planeamento, tal como quando identificamos vestígios arqueológicos ou diques de castor. Indícios de criação inteligente de estrelas ou galáxias tornariam plausível a hipótese de existir um criador inteligente do universo.

A tecnologia religiosa poderia ser outro indício forte. Todas as religiões desenvolvem procedimentos para influenciar a natureza. Curar doenças, afastar tempestades, conceber filhos e assim por diante. Todas as religiões falham redondamente nestas coisas e o efeito é sempre nulo. Mas podia não ser. Podia ser, se a realidade fosse outra, que os alhos engordassem mais com a bênção do padre do que com umas semanas de tempo seco. Ou que a estátua de Maria na mesa de cabeceira fosse mais eficaz do que um pára-raios no telhado. Podia ser e, se fosse, seria mais plausível a hipótese de existir o deus dessa religião.

A objecção mais comum a este tipo de argumentos, pelo menos da parte dos religiosos mais sofisticados, é que isto assume poder-se reunir evidências da existência do tal deus e isso, alegam, é impossível. Mas a questão relevante é que hipóteses acerca da existência de deuses se pode aceitar com justificação racional e, para isso, é preciso encontrar evidências que as possam distinguir das alternativas. Não há como escolher, racionalmente, entre hipóteses impossíveis de testar. Além disso, esta é uma desculpa como a da raposa. A única razão para alegarem que é impossível obter evidências para as hipóteses que defendem é não as conseguirem obter. Se tivessem evidências claras da criação inteligente do universo não diriam que as uvas estão verdes.

1- Comentário em Adenda ao post anterior

domingo, maio 19, 2013

Treta da semana (passada): chemtrails

A combustão nos motores dos aviões produz principalmente dióxido de carbono e vapor de água. É comum este último formar cristais de gelo, devido à baixa temperatura onde voa a maioria dos aviões, deixando assim rastos visíveis por onde o avião passa. A estas nuvens artificiais mas inofensivas chama-se contrails. Os chemtrails são algo mais sinistro e perigoso, pois são «formados por toxinas e metais pesados, dispersos deliberadamente com uma intenção […] através de aviões preparados para o efeito [...] Qualquer rasto de avião que permaneça mais de 1 ou 2 minutos na atmosfera poderá ser considerado como Chemtrail.» (1)

Se bem que o autor afirme que os chemtrails são criados «com uma intenção», parece que as intenções são várias: «geoengenharia como controle climático»; «arma de guerra em Hamburgo – no Reino Unido, durante a II Guerra Mundial e também utilizada no conflito do Vietnam»; e serve também para «criar nuvens inteligentes através da nanotecnologia, com um aumento substancial a partir de 2010». Se lhe parecer azar aquela chuvada mesmo na altura de sair para o trabalho, desde 2010 que há uma boa probabilidade de ter sido de propósito, só para chatear. A conspiração chega a todo o lado. «Muitos dos aviões utilizados para Chemtrails foram modificados interiormente para essa função, muitas vezes sem que essas alterações constem da estrutura de base do projecto do avião comercial havendo, por outro lado, uma constante desinformação a nível internacional sobre a existência deste projecto.»

Apesar deste enorme secretismo, o eterhum, autor do post, conhece a composição dos chemtrails: «São constituidos por produtos perigosos e danosos para a saúde, entre outros produtos o bário, fibras de vidro revestido de nano-alumínio (conhecidas como CHAFF), tório radioativo, cádmio, cromo, níquel, sangue desidratado, esporos de mofo, micotoxinas de fungos amarelos, fibras de polímero (filamentos de silício), EDB (dibromoetano, pesticida químico já proibido) e uma vasta lista de sustâncias não identificadas.» Os mais cépticos poderão duvidar destas alegações, mas o autor apresenta evidências inquestionáveis nos efeitos destes produtos perigosos e danosos: «contaminam o solo dizimando os ecossistemas ao redor do planeta.» De facto, os ecossistemas ao redor do planeta são notoriamente inóspitos. Faz também questão de explicar como podemos confirmar as suas alegações: «Duvida que em Portugal estejam em funcionamento Chemtrails? Basta ir ao Google e colocar “Chemtrails em Portugal” neste motor de busca – poderá ver imagens e filmes que comprovam o contrário…» Reproduzindo esta experiência científica de averiguar a composição dos chemtrails pelo método analítico da pesquisa no Google encontrei um vídeo esclarecedor onde o Nelinho da Arrentela identifica alguns chemtrails criados por «aviões da meteorologia».



Importa também citar este trecho, que dá uma ideia concreta do rigor da investigação do eterhum: «Dentro dos muitos exemplos, mais recentemente o dia 15 de Dezembro/2010. Ao acordar o céu está limpo e nuvens e azul , verifico da minha varanda (moro em Almada) talvez mais de 14 aviões de Chemtrails na zona sul. Provavelmente os ventos levam as toxinas para Lisboa também. Tiro algumas fotografias dos rastos químicos. Nesse mesmo dia o tempo alterou-se, ficando mais frio. Dois dias após apercebo-me de vários agravamentos de saúde física ou psíquica em diferentes pessoas conhecidas.»

Andarem aí aviões da meteorologia a pulverizar nano-alumínio com sangue desidratado e esporos de mofo é preocupante. Mas o que me parece mesmo assustador é a quase omnipotentência dos nossos governantes. Estes homens, como Cavaco Silva, Passos Coelho e Miguel Relvas, conseguem criar uma ilusão perfeita de serem egoístas incompetentes enquanto organizam uma cabala mundial que cria nuvens inteligentes e controla tudo desde fábricas de aviões à comunicação social e desde pilotos a fungos amarelos. Tudo isto para nos causar «flatulência, dores de cabeça, cólicas, secura da pele e das mucosas, tendência para resfriados, ardor ou calor na cabeça (sintoma aliviado pela ingestão de alimentos), azia e uma aversão à carne.» Há pessoas mesmo ruins...

(Adenda) Mais sobre isto, e mais a sério, nestes posts do João Monteiro: Chemtrails I; Chemtrails II; e Chemtrails: a conspiração que paira sobre nós.

1- Eterhum (Portugal Esotérico), CHEMTRAILS em Portugal

domingo, maio 12, 2013

Treta da semana(passada): interesse do Estado.

Quando era directora financeira da REFER, a Maria Luís Albuquerque celebrou contratos de swap para os empréstimos dessa empresa pública. Agora está-se a descobrir que muitos desses contratos feitos com dinheiro público são danosos para o Estado. Juvenal Peneda e Braga Lino, por exemplo, já foram tirados do governo por terem feito swaps considerados “tóxicos” (1). No caso particular da REFER, são mais 40 milhões de dívida do que a empresa teria se não fosse essa direcção financeira da Maria Luís Albuquerque (2).

Quem decide se os swaps contratados por esses gestores financeiros de empresas públicas são tóxicos ou não é a Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública – IGCP, sob tutela do Ministério das Finanças, onde Maria Luís Albuquerque é agora secretária de Estado. Por coincidência, e apesar de haver «”lapsos” na falta de dados», o IGCP declarou que os swaps da Maria Luís Albuquerque eram meramente exóticos e não tóxicos.

É claro que um contrato de swap, por si só, não tem nada de errado. Pode ser a simples troca de uma taxa de juro variável – indexada ao Euribor, por exemplo – por uma taxa fixa que permita ao devedor saber exactamente quando vai pagar o quê. O problema é que estes contratos podem ser qualquer coisa. Por exemplo, «o direito, mas não a obrigação, de entrar em um ‘swap’ de taxa de juros em qualquer uma de uma série de datas pré-determinadas [mas] somente [...] em uma dessas datas.»(3) Dependendo dos detalhes, um swap pode ser indistinguível de uma aposta complexa. Neste caso, feita com dinheiro público.

Os detalhes, infelizmente, não os temos. É que a Maria Luís Albuquerque decidiu que não podem ser revelados por interesse do Estado(4). Mas podemos ficar descansados, porque o IGCP, tutelado pela Maria Luís Albuquerque, já determinou que os swaps celebrados pela Maria Luís Albuquerque são perfeitamente aceitáveis. Isto apesar da Maria Luís Albuquerque, por “lapso”, não ter apresentado ao IGCP os detalhes todos. Quanto aos 40 milhões a mais que isso vai custar, não há problema, que isso já não tem nada que ver com a Maria Luís Albuquerque. Afinal, não pode ser a senhora a fazer tudo...

1- Económico, Os ‘swaps’ do Governo
2- Diário de Notícias, Refer contratou 'swaps' exóticos
3- Carlos Fonseca (Aventar), Maria Luís Albuquerque, a ‘swinger’ dos ‘swaps’
4- Expresso, "Interesse do Estado" impede total esclarecimento dos contratos 'swap'

quinta-feira, maio 09, 2013

Adenda ao post anterior.

O Orlando Braga voltou ao assunto da legalização do casamento homossexual. Ou, como ele lhe chama, «a construção de uma nova forma de totalitarismo» pelo «movimento político homossexualista»(1). Segundo o Orlando, as elites patrocinam «um determinado tipo de relacionamento sexual (a sodomia e o “casamento” gay), promovendo-a e impondo-a coercivamente a toda a sociedade através da força bruta do Estado». Não quero especular sobre o que levou o Orlando a ver as coisas desta forma, mas queria deixar claro que a imposição coerciva da sodomia por força bruta continua a ser crime. A legalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo não mudou isso.

No que toca à adopção, o Orlando manifesta uma posição diferente, alegando não ter «nada contra os homossexuais»(2) e que esse assunto é simplesmente uma «luta pela ética e pelos direitos da criança» porque «uma criança tem direito a um pai e a uma mãe, ou não sendo possível, a uma situação análoga à dos pais biológicos». Este argumento contra a adopção por parte de casais homossexuais tem dois problemas: o direito e a analogia.

Um direito é o reverso de um dever. Sempre que dizemos que alguém tem um direito estamos a dizer que outro, ou outros, têm um dever. Seja negativo ou positivo, o direito de um implica sempre o dever de outro. Por exemplo, o direito do empregado receber ordenado é o dever do patrão lhe pagar. Este é um direito positivo porque é o direito de que outros façam algo em seu favor. O direito de alguém à liberdade é o dever dos outros não o prenderem. Este é um exemplo de um direito negativo porque é o direito de que não lhe façam certas coisas. Seja como for, direitos e deveres são sempre duas faces da mesma relação. Percebendo isto torna-se claro que o direito de ter pai e mãe está condicionado às circunstâncias. A criança tem esse direito em relação aos seus pais biológicos porque estes têm o dever de amar e criar os seus filhos. No entanto, na ausência dos progenitores não podemos dizer que a criança tenha o direito a um pai e uma mãe porque não há mais ninguém com o dever correspondente de assumir esse papel. A criança tem realmente o direito de que cuidem dela, de que a alimentem, abriguem e eduquem porque todos, colectivamente, temos o dever de não deixar a criança desamparada. Mas isso não é o mesmo que ter pai e mãe. Assim, o direito da criança ser amada e criada por um pai e uma mãe não tem nada que ver com a adopção, nem homossexual nem heterossexual, porque esse direito corresponde apenas ao dever dos pais biológicos dessa criança.

O outro problema é a tal analogia entre os pais biológicos e quem adopta a criança. Para o Orlando, o ponto principal de analogia entre quem concebe e quem adopta deve ser o número de testículos e ovários. É uma escolha duvidosa. Eu diria que amar a criança como os pais devem amar os filhos e estar empenhado em criá-la como os pais devem criar os filhos são os factores mais importantes na analogia entre pais biológicos e adoptivos. Sou pai há quase doze anos e, à parte da fase inicial de concepção, não me recordo de alguma vez ter usado os testículos para criar os meus filhos. No cômputo geral, parece-me melhor para a criança órfã ou abandonada ser criada por quem está disposto a tratá-la como um filho do que em instituições do Estado, e as gónadas, sejam de quem forem, têm pouco que ver com o assunto.

Outro argumento que o Orlando apresenta contra o casamento homossexual é, ironicamente, um argumento a favor da legalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo: «o casamento é uma instituição, e não um simples contrato [...] Uma instituição pode eventualmente prever a celebração de um contrato que é imposto pelo Estado; mas um contrato reconhecido pelo Estado não dá necessariamente origem a uma instituição.»(3) Por outras palavras, uma coisa é o casamento como “instituição”, definida por esta ou aquela tradição cultural, e outra é o casamento enquanto contrato celebrado por duas pessoas. Por exemplo, não é por o Estado permitir que ateus casem no cartório que a Igreja Católica reconhece esse contrato de casamento como idêntico a um casamento católico. Quem se opõe à legalização do casamento homossexual muitas vezes invoca a premissa de que não compete ao Estado determinar a definição de casamento para concluir que o Estado não pode legalizar o contrato de casamento entre duas pessoas do mesmo sexo. Mas o que se pode concluir dessa premissa é o contrário, que legalizar o contrato de casamento entre pessoas do mesmo sexo não afecta qualquer definição cultural ou religiosa de casamento. A compreensão da independência entre o Código Civil e a tradição tem sido um factor importante para a aceitação da nova lei.

Em suma, o Orlando Braga ilustra bem a razão pela qual a mudança de opinião acerca deste assunto está a ser tão rápida em alguns sítios. É que basta pensar um pouco nos argumentos contra a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo para perceber que são treta.

1- Orlando Braga, O novo tipo de totalitarismo e o movimento político homossexualista
2- Orlando Braga, A adopção de crianças por pares de homossexuais vai contra os direitos humanos
3- Orlando Braga, Os sofismas acerca do casamento e sobre a liberdade

domingo, maio 05, 2013

Treta da semana (passada): ser contra.

O Orlando Braga descobriu um ateu inteligente. «Brendan O’Neill, um ateu, editor de uma revista inglesa, denuncia a falta de senso crítico numa sociedade unanimista em relação ao “casamento” gay — e esse unanimismo tem origem no medo de não se alinhar com o politicamente correcto. “As pessoas têm medo” — diz o ateu Brendan O’Neill.»(1) É por as pessoas terem medo que, segundo Brendan O'Neill, vários países já não proíbem que dois adultos do mesmo sexo celebrem um contrato de casamento.

Como evidência, O'Neill aponta «alterações massivas na opinião pública. Nos EUA, um inquérito recente da ABC revelou que 58 porcento dos Americanos apoiam o casamento homossexual, comparado com apenas 37 por cento há uma década» (2). Aponta também que muitos senadores do partido Democrata dos EUA têm mudado de posição acerca deste assunto, e mesmo alguns do partido Republicano. Como assume que a opinião pública não pode mudar tanto em apenas dez anos, conclui que esta gente toda diz que mudou de ideias porque tem medo dos homossexuais. Em seguida alega que o movimento pela legalização do casamento homossexual é «elistista por natureza» que foram «juízes, e não manifestantes na rua, que lideraram a campanha pelo casamento homossexual», formando uma «'subcultura distinta' da elite cultural», e que este movimento se tem concentrado principalmente nos tribunais e não na praça pública. Ou seja, um movimento elistista minoritário, subcultura de juízes liberais e focado em aspectos legais, força 58 porcento dos Americanos, 62 porcento dos Britânicos e carradas de senadores a dizer que concordam. Por medo. E sem nunca dizer explicitamente qual é a ameaça. Parece-me uma explicação demasiado rebuscada para algo relativamente simples. No entanto, devo ressalvar, eu não sou certamente daqueles ateus que o Orlando considera inteligente.

Eu não tenho medo de dizer que sou contra o casamento homossexual. Tal como sou contra casar com alguém que fume (detesto o cheiro), tenha gatos (sou alérgico) ou não queira ter filhos (os miúdos dão imenso trabalho, mas compensa). Sou contra no sentido de que essas coisas não são para mim. No entanto, não tenho dificuldade em reconhecer que as repudio por preferência pessoal e que isso não justifica legislação alguma. Por isso, também sou contra qualquer lei que proíba contratos de casamento com fumadores, com donos de gatos, com quem não queira filhos ou entre pessoas do mesmo sexo. Gostos não se discutem e, especialmente, não se legislam. A explicação mais simples para a aparente mudança radical de opinião não é o medo de uma ameaça homossexual oculta. O mais provável é nem sequer ter havido grande mudança de opinião acerca do casamento homossexual. O que houve é a compreensão de que, lá porque uns não gostam, não quer dizer que a lei tenha de proibir.

O argumento de quem defende esta proibição sempre dependeu de baralhar duas formas de ser contra: a de não querer fazer algo e a de querer proibir outros de o fazer. Isto deu para enganar muita gente durante algum tempo mas, eventualmente, foi-se tornando claro que as supostas tragédias dos valores morais, da definição do casamento e da defesa da família eram mera demagogia. O único problema foi sempre, e apenas, o da lei vedar o contrato de casamento a pessoas do mesmo sexo. É por isso que esta campanha tem focado principalmente os tribunais, ao contrário dos movimentos históricos contra o racismo ou a discriminação das mulheres que, visando alterar a forma como a sociedade tratava certos grupos, tiveram uma abrangência muito maior. Os defensores do casamento homossexual não pretendem que os restantes cidadãos sejam a favor de casar com alguém do mesmo sexo. Cada um casa com quem entender. Pretendem apenas que a lei respeite os desejos de cada casal sem olhar para o sexo dos nubentes. Aquilo que O'Neill diz ser uma mudança radical de opinião não passa de um que se lixe, se isto só afecta quem quer não vale a pena arranjar chatices.

O próprio O'Neill dá um exemplo dessa atitude: «quando, recentemente, entrevistei o artista pop Britânico Dappy e lhe perguntei se apoiava o casamento homossexual, ele disse: 'Eu quero dizer não... mas já arranjei tanta chatice com isso. Portanto digo “sim”.»(2) O'Neill alega que isto revela o tal medo de admitir ser contra o casamento homossexual, mas essa explicação é refutada pelo próprio exemplo, pois o entrevistado admite publicamente ser contra o casamento homossexual. O que o tal Dappy afirma é que não quer chatices. Como cada um pode ser livre de ter a sua opinião e encarar o casamento como entender sem que isso retire liberdades equivalentes a terceiros, a opção mais razoável é cada um pensar o que quer sem chatear os outros. O que está a permitir esta onda de revisão dos contratos de casamento é apenas a compreensão colectiva de que permitir o casamento a pessoas do mesmo sexo não afecta em nada a vida das pessoas que queiram casar com alguém do sexo oposto. Excepto se forem daquelas pessoas que gostam de meter o bedelho na vida dos outros. Ou, como o Orlando Braga lhes chama, “inteligentes”.

1- Orlando Braga, Afinal, há ateus inteligentes
2- Brendan O’Neill. Gay marriage: a case study in conformism

quarta-feira, maio 01, 2013

Aborto, o regresso.

Há quase dois meses várias pessoas discutiram aqui a minha opinião acerca da legalidade do aborto (1). Já vou atrasado para a conversa mas, como acerca da minha opinião até posso escrever com autoridade, ao contrário dos restantes temas que costumo abordar, aqui vai mais um post sobre isto.

Primeiro, avaliar uma decisão exige comparar futuros possíveis. Isto parece trivial mas é muitas vezes descurado por quem argumenta não haver problema com o aborto porque a vida que se destrói ainda está no futuro. Também quando se vai construir uma central nuclear ainda não há lixo radioactivo. Mas é claramente incorrecto ignorar a diferença entre haver ou não haver lixo radioactivo no futuro quando se decide sobre a construção de uma central nuclear no presente. A outra premissa é a de que o valor principal de algo é o valor que tem para si próprio. A máquina de lavar nunca terá valor para si própria, em nenhum momento da sua existência, pelo que podemos fazer dela o que nos der jeito. Em contraste, a vida de um ser humano tem valor para quem a vive, e esse é o valor principal a considerar. Destas duas premissas concluo que, na decisão de abortar, deve pesar o valor que décadas de vida humana terão para aquele ser que as vai viver se não for abortado. Sendo este valor muito superior a qualquer inconveniente social, económico ou profissional, considero não ser eticamente permissível abortar por tais motivos.

Não encontrei ainda quem rejeitasse estas premissas enquanto regras gerais ou mostrasse que a conclusão não segue delas. Em vez disso, as objecções tendem a passar ao lado do argumento. Por exemplo, alegar que o embrião não é pessoa é irrelevante porque este argumento não tem nada que ver com ser pessoa. Um pouco melhor é a objecção de que este raciocínio condenaria igualmente a contracepção, mas esta também não atacaria o argumento em si, mesmo que fosse verdade. Apenas obrigaria a avaliar a contracepção de outra forma, como fiz com a compra de carne de mamíferos quando avaliei assim a ética de matar esses animais só porque sabem bem. Mas vale a pena explicar porque é que o aborto e a contracepção são eticamente diferentes.

Um argumento nesta linha é o de não se poder matar embriões implica também não se poder matar espermatozóides e óvulos porque todos são conjuntos de células. Mas os rabos também são conjuntos de células e o meu direito de apalpar o meu não é o direito de apalpar os dos outros. Independentemente da confusão que se faz com “o início da vida” e o que é ou ainda não é “pessoa”, é evidente que durante a concepção as células dos pais fundam uma nova colónia de células, a do filho, que já não é parte dos organismos progenitores como eram os gâmetas.

Mais relevante é o argumento de que os gâmetas importam porque deles resulta a tal vida futura cujo valor se protege no caso do aborto. Neste aspecto estou de acordo. O valor dessa vida, para quem a viver, é o mesmo. No entanto, a ética depende também da relação causal entre a decisão e o valor das consequências. Por isso é que um acidente e um homicídio são eticamente diferentes, ainda que o valor da vida perdida seja o mesmo. E enquanto que vender tudo o que tenho e dedicar-me a alimentar pessoas no terceiro mundo seria eticamente louvável, não o fazer não me torna culpado por essas mortes cujas causas nada têm que ver com as minhas decisões. Bem diferente seria se eu matasse alguém com uma bomba ou um tiro pois, nesse caso, já haveria uma forte relação causal entre a minha decisão e a morte dessa pessoa. É esta a diferença entre a contracepção e o aborto. Cada filho que nunca chega a ser concebido não existe por muitas causas alheias às nossas decisões, entre os quais a impossibilidade de todos os espermatozóides fecundarem óvulos, mas no aborto propositado há uma relação causal forte entre a decisão de abortar e a morte do abortado.

Isto não quer dizer que eu seja sempre contra o aborto ou contra a sua legalização. O valor da vida não é absoluto e tem de ser ponderado com outros factores. O aborto pode ser eticamente admissível em casos de risco para a mãe, violação, ou gravidez de menores, por exemplo. O valor da vida também não é igual em todos os casos. Em casos extremos de doença congénita até pode ser preferível abortar. Por isso, mesmo restringindo-me ao aspecto ético, só no caso de uma gravidez saudável resultante de um acto sexual voluntário é que posso dizer que o aborto não é eticamente admissível. Nesse caso os pais têm o dever de zelar pelo filho até o poderem entregar a terceiros. Fora destas condições o problema torna-se demasiado complexo.

Quanto à Lei, é apenas uma de várias ferramentas que temos para guiar comportamentos. Se o aborto deve ser ilegal, mesmo no caso em que é eticamente inadmissível, dependerá dos efeitos práticos de lei e esse é um problema complexo. A minha oposição ao referendo pelo qual se legalizou o aborto deveu-se, principalmente, aos aspectos éticos não serem referendáveis nem os aspectos sociais, legais e económicos passíveis de redução a uma cruz num papel. Agora, tudo o que se poderia fazer para reduzir o recurso ao aborto, não só a nível de legislação mas também de saúde pública e outros incentivos, ficou condicionado ao “sim” que 25% dos eleitores responderam a uma pergunta inadequada à complexidade do problema. Em consequência, agora assume-se que o aborto é um mero exercício de direitos, como tirar um sinal, e que até merece ser comparticipado pelo Estado. Além de esconder os problemas éticos, quer da parte dos abortados quer da parte das mulheres forçadas a abortar por pressões económicas ou sociais, nem sequer deixa margem para ponderar se os milhões de euros gastos em abortos não seriam melhor investidos a tratar algo que fosse mesmo doença.

1- Comentários em Treta da semana: arreia-lhe enquanto não cresce.