sexta-feira, junho 14, 2013

A metáfora da dívida.

Se me esqueço de dinheiro para o almoço e peço emprestado a um colega fico em dívida para com ele. No sentido pleno do termo. Devo dinheiro, assumindo o compromisso pessoal e moral de o restituir, e estou em dívida pelo favor, além da quantia emprestada. O significado de “dívida” corresponde bem a esta situação. Comprar uma casa com empréstimo bancário é diferente. Não fico a dever favor nenhum ao banco, que empresta para fazer negócio e obter lucro. Também não assumo um compromisso moral de restituir o dinheiro. Assino um contrato que especifica o que acontece se pagar e o que acontece se não pagar. Se a casa desvalorizar e passar a valer menos do que ainda devo ao banco é sensato e legítimo deixar de pagar e entregar a casa ao banco. É o que está no contrato. Apesar de lhe chamarmos “dívida”, este contrato com o banco não impõe qualquer obrigação moral além das opções e deveres que o contrato estabelece.

Vamos supor que, em vez de pedir dinheiro a um colega ou ao banco, eu regularmente leiloava a possibilidade de pagar 1000€ um mês mais tarde. Quem oferecesse mais dava-me o dinheiro naquele momento e, um mês depois, se eu quisesse pagar, dava-lhe os 1000€. Fazer isto uma vez não daria grande coisa, mas se eu já tivesse reputação de bom pagador podia conseguir uns 800€ ou 900€ por cada leilão, pois todos saberiam ser do meu interesse pagar para continuar o esquema e teriam confiança nuns 100€ ou 200€ de lucro sem problemas. É isto o que o Estado faz quando vende “dívida pública”. Não é uma promessa nem é um favor. É um negócio de risco. Os licitadores arriscam o que acham que vale a pena, tendo em conta vários factores*, e o Estado depois logo vê se paga. Chamar a isto “dívida” é enganador porque não passa de uma sequência de apostas.

A própria noção de dívida pública é enganadora. Vamos supor que é preciso pintar o prédio e o condomínio não tem dinheiro que chegue. Então os condóminos adiantam a quantia que falta e, nos meses seguintes, esse dinheiro é devolvido reduzindo as quotas mensais. À primeira vista, parece uma dívida do condomínio para com os condóminos. Só que o condomínio é o conjunto dos condóminos que, no fundo, estão a emprestar dinheiro a si próprios para seu próprio benefício. O Japão é um bom exemplo disto. A “dívida pública” japonesa está a aproximar-se dos 240% do PIB (1). Segundo a metáfora da dívida que por aqui impera, os japoneses são uns terríveis esbanjadores, duas vezes piores que os portugueses e ainda mais gastadores do que os gregos. Na realidade, passa-se o contrário. A “dívida pública” japonesa não é algo que os japoneses devem mas sim poupanças que alocaram a infraestrutura e serviços públicos dos quais usufruem. É verdade que dois terços da dívida pública portuguesa tem credores estrangeiros, e este é um problema em muitos países europeus. Mas esses estrangeiros pertencem à UE, e a UE não é um conjunto de países independentes. Na prática, é uma união de regiões interdependentes, cada uma beneficiando do investimento nas outras. A dívida pública da Europa é essencialmente doméstica.

Com a moda do empreendedorismo há também a ideia de que a “dívida pública” é o que os pobres devem aos ricos. Bancos e cidadãos mais ricos emprestam dinheiro ao Estado, a juros, e este depois esbanja tudo em escolas públicas, hospitais e subsídios, coisas das quais os ricos não precisam. No entanto, só o Estado, com prestações sociais e cargas policiais, é que consegue manter a sociedade estável com uma diferença tão grande entre ricos e pobres. Se não se financiar adequadamente o Estado é inevitável uma redistribuição violenta da riqueza. No fundo, uma boa parte da dívida pública surge porque os ricos não querem pagar os impostos que seria necessário pagarem para se poderem manter ricos e, em vez disso, emprestam esse dinheiro ao Estado para que este consiga depois cobrá-lo dos pobres.

A metáfora da dívida pública é enganadora. É um embuste a analogia do Estado com a pessoa que gastou mais do que tinha e agora tem de apertar o cinto, envergonhada e arrependida, para poder pagar aos seus benévolos credores e recuperar a honra. Parte da dívida pública vem de desperdícios e ineficiências, que é sempre conveniente corrigir. Mas essa é uma parte pequena. O grosso vem de negócios especulativos, de empréstimos em benefício dos credores e de simplesmente dar dinheiro aos ricos com parcerias, nacionalizando bancos falidos e maroscas afins. Entretanto, o moralismo bacoco da “dívida” vai escondendo o verdadeiro problema, que é o sistema bancário, e vai vendendo a treta da austeridade. Mas acerca disso passo a palavra ao Mark Blyth, que percebe bastante mais do assunto. A palestra não é fácil de seguir, pela velocidade com que ele fala, mas vale a pena ouvir as vezes que for preciso.


Via Boing Boing

* Em certos casos até podem dar mais dinheiro do que vão receber. Por exemplo, Negative Yield on German 2-Year Note. Isto pode acontecer se outros investimentos parecerem ainda mais arriscados.
1- Economist, Shinzo Abe’s government looks likely to disappoint on fiscal consolidation

4 comentários:

  1. Descobri há alguns anos atrás um livro chamado "Debt: The First 5000 Years" que descreve as várias facetas do conceito de dívida ao longo da história da humanidade e em diversas culturas. O primeiro capítulo, que se pode ler online na página da Amazon, entre outras coisas descreve as acções do FMI em países de terceiro mundo onde se cortou em coisas como programas de prevenção da malária para pagar dívidas aos ex-colonizadores.

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  2. No caso dos bancos existe um contrato onde credores (os pais) asseguram o pagamento da dívida. Não há possibilidade de simplesmente entregar o imóvel, seria uma maravilha.

    Raios parta o Mark alguém lhe dê valium.
    https://www.youtube.com/watch?v=E1Kzp5EVUWg

    Mas o problema mantém-se, o estado/bancos têm dívidas. Ou não se pagam (e os credores cortam os fornecimentos) ou se vai pagando. O que me faz confusão é que sempre que se vai aos mercados é para contrair uma dívida ainda maior do que a que já se tinha...

    De qualquer forma é como o outro disse se te devo 1.000€ eu tenho um problema, se te devo 1.000.000€ que tem o problema és tu ;)

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  3. Eu nem concordo muito.

    Quem tem dinheiro e poder tem a moral do seu lado. Quem não tem não tem moral e direitos.

    Quem não tem casa e pede um emprestimo ao banco não tem dinheiro e por isso poder.

    Logo se a situação mudar e o banco tiver as expectativas goradas de ter o seu legitimo lucro alguem terá de pagar este prejuízo.


    Se o marginal que pediu a guita não poder pagar não é justo que o banco aguente o prejuízo. Como o devedor muitas vezes não tem vergonha, e o que é pior dinheiro, para pagar temos de arranjar quem pague.

    Seria imoral pedir ao banco que ficasse com o prejuízo. Seria igualmente imoral exigir a quem - sabe deus com que esforço e sacrificios - amealhou um pecúlio.

    Logo deveremos pedir a quem nunca se esforçou muito e por isso não tem pecúlios amealhados algum esforço.

    Por um lado porque são pessoas já habituadas a sacrificios pelo que mais um menos outro não lhes fará grande diferença.

    Assim repõe-se , por vezes pela força do uso outras pelo uso da força, da moral e dos bons costumes.

    Preocupa-me um bocado uma questão relacionada com brioches.

    No entanto dada a proximidade das autárquicas parece-me que um ou outro brioche - não confundir com broche- lá cairá.

    Depois umas promessas de bacalhau a pataco e lá se conseguirá devolver a guita aos bancos. Mais o lucruzinho sem o qual o mundo não gira.

    Sem esquecer as percentagens da ppp, scuts, comissões, gabinetes de estudos, acessores, juros diversos, swaps que per si tem um forte valor ético.

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  4. so para dizer que com tao boa prosa que apreciei noto que a parte dos factos que pode por exemplo ter em tretas.org ajudava a completar a argumentaçao.

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