sexta-feira, setembro 13, 2013

Treta da semana: a educação do Raposo.

O Henrique Raposo defendeu recentemente a privatização do ensino em Portugal. Uma justificação foi a de que, por cada aluno nos colégios com contratos de associação, o Estado gasta em média menos 3% do que gasta com cada aluno em escolas públicas. Estranho seria se fosse o contrário, e isto não tem nada que ver com despesismos ou eficiência de gestão. Os privados podem localizar os colégios onde o negócio for mais rentável. O Estado não e, se bem que os governos recentes tenham fechado escolas com menos de 20 alunos (1), há ainda muitas escolas públicas com bastante menos do que a média de 570 alunos das escolas privadas com contrato de associação (2). Além da muita aldrabice que há neste negócio (3), garantir a educação de todas as crianças custa forçosamente mais do que investir só nas regiões mais rentáveis. Um dos grandes problemas do “cheque ensino” é precisamente este de ser muito mais provável haver colégios privados em Cascais do que em Carrazeda de Ansiães.

A outra justificação do Henrique Raposo é a de que «Cerca de 70 por cento das escolas na Holanda são privadas. Ou seja, o sistema público de educação da Holanda é baseado em colégios privados com contratos de associação com o Estado»(4). Isto não é uma treta. São três. Primeiro, a comparação é enganadora porque o sistema de ensino nos Países Baixos é muito diferente do nosso. O Estado supervisiona, financia, controla e autoriza o funcionamento de todas as escolas ao abrigo do sistema público de ensino, mas quem cria e gere as escolas são os governos locais, organizações religiosas e quem mais queira fazê-lo, com a restrição de não poder cobrar propinas e de ter de cumprir as normas estatais (5). Isto não é comparável com a distinção que cá fazemos entre o ensino público e as escolas privadas com fins lucrativos. Aquele “70% de privados” inclui uma grande gama de casos que vai desde escolas religiosas a associações locais e que pouco têm que ver com o negócio das escolas privadas que temos cá.

A segunda treta é a insinuação de que os Países Baixos optaram por este sistema porque é melhor, mais eficiente e lava mais branco. Não foi nada disso, e muita gente lá critica este sistema educativo pelo uso questionável do dinheiro dos impostos e pela sua contribuição para a segregação social. O sistema educativo dos Países Baixos é um legado histórico dos compromissos necessários a formar um país com uma sociedade fragmentada (6), como também aconteceu na Bélgica, outro dos exemplos do Henrique, com 50% das tais “escolas privadas”. Foi o que conseguiram fazer com várias regiões, religiões e grupos que não queriam os seus filhos educados com as ideias dos outros. Se tivessem podido evitá-lo, não teriam optado por esta solução.

A terceira treta é mais subtil. O ordenado mínimo nos Países Baixos é de 1469€ (7) e 43% da população tem educação superior (8). O nosso é de 566€, 24% da população tem educação superior e o aumento do nível de educação dos portugueses tem sido muito recente. Em 2003 a diferença era de 18% contra 39%. Não é verdade que o sistema de ensino nos Países Baixos seja “70% privado” no mesmo sentido com que cá distinguimos entre ensino público e privado, nem o escolheram por ser o melhor. Mas, ainda que assim fosse, não poderíamos concluir daí que seria bom para nós. Numa sociedade em que até os mais pobres têm garantias de um nível de vida razoável há mais gente a trabalhar pelo que faz e pelo reconhecimento da sua comunidade. Num país mais miserável o propósito do trabalho ou do negócio é quase sempre só o dinheiro que se ganha. Numa sociedade mais justa e igualitária a maioria não admite aldrabices e corrupção. Numa sociedade em que uns poucos têm quase tudo a aldrabice é mais alvo de inveja que de repúdio. Quando os pais têm mais formação, o sucesso escolar das crianças é mais fácil, o trabalho dos professores mais reconhecido e é mais difícil vender às famílias ensino de má qualidade (9). Quando os pais têm pouca formação, há mais desprezo pelo trabalho dos professores e pela educação em si, que tende a ser avaliada apenas pelo salário futuro do educando. Mesmo que nos Países Baixos fosse boa ideia ter o ensino “70% privado”, ainda assim seria uma péssima ideia copiarmos a receita com o país que temos agora. Aquela modesta poupança de 3% por aluno sairia muito cara em corrupção, na degradação do ensino e por nos condenar a ficar na mesma mais uma geração.

1- DN, Governo quer fechar escolas com menos de 20 alunos
2- Segundo este pdf>, há 53 mil alunos em 96 escolas com contrato de associação.
3- Daniel Oliveira, Colégios privados GPS: uma história exemplar
4- Henrique Raposo, A Holanda tem uma educação inconstitucional, quiçá fascista
5- Wikipedia, Education in the Netherlands
; CEIB, The Netherlands Overview
6- Wikipedia, Pillarization
7- Expatax, What is the minimum wage in the Netherlands in 2013?
8- Eurostat (Escolha “Education” na lista no canto superior direito).
9- Por exemplo, preparando os alunos para os exames nacionais mas não os ensinando a estudar devidamente. Escolas públicas preparam melhor os alunos para terem sucesso no superior

1 comentário:

  1. O desgoverno de Portugal não espanta, nem o mais analfabeto dos portugueses. Em Portugal, as políticas, em geral, são expressão de uma vontade ficcionada a partir do facto de uma legitimidade democrática que justifica o poder, sem necessidade de outras razões, como por exemplo, documentar e fundamentar exaustivamente as políticas. Em Portugal, a prática corrente é mais do tipo "se este modelo do país X lhes serve também há-de servir a nós, não percam tempo com isso, apliquem isso". Depois, bem, depois se verá. Ajusta-se isto, ajusta-se aquilo e, ao fim de dez, talvez quinze anos, teremos uma coisa como deve ser. É como se as nossas elites políticas soubessem desde sempre que não é preciso escola, nem ciência, nem investigação, porque...tudo isso existe. «Existem respostas e soluções para tudo», diria um líder político, «basta ver o que outros países têm feito e copiar o trabalho deles». Os nossos políticos nunca fazem afirmações ou propostas devidamente acompanhadas de fundamentação sólida, porque não têm o hábito de pensar que as políticas podem e devem ser fundamentadas com as melhores razões. Deter o poder não é e não devia ser a única, nem sequer uma boa razão, nesta democracia tetraplégica.
    Falar de privatização do ensino, por exemplo, requer que, antes de mais, se defina claramente, não o que é privatização em geral e abstracto, mas o que seria privatização do ensino. Privatizar é um verbo como outro qualquer, mas privatizar uma empresa é algo mais complexo do simplesmente privatizar. A ideia de privatização, como a sua 'antagónica' de coletivização, ou nacionalização, ou expropriação, não têm nada de mal ou de inconveniente, de certo ou errado, de mau ou de bom, de vantajoso ou desvantajoso. Só se encararmos as coisas (e os conceitos) sem preconceitos é que poderemos fazer a avaliação necessária do que está em causa e em jogo, para, de seguida, tentarmos escolher uma política, linha de acção, alternativa entre outras... e dizer porquê, na esperança de que a nossa análise e as nossas razões sejam entendidas pelos outros e resistam suficientemente à contra-argumentação dos vários quadrantes.
    Se me convencessem, com boas razões, de que privatizar o Ensino, ou a Justiça, ou a Ordem pública, ou a saúde, do mesmo modo que as fábricas de salsichas e de aros de bicicleta são privadas, traziam, não apenas o mesmo nível/valor de satisfação das necessidades, mas um valor acrescido, eu pensaria ainda em muitas questões tão importantes ou mais do que essas. Privatizar, aparentemente, seria fácil. A questão dos custos para o Estado é uma questão cuja resposta devia haver alguém capaz de dar, mas não há. Não é uma qualquer resposta. Mas se a privatização do ensino ou dos outros, feitos os estudos e as contas (e obtidas as garantias adequadas de que assim iria ser) resolvia todos os problemas que é preciso resolver e não trazia outros, ainda que menores, que mal veríamos nessa privatização?
    Se os problemas fossem meramente de custos financeiros... Pegar nos problemas do Ensino, Justiça, Saúde, Ordem e segurança públicas pelo lado dos custos financeiros é a pior forma de tentar perguntar por que é que o Estado é preciso.
    Chamo a atenção para a diferença (importante) entre ensino privatizado e ensino privado.
    O ensino privado sempre existiu e não é proibido. Cada um, ou em associação, sociedade, etc., pode conceber um sistema de ensino ao seu gosto e tentar operacionalizá-lo. Até os partidos políticos podem criar escolas para ensinarem as ideologias ou o que lhes aprouver. E os alunos, que tenham dinheiro e condições para isso, podem sempre procurar aprendizagens e sistemas de ensino ao seu gosto/interesses, nas artes, desportos, ciências, etc...

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