quinta-feira, outubro 31, 2013

Disto e daquilo, 5.

Bichos
Têm chovido críticas em resposta ao boato de que o Ministério da Agricultura estava a rever o número máximo de cães por apartamento. Concordo que não há justificação óbvia para o limite ser dois em vez de três, um ou quatro e que isto não devia ser uma prioridade. Mas a ministra parece pensar o mesmo (1) e, se querem criticar o governo, certamente haverá medidas mais merecedoras de indignação. Seja como for, parece-me que a maioria das críticas assenta na ignorância de que já há pelo menos uma década que esta lei está em vigor (2) e na ideia de que o objectivo é o Estado fiscalizar quantos animais as pessoas têm. Tanto quanto percebo, não anda por aí polícia a contar bóbis. O propósito desta lei é dar recursos legais a quem viva paredes meias com um maluco que tenha uma data de animais em más condições, que sejam um perigo para a saúde ou que não deixem ninguém dormir.

Suspenso
O CDS-PP suspendeu por cinco meses o deputado Rui Barreto por ter votado contra o OE de 2013 (3). Agora, o Rui Barreto só permanece na Assembleia da República porque ainda é membro do CDS-PP/Madeira, caso contrário ficaria também suspenso do cargo de deputado. Compreendo que a disciplina de voto e o poder de suspender deputados facilite os acordos entre partidos na AR. Mas não compreendo que essa conveniência se sobreponha aos princípios fundamentais da democracia representativa. O Rui Barreto foi eleito por madeirenses que votaram nele e é essas pessoas que ele tem de representar. Os deputados são, acima de tudo, representantes dos eleitores e não dos partidos. Por isso, qualquer mecanismo que um partido possa usar para coagir os votos dos representantes dos eleitores é um atentado à democracia e devia ser considerado um crime pelo menos tão grave como o de coagir os votos dos eleitores. O resultado prático desta usurpação é evidente. Os partidos do poleiro são compostos por um cerne de deputados permanentes protegidos pela carne para canhão que vai e vem conforme o sucesso eleitoral. A disciplina de voto concede a esse grupo central o poder de dirigir todos os votos do partido ao mesmo tempo que, pela manipulação das listas de candidatos e os círculos onde concorrem, se protegem do eventual desagrado dos seus próprios eleitores. A representatividade é a que se vê.

Petição
Hugo Ernano, militar da GNR, foi condenado a nove anos de prisão por ter morto uma criança quando desatou aos tiros a uma carrinha em fuga. Segundo o acórdão, os juízes foram unânimes na condenação do acto como «inadequado e desajustado» mas o arguido afirmou que «se fosse hoje voltaria a agir da mesma forma». Aparentemente, este militar da GNR ainda acha que o procedimento mais adequado no caso do furto de fios de cobre é disparar contra a carrinha em fuga para a “imobilizar”, provavelmente no fundo de algum barranco, mas sem intenção de magoar ninguém. Não sei se será de ver muitos filmes ou se será mesmo por a GNR ser demasiado militarizada para ser uma polícia adequada, mas é preocupante que não lhe tenha ocorrido que seria melhor anotar a matrícula, seguir a carrinha e depois prender os meliantes sem criar situações de perigo. Mais preocupante ainda é haver pelo menos 65 mil pessoas que julgam que é assim que as forças de segurança se devem comportar (4): primeiro dar tiros porque sim, mesmo que não seja necessário para eliminar algum perigo iminente para a vida do agente ou de terceiros, e só depois ir ver se há inocentes no caminho ou se um crime como o de roubar fio de cobre justifica execução sumária. Sim, é verdade que o criminoso foi irresponsável por ter levado o filho para uma coisa destas. Mas nem o filho merecia ser morto pelo crime do pai nem roubar fios de cobre, mesmo com uma criança ao pé, é tão grave como matar um miúdo de 13 anos desatando aos tiros sem necessidade.

Direitos
A 1ª Comissão Permanente dos Direitos Liberdades e Garantias decidiu não garantir a liberdade de contornar limitações tecnológicas quando estas impedem o cidadão de exercer os seus direitos legais de acesso e reprodução de obras culturais. Apesar dos Projectos de Lei 406/XII e 423/XII terem sido aprovados na generalidade, foram agora chumbados por esta comissão «por não terem receptividade do Governo» (5). Continuamos assim na situação curiosa de pagar taxas pelo direito à cópia privada sem podermos copiar legalmente porque o editor publica as obras com restrições digitais. Mesmo que estejam em domínio público, como é o caso dos “Clássicos Porto Editora” onde até o Camões leva DRM (6), não vá um dia o governo estender a duração dos monopólios, retroactivamente, para além dos quinhentos anos. Já faltou mais.

1- TVI 24 - Ministra deixa cair limitação de cães e gatos por apartamento
2- PGDL,  DL n.º 314/2003, de 17 de Dezembro , artigo 3º
3- Público, Deputado do CDS-PP suspenso cinco meses por ter votado contra OE2013
4- Público, Mais de 65 mil pessoas pedem absolvição de GNR condenado por matar jovem em perseguição
5- ANSOL, 1ª Comissão Reduz Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos
6- Paula Simões, Bertrand/Porto Editora ataca Domínio Público #publicdomain #drm #fail

domingo, outubro 27, 2013

Treta da semana: Cura Reconectiva®.

Até recentemente, o mundo das terapias alternativas tem sofrido pela excessiva complexidade das várias abordagens, obrigando os terapeutas a “saber” que cristais usar onde, como identificar a azia nas riscas da íris ou a dor de cabeça nas plantas dos pés, ler auras, encontrar meridianos, desbloquear o fluxo de energias ou intuir as combinações de aromas florais indicadas para a doença e personalidade do seu paciente. Já não é preciso. Agora qualquer um pode ser um perito instantâneo da cura «graças a uma nova gama de frequencias curativas e, muito provavelmente, devido a um campo de ondas totalmente novo […]. Permite aceder a luz e informaçao e devolver-nos o equilibrio a muitos niveis, ligando-nos completamente a nos proprios, aos outros, à Terra, ao Universo e à nossa multidimensionalidade como seres humanos». À parte de alguns acentos, parece que a Cura Reconectiva® tem tudo: «A Cura Reconectiva está a ligar as pessoas a um novo conjunto de frequencias vibracionais que estimulam a cura do corpo, mente e espírito, promovendo um regresso ao equilíbrio pela reestruturação e activação do seu ADN.»(1)

Reestruturar e activar o ADN – ou, como se designa na gíria medica, cancro – não costuma ser coisa boa. Mas a Cura Reconectiva® «tende a alcançar resultados mais efetivos do que as técnicas de cura energética». Considerando as propriedades algébricas do elemento absorvente da multiplicação, penso que se pode afirmar com confiança que a Cura Reconectiva® é dezenas ou centenas de vezes mais eficaz que as técnicas de cura energética. E o segredo desta eficácia é que «os seus facilitadores simplesmente não dão atenção aos supostos problemas ou sintomas». Percebe-se assim o enorme fracasso da medicina moderna, que teima em tentar perceber a fisiologia dos pacientes, deslindar a acção dos microorganismos e diagnosticar as doenças quando curar é tão simples como deixar «que a ação de picos de luz, energia e informação, levem qualquer desequilíbrio a vibrar fora do quadro e a conduzir a pessoa de volta ao seu estado natural de saúde perfeita.» Afinal, o melhor remédio não é o riso. É a ignorância.

Neste vídeo, Eric Pearl, o descobridor desta nova gama de frequências curativas e (muito provavelmente) um campo de ondas totalmente novo, explica como a Cura Reconectiva®. Ou, pelo menos, demonstra como é simples enganar certas pessoas.


The Reconnection

1- Almha Terapias, Reconnective Healing® - Cura Reconectiva® (via Facebook) .

sábado, outubro 26, 2013

Treta da semana (passada): a justificação.

Uma das medidas propostas para o Orçamento de Estado de 2014 é a «redução remuneratória» dos funcionários públicos. Na prática, isto é um imposto, «uma taxa progressiva que varia entre os 2,5% e os 12%»(1) para salários base entre os €600 e os €2000, fixando-se em 12% para valores superiores. Mas não lhe podem chamar imposto porque a constituição proíbe o Estado de cobrar impostos de forma discriminatória. Por isso têm de chamar outros nomes a este imposto. No meu talão de vencimento, por exemplo, o imposto que pago só por ser funcionário público vem na coluna das bonificações com um sinal negativo. O que também demonstra ser falsa a ideia de que os contabilistas não têm sentido de humor. É um humor negro, mas alguém se fartou de rir com isto.

Mais graça ainda tem a justificação para esta medida. Afirmam que «a regra agora proposta é mais equitativa no sentido em que protege os verdadeiramente com menos recursos (abaixo dos 600€), cerca de 10% dos funcionários públicos, e distribui a necessidade de redução pelos restantes de forma progressiva até valores de remuneração de 2000 euros». Cobrar parte do ordenado para sustentar as contas públicas é necessário, razoável e esperado. Mas a medida excepcional de cobrar até 12% do salário só a certas profissões não tem nada de equitativo. A distribuição equitativa, segundo a constituição, abrange todos os trabalhadores, sendo apenas função do rendimento de cada um e não do patrão que têm ou outro critério qualquer. O objectivo de cobrar extra aos funcionários públicos não é a equidade. É apenas um expediente político pelo qual penalizam uma minoria demonizada para conquistar votos aos restantes. Precisamente aquilo que a Constituição tenta impedir que os políticos façam.

A redução anterior afectava salários a partir dos €1500 e atingia o máximo de 10% acima dos 4200€. A justificação para agora começar nos €600 e subir linearmente até aos 12% nos €2000 é «ajustar para os níveis de mercado a remuneração» dos funcionários públicos com menos rendimento porque «O estudo solicitado pelo Governo a uma consultora internacional veio demonstrar [...] que no sector público existe um prémio salarial superior para funções de menor exigência e/ou responsabilidade e que as remunerações associadas a funções de maior complexidade e exigência tenderão a ser inferiores às do sector privado». Isto não faz sentido. Primeiro, não faz sentido que o Estado cobre mais a um funcionário público que ganhe €700 do que a um privado que ganhe €700 só porque no privado os salários médios na gama correspondente são inferiores. Isto seria como cobrar mais a um cozinheiro que ganhe €700 do que a um empregado de mesa que ganhe €700 só porque, em média, os cozinheiros ganham mais que os empregados de mesa. O que deve contar para os impostos de cada um é o seu salário e não a média dos salários de terceiros. Além disso, dizem que querem alinhar os vencimentos do Estado com os dos particulares e que, nos salários mais altos, os funcionários públicos ganham menos do que os seus congéneres no sector privado. Mas cobrar um imposto extra de 12% nos salários da função pública acima dos €2000 euros acentua ainda mais a diferença entre estes salários do público e os equivalentes no privado. Para alinhar os vencimentos públicos aos do sector privado teriam de reduzir os salários menores e aumentar os salários mais elevados da função pública, uma injustiça tão óbvia que até este governo parece ter relutância em propô-la de forma clara. O que me traz ao último ponto.

Defendem que é preciso reformar os salários da função pública porque o «estudo solicitado pelo Governo a uma consultora internacional veio demonstrar genericamente que as práticas salariais da Administração Pública diferem substancialmente do padrão que é observado no sector privado, sugerindo um padrão de iniquidade entre o público e o privado.» No sector público, principalmente devido aos contratos colectivos de trabalho e a tabelas salariais uniformizadas, a gama de vencimentos é menor, com os salários menores mais elevados e os maiores mais baixos do que no sector privado, onde uma grande maioria ganha o mínimo que a lei permite e uns poucos têm salários centenas ou milhares de vezes maiores. Isto é um facto. Mas a iniquidade não está na prática da função pública. A iniquidade está no sector privado. Na função pública ainda há algum esforço para reconhecer que o tempo de trabalho que se compra a uma pessoa vale alguma coisa, mesmo que o trabalho seja de pouca responsabilidade, e há alguma preocupação em estabelecer salários que correspondam às exigências e responsabilidades dos trabalhadores. Não tanto quanto deveria haver, mas muito mais do que no sector privado, onde o objectivo é sempre o de explorar o mais possível quem tem menos poder de negociação em benefício de quem tenha a faca e o queijo na mão.

É irónico, e revoltante, que como justificação para estas medidas o governo aponte uma iniquidade e, depois, faça o possível por agravá-la. Para acertar as contas públicas de forma justa era preciso fazer o contrário do que aqui é proposto. Este imposto devia ser cobrado a todos, em função do rendimento de cada um, e não apenas a uns trabalhadores na tentativa de comprar os votos dos restantes. E a progressão do imposto cobrado não devia parar nos €2000. Devia aumentar até onde fosse preciso para combater eficazmente, com mais cobrança e mais redistribuição, a iniquidade inevitável do sector privado.

1- Relatório do OE 2014, pag 50. Disponível aqui em pdf (Via Desvio Colossal)

quarta-feira, outubro 23, 2013

A ciência empírica.

Este termo surge muitas vezes no diálogo com apologistas religiosos, quer criacionistas quer outros menos exagerados. Não sendo possível justificar qualquer dogma religioso sem depender, à partida, da crença nesse dogma, a defesa de posições religiosas fica limitada a insistir que a teologia, a fé, a tradição ou um livro sagrado são meios de conhecer a realidade tão legítimos quanto a ciência. Para isso, tentam restringir a ciência apenas ao seu aspecto empírico. Por um lado, para vender a ideia de que há “realidades não empíricas” que a ciência não pode alcançar mas que se pode conhecer pela fé de alguma forma que fica sempre por esclarecer. Por outro lado, para defender que a ciência carece de uma justificação filosófica, o que permite formas alternativas de conhecimento assentes em princípios filosóficos diferentes que também ficam por especificar. Isto é tudo treta, começando logo pelo conceito de ciência que propõem.

Há cerca de 2500 anos, uma ideia revolucionária começou a propagar-se pelas elites de várias culturas. Até então, a forma tradicional de compreender e narrar o universo era a religião: quem tinha poder sobre um grupo dizia aos restantes como as coisas eram e quem não concordasse tramava-se. Para a maioria da população continuou a ser assim. Mas um grupo restrito, os filósofos, enveredou pelo diálogo racional e argumentativo, visando persuadir pela força das inferências e das razões em vez de simplesmente pela força. Além do desenvolvimento da dialéctica racional, esta nova atitude levou-os a aperfeiçoar o rigor e formalismo na linguagem, a lógica e a matemática, e também a enfrentar o problema de apurar a verdade das proposições. Se é verdade ou não é uma questão que nem convém levantar em religião, sob pena de castigos severos nesta vida ou na próxima. Mas, na filosofia, era um problema de relevo e difícil de resolver, pois cada argumento dava origem a contra-argumentos sem fim à vista.

A escolástica cristã adoptou a dialéctica filosófica mas disfarçou o problema da verdade da forma religiosa tradicional: magister dixit. Nas disputationes escolásticas, a regra era de que todos os argumentos tinham de assentar nas fontes autoritárias da Bíblia e do dogma eclesiástico. A estagnação resultante deu impressão de estabilidade, e ainda hoje apregoam a antiguidade do dogma como se fosse uma virtude. Mas, inevitavelmente, disputas acerca de como interpretar as fontes sem critérios objectivos para as avaliar levaram à fragmentação do cristianismo. O problema de decidir quem tinha razão foi mais forte que todas as medidas autoritárias, incluindo séculos de inquisição, várias guerras e muitas perseguições aos hereges.

A solução começou a surgir no século XVI com o aperfeiçoamento da tecnologia. Com balanças, relógios e outros instrumentos de medição cada vez mais precisos, e com a prática mais frequente da observação sistemática, passou a ser possível – e proveitoso – testar hipóteses de forma objectiva, sem depender de autoridades putativas. Com isto criou-se uma forma diferente de fazer filosofia. A filosofia natural, como lhe chamavam, seguia os mesmos princípios de diálogo, linguagem rigorosa e argumentação racional que a filosofia sempre seguira, mas acrescentava-lhes o teste empírico de hipóteses como solução para o problema de decidir quem tinha razão. Para a filosofia, isto não era fundamentalmente inovador. As observações sempre fizeram parte dos argumentos filosóficos. O que mudou foi que estas passaram a ter um papel cada vez mais importante conforme as tecnologias de medição se aperfeiçoavam. Para as religiões é que foi uma tragédia. O nullius in verba da Real Sociedade de Londres foi uma valente canelada na pretensão religiosa de chegar à verdade por revelação divina.

Assim, é fácil perceber a treta de quem diz conhecer “realidades não empíricas” que a ciência não alcança. Ser empírico não é um atributo dos objectos. É o que permite testar o que alegamos acerca deles. Uma proposição acerca de uma galáxia, por exemplo, pode ser empiricamente testada se a galáxia estiver a menos de 13 mil milhões de anos luz da Terra mas não se a distância for maior porque, apesar da galáxia ser a mesma, para além desse limite já não podemos obter informação acerca dela. Haverá, certamente, muitos aspectos da realidade cujas descrições não podem ser empiricamente testadas. Mas nem isso constitui realidades diferentes – a realidade é só uma – nem é possível sabermos como essas coisas são porque não é possível testar o que quer que imaginemos acerca delas.

A exigência de um “fundamento filosófico” para a ciência também é disparatada. A ciência inclui filosofia. Em muitas áreas o filósofo não consegue testar alternativas para aferir qual é mais correcta, mas qualquer filósofo decente o faria se pudesse e quando o problema é criar descrições da realidade é isso que se faz*. Além disso, a grande inovação da ciência foi precisamente descobrir como determinar as hipóteses mais correctas sem depender apenas de argumentos, premissas arbitrárias ou factores subjectivos. Não serve para tudo. Questões de valor, por exemplo, não podem ser resolvidas por testes empíricos. Mas as questões factuais podem, e é isso que demonstra a legitimidade da ciência como fonte de conhecimento. Todas as alternativas à ciência tentam produzir tecnologias. Os astrólogos apregoam formas de prever o futuro, os padres invocam bênçãos divinas e transubstanciações com as suas fórmulas mágicas, os crentes rezam para obter favores dos deuses e os praticantes de vudu espetam agulhas em bonecos na esperança de que isso lhes sirva de alguma coisa. Mas nenhuma tecnologia é tão eficaz e fiável como aquela que a ciência produz. A ciência gera conhecimento que pode ser aplicado em coisas que funcionam. O resto não. É essa evidência empírica que legitima a ciência como forma de obter conhecimento, legitimidade que falta a todas as alternativas.

* Talvez não por coincidência, em filosofia da ciência é precisamente isso que quase todos os filósofos fazem. Essa área da filosofia ilustra bem o erro de querer separar ciência e filosofia em vez de admitir que quando se tenta resolver o problema filosófico de conhecer a realidade, o resultado é a ciência.

sexta-feira, outubro 18, 2013

Treta da semana (passada): Alexandrina de Balasar.

Domingo passado foi o dia da Alexandrina de Balasar, beata da Igreja Católica (1). Segundo a sua autobiografia (2), nasceu em 1904, aos quatro anos já rezava, aos sete anos começou os seus dezoito meses de escola, aos catorze adoeceu porque trabalhava para um vizinho que a obrigava «a trabalhar mais do que as forças que tinha» e depois saltou da janela da casa para fugir do vizinho e outros dois homens que vieram a casa dela não se sabe bem fazer o quê. Segundo a interpretação dos aficionados, a Alexandrina saltou da janela para «defender a sua pureza». Segundo o relato da própria, depois de saltar da janela «Cheia de coragem, peguei num pau e entrei pela porta do quintal para o eirado onde estava a minha irmã a discutir com os dois casados. A outra pequena estava na sala com o solteiro. Eu aproximei-me deles e chamei-lhes “cães”, e disse que ou deixavam vir a pequena, ou então gritava contra eles. Aceitaram a proposta e deixaram-na sair. […] Não lhes demos mais confiança; eles retiraram-se e nós continuámos a trabalhar.» Seja como for, após a queda a Alexandrina foi ficando gradualmente mais paralisada até que, cerca de 5 anos mais tarde, ficou acamada de vez. Não parece haver explicação para tão insólita progressão de sintomas, mas isto não conta como milagre porque é desagradável. Também não houve milagre de cura, apesar da Alexandrina e familiares fazerem várias promessas nesse sentido. «Alexandrina, com o tempo, foi aceitando a sua condição de doente, tomando uma rotina quotidiana de oração e oferecendo-se como vítima», e rezando «A Vossa bênção, Jesus! Eu quero ser santa! Ó meu Jesus, abençoai a Vossa filhinha que quer ser santa.» Mas a seguir veio um milagre, não fossem pensar que esta devoção excessiva era apenas uma forma que esta pobre rapariga tinha encontrado para lidar com o seu infortúnio.

«Alexandrina viveu, desde o dia 27 de março de 1942, mais de treze anos em jejum e anúria. O seu alimento foi exclusivamente a Eucaristia.» Para comprovar este feito assombroso, a Alexandrina passou 40 dias no “Refúgio da Paralisia Infantil”, na Foz do Douro, acompanhada pela irmã e o seu médico pessoal, Dias de Azevedo. Lá terá sido observada cuidadosamente por enfermeiras e pelo médico e psiquiatra Henrique Gomes de Araújo. Segundo cita um livro sobre a Alexandrina, Henrique Gomes de Araújo garantiu ser «inteiramente certo que, durante os quarenta dias de internamento, a doente não comeu nem bebeu; não urinou nem defecou, e esta circunstância leva-nos a crer que tais fenómenos possam vir a produzir-se de tempos anteriores». Mas o mais milagroso de tudo foi que, depois de comprovado o feito, o médico e a comunidade médica portuguesa tenham simplesmente ignorado o assunto. Um texto de homenagem ao Henrique Gomes de Araújo, pouco após a sua morte, descreve a sua carreira em medicina e psiquiatria, a sua personalidade, a sua obra filosófica, o prémio Abel Salazar que ganhou em 1975 pelo livro “Perspectivas Fenomenológicas na Análise da Existência”, a sua relação com os doentes e as pessoas com quem trabalhou, Mas nem uma palavra refere a maior descoberta na medicina dos últimos séculos: é possível uma pessoa viver sem comer nem beber (3).

As implicações teológicas do milagre da Alexandrina também são profundas. Tragicamente, muita gente morre à fome. Isto, dizem os crentes, não é culpa de Deus porque Deus não intervém. Porquê, não é claro, visto que obviamente poderia intervir se quisesse. Mas não intervém, e regras são regras. Só que, se a Alexandrina pode viver treze anos sem comer nem beber por obra e graça do menino Jesus e da sua santíssima mamã, então as regras não são para todos. Afinal, não são todos filhos de Deus. Excepto uns poucos, quase todos são enteados.

Em 1944, a Alexandrina «inscreveu-se na União dos Cooperadores Salesianos» para «colaborar com o seu sofrimento e as suas orações para a salvação das almas, sobretudo juvenis. Rezou e sofreu pela santificação dos Cooperadores Salesianos de todo o mundo.» Foi assim que a sua vida foi «gasta exclusivamente para salvar as almas.»(1) Numa perspectiva ética, de justiça, ou mesmo de elementar bom senso, isto é absurdo. Sofrer é mau e sofrer por sofrer é uma maldade fútil. Se um deus qualquer quisesse que a Alexandrina ajudasse mesmo as outras pessoas, tinha-lhe ensinado a criar vacinas, antibióticos novos ou um sistema político que funcionasse bem. Fazer dela uma paralítica em sofrimento é, além de maldade, inútil para a maioria das pessoas. Excepto, mais uma vez, para uns poucos: aqueles que promovem a Alexandrina a beata como exemplo para outros fiéis seguirem. O exemplo de alguém que gasta a vida em sofrimento, que acredita que sofre porque um deus quer que sofra e que ainda assim agradece o que esse deus lhe faz. A metáfora do rebanho de fiéis a seguir os sacerdotes pastores, já de si uma imagem degradante da condição humana, é insuficiente para uma atitude destas. Nem uma ovelha agradeceria ao torturador uma vida de sofrimento inútil e injusto.

Já sei o que querem comentar. Para o ateu a vida não tem valor, somos todos só moléculas, nunca vai compreender exemplos destes que têm de ser vividos na religiosidade e essas tretas. Não é nada disso. Cada vida tem valor para quem a vive e para aqueles que essa vida toca. A vida de cada um é única, não há segunda volta e há que fazer dela o melhor que se puder. Mesmo sem crer em deuses ou planos divino, e sabendo que muito do que acontece simplesmente acontece, percebo perfeitamente a vantagem de ter alguém que dê um exemplo de como lidar com estas vicissitudes. Mesmo que seja um exemplo tão longe da nossa capacidade que só nos sirva de direcção e não de destino. Mas se querem um exemplo desses, então olhem para alguém como o Stephen Hawking e não para a coitada da Alexandrina, que dá muita pena mas não é exemplo para ninguém.

1- Senza, Dia da Beata Alexandrina de Balasar
2- Santuário Alexandrina de Balasar, História de uma vida
3- Carlos Mota Cardoso, À memória de Henrique Gomes de Araújo, “Morreu um médico” (pdf)

domingo, outubro 13, 2013

A ciência à luz da fé, episódio já nem sei quantos.

O Mats escreveu há dias sobre a «forte relação entre o suicídio e o ateísmo» (1). Segundo o Mats, uma «Pesquisa científica […] apurou que [os ateus têm] mais parentes do primeiro-grau que haviam cometido suicídio, [...] mais tentativas de suicídio durante o curso das suas vidas […] declaravam ter menos [motivos] para viver, particularmente menos objecções morais contra o suicídio. Em termos de características clínicas, durante o curso das suas vidas as pessoas não-afiliadas religiosamente tinham mais impulsividade, agressividade e maiores transtornos devido ao uso passado de substâncias.»

Felizmente, o estudo que o Mats cita não justifica a desgraça que o Mats lhe atribui. Primeiro, o estudo não é sobre o suicídio entre ateus. A amostra estudada foi um conjunto de «Pacientes internados (N=371) que cumpriam os critérios DSM-III-R para um episódio depressivo grave»(2). Destes 371 pacientes, uma amostra não representativa da população em geral, 189 tinham um historial de tentativas de suicídio, 175 já tinham tido problemas com abuso de substâncias e apenas 66 tinham indicado não ter religião. Nem se pode extrapolar deste estudo para pessoas que não estejam internadas com episódios depressivos graves, nem a diferença nestes indicadores é assim tão grande como o Mats faz parecer. Os efeitos dos factores estudados rondam os 5%. Ou seja, quem estiver sujeito aos factores de risco tem uma probabilidade de suicídio 1.05 vezes (sim, um ponto zero cinco vezes) a que teria sem esses factores. Além disso, os autores descobriram que, descontando o efeito das objecções morais ao suicídio, a «associação entre afiliação religiosa e tentativas de suicídio não continuava significativa». Ou seja, o efeito, muito pequeno, em pacientes com casos graves de depressão deve-se apenas às opiniões que tenham acerca da moralidade do suicídio e não a serem religiosos ou ateus.

Não é claro onde o Mats queria chegar com isto. Mesmo que houvesse uma correlação entre suicídio e ateísmo, isso não contribuiria nada para justificar a conclusão de que o deus do Mats é menos fictício do que os restantes. Se descobrirem uma correlação entre as aftas e a rejeição da astrologia ou a unha encravada e o cepticismo acerca da mutilação de vacas por extraterrestres, também não é isso que me vai convencer. Mas o Mats deve precisar de pequenas “descobertas” como estas, ainda que ocorram mais na fantasia dele do que na realidade, para apoiar a sua crença no cristianismo evangélico. Com os disparates que isso acarreta, toda a ajuda é pouca. No entanto, se o Mats está mesmo preocupado com o suicídio, devia considerar alternativas mais eficazes. Por exemplo, tenho a certeza de que a taxa de suicídio entre as pessoas que acreditam no Pai Natal é muito menor do que a correspondente entre os que não acreditam. Seria uma mudança de crença simples e só com vantagens. A credibilidade era a mesma, poupava nos donativos, não perdia tempo em missas e em vez de rezar todos os dias bastava mandar uma carta para o Polo Norte uma vez por ano. Tudo isto somado a uma boa protecção contra o suicídio, porque meninos que se suicidam depois não levam prendinha.

1- Mats, A forte relação entre o suicídio e o ateísmo
2- Dervic et al, Religious Affiliation and Suicide Attempt , Am J Psychiatry 2004;161:2303-230

sexta-feira, outubro 11, 2013

Treta da semana (passada): o Kit Amor Eterno.

No site da Maria Helena, famosa astróloga da SIC e arredores, está à venda um «Kit Amor Eterno». Alegadamente, é «o kit ideal para quem anseia que a sua relação navegue em águas calmas e apaixonadas»(1). A solução para um dos maiores e mais antigos problemas da humanidade é espantosamente simples. Ferve-se um terço do conteúdo (mistério) do pacote, mistura-se num litro de água, entorna-se «do pescoço para baixo» no final do duche e permite-se «que as boas vibrações percorram todo o [...] corpo, emoções e espírito». Depois de queimar umas velas e rezar umas rezas consegue-se a almejada relação calma e apaixonada. Seja lá o que isso for. E só por 65€. Também há um kit da riqueza que, compreensivelmente, custa mais 10€, «uma ajuda indispensável para quem necessita de ganhar dinheiro e de organizar as suas finanças»(2). Faz sentido. A primeira coisa a fazer quando precisamos de dinheiro e de organizar as finanças é gastar €75 num pacote de ervas e umas pedrinhas. À parte de substituir rezas por cristais – é de mau gosto pedir dinheiro a Deus, se bem que em sentido contrário seja aparentemente aceitável – de resto funciona da mesma maneira. Cházinho, pescoço para baixo, vibrações e já está.

A julgar por uma deprimente amostra do programa da Maria Helena, os poucos minutos que consegui ver, deve haver muita gente a acreditar nestas coisas. Telefonam para a SIC com problemas de relações amorosas, incertezas acerca dos seus negócios e outras questões complexas. Após uns segundos de conversa, a Maria Helena debita confiante a primeira solução que lhe ocorre, justificada pela carta do otário, do pingarelho ou a sena de paus. O mais preocupante é que a vítima o espectador agradece em vez de mandar aquilo tudo a uma barda qualquer.

Em parte, isto deve-se à ilusão de autoridade. Tanto o programa como o site são desenhados para parecer que a Maria Helena tem um conhecimento profundo destas matérias e que as suas recomendações são o fruto maduro e ponderado dessa sabedoria em vez da excreção automática de preconceitos mal digeridos. Mas isto não explica tudo. Mesmo alguém enganado pela falsa autoridade da Maria Helena devia ficar encravado no “como”. Como é que o Kit do Amor Eterno funciona? Vibrações e tal, muito bem, mas se uma relação tem problemas porque discutem muito e as coisas já não são como eram, importa saber o que o tal Kit vai fazer. Vai modificar quem o usa de forma a concordar com tudo o que o outro diz? Vai influenciar o outro de forma a conformar-se com os desejos do utilizador do Kit? Seja qual for o mecanismo de acção, é de desconfiar que o resultado não será um amor real. Se o Kit do Amor Eterno viesse em comprimidos para pôr, sorrateiramente, na bebida da pessoa amada, qualquer pessoa com escrúpulos se preocuparia em saber que efeitos os comprimidos teriam. Mas sendo espiritual, com rezas e ervinhas, já ninguém pensa no “como”.

Penso que um factor ainda mais importante do que a falácia da falsa autoridade é o hábito cultural de fingir que há duas realidades separadas e com regras diferentes. Uma designam por material e é composta por aquilo que podemos constatar ser real, no sentido de resistir ás nossas crenças. O carro que não anda, a chuva, o guarda-chuva e o vento que lhe torce as varetas. Nesse conjunto é consensual a importância de questionar e perceber como as coisas funcionam. É por isso tão difícil haver mecânica automóvel homeopática ou canalização astrológica; se bem que mecânicos e canalizadores também aldrabem nas facturas, têm de ficar aquém de vender kits de vibrações positivas. A “outra realidade”, a do espiritual, do sagrado, dos milagres e da magia, é totalmente diferente. Cede por todos os lados, sem oferecer resistência a qualquer crença, e nem se lhe vislumbra um “como” porque é tudo faz de conta.

Por causa deste hábito de não questionar como as coisas funcionam quando se trata de rezas, deuses, mezinhas com vibrações positivas ou kits do amor eterno, deixa de haver defesas contra a falsa autoridade. E são precisamente aqueles cuja actividade profissional depende de uma falsa autoridade que propagam esta ideia das duas realidades: aquela a que chamam material, na qual as coisas são o que são e onde a perícia pode ser testada de forma objectiva; e a outra a que chamam espiritual, onde tudo é como se quiser crer e onde para ser perito basta dar impressão disso. Alguns leitores alegam que eu não devia juntar, na mesma categoria, superstições como a astrologia e o cristianismo. É por isto que as junto. As religiões dominantes não só são as principais beneficiárias desta aldrabice de fingir que há uma “outra realidade” acerca da qual nada se pode verificar mas acerca da qual os sacerdotes são peritos. As religiões dominantes são também as principais propagadoras deste hábito de não pensar nos mecanismos quando se lida com essa alegada realidade. A maioria das vítimas de negócios como o do "kit amor eterno" são pessoas treinadas desde infância a suspender o bom senso quando se lhes fala de espírito, orações, bênçãos e afins. Treinadas na igreja, na catequese e na cumunhão, em princípio para proveito dos profissionais da religião mas, na prática, também para benefício de qualquer um que se aproveite da sua credulidade para lhes vender tretas.

1- Maria Helena, loja, Kit Amor Eterno
2- Maria Helena, loja, Kit da Riqueza

quarta-feira, outubro 02, 2013

O argumento.

Segundo o Bruce, eu nunca consegui «produzir um argumento consensual para justificar que»(1) o aborto é eticamente análogo ao infanticídio. Se o argumento é consensual não é inteiramente comigo. Por muito bom que um argumento seja, podem sempre fingir que não o entendem ou deturpá-lo para parecer que não presta. Mas, à parte disso, até me parecia que já tinha aborrecido toda a gente aqui várias vezes com esse argumento. Pelos vistos, ainda não.

Para avaliar eticamente um acto considero três aspectos igualmente necessários: o valor subjectivo do resultado; a relação causal entre o agente e as circunstâncias relevantes; e a consciência que o agente tem do acto e suas consequências.

Se matarmos um bebé de poucos meses com monóxido de carbono ele nem vai sentir nada nem vai nunca saber o que perdeu por morrer naquela idade. Mas perdeu, à mesma, toda a sua vida futura. A enorme diferença entre uma vida plena e morrer aos dois meses torna este acto, se deliberado e consciente, eticamente condenável. Ou eticamente louvável se esse bebé sofrer de uma doença incurável que o condena a uma vida de enorme sofrimento sem qualquer hipótese de alívio excepto pela morte. Nesse caso até pode ser eticamente obrigatório matá-lo para o salvar desse destino. O importante é a diferença que o acto terá no valor daquela vida. É um erro negar esse alívio a alguém com a desculpa de que a vida humana é “sagrada”, porque essa etiqueta é eticamente irrelevante. Tal como é irrelevante a etiqueta de “humano”. Se baleias, gorilas e chimpanzés também têm uma subjectividade rica e auto-consciente, será igualmente condenável matar um desses seres independentemente de quem designamos “pessoa” ou “animal”. Ou preto, embrião, judeu, índio, mulher e demais categorias historicamente invocadas para legitimar falaciosamente injustiças. Não é a etiqueta que importa. O que importa é o que o outro sente, ou deixa de poder sentir, em resultado do que lhe fazemos.

O papel causal do agente é também necessário. Há crianças a morrer em África que eu poderia salvar se desse mais dinheiro a instituições de caridade. Isto dá-me alguma obrigação ética de contribuir, como tenho feito ocasionalmente, mas a relação causal não é suficientemente forte para se poder apontar para o cadáver de uma criança e dizer que fui eu que a matei. Há muitos factores que contribuíram para essa morte, no meio dos quais as minhas escolhas são insignificantes. Diferente seria se eu deixasse um dos meus filhos morrer à fome aqui em casa por não lhe dar comida. Nesse caso seria evidente que a causa daquela morte era a negligência deste pai.

Finalmente, a consciência dos actos. Este é fácil. Se uma criança de dois anos, a brincar com uma arma, mata o irmão porque puxa o gatilho, não foi o acto da criança que foi eticamente condenável. Foi trágico, mas a falha ética estará nos adultos que lá deixaram a arma.

É por isto que eu sou contra a tourada; que acho que a caça de chimpanzés e baleias devia ser condenada como homicídio; que não compro carne de mamíferos e o frango só do campo; que acho que os imigrantes, mesmo ilegais, devem ter os mesmos direitos e responsabilidades que qualquer cidadão nacional, entre outras coisas. Não são desculpas ou categorias arbitrárias criadas para chegar à conclusão que me dá jeito. São a única forma fundamentada que encontrei para fazer sentido desta coisa da ética. E por estes fundamentos não consigo ver diferença entre matar às 10 ou 20 semanas um ser que é como eu já fui. Podem dizer que ainda não é pessoa, que se chama feto e não bebé, que só é filho aos tantos dias ou humano às tantas semanas, mas isso é discutir o significado das palavras e não tem relevância ética. O facto é que se às dez semanas lhe retirarmos as células que vão formar os olhos ele nunca vai ver; se lhe retirarmos as das pernas nunca vai andar; e se desfizermos aquilo tudo nunca vai fazer nada. Se a alternativa for deixá-lo viver uma vida como as nossas, então está em causa um grande valor subjectivo que não desaparece por demagogia, etiquetas ou definições.

Por isso, considero eticamente inaceitável abortar um feto saudável quando a gravidez resulta de sexo consensual entre adultos responsáveis e não há perigo para a saúde da mãe. Em qualquer situação que se desvie deste caso extremo – gravidez de menores, violação, problemas de saúde do feto ou da mãe, inimputabilidade – não vejo forma clara e generalizável de pesar os vários valores em causa. Mas no caso de uma gravidez saudável fruto de um acto voluntário de adultos responsáveis, a responsabilidade dos progenitores sobrepõe-se claramente ao alegado direito de fazerem o que querem com o seu próprio corpo. Nestas circunstâncias, nenhum pai ou mãe tem o direito de por em causa a vida ou saúde dos filhos. O período moratório de dez semanas entre a concepção e esta responsabilidade ter efeito não faz sentido porque é na concepção que células de dois seres diferentes se juntam para formar um terceiro. Só até à concepção é que o ser em causa é meramente potencial. Antes da nidação ainda se pode apontar que as probabilidades de vingar, mesmo sem interferência, são pequenas, enfraquecendo a relação causal, por exemplo, no caso da pílula do dia seguinte. Não é um argumento muito forte, mas levanta dúvidas suficientes para que seja uma objecção aceitável. Mas um embrião saudável e implantado é um ser humano real, vivo, em desenvolvimento, a viver como nós já vivemos e com a sua vida inteira pela frente. Nessa fase já não é legítimo que os pais o mandem matar só porque se arrependeram de o ter feito e dar-lhes dez semanas para o fazer é eticamente injustificável.

1- Comentários em Valeu a pena?

Valeu a pena?

O Ricardo Alves escreveu que «Valeu a pena despenalizar a IVG»(1), citando uma notícia segundo a qual «A média anual de atendimentos nos serviços de urgência, entre 2002 e 2007, por complicações ligadas ao aborto ilegal foi de 1.258, tendo descido para uma média de 241 entre 2008 e 2012»(2). As complicações pelo aborto ilegal desceram, obviamente, porque muitos abortos são agora legais. No entanto, mais à frente a notícia refere que «há ainda que contar com as complicações registadas nas interrupções de gravidez dentro do quadro legal.» Consultando o relatório da DGS referido na notícia, a redução da média anual de complicações registadas foi de 1.258 entre 2002 e 2007 para 1.078 entre 2008 e 2012 (3). A média anual de mortes maternas devido ao aborto diminuiu também de duas entre 2001 e 2007 para zero entre 2008 e 2012 (4).

Eu discordo do Ricardo em muitos aspectos desta questão e vejo muitas razões para duvidar de que tenha valido a pena. Não há diferença eticamente relevante entre matar um Homo sapiens com 9 semanas de gestação, 18 semanas de gestação ou um ano de idade. Os problemas sociais, económicos e pessoais que levam mulheres a abortar são muito mais vastos do que o aborto em si, que em 97% dos casos não tem justificação médica. Um quarto das mulheres que abortou em 2012 já tinha abortado antes e 306 mulheres abortaram mais do que uma vez nesse mesmo ano (5). Mas vou deixar o mais grave de lado e olhar apenas para a questão de saúde pública. Vou fingir que o referendo tinha especificado que os abortos seriam pagos pelo contribuinte (duvido que o resultado tivesse sido o mesmo), que o aborto é mesmo uma solução para o problema da pobreza, falta de acesso a contraceptivos ou irresponsabilidade, e que os problemas éticos de matar, por opção, 18.500 embriões humanos por ano se podem resolver simplesmente excluindo da definição da palavra “pessoa” as 10 primeiras semanas de gestação. Mesmo assim, os custos desta medida parecem ser bem maiores do que os benefícios.

A redução de 1.258 complicações anuais para 1.078 e de duas mortes anuais para zero custa ao Estado cerca de 12 milhões de euros por ano (6). Isoladamente, é difícil avaliar se 2 vidas e 150 complicações valem 12 milhões de euros. Mas uma realidade cada vez mais saliente do SNS é que o dinheiro gasto de um lado fica a faltar noutro. Assim, a melhor forma de avaliar se isto vale a pena é comparando com outro problema de saúde pública. Por exemplo, a gripe. Por época, a gripe mata cerca de 2.400 pessoas em Portugal (7). Não encontrei uma estimativa do número de complicações, mas não é raro os internamentos devido à gripe levarem os hospitais ao limite da sua capacidade. Em números redondos, diria que a gripe é um problema de saúde pelo menos cem vezes pior do que era o aborto ilícito e sem subsídio do Estado. Este ano, o programa de vacinação contra a gripe custa dois milhões de euros (8) e irá vacinar 60% das pessoas com mais de 65 anos. A OMS recomenda que se vacine 75% de toda a população (9), porque o benefício da vacinação vem principalmente de impedir as epidemias reduzindo a taxa de infecção. Se um idoso se vacina mas toda a gente na família apanha gripe, é provável que a vacina não consiga protegê-lo, enquanto que com a maioria vacinada será difícil o vírus propagar-se. Com mais 12 milhões de euros seria possível vacinar cerca de metade da população, ou até os 75% recomendados se o volume da compra baixasse o preço por unidade. O resultado seria uma redução significativa nas 2.400 mortes esperadas e nos muitos milhares de outros casos que exigem assistência médica ou internamento. E a gripe foi apenas o primeiro exemplo que me ocorreu. Há muita gente que não consegue comprar medicamentos ou pagar tratamentos para problemas que são realmente de saúde, ao contrário de uma gravidez indesejada, e a falta desses 12 milhões pode ter consequências sérias a longo prazo. Deixar doenças contagiosas por tratar por falta de dinheiro, por exemplo, não é apenas mau para os doentes; é um perigo para todos.

Mesmo descontando a morte anual de 18.500 embriões, usar 12 milhões de euros para prevenir duas mortes e 150 complicações por ano mata centenas de pessoas que poderiam ser salvas se esse dinheiro fosse melhor aplicado. Nem que eu partilhasse a opinião do Ricardo acerca dos aspectos éticos do aborto ou do seu valor como solução para problemas económicos e sociais poderia concordar com juízo que ele faz. Claramente, esta solução para o problema do aborto não valeu a pena.

1- Ricardo Alves, Valeu a pena despenalizar a IVG
2- i-online, Complicações associadas a abortos com redução significativa em Portugal
3- DGS, Relatório de análise das complicações relacionadas com a interrupção da gravidez
4- DGS, RELATÓRIO DAS MORTES MATERNAS 2001-2007
5- TVI 24, Fazem-se cada vez menos abortos
6- i-online, Aborto. Estado gastou 45 milhões de euros desde que a lei entrou em vigor
7- Público, DGS apela a vacinação contra a gripe com doses gratuitas acima dos 65 anos 8- Sapo Saúde, Ministério da Saúde poupa 1 ME na compra de vacinas contra a gripe
9- Sapo Saúde, DGS apela a vacinação contra a gripe com doses gratuitas acima dos 65 anos