domingo, janeiro 26, 2014

Treta da semana (passada): por trás do referendo.

O projecto de lei da co-adopção foi aprovado na generalidade há oito meses, com votos favoráveis de 16 deputados do PSD, mas a votação final foi sendo adiada sucessivamente (1). Agora, o PSD lembrou-se de referendar a lei aprovada e decidiu que, desta vez, não haveria liberdade de voto. Assim, foi aprovado o referendo sobre adopção e co-adopção por casais do mesmo sexo apesar dos votos contrariados de alguns deputados do PSD.

O referendo é absurdo. Além dos problemas formais e processuais, não há razão nenhuma para decidir esta lei em função da opinião dos eleitores. Parece ser consensual – pelo menos é o que todos alegam – que o mais importante é o interesse da criança. Mas o interesse da criança é uma questão técnica que tem de ser ser decidida caso a caso e não por uma lei que proíba cegamente a co-adopção em casais do mesmo sexo independentemente das circunstâncias. Se é para referendar, que nos perguntem acerca das alterações à lei do trabalho, da gestão da dívida pública ou do orçamento do Estado, porque é nesses casos que há decisões políticas polémicas que afectam toda a gente. Além disso, a Constituição proíbe leis que discriminem em função do sexo ou da orientação sexual. Se o Tribunal Constitucional declarar que não se pode proibir os homossexuais de adoptar nem sequer haverá referendo (2). À luz da Constituição, referendar a adopção por casais homossexuais tem a mesma legitimidade que teria referendar-se a adopção por casais muçulmanos ou de raça mista. O sexo, a orientação sexual, a religião e a raça são atributos que a Constituição proíbe o Estado de discriminar.

O que mais me preocupa neste disparate é o que revela sobre os políticos que temos, pelo menos os mais influentes. Tradicionalmente, seria de esperar dois tipos de motivação nos políticos: a ideologia e a vontade de se manter no poder. A democracia representativa é um bom sistema nestes casos porque exige que os políticos façam o que os eleitores querem para manter o cargo e a ideologia tende a ser conhecida antecipadamente por ser apregoada pelos partidos, defendida publicamente e constar nos programas que apresentam. Mas quem nos governa parece estar muito longe desta norma.

Ideologicamente, a direita portuguesa parece ter perdido tudo da democracia social excepto o nome e, no caso do CDS-PP, o “Centro Democrático Social” até já foi remetido para a sigla, ficando só o “Partido Popular” por extenso. Mais do que isso, a ideologia da direita é um emaranhado de contradições. Tem de se privatizar os transportes públicos porque são um serviço público que, pasme-se, custa dinheiro ao Estado mas é preciso capitalizar os bancos privados com dinheiro público para cobrir os riscos da especulação privada. Para acertar as contas públicas cortam nas pensões de reforma mas, ao mesmo tempo, negoceiam reduções no IRC e prescindem de mais de mil milhões de euros em benefícios fiscais a SGPS (3). O referendo sobre a co-adopção é mais um exemplo desta falta de orientação ideológica. Aprovaram a lei com liberdade de voto, mas agora exigem um referendo sobre a lei que aprovaram e nem sequer deixam que os deputados do partido votem segundo a sua consciência.

Também não parecem estar interessados em votos. Em tempos de crise é preciso tomar medidas impopulares, mas tem sido um exagero. A condução das privatizações, o “ir além da troika”, as remodelações constantes do governo e as saídas “irrevogáveis”, a degradação dos serviços mais importantes do Estado, a trafulhice e a trapalhada em tudo o que fazem. E agora este referendo. Este referendo é uma forma tão eficaz de reconquistar os eleitores como dar uma bofetada na cara de cada um. Com tanta decisão que tem revoltado as pessoas, o que perguntam é se alguém pode adoptar o filho da pessoa com quem casou.

A melhor explicação para isto é que esta gente não quer ficar no governo ou ser ministro. O objectivo dos coelhos, portas, relvas e afins é ser ex-ministro. O governo é só um posto provisório de onde coçar as costas a quem, a seguir, lhes vai aliviar as comichões. Só isto explica, ao mesmo tempo, as medidas que têm tomado, o desprezo pelos eleitores e pela Constituição e os jogos de poder intra-partidários que ocasionalmente transparecem em aberrações como esta do referendo. Anda tudo atrás do tacho e o tacho nem sequer é o cargo.

Isto preocupa-me porque a democracia representativa não está pensada para lidar com estas coisas. Se os nossos representantes forem guiados por uma ideologia clara e estável, conhecemo-la antes de votar e podemos escolher que ideologia política nos governa. Se forem movidos pelo poder político podemos mantê-los na linha porque precisam dos nossos votos para lá ficar. Mas se não têm ideologia e só querem passar pelo poder para embolsar a recompensa estamos tramados. Vão mentir descaradamente para ter votos e depois, quando os castigarmos negando-lhes um segundo mandato, vão-se rir de nós enquanto levam o cheque ao banco.

Não vejo uma boa solução para este problema. Há muitas alternativas, desde uma democracia mais participativa em que se vai referendando tudo até à monarquia onde um tipo é eleito por ser o alegado filho do senhor seu pai, mas a democracia que temos ainda parece ser a menos má. No entanto, se bem que o problema não se resolva, talvez possa ser mitigado distribuindo melhor os votos. Por outras palavras, em vez de pensarmos no nosso voto como a escolha do partido que queremos no governo, pensarmos da distribuição de poderes na Assembleia da República. É verdade que governo que precisa da aprovação da oposição para governar não consegue fazer muita coisa, mas isso não é necessariamente mau.

1- Público, Co-adopção: Há oito meses a dividir o PSD
2-Diário de Notícias, Apreciação do TC sobre perguntas pode impor coadoção
3- Jornal I, Governo esconde benefícios fiscais de 1045 milhões a grandes grupos económicos

1 comentário:

  1. Pois, só posso concordar contigo... o problema é que desde que o Cavaco Silva, algures no final da década de 1980, afirmou que o seu partido ia deixar de ser ideológico — com o objectivo assim de conquistar votos de cidadãos com outras ideologias — que a moda «pegou». PS e PSD são manifestamente não-ideológicos (com o PP a aproximar-se muito deles). Mas também do lado da alegada esquerda temos problemas com o BE, que é um partido anti-ideológico: não professa nenhuma ideologia excepto a de ser contra as ideologias dos outros. Por triste que possa parecer, talvez o único partido que ainda reconheça a importância da ideologia (na perspectiva que tu muito bem lhe deste) seja o PCP/CDU — sabendo-se, no entanto, que a ideologia não é uma coisa escrita na pedra, mas evolui e adapta-se aos tempos. Serve de linha geral para sabermos o que os políticos pensam, sem ser um «fanaticismo» que não permita que se adoptem novas ideias.

    Mesmo a divisão esquerda/direita está totalmente ultrapassada, e já o está há muitos anos. PS e PSD (e cada vez mais o PP) são partidos não-ideológicos, tecnocratas, de um centro moderado. A diferença está mais numa questão de atitude: o PS tende a privilegiar medidas em que o Estado coloque dinheiro a circular na mão de (algumas) pessoas — o Estado como motor da economia — mesmo que depois não se importe muito de que sejam outros a pagar a factura. O PSD tende a restringir o papel do Estado na economia, excepto para «operações de salvamento e resgate», e é engenhoso em colocar uma rede de entidades em torno do Estado que «não são Estado» e que por isso estão menos sujeita ao escrutínio público. Os ciclos de sucessão PS/PSD tendem a comportar-se de uma forma relativamente previsível: nos governos PSD, combate-se a crise, prejudicam-se os portugueses, fazem-se cortes mais agressivos nos direitos das pessoas, empurra-se a economia para gerar mais fonte de riqueza e de possibilidade de taxação, alivia-se a pressão sobre as empresas (aumentando-a sobre os cidadãos!), equilibram-se as contas, e o orçamento do Estado fica melhor no final do mandato (mesmo que à custa de dar cabo da vida das pessoas). Nos governos PS faz-se precisamente o contrário: pega-se em todo o dinheiro poupado/acumulado no governo anterior, investe-se em projectos New Deal (mesmo sem se saber como os pagar depois), melhora-se as condições dos portugueses com mais programas de apoio, de subsídio, etc. (mesmo que não se tenha dinheiro para isso a longo prazo), estimula-se a sociedade a pensar de forma mais positiva (mesmo sem razões para isso!), até que o sentimento de optimismo prevaleça. Depois os boys vêm bater à porta reclamar o seu tacho em troca do apoio dado. Isto rapidamente resvala no descalabro da corrupção em poucos meses, ou, no máximo, anos, pelo que depois os portugueses votam PSD para «limpar as contas» e «arrumar a casa». Esquecem-se, claro, que esse «equilíbrio» é sempre feito à custa dos próprios portugueses.

    O PS tende a dar a entender que os portugueses podem viver acima das suas possibilidades, se quiserem, e dá o exemplo. O PSD tende a dar a entender que os portugueses TÊM de viver ABAIXO das suas possibilidades, e como não consegue dar o exemplo, FORÇA-OS a isso com legislação opressiva. Bem, pelo menos neste Governo, mas penso que hajam exemplos semelhantes nos Governos Cavaco Silva e Barroso (o «reinado» do Santana Lopes foi demasiado curto).

    Enfim. É o que temos.

    Quanto a referendos sobre questões políticas, a não ser que me tenha escapado qualquer alteração constitucional recente, esses não podem ser feitos em Portugal. Podemos essencialmente discutir moralidade e pouco mais...

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