domingo, agosto 31, 2014

Treta da semana: a sandes pública.

Uns jovens “activistas” decidiram criar um “movimento solidário”. «Pegando no Conceito dos "Banhos Públicos" e dando-lhe alguma utilidade Social surge então as "Sandes Públicas", a ideia é simples Prepara uma sandes e oferece-a alguém cheio de apetite!»(1). Por “alguém cheio de apetite” querem dizer alguém cuja miséria seja tão grande que não tem que comer ou onde dormir e por “utilidade Social” querem dizer fazer um vídeo mostrando como são bonzinhos e dão sandes aos sem-abrigo. Uma sandes, mais precisamente, porque depois nomeiam outros para que façam o mesmo e propaguem o movimento solidário de mostrar os sem-abrigo no YouTube a receber sandes. Na entrevista, salientam que o que os move não é a fama, apesar de mencionarem com orgulho os milhares de fãs e visualizações. O que lhes importa é «o sentimento do dever cumprido»(2). No meio desta aberração toda, até é isso que mais me preocupa.

O problema já é antigo e nunca se deveu à falta de solidariedade, porque quem tem muito facilmente diz ter pena de quem não tem nada. O problema foi sempre a má distribuição. Como já dizia António Aleixo:

O pão que sobra à riqueza,
distribuído pela razão,
matava a fome à pobreza
e ainda sobrava pão.

Antes que mais jovens activistas se precipitem, saliento que não se trata de uma exortação à distribuição de sandes. O pão do poema é metafórico. Mas o mais relevante neste poema é que não propõe distribuir por solidariedade, nem por caridade, nem por pena dos pobrezinhos. É pela razão. Ou seja, da forma justa e certa.

Se alguém é atropelado não tiramos uma foto enquanto lhe damos um penso. Queremos ambulância, hospital, médicos e que for preciso para o tratar. Mesmo que essa pessoa não tenha dinheiro e mesmo que se tenha atirado para a estrada sem olhar, é uma pessoa que sofreu um acidente e todos temos o dever de lhe garantir auxílio. Por isso pagamos para que se construa hospitais, para que se contrate médicos e para que se preste cuidados de saúde a quem precisar. Não é por solidariedade. É por dever.

Se alguém estiver a ser espancado na rua não o entrevistamos enquanto lhe damos uma palavra de coragem. Exigimos polícia, justiça e o que for preciso para que haja segurança nas ruas. E, para isso, pagamos esquadras, polícias e juízes. Não é por pena dos espancados. É por obrigação. É também o que fazemos com os passeios, as estradas, os jardins e a iluminação pública, e também com os esgotos, as escolas e as campanhas de vacinação. Não é por caridade mas por ser a forma correcta de resolver os problemas importantes. Todos devem fazer o mesmo sacrifício para que todos beneficiem por igual daquilo a que todos têm direito.

Também não está certo que quem passa fome e dorme ao relento leve uma sandes e seja filmado para o YouTube. É preciso garantir-lhe um rendimento que dê condições mínimas para viver. Para que tenha onde dormir, onde fazer as necessidades e tratar da higiene, onde possa guardar as suas coisas e para que possa comer condignamente. E não é por ser um coitadinho, nem tão pouco importa se é pobre porque teve azar ou porque é preguiçoso ou doente. É uma pessoa e uma pessoa não merece viver assim. Ninguém tem o direito ao «sentimento do dever cumprido» enquanto este problema não se resolver e é asneira achar que esta caridadezinha é inofensiva. É como tratar um tumor no cérebro com aspirina. Medido pelo sofrimento que causa, este é o maior problema de Portugal e temos de o levar a sério.

Por isso aqui vai o meu desafio. Arrumem a máquina de filmar e enfiem a sandes onde quiserem que isto não precisa de adereços. Eu apoio quem implementar um rendimento incondicional garantido em Portugal e aceito que me aumentem os impostos o que for preciso para o conseguir. Agora nomeio toda a gente que diga importar-se com a pobreza a comprovar com a carteira o que dizem de boca e fazer o mesmo. Não é para dar uma sandes ou 20€. É para dar o que for preciso, todos os meses e a vida toda para resolver isto de vez, que já é altura. E não é por caridade, nem por solidariedade nem por pena. É pela razão.

PS: para poupar trabalho, aqui fica o link: http://www.rendimentobasico.pt.

1- Facebook, Sandes Públicas
2- SIC, "Sandes Públicas" são uma causa solidária.

Dawkins, a filosofia, e o aborto.

O Dawkins já se meteu noutra alhada. Afirmou ser imoral não abortar um feto com trissomia 21 (1) e, desta vez, discordo dele. Mas antes de explicar porquê, queria apontar o dedo à treta de descartarem argumentos alegando que o proponente não percebe de filosofia. Neste caso, acusam-no de ser tão ignorante que reprovaria numa disciplina de filosofia (2), o que nem faz sentido. Eu tenho um doutoramento em bioquímica e trabalho em modelação de interacções de proteínas mas, se fosse repetir agora o exame da primeira disciplina de bioquímica que tive na faculdade, chumbava de certeza porque já não me lembro nada de cinética enzimática. A maior parte dos detalhes que aprendemos num curso esvai-se depressa, até porque o objectivo do ensino superior não é formar enciclopédias com pernas. O mais importante é a capacidade de aprender matérias novas e complexas, capacidade essa que duvido que falte ao Dawkins.

Essa alegada ignorância filosófica é também uma ignorância peculiar. Na filosofia natural, os argumentos são filtrados pela sua adequação aos dados empíricos, sendo por isso útil conhecer os dados antes de argumentar. Mas alguns filósofos defendem que a filosofia natural, que agora se chama ciência, não é filosofia e, para as manter separadas, reduzem a filosofia à argumentação especulativa desprovida do crivo empírico. Se bem que assim seja trivial alegar que o outro é ignorante – argumentos há muitos – como isto sabe a pouco acabam por fazer o que se vê no artigo onde acusam Dawkins de ignorância filosófica: «Em última análise, além dos argumentos confusos de Dawkins, o problema principal é que ele não tem evidências. Não há dados empíricos que suportem a sua afirmação que o nascimento de um bebé com síndrome de Down torna o mundo – ou o bebé – mais infeliz»(2). É um padrão recorrente nesta abordagem. Acusam alguém de ser filosoficamente ignorante mas, tal como é mais persuasivo criticar a física de Aristóteles com as evidências da física moderna do que criticar a teoria da relatividade com os argumentos aristotélicos, o que acaba por contar no fim são as evidências e não o conhecimento de um grande número de argumentos, muitos dos quais irrelevantes.

Mas o pior é que a refutação pela alegação de ignorância filosófica é uma falácia. O mérito de um argumento não tem nada que ver com a ignorância de quem o propõe. Chamar ignorante ao interlocutor apenas tenta tornar a refutação mais persuasiva pelo preconceito contra o termo mas sem que seja legítimo inferir daí o que quer que seja. Pelo menos dos filósofos devia exigir-se que não cometessem este erro com tanta frequência.

A posição que Dawkins exprimiu deriva-se trivialmente da premissa de que, até às tantas semanas, a vida do feto é eticamente irrelevante. Vamos supor que o casal tem um problema de saúde que faz com que os seus filhos nasçam deficientes mas que se pode garantir que a criança será saudável se primeiro o casal se submeter a um tratamento simples, barato e com um risco menor do que o da gravidez. Parece-me aceitável dizer que é imoral terem filhos sem se tratarem primeiro e duvido que alguém fosse acusado de ignorante, confuso ou intolerante por sugerir tal coisa. O que está em causa, e que o autor do artigo (2) não compreendeu, não é que a criança seja tão deficiente que a sua vida nem valha a pena viver. É claro que é possível ter uma vida feliz com trissomia 21. Mas o importante é que é melhor ainda viver sem trissomia 21 e se essa alternativa não acarretar outros custos éticos será imoral não optar por ela.

Muitos dos que defendem a legalidade do aborto defendem também que a vida do feto não tem valor ético até certa data. Porque não pensa, não tem cérebro ou o que seja. Este é um ponto importante porque é difícil defender um direito incondicional de matar o feto se considerarmos que a sua vida conta. Mas se assumirmos que o feto é eticamente irrelevante, então o tratamento para a trissomia 21 pode perfeitamente consistir em abortar o feto deficiente para ter outro, saudável. É eticamente equivalente a tratar os pais e é precisamente o que fazem 95% dos casais portugueses quando o feto tem trissomia 21 (3).

Eu discordo de Dawkins porque discordo da premissa. Antes da concepção, os milhões de milhões de potenciais filhos estão em igualdade de circunstâncias e a concepção daquele em vez de qualquer outro depende de uma conjugação improvável de factores alheios à vontade dos pais. Nessa situação, o custo ético de impedir a concepção de um embrião deficiente é pequeno e compensado pela concepção de um embrião saudável. Mas com o feto em desenvolvimento, a decisão de o matar será a causa principal da perda da a sua vida toda e apenas um de muitos factores causais contribuindo para a concepção daquele irmão em particular que o irá substituir. A relação causal diferente entre a decisão e cada uma das consequências faz com que a perda da primeira vida tenha mais peso do que o ganho da vida que a substitui. É uma situação análoga à de matar uma pessoa para salvar outras que precisam de transplantes, por exemplo.

Isto não implica que abortar um feto com trissomia 21 deva ser ilegal. A lei só deve intervir quando a coação for o mal menor e, neste caso, impedir o aborto pela força da lei seria mais imoral do que o aborto em si. Na verdade, até admito que eu talvez cometesse essa imoralidade de abortar um feto com trissomia 21 porque sei o que criar filhos exige dos pais, mesmo quando são saudáveis, e a capacidade de distinguir entre o que é moral e o que é imoral não nos torna imunes ao egoísmo. No entanto, acho que Dawkins, e Peter Singer, não têm razão nisto. Não por serem ignorantes, nem por estarem confusos, nem sequer por apresentarem argumentos inválidos. Acontece simplesmente que é falsa a premissa de que a vida do feto não conta.

1- Guardian, Richard Dawkins: 'immoral' not to abort if foetus has Down's syndrome
2-The Daily Beast, Richard Dawkins Would Fail Philosophy 101
3-Diário Digital, Trissomia 21 tende a diminuir devido a abortos, dizem pais

sexta-feira, agosto 29, 2014

Treta da semana (passada): “direitos”, “autores” e “cultura”.

A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) está satisfeita com a nova taxa sobre a cópia privada. Não admira, porque boa parte dos milhões que o governo nos vai cobrar será “gerida” pela SPA. Mas o que lhes importa é a somente a defesa «de um princípio e de uma causa e não a defesa do lucro por parte de estruturas empresariais»(1). Apesar de 80% dos cinco milhões de euros que contam receber serem para pagar a empresas estrangeiras (2). Esta causa é alargar «a cobrança dos direitos nesta área à esfera digital», «satisfazer os direitos dos autores» e lutar pelo «prestígio cultural» do país. No entanto, nenhum destes termos – “direitos”, “autores” e “cultura” – significa o que devia significar.

Os direitos são valores morais que ponderamos para decidir o que é legítimo cada um fazer. Por exemplo, o direito de nos exprimirmos com liberdade torna ilegítimo censurar mas, como cada um também tem direito à sua vida e autonomia, a liberdade de expressão não autoriza ameaçar ou burlar os outros. A “cobrança dos direitos” é uma noção incoerente, porque direitos não são algo que se cobre, mas sugere haver um direito moral suficientemente importante para justificar termos de pagar uma taxa à SPA quando compramos equipamento digital. Legalmente, esta taxa fundamenta-se em três premissas: que deve haver um monopólio sobre a cópia; que há uma excepção a esse monopólio por ser legalmente permitido copiar para uso privado; e que essa excepção causa um prejuízo que tem de ser compensado pela taxa. Muita gente tem protestado contra os factos das duas últimas premissas. A proibição de contornar o DRM elimina, na prática, a cópia legal sem autorização e os suportes digitais servem também para guardar as criações do comprador e as cópias legais compradas aos detentores dos monopólios e, por isso, o benefício é maior do que o prejuízo. No entanto, a primeira premissa tem ficado fora desta discussão apesar de ser a mais fundamental e a que presume um direito moral.

Vamos supor que a Ana escreveu um poema e vendeu uma cópia do ficheiro ao Bruno. O Bruno agora quer dar uma cópia do ficheiro à Carla mas a Ana opõe-se porque quer ganhar mais dinheiro vendendo também à Carla. A questão é se, ponderando os direitos de todos, será legítimo dar à Ana o poder legal de impedir o Bruno de dar uma cópia do ficheiro à Carla. Por um lado, o Bruno e a Carla têm o direito de comunicar entre si sem interferência de terceiros, o Bruno tem direitos de propriedade sobre o seu computador e o direito de partilhar o que é seu, e a Carla tem o direito de aceder à cultura, entre outros. Por outro lado, o único interesse que a Ana tem em jogo é o de vender o ficheiro à Carla, o que nem sequer é um direito da Ana porque depende da vontade da Carla. Claramente, não há, do lado da Ana, direitos suficientemente importantes para justificar a restrição dos direitos do Bruno, da Carla e de todas as outras pessoas que vivam naquela jurisdição. O problema fundamental da “cobrança de direitos” é que o monopólio sobre a cópia não é um direito moral. Pelo contrário. Da forma como se tem estendido à esfera pessoal, é uma violação sistemática de direitos morais importantes*.

Quando a SPA alega que a taxa vai “satisfazer os direitos dos autores”, também o termo “autores” está deturpado. Os beneficiários da taxa são os detentores dos monopólios e são beneficiários em virtude apenas de deterem esses monopólios. O resto é irrelevante. Por isso, a maior parte do dinheiro reverte para empresas e não para autores, outra parte vai para produtores e executantes e a pequena fatia que calha aos autores não lhes cabe por serem autores. Autores somos todos, por cada email, fotografia, vídeo, comentário ou post que criamos, e não recebemos nada por isso. Os “autores” que esta taxa beneficia são simplesmente as pessoas que fazem negócio a vender cópias de obras, aproveitando um monopólio legal.

Finalmente, a “cultura” que esta taxa pretende proteger e prestigiar não é a cultura no sentido do conhecimento, hábitos, língua, valores e obras que uma comunidade partilha em comum. O Português, Os Lusíadas, o Mosteiro dos Jerónimos e o Natal fazem parte da nossa cultura, num bolo enorme que também inclui a migalha onde estão os livros do José Jorge Letria e as músicas do Pedro Abrunhosa. Mas o que a SPA chama “cultura” é apenas essa migalha de obras cuja cópia é restringida por lei e que, precisamente por serem de distribuição restrita, contribuem muito menos para a cultura do que se as pudéssemos partilhar e transformar livremente. Cultura não é o que se vende nas lojas ou se guarda na gaveta. É o que se aprende, ensina e partilha livremente entre todos. Confundir negócio com cultura é outra peça central na defesa dos monopólios sobre a cópia. Por exemplo, a Ana Rita Guerra escreveu que, por causa das inovações tecnológicas, «Há que encontrar uma nova forma de monetizar o trabalho intelectual e artístico» (3). É verdade que a tecnologia força mudanças nos modelos de negócio. Mas isso é um problema de quem faz negócio e não tem nada que ver com cultura.

A propaganda do copyright depende totalmente destas deturpações. Por isso, quando os ouvirem falar de “direitos”, lembrem-se de que vos exigem o sacrifício de direitos muito mais importantes do que o “direito” de cobrar taxas ou vender discos. Quando vos falarem dos “autores”, lembrem-se de que autores somos todos nós e não apenas quem faz negócio com o monopólio da cópia. E quando vos disserem que é para proteger a “cultura”, lembrem-se de que a cultura não é um negócio e que não se protege restringindo a distribuição. Pelo contrário, a cultura só o é quando é de todos e quando todos são livres de usufruir dela e de a usar para criar mais cultura.

* A situação seria diferente se o Bruno quisesse vender o ficheiro à Carla. Nesse caso, estaria em jogo apenas o conflito entre o negócio do Bruno e o negócio da Ana, pelo que podia ser legítimo dar prioridade à Ana durante um tempo limitado. É por isso que não vejo problemas fundamentais na concessão de alguns monopólios desde que sejam exclusivamente para fins comerciais.

1- SPA, SPA considera positivo o novo diploma sobre a cópia privada
2- SPA, Lei da Cópia Privada 2014
3- Dinheiro Vivo, Lei da cópia privada. O drama, a tragédia, o horror

segunda-feira, agosto 25, 2014

A refutação.

É estranho tanta gente alegar que a ciência não pode refutar a hipótese de Deus existir. Durante séculos, a ciência desbastou esse Deus que inundava o mundo inteiro e transformava rios em sangue até já só restar um apanhado homeopático de suposições metafísicas. Comparando o que sobra com o que era, este deus foi mais refutado do que qualquer astrologia, bruxaria ou alquimia. Por isso, tem-me intrigado que tanta gente inteligente defenda algo tão absurdo. Há dias, o Domingos Faria deu-me uma dica importante para identificar o problema. O Domingos explicou-me que a ciência não pode refutar a hipótese de Deus existir porque não se pode criar um argumento dedutivamente válido que conclua “Deus não existe” a partir da premissa de que “X é uma teoria científica verdadeira”, qualquer que seja a teoria X. É uma justificação excelente porque mostra claramente onde o Domingos se está a enganar.

Primeiro, vamos identificar uma condição necessária para aplicar a regra do Domingos. Um argumento é dedutivamente válido se a verdade das premissas garante a verdade da conclusão. Por exemplo, “é impossível que um polícia seja desonesto e o Sousa é polícia; portanto, o Sousa só pode ser honesto”. Este argumento pode não ser sólido mas é válido porque, se o Sousa não for honesto, então uma das premissas tem de ser falsa. E o argumento continua válido mesmo que exista um deus omnipotente capaz de tornar o Sousa num polícia desonesto. Se esse deus existir, então a primeira premissa será falsa, porque será possível um polícia ser desonesto, mas o argumento continuará válido porque a verdade das premissas continuaria a garantir a verdade da conclusão.

Acontece o mesmo com a teoria da relatividade e os tomates. A teoria da relatividade diz que é impossível transportar um tomate da Terra até Marte em menos de três minutos. Assim, é válido este argumento: “A teoria da relatividade é verdadeira; portanto, é impossível existir um ser capaz de levar um tomate da Terra até Marte em menos de três minutos”. Se o Deus do Domingos é omnipotente, então existe um argumento válido que parte de uma teoria científica e conclui que esse deus não existe. Tal como no exemplo anterior, o argumento pode não ser sólido. Mas, se existir um Deus capaz do milagre do tomate, então a teoria da relatividade é falsa. Na verdade, todas as teorias científicas modernas serão falsas se existir um Deus capaz de fazer milagres. Nem precisa de os fazer, baste ser possível que os faça.

Mas vamos assumir que o Deus do Domingos não tem a capacidade de fazer nada que uma teoria científica diga ser impossível e que, por isso, não há argumentos dedutivamente válidos que permitam refutar a tese teísta partindo de uma teoria científica. É de notar, no entanto, que este deus é muito diferente do Deus que os teístas propõem, sendo mais impotente do que omnipotente. Mas ignoremos esse detalhe e avencemos para o problema seguinte.

A validade dedutiva de um argumento é útil apenas quando as proposições em causa cobrem todas as possibilidades. Na prática, é difícil que isto aconteça, podendo-se invocar hipóteses auxiliares que tornam o argumento inválido. Por exemplo, em 1903 Blondot afirmou ter descoberto uma nova radiação, os raios N, que não se conseguia fotografar mas que vários físicos franceses alegavam ser visível usando os prismas adequados. No entanto, a maioria dos investigadores não conseguia observar a alegada radiação e, durante uma demonstração, Robert Wood retirou disfarçadamente o prisma do aparelho mas nenhum dos peritos franceses notou. Todos continuaram a dizer que viam os raios N. Nessa altura, não havia qualquer teoria científica de onde se pudesse formar um argumento dedutivamente válido que refutasse a existência dos raios N. Era possível invocar hipóteses adicionais explicando quaisquer resultados e Blondot continuou a insistir que os raios N eram verdadeiros. Mas a comunidade científica teve razão em descartar esta hipótese porque era mais plausível tratar-se de um problema cognitivo de alguns investigadores do que existir mesmo uma radiação tão misteriosa e mal comportada.

Em geral, a refutação científica de uma hipótese não resulta de um argumento dedutivamente válido. Isso só é possível em casos extremos, como o da hipótese de existir um ser omnipotente, que é inconsistente com tudo o que a ciência diz ser impossível. Mais comum é a verdade das premissas não poder garantir absolutamente a verdade da conclusão por se estar a lidar com informação incompleta. No entanto, pode haver uma hipótese alternativa com mais fundamento. Por exemplo, não se pode refutar dedutivamente a existência do Homem Aranha a partir de qualquer teoria científica. Há sempre margem para bloquear a conclusão com hipóteses auxiliares. No entanto, e infelizmente, esta hipótese pode ser descartada pela ciência porque a hipótese mais plausível é a do Homem Aranha ser um personagem fictício. Se o Homem Aranha fosse real já teria protestado contra a injustiça absurda de o deixarem fora dos filmes dos Vingadores só porque a Sony tem os direitos exclusivos da adaptação cinematográfica.

Em suma, a tese do Domingos só se aplica a um deus que não possa fazer nada contrário às teorias científicas porque a mera possibilidade de o fazer já é inconsistente com o que a ciência diz ser impossível. Além disso, o Domingos presume que a ciência só refuta hipóteses por argumentos dedutivamente válidos, o que é falso. A ciência refuta hipóteses, principalmente, encontrando alternativas mais fundamentadas. Foi assim que se descartou o calórico, o flogisto, a alquimia e tantas outras hipóteses que deram lugar a alternativas melhores. E é também assim que a ciência descarta a hipótese de Deus existir em favor da alternativa mais plausível de que este é apenas mais um dos muitos deuses que a nossa espécie tem inventado.

1- Wikipedia, N ray.

domingo, agosto 24, 2014

Treta da semana (passada): maus professores.

Alexandre Homem Cristo, «mestre em ciência política e especialista em políticas de educação»(1), concluiu que «Temos maus professores» e que «São alguns dos piores das gerações do presente que estão nas escolas a preparar as gerações do futuro.»(2) A metodologia é fascinante. Para avaliar cerca de cem mil professores do quadro, Cristo considerou os resultados que dez mil professores contratados obtiveram numa prova para se candidatarem a umas centenas de vagas (3). E este é um dos problemas menores da análise.

Com cem mil profissionais, seja do que for, é inevitável que uns sejam maus. Eu até encontrei alguns. Por exemplo, uma professora que tive no sétimo ano ensinou-nos que os animais nos pólos são brancos para reflectir a luz e baixar a temperatura ambiente. Quando eu perguntei se não seria para se confundirem com a neve descartou a minha pergunta e seguiu com a matéria. Essa senhora era má professora, mas o problema dela não era a ortografia, a interpretação de ditos populares ou sequer ter dito aquele disparate. Também tive professores que se baralhavam e diziam coisas erradas mas eram bons professores porque corrigiam os erros e ajudavam os alunos a aprender. E tive uma professora no mestrado que sabia a matéria mas dava as aulas lendo devagarinho umas transparências escritas à mão. A ortografia, que me lembre, era perfeita, mas aquelas aulas eram piores que estudar sozinho, com sono e em câmara lenta.

O que quero dizer com isto é que a diferença entre um bom professor e um mau professor não se mede pelos factores que Cristo considerou. Ele concluiu que os professores são maus porque «14% reprovou [...] 63% cometeu erros ortográficos (15% fez 5 ou mais erros) [...] 67% cometeu erros de pontuação» e «quem hoje frequenta os cursos da área da educação são, em média, os que têm níveis socioeconómicos mais baixos». No total, eu tive aulas com cerca de duzentos professores, uma amostra próxima do número de vagas a que concorrem os examinados nesta prova e mais representativa do que a de Cristo porque não se restringiu apenas a professores contratados. Mas nunca encontrei um professor que fosse mau por dar erros ortográficos, por dar erros de pontuação ou por ser pobre. Os maus professores foram sempre aqueles que não tinham aptidão para o ensino. O resto nunca fez tanta diferença.

Esta aptidão é uma combinação variável de características difíceis de definir e que depende da idade dos alunos, da matéria a leccionar e da personalidade do professor. Inclui a empatia necessária para compreender as dúvidas dos alunos porque, além da matéria, o professor precisa também de perceber que obstáculos cada aluno está a encontrar. Inclui a simpatia, porque aprender exige esforço e se o professor é chato ou irritante é difícil que os alunos lhe prestem atenção. Inclui a capacidade de se explicar com clareza, o que não implica uma prosa polida e gramaticalmente correcta. Há professores que conseguem melhores resultados com um “Faz assim, pá!” do que outros com a verbiagem mais erudita. Acima de tudo, exige que o professor crie uma relação de colaboração com os alunos. Por muito que saiba, um professor sem esta aptidão é menos útil do que o livro. Um problema da análise de Cristo, e da abordagem do Ministério, é que nenhuma das características que distinguem entre bons e maus professores pode ser aferida cotando erros ortográficos e perguntas da treta numa prova escrita.

Cristo diz que temos maus professores porque «é fácil tornar-se professor». A julgar pelo texto dele e pela proporção entre candidatos e vagas, suspeito que seja mais fácil tornar-se «especialista em políticas de educação» do que professor. Seja como for, para seleccionar os melhores professores é preciso avaliar as aulas e isso é que é difícil. Com cem mil professores leccionando matérias diferentes a alunos muito diferentes, seria preciso um corpo grande de avaliadores capazes não só de avaliar cada aula mas também de uniformizar os critérios para seriar professores leccionando em condições diferentes. Não é uma tarefa viável. Se o objectivo for melhorar a educação e não apenas cortar nos serviços públicos, tem de se atacar primeiro onde compensa mais. E, neste momento, o que daria mais proveito com menos custo seria acabar com as avaliações e com a propaganda contra os professores. A burocracia das avaliações consome recursos preciosos, porque são professores a tratar da papelada, e não se avalia o mais importante, que é a qualidade das aulas. O efeito da avaliação que agora temos é motivar os professores a dispersar-se por tretas em detrimento daquilo que interessa. Além disso, o problema principal do ensino em Portugal não é a qualidade dos professores. Antes de alguém propor “políticas de educação” devia passar umas horas com os alunos do ensino básico para perceber a percentagem assustadora de crianças desprovidas da educação mínima necessária para estar numa sala de aula. Estas crianças resistem a qualquer tentativa de ensino, gabando-se até do suposto feito de não aprender nada, e dificultam a aprendizagem às restantes. O expediente político de fazer dos professores bode expiatório não só lhes retira autoridade no combate a este problema como faz muitos pais pensarem que ser “encarregado de educação” é como ser o encarregado da obra, que nada faz senão mandar fazer.

Para termos melhores professores era preciso uma avaliação correcta, em vez da fantochada de avaliar por critérios sem correlação com a aptidão para o ensino, e era preciso a profissão atrair melhores profissionais do que aqueles que já a exercem. Com as condições que temos, isto exigiria um investimento enorme em avaliadores e salários. Neste momento, o mais rentável é melhorar as condições de trabalho dos professores. Quanto mais fácil for ensinar melhor será o ensino. E isso pode-se começar já a fazer, a custo zero, simplesmente descartando as medidas parvas dos últimos anos. É que mesmo que alguns professores sejam maus, os maiores estragos têm sido obra dos “especialistas em políticas educativas”.

1- Expresso, Não temos uma Educação com futuro
2- Observador, Temos maus professores.
3- Parlamento Global, Temos maus especialistas, Alexandre Homem Cristo?

quarta-feira, agosto 20, 2014

Feminismos.

Há umas semanas, Richard Dawkins tentou exemplificar o problema de se deixar as emoções toldarem o raciocínio. No Twitter, escreveu «X é mau. Y é pior. Se alguém achar que isto é uma defesa de X, que se vá embora e não volte enquanto não aprender a pensar logicamente»(1). Depois ilustrou a generalização com a violação, substituindo X por “date rape” e Y por violação por um estranho. Infelizmente, o exemplo foi perfeito demais.

A resposta emocional foi tão forte que muita gente simplesmente ignorou o argumento de Dawkins, que era acerca da lógica e não da violação, e considerou apenas a alegação de que «Date rape is bad. Stranger rape at knifepoint is worse». Além disso, mesmo pessoas que, normalmente, tentam abordar os problemas de forma racional, optaram por proclamar a sua indignação com Dawkins por este «chegar ao ponto de insinuar que a reacção emocional dele a um tema muitas vezes emocionalmente destrutivo, prevalece sobre a de qualquer pessoa que possa discordar. Não se pode comparar violações numa escala. Ponto final.»(2)

Além de falharem o alvo, devia também ser fácil perceber que a premissa de não se poder comparar violações tem de ser falsa. Em qualquer outro problema ético ou jurídico temos de fazer comparações mesmo havendo sempre aspectos subjectivos. Se em vez de violação for agressão, burla, homicídio, furto, assalto ou ataque terrorista é óbvio que se pode dizer que há casos piores do que outros. Por outro lado, o próprio conceito moral e jurídico de violação exige essa comparação para se traçar a linha que separa o tolerável daquilo que merece cadeia. Por exemplo, exigir sexo ameaçando terminar o namoro é desprezível mas não deve ser ilegal. Coagir uma relação sexual ameaçando despedimento ou despejo já pode justificar-se constituir crime e se a ameaça for de um tiro ou uma facada será um crime ainda mais grave. Não se pode legislar ou regular o comportamento sem avaliar aspectos subjectivos numa escala onde se marque os limites a partir dos quais os actos devam ser reprimidos.

Individualmente, por muito que cada um se tente orientar por ideais de cepticismo e racionalidade, encontrará sempre temas em que lhe é mais difícil ser racional. Por isso, individualmente, não me preocupa cada uma destas respostas emotivas ao que Dawkins escreveu, mesmo vindas de cépticos. As pessoas são mesmo assim. Uma vantagem importante das comunidades de cépticos, ateus e demais racionalistas é a facilidade com que criticam as ideias dos outros e a naturalidade com que aceitam essas críticas. Isto permite colmatar colectivamente as falhas individuais, corrigindo no grupo o que é difícil ao indivíduo corrigir. Mas, neste caso, o mecanismo de correcção colectiva está a ser afogado pelo coro de “misoginia” e “sexismo” de quem defende o feminismo errado.

Há um feminismo assente na ideia de que, independentemente das diferenças entre homens e mulheres, em questões éticas, morais ou jurídicas é tudo gente com direitos iguais que o sexo não serve para discriminar. Esse feminismo conquistou muito de bom em algumas partes do mundo e é preciso mantê-lo vivo para continuar o trabalho e levar esses avanços onde ainda não chegaram. O feminismo que se indigna com Dawkins é o contrário. É o feminismo dos “women's issues”, dos direitos da mulher em vez dos direitos da pessoa e da ideia de que só as mulheres podem decidir sobre esses direitos. Este feminismo, além de injusto, acaba por prejudicar até as mulheres. Por exemplo, o primeiro feminismo contribuiu para se aceitar, cada vez mais, que pai e mãe são igualmente responsáveis pela gravidez e pelos filhos e que a sociedade deve zelar pela maternidade e paternidade. Isto tem ajudado a aliviar pressões económicas sobre as grávidas e a reduzir a discriminação nos contratos de trabalho. O outro feminismo fez dar à mulher o direito legal de abortar sempre que queira. Além de descurar os direitos do abortado isto tornou a gravidez num problema exclusivo da mulher, invertendo boa parte do que o outro feminismo conseguiu. O resultado é o aborto de um quarto dos fetos em Portugal (3) e é pouco credível que vinte mil abortos por ano se devam a uma opção livre, sem aquelas pressões sociais e económicas que um feminismo a sério devia combater.

A tese de que «Não se pode comparar violações numa escala. Ponto final.» também rema contra o progresso. A moral tem evoluído principalmente tornando a escala cada vez mais inclusiva e universal. No início só lá estavam homens com influência e quem violasse uma mulher tinha de saldar contas com o pai ou com o marido. Gradualmente, foi-se incluindo camponeses, escravos, estrangeiros, mulheres, crianças e agora até se tenta estender a escala a outras espécies. Graças ao feminismo da igualdade de direitos, em alguns países as mulheres não só estão na escala a par com os homens como contribuem para a definir com o seu voto e pela participação cívica. Mas uma sociedade justa exige que se possa debater livremente essa escala e que se considere os interesses de todos quando se decide onde separar o tolerável do proibido.

O feminismo emotivo, indignado, que defende que as mulheres têm uma escala à parte, que só as mulheres podem avaliar certas coisas e que é machismo opinar sem ovários não só reforça preconceitos menos lisonjeiros acerca do feminismo e do feminino como arrisca desfazer o progresso que o feminismo mais fundamentado tem conseguido. O progresso moral não se consegue lutando por direitos de certos grupos sem enquadrar consensualmente esses direitos nos direitos de todos. Para isso, é preciso mais capacidade para discutir os problemas de forma objectiva do que de gritar que se está ofendido ou indignado.

1- Richard Dawkins, Response to a bizarre twitter storm
2- Amy Roth, On Richard Dawkins Being a Liability to Atheism
3- Aproximadamente sessenta mil nascimentos por ano e vinte mil abortos.

domingo, agosto 17, 2014

Treta da semana (passada): a patente.

A notícia de que o governo dos EUA tem “a patente do Ébola” tem feito furor nos sites conspiracionistas. «Será esta a confirmação do que corre pela Internet sobre o vírus ser fabricado, plantado e cuidadosamente testado para o controlo da população mundial?» (1). Será? A pergunta parece ser retórica, mas o artigo adianta que «a razão pela qual os EUA reclamam os corpos das vítimas de Ébola para que sejam transportados para território americano (alegadamente de forma voluntária) prende-se com a possibilidade de estas vítimas conterem propriedade intelectual americana.» Aparentemente, os EUA não só querem matar uma boa parte da população mundial como também querem recolher todos os cadáveres. Verdadeiramente diabólico. Só falta venderem Soylent Green.

Há uma explicação alternativa, menos apelativa para os aficionados da conspiração. A patente cobre vários aspectos do isolamento, purificação, sequenciação, replicação, detecção e transformação daquela estirpe do vírus, eventualmente com vista a produzir uma vacina (2). Este trabalho exigiu muito investimento, pago pelos contribuintes nos EUA, não só pela tarefa em si mas também porque trabalhar com estes vírus requer mais cuidados do que um bico de Bunsen e uma bata branca. Sendo a legislação das patentes o que é, a forma mais eficiente de impedir que uma empresa privada patenteie isto tudo é ser o CDC a patenteá-lo primeiro. Caso contrário, teriam de demonstrar em tribunal terem sido os primeiros, um litígio demorado, dispendioso e sempre incerto. Desta forma o governo dos EUA pode divulgar a informação e licenciar os procedimentos e o uso das estirpes depositadas no CDC sem correr o risco de um privado ficar com o monopólio. A legislação das patentes está tão mal feita que uma boa parte das patentes submetidas visa apenas impedir que outros patenteiem o mesmo (3).

A conspiração real aqui, que não é nada secreta, é o esforço dos detentores de “propriedade intelectual” para comprar aos políticos leis cada vez mais abrangentes. Não é tão bombástica quanto as “revelações” fictícias destes sites mas devia preocupar-nos mais. A possibilidade de patentear cada vez mais coisas, incluindo algoritmos, organismos e sequências genéticas, está a drenar imensos recursos à economia e a dificultar a inovação (4), com consequências graves quando se trata de terapias ou vacinas (5).

A patente devia ser um acordo, para benefício mútuo, celebrado entre a sociedade e o inventor. Um exemplo histórico disto foi o monopólio que Henrique VI concedeu em 1449 a João de Utynam. Em troca de ensinar a sua técnica de fabrico de vidro aos artesãos ingleses, o inventor ficou com o direito exclusivo de explorar comercialmente esse processo no Reino Unido durante vinte anos (6). Conceder protecção em troca da revelação de um potencial segredo industrial é a justificação fundamental das patentes, que exigem uma descrição detalhada e pública da invenção protegida. No entanto, ao conceder patentes sobre coisas como a sequência de um vírus, um algoritmo ou o gesto de deslizar o dedo para activar o telemóvel (7), o sistema que agora temos afastou-se muito do seu propósito original.

Um Estado ter de conceder a si próprio um monopólio legal sobre investigação paga com fundos públicos para evitar que se torne exclusiva de alguma empresa privada demonstra claramente que o sistema de patentes se tornou uma aberração. É este problema que devíamos atacar. Quer nas patentes quer no copyright, fomo-nos gradualmente afastando da ideia do monopólio concedido para beneficiar a sociedade. Por exemplo, conceder uma patente em troca da revelação de um processo que de outra forma ficaria secreto ou o direito exclusivo de imprimir em papel uma obra que sem esse monopólio ninguém iria imprimir e distribuir. Em vez disso, prevalece agora a premissa de que as ideias são propriedade de alguém – autor ou gestor – e que são os direitos de propriedade que justificam os monopólios mesmo à custa dos direitos de terceiros.

Esta patente sobre a sequência, transformação e diagnóstico do vírus não confirma o «que corre pela Internet sobre o vírus ser fabricado, plantado e cuidadosamente testado para o controlo da população mundial». Mas o sistema que permite patentear estas coisas está a violar os direitos de muita gente e a causar mortes de outra forma evitáveis.

1- Portugal Mundial, Porque o governo americano é detentor da patente do Ébola?(via Facebook)
2- Google, Human ebola virus species and compositions and methods thereof
3- Wikipedia, Defensive Patent Aggregation
4- Por exemplo, «Last year [2011], for the first time, spending by Apple and Google on patent lawsuits and unusually big-dollar patent purchases exceeded spending on research and development of new products, according to public filings.», New York Times, The Patent, Used as a Sword 5- Por exemplo, MERS watch, Dutch Patent Grab Blocks MERS Vaccine Research
6- IP & Science, The History of Patents
7- USPTO, Unlocking a device by performing gestures on an unlock image

quarta-feira, agosto 13, 2014

O problema da indiferença.

Os teólogos chamam-lhe o problema filosófico do mal. O termo é enganador porque o problema a que se refere não está no mal em si. Está na hipótese de existir um ser infinitamente bondoso que tudo sabe e tudo pode. É essa hipótese que claramente não encaixa no que observamos. Mas como nas religiões não fica bem admitir erros, muita gente se tem dedicado, durante milénios, à tarefa fútil de arranjar desculpas para que um deus infinitamente bondoso permita tanta desgraça. Neste momento, a racionalização mais popular parece ser é a de que o mal existe porque Deus respeita a vontade de cada um e a liberdade é incompatível com a garantia de que só há bem e não há mal*.

Mesmo restringindo o problema ao mal – actos intencionais da vontade humana – esta justificação é inconsistente com o que observamos nos conflitos entre vontades diferentes. Se A tem vontade de fazer mal a B e B tem muita vontade de que não lhe façam mal, o que determina o resultado não é a justiça nem o respeito por quem tem mais vontade. É simplesmente a força física ou a arma mais eficaz. O que as evidências demonstram é que os deuses, se algum existir, respeitam mais a Kalashnikov do que a vontade livre de cada um.

No entanto, o problema é muito mais vasto do que o mal enquanto acto com intenção. Todos os anos morrem mais de seis milhões de crianças pequenas, de até cinco anos de idade. Morrem principalmente de pneumonia, complicações na gravidez, asfixia durante o parto, diarreia e malária (1). Não morrem por alguém ter desejado que morressem. Não é a maldade que as mata. São bactérias e protozoários, falta de alimentos e termos evoluído bípedes de crânio grande a partir de antepassados quadrúpedes, resultando na passagem de um feto cabeçudo por dentro de uma pélvis que tem de ser estreita para a mãe conseguir andar. As tragédias que ocorrem sem qualquer intenção, maldade ou culpa, como doenças e acidentes, são muito mais numerosas do que aquelas que se pode atribuir a um mal intencional. Seja como for, perante qualquer tragédia, a Natureza comporta-se exactamente como se não fosse governada com bondade, inteligência ou vontade. Para o universo, morrer o filho nos braços da mãe é o mesmo que cair uma gota de chuva num charco. Se alguma emoção governasse isto tudo não seria amor nem ódio. Seria a indiferença absoluta.

A tragédia é muito maior do que o sofrimento dos humanos de hoje. A nossa espécie já sofre há centenas de milhares de anos, os primatas há cinquenta milhões e os mamíferos há trezentos milhões de anos. E sabe-se lá quantas espécies capazes de sofrimento existiram nos quatro mil milhões de anos de vida neste planeta e em quantos outros planetas nos treze mil milhões de anos que dura este universo, imensamente mais vasto do que qualquer coisa que as religiões puderam imaginar. A indiferença do universo perante toda esta tragédia é um problema muito maior para a hipótese do deus bondoso do que os humanos serem mauzinhos de vez em quando, que não passa de um detalhe insignificante na história do sofrimento. No entanto, nada disto configura o problema filosófico que os teólogos apregoam. Distinguir entre o bem e o mal é um problema filosófico importante mas o mero facto de existir sofrimento e de ser possível agir com bondade ou maldade é filosoficamente tão misterioso como a existência da pedra-pomes ou a possibilidade de fazer croché.

O “problema do mal” é apenas o problema de insistir, contra as evidências, que este universo é governado por um ser infinitamente bondoso. A alegação não só é obviamente falsa como até é moralmente repugnante. Sem um deus desses, muita da tragédia que enfrentamos é simplesmente algo que acontece. Uma doença incurável, um acidente imprevisível. Um azar, sem maldade nem culpa. Mas se acreditarmos num deus desses temos de acreditar que toda a tragédia é maldade porque temos de acreditar que toda a doença tem cura, que todos os acidentes são evitáveis e que a tragédia só acontece porque o ser supremo não se importa com quem sofre. A indiferença natural de um universo que não pensa nem sente torna-se na indiferença cruel de um deus que se limita a apreciar o sofrimento quando o poderia evitar sem qualquer esforço. Isto não é um problema filosófico do mal. É um problema psiquiátrico da fé.

* Isto é inconsistente com a tese de que Deus e todas as almas no paraíso têm vontade livre mas são incapazes de praticar o mal. A própria teologia exige que a vontade livre seja compatível com a bondade perfeita. Mas como é melhor refutar disparates com factos do que com outros disparates remeti esta objecção para o rodapé.

1- OMS, Children: reducing mortality

domingo, agosto 10, 2014

Treta da semana (passada): novamente a taxa.

Passados uns anos, a ver se a malta se esquecia, voltou a ideia de taxar tudo que guarde bits para ressarcir as sociedades de cobrança pelo prejuízo de não receberem tanto dinheiro quanto gostariam de receber (1). Os problemas continuam os mesmos. A lei consente a reprodução «Para uso exclusivamente privado, desde que não atinja a exploração normal da obra e não cause prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor» (artigo 81º do CDADC). Mas, pelo privilégio de podermos usar o que é nosso, seja papel, tinta, cassetes ou fotocopiadoras, pagamos uma taxa a entidades como a SPA, que depois gerem o dinheiro muito bem gerido antes de dar algumas sobras aos autores. Esta legislação visa incluir neste sistema também o domínio digital, o que não faz sentido por várias razões.

O equipamento digital é usado quase sempre para criar e guardar obras da autoria do próprio, sejam documentos de trabalho, mensagens escritas, fotografias ou vídeos, pelo que se estará a taxar a maioria dos autores em benefício da minoria que se registou e de um número ainda menor de administradores das organizações de cobrança. Mesmo que o benefício destes últimos seja considerável, a única criatividade que isto incentiva é a de encontrar formas de importar estes aparelhos sem pagar a taxa. Além disso, se bem que haja um direito à cópia privada em suporte analógico, no domínio digital o DRM impede a cópia sempre que o detentor do monopólio o queira porque é ilegal contornar protecções digitais de cópia mesmo que seja para exercer um direito legal. Finalmente, ao contrário do papel branco ou da cassete virgem, o suporte digital serve quase sempre para guardar material pago, como livros electrónicos, jogos, sistemas operativos e músicas. No fundo, querem cobrar-nos uma taxa pelo equipamento de que precisamos para lhes comprarmos o que eles vendem. E se bem que muita gente vá descarregar muita coisa sem pagar, enquanto isso for ilegal não faz sentido cobrarem uma taxa como contrapartida por um direito que, legalmente, não temos.

Infelizmente, há um argumento forte do lado desta iniciativa. A lei: «No preço de venda ao público de todos e quaisquer aparelhos mecânicos, químicos, eléctricos, electrónicos ou outros que permitam a fixação e reprodução das obras e, bem assim, de todos e quaisquer suportes materiais das fixações e reproduções […] incluir-se-á uma quantia destinada a beneficiar os autores, os artistas, intérpretes ou executantes, os editores e os produtores fonógrafos e videográficos» (artigo 82º do CDADC). Não importa se é injusto, absurdo, prejudicial ou contra-producente. É a lei. O que revela que o problema mais importante aqui nem são estas propostas reincidentes das taxas sobre os bits. O problema é o copyright em si.

É logo de desconfiar que haja legislação específica para compensar os detentores dos direitos exclusivos de cópia. Porque, apesar de ser justo que alguém seja compensado quando sofre um prejuízo, isso já está previsto na lei. Se um condutor espeta o carro contra uma loja tem de compensar o lojista não só pelos danos mas também pelos dias que este ficar sem clientes. É justo, e normal, que os tribunais obriguem a parte que prejudica a compensar a parte prejudicada. Mas isso exige que se demonstre ter havido prejuízo. O que há de anormal no CDADC é assumir-se automaticamente que a cópia é um prejuízo que tem de ser compensado. É como assumir que guardar o dinheiro debaixo do colchão causa prejuízo aos bancos, cozinhar em casa causa prejuízo aos restaurantes, ler livros emprestados causa prejuízo aos editores e que todos estes, por esse prejuízo, devem ser compensados com uma taxa se permitirmos que as pessoas façam estas coisas. É uma ideia absurda.

No entanto, este absurdo é o fundamento do copyright. Mesmo que por vezes se alegue outros “direitos”, vêm sempre dar aqui. A alegação de que o fundamento do copyright é um direito de propriedade sobre a obra não resiste à constatação de que, além de não se poder ter direitos de propriedade sobre abstracções – seria como vender a camisa e continuar dono da posição dos botões – ninguém aceita que o autor possa proibir alguém de declamar ou cantar, de emprestar ou revender livros e assim por diante. Só de copiar. A ideia de que o copyright se justifica porque o autor merece ser remunerado pelo seu trabalho também não serve. Por um lado, porque ninguém tem direito a remuneração sem que alguém assuma o dever de o remunerar. A remuneração justa exige um contrato. Por outro lado, ninguém propõe que se pague ao autor em função do trabalho que este teve. É sempre em função do número de cópias. Ou seja, assumindo que a compensação não é merecida pelo trabalho mas porque alguém copiou.

Continuo, como dantes, contra a taxa dos bits. Mas desta vez aproveito para apontar que o problema está no copyright e não na taxa. Porque não me prejudica que vocês leiam ou copiem este texto. Porque se não quisesse que lessem não o tinha publicado. E, especialmente, porque se eu quiser ganhar dinheiro com isto sou eu quem tem de arranjar quem me pague. Não é ao legislador que compete fazer esse trabalho por mim, nem com taxas nem com monopólios.

1- Como da outra vez, a Maria João Nogueira fez um apanhado das notícias e posts sobre o assunto.

sexta-feira, agosto 08, 2014

Estado mínimo.

Eu defendo que o propósito do Estado é maximizar a liberdade e que, por isso, deve intervir apenas quando a intervenção torna as pessoas mais livres. Apesar de favorecer políticas de esquerda em quase tudo, isto põe-me com a direita no que toca ao capitalismo e ao mercado livre. Não é que me convença a propaganda de que o capitalismo é o melhor sistema. É bom numas coisas mas é mau noutras. Simplesmente considero que é um direito de cada um comprar, vender e acumular o que lhe apetecer, apenas com a restrição de que não prive os outros de direitos igualmente importantes. Por isso, sou a favor de um Estado mínimo que garanta apenas a infraestrutura sobre a qual os indivíduos depois possam fazer as suas escolhas e não concordo que o Estado se deva imiscuir nos negócios privados, gerir empresas semi-públicas ou fazer parcerias económicas com entidades privadas. Por exemplo, há umas semanas o Banco de Portugal deu o seu aval à venda de mil milhões de euros de dívida subordinada do BES e quem confiou no regulador perdeu tudo. Não é isto que o Estado deve fazer.

Infelizmente, à direita custa aceitar o tamanho que o Estado mínimo tem de ter para poder dar liberdade à iniciativa privada. Para os privados poderem fazer e desfazer os seus negócios quando entenderem sem prejudicar a sociedade é preciso que o Estado garanta a prestação dos serviços mais importantes. Por exemplo, para que os donos das clínicas privadas possam oferecer os serviços que quiserem aos preços que quiserem, ou mudar de ramo quando quiserem, é preciso serviços públicos de saúde suficientes para servir quem deles precisar independentemente do que os privados decidam. Passa-se o mesmo com as escolas, universidades e a investigação científica e devia ser assim também com os serviços postais, telecomunicações, transportes e até com a banca. A alternativa é criar relações promiscuas entre o público e o privado que apenas juntam o que há de pior nas duas abordagens.

Os transportes colectivos são um de muitos exemplos deste problema. Ao contrário das pastelarias ou cabeleireiros, os transportes colectivos beneficiam mesmo quem não seja cliente, reduzindo a poluição, o tráfego, as necessidades de estacionamento e o consumo de combustível, e são uma peça importante na gestão de qualquer cidade. Isto não permite que se deixe estas empresas competir num mercado livre porque se uma vai à falência muita gente fica prejudicada até que outra a substitua. Se queremos que o Estado interfira o menos possível no sector privado o grosso dos transportes colectivos tem de ser um serviço público, fora das instabilidades do mercado, para que os privados possam explorar à vontade as oportunidades de negócio que surgirem sem prejudicar terceiros. Infelizmente, o que temos por cá é um molho de empresas privadas de transportes colectivos cuja actividade é controlada pelo Estado que, entre outras coisas, concede a cada uma direitos exclusivos de exploração de certos percursos. Isto nem é um serviço público nem é iniciativa privada. É uma aberração na qual os contribuintes pagam a infraestrutura – estradas e túneis do Metro, por exemplo – os accionistas recolhem os proveitos da exploração de monopólios e o Estado tem de estar constantemente a policiar tudo, o que além de ineficiente é um incentivo à corrupção.

Acontece o mesmo com a banca. Para permitir que os bancos privados actuem livremente o Estado teria de controlar uma percentagem grande do sistema financeiro. Isto não seria difícil se o Estado garantisse apenas os depósitos na banca pública, deixando os privados por sua conta. Quem quisesse segurança nos seus depósitos e tivesse garantias sólidas para obter crédito preferiria a banca pública e ficaria a banca privada com os investimentos de maior risco e mais especulativos. Dessa forma a falência de um banco privado não oneraria o Estado e afectaria apenas a parte mais volátil do sistema financeiro. Não digo que fosse um sistema perfeito, mas seria certamente melhor do que a trapalhada que agora temos, com os privados a fazer asneira, os contribuintes a pagar e um regulador que não regula.

O Estado mínimo deve ser o Estado que interfere o menos possível na actividade privada e que está claramente separado desta. É um Estado que não se mete nos detalhes dos negócios. Não faz contratos com colégios privados, não concede direitos exclusivos a transportadoras, não faz parcerias com construtoras, não diz aos bancos quando podem emitir dívida nem recomenda aos accionistas que a comprem. O que for preciso regular, da poluição às relações laborais, regula de forma genérica, transparente e sem decisões ad hoc. O Estado mínimo estipula as regras e garante a infraestrutura, seja em estradas, educação, justiça ou finanças, e o resto fica com o sector privado. Mas para o Estado ser mínimo neste sentido não pode ser pequeno. Como o lastro, tem de ter o peso que for preciso para manter o barco direito.

Uma das maiores aldrabices políticas dos últimos tempos é a propaganda do Estado sem “gorduras”, que entrega coisas importantes ao sector privado e depois confia na regulação para manter o mercado na linha. Isto só é bom para quem tem cunhas. Da certificação energética à televisão digital terrestre e da banca aos transportes colectivos é evidente a facilidade com que alguns interesses privados tomam conta da regulação. Não só pelos políticos que fazem carreira desta promiscuidade entre o público e o privado mas também porque a complexidade dos problemas muitas vezes obriga a delegar a regulação nos próprios regulados, ficando a raposa a cuidar do galinheiro. O Estado deve ser mínimo, sim, mas esse mínimo é maior do que o Estado que temos agora.

domingo, agosto 03, 2014

Treta da semana (passada): dualismo e materialismo.

A propósito do post sobre o espiritismo, de há umas semanas, o leitor Cláudio Filipe comentou recentemente que eu revelo «uma total ignorância da relação entre a mente e o cérebro.» Passou então a elucidar-me para que eu só fique parcialmente ignorante, esforço que agradeço desde já:

«O problema da relação entre a mente e o cérebro é um problema muito antigo e há séculos que é abordado por filósofos e cientistas. Para simplificar, há duas posições: a posição que diz que a mente é um simples produto do cérebro que é a posição materialista também chamada de produtiva (porque é o cérebro que produz os pensamentos) e a posição que diz que a mente, embora estreitamente relacionada com o cérebro durante a vida do indivíduo, é uma entidade separada, distinta do cérebro, irredutível por direito próprio. Diz-se que é a hipótese transmissiva, na medida em que o cérebro não produz os pensamentos, apenas os transmite.»

Depois de enunciar vários nomes de pessoas que favorecem a segunda hipótese, alega que esta explica perfeitamente o efeito de drogas, Alzheimer e lesões cerebrais porque «Se nós tivermos um televisor danificado, as imagens que vamos ver vão sofrer de forma correspondente. […] Mas não é o nosso televisor que produz os programas, ele apenas os transmite. Da mesma forma, o nosso cérebro pode ser apenas um transmissor e não o produtor dos pensamentos.» Se bem que esta hipótese seja atraente pela possibilidade de haver uma mente independente do cérebro e potencialmente livre do triste destino da matéria orgânica, as evidências são-lhe contrárias. Se nós tivermos danos no nervo óptico ou na retina podemos ver pior ou deixar de ver. Isto é o que se espera de estruturas que transmitem a informação. Mas danos no lobo occipital não só eliminam a capacidade de ver cores como também podem fazer perder a capacidade de imaginar cores. Não se trata apenas de olhar para o tomate e vê-lo de cor cinzenta. Trata-se da situação aflitiva de se lembrar que tem cor mas já nem sequer conseguir visualizar mentalmente o vermelho do tomate (1). Outro exemplo de evidências contra a “hipótese transmissiva” é o que acontece depois de uma comisurotomia do corpo caloso, um tratamento drástico para casos extremos de epilepsia que consiste em cortar as fibras nervosas que unem os dois hemisférios do cérebro. Mostrando ao paciente a imagem de um objecto no lado esquerdo do seu campo visual, o paciente não consegue dizer o nome do objecto mas consegue explicar o que é gesticulando com a mão esquerda, desenhá-lo com a mão esquerda ou encontrá-lo pelo tacto com a mão esquerda. Mas só com a mão esquerda. Se a imagem do objecto for apresentada do lado direito do campo visual o paciente já consegue dizer o nome do objecto e encontrá-lo pelo tacto com a mão direita, mas agora não consegue fazê-lo com a mão esquerda. Não se trata de um mero problema de transmissão. Todo o raciocínio está separado nos dois hemisférios e, se bem que só um deles controla a fala, cada um consegue identificar o objecto, perceber o que se pede para fazer e, dentro das suas capacidades, fazê-lo. Exactamente como se cortar o cérebro ao meio dividisse a mente em duas também.

A neuropsicologia já encontrou evidências suficientes para enterrar de vez esta ideia de que a mente é algo independente, com existência própria. Tudo indica que a mente é simplesmente algo que o sistema nervoso faz, tal como a circulação do sangue é algo feito pelo coração e vasos sanguíneos e a respiração é feita pelos pulmões, sangue e células, sem que circulação, respiração ou mente sejam coisas com existência própria. É por isso irónico que digam que esta é que é uma visão materialista e redutora da mente.

O dualismo de substância, a tal hipótese de que a mente «é uma entidade separada, distinta do cérebro, irredutível por direito próprio», é uma hipótese inútil porque, no fundo, limita-se a dizer que além da “coisa material” há também uma “coisa pensante”. É um análogo do princípio dormitivo de Moliére mas com o defeito de nem ser a gozar. A hipótese de que a mente é um processo em vez de uma coisa, tal como são a digestão e a corrida, além de ser muito mais útil é menos materialista e menos redutora. É mais útil porque um processo é algo que podemos tentar compreender, e a neuropsicologia avançou mais nesta matéria em poucas décadas do que as teologias todas em vários milénios. É menos materialista porque a tal “substância mental” que Descartes postulou é, no fundo, apenas um tipo diferente de matéria. Não ocupa espaço e pensa mas, de resto, é “coisa” como a matéria, partilhando com esta os atributos principais de persistência e existência autónoma. A hipótese da mente como um processo admite que, além das “coisas”, importa também a sua organização e interacção dinâmica, aspectos que não são materiais em si. E é menos redutora porque permite modelar muito mais detalhes do que simplesmente dizer que temos pensamentos porque a nossa mente é uma substância que pensa, o que é tão redutor que acaba por ser ridículo.

1- Wikipedia, Cerebral achromatopsia, em particular o famoso caso do pintor.
2- Nature News, The split brain: A tale of two halves.

sábado, agosto 02, 2014

Controlite crónica.

O Álvaro Fonseca rescindiu o seu contrato de professor universitário após quase 28 anos no ensino. Com a ressalva de que me sinto demasiado próximo do Álvaro e da situação que ele descreve para ser imparcial, tenho de dizer que concordo com as principais razões que ele apresenta. Também me desanima a crescente burocratização do ensino e a gestão cada vez mais centralizada. Parece-me que se está a degradar o ensino universitário em favor de indicadores que ficam bem na folha de cálculo mas que pouco contribuem para o que devíamos fazer. Por exemplo, avaliar os cursos pela empregabilidade dá uns gráficos porreiros mas ignora o fundamental, que é a educação de cada pessoa ser um direito seu e não um direito de um eventual empregador. Mas remeto os detalhes acerca da FCT para o post do Álvaro (1). Aqui vou abordar o tema de forma mais genérica, não só porque não tenciono rescindir o meu contrato mas também porque o problema me parece muito mais vasto.

Centralizar os detalhes é bom para maximizar o lucro do abate de frangos, se o quisermos fazer com trabalhadores mal pagos e pouco motivados (2). Põe-se a máquina a trabalhar, cada um pendura, corta ou ajeita conforme o posto em que está e quem refilar vai para a rua. Num hospital isto não funciona. Cada médico e enfermeiro tem de tomar decisões rápidas em situações complexas, não há uma medida simples de desempenho se queremos saúde em vez de lucros e, mesmo que a administração queira fazer da ética laboral o que os outros fazem aos frangos, os cuidados de saúde são muito mais sensíveis à motivação e empenho dos profissionais do que a tarefa de pendurar frangos na máquina de depenar.

A centralização paga-se cara nas tarefas mais complexas. Para a informação chegar ao decisor é preciso relatórios, inquéritos e papelada. Como a decisão também é complexa depois é preciso despachos, regulamentos e esclarecimentos antes de ser implementada. Quanto mais longo o percurso mais trabalho dá, mais tempo demora e mais provável é haver erros. O decisor também precisa de simplificar para poder decidir. Se os docentes fossem avaliados nos grupos de disciplina, escolas, secções e departamentos, podia-se considerar a qualidade das aulas que dão. Mas para centralizar o processo é preciso converter tudo numa tabela de números para ordenar centenas ou milhares de docentes de uma vez, o que exige avaliá-los por indicadores grosseiros como a nota num exame escrito ou as horas de aulas que deram e quantos alunos tiveram. Pior ainda, quando as pessoas começam a degradar o seu desempenho para maximizar estes indicadores – por exemplo, estudando para o tal exame em vez de preparar as aulas que têm de dar – os inventores destes sistemas vão se congratular pela sua gestão genial porque, apesar de estar tudo a ficar pior, as linhas no gráfico vão a subir.

Outro efeito perverso da centralização é o conflito entre objectivos. Quando os procedimentos e melhorias são decididos por quem desempenha as tarefas é fácil alinhar os objectivos dos indivíduos com os objectivos da organização. Por exemplo, se cada professor tenta melhorar a forma como lecciona tenta também melhorar o ensino na escola. Mas quando alguém é encarregue de centralizar as melhorias os objectivos começam a divergir. Por um lado, porque estará sobre pressão para justificar o seu posto e “tomar medidas” mesmo que sejam desnecessárias. O exemplo mais extremo disto é a profusão de ministros e secretários de Estado cujo desempenho é pior do que se não fizessem nada. Por outro lado, porque o desempenho da sua tarefa de gestão depende de medidas que degradam o desempenho dos outros que ele está a gerir. Uniformizar processos facilita a gestão mas trata por igual coisas que são diferentes. Recolher informação de forma estandardizada é essencial para gerir muitos dados mas descura detalhes importantes. Em geral, muito do que simplifica a vida ao gestor dificulta o trabalho a quem faz o mais importante.

Finalmente, há o impacto que estas medidas têm na motivação das pessoas. Quanto mais qualificado for quem desempenha uma tarefa mais frustrado ficará com a interferência de quem, desprezando os detalhes, pinta tudo a rolo e o obriga a fazer as coisas pior do que poderia fazer. Quanto mais empenhado estiver no seu trabalho mais desmotivado vai ficar com burocracias inúteis e avaliações inadequadas. A centralização das decisões só funciona quando o decisor é tão mais competente e motivado do que os seus subordinados que a diferença compensa o custo de centralizar as decisões. Para depenar frangos, por exemplo. Mas na função pública isto raramente acontece, não só porque o Estado emprega uma percentagem muito grande das pessoas mais qualificadas do país como também porque quem chefia é um funcionário público como os outros. Não é dono de nada nem tem mais interesse no sucesso da organização do que têm os demais. Entre pares a centralização não resulta.

Pior do que o corte nos salários, o que tem degradado mais o desempenho da função pública é um modelo de gestão que assume que os funcionários públicos que fazem o trabalho são menos competentes do que os outros funcionários públicos que dizem como o fazer. A consequente proliferação de papelada, regras absurdas e indicadores inúteis dificulta o trabalho a todos, desmotiva e disfarça os podres porque na folha de cálculo parece que está tudo bem. É por isso que queria salientar esta decisão do Álvaro. Só quando alguém tem a coragem de dizer que já chega e bater com a porta é que de fora se pode ter uma ideia do preço que estamos todos a pagar por se tentar gerir a função pública como se fosse a fábrica de embalar frangos.

1- Álvaro Fonseca, Escolher outro caminho
2- É bom para os accionistas, mas só se não comerem o frango: Guardian, Revealed: the dirty secret of the UK’s poultry industry