sexta-feira, agosto 29, 2014

Treta da semana (passada): “direitos”, “autores” e “cultura”.

A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) está satisfeita com a nova taxa sobre a cópia privada. Não admira, porque boa parte dos milhões que o governo nos vai cobrar será “gerida” pela SPA. Mas o que lhes importa é a somente a defesa «de um princípio e de uma causa e não a defesa do lucro por parte de estruturas empresariais»(1). Apesar de 80% dos cinco milhões de euros que contam receber serem para pagar a empresas estrangeiras (2). Esta causa é alargar «a cobrança dos direitos nesta área à esfera digital», «satisfazer os direitos dos autores» e lutar pelo «prestígio cultural» do país. No entanto, nenhum destes termos – “direitos”, “autores” e “cultura” – significa o que devia significar.

Os direitos são valores morais que ponderamos para decidir o que é legítimo cada um fazer. Por exemplo, o direito de nos exprimirmos com liberdade torna ilegítimo censurar mas, como cada um também tem direito à sua vida e autonomia, a liberdade de expressão não autoriza ameaçar ou burlar os outros. A “cobrança dos direitos” é uma noção incoerente, porque direitos não são algo que se cobre, mas sugere haver um direito moral suficientemente importante para justificar termos de pagar uma taxa à SPA quando compramos equipamento digital. Legalmente, esta taxa fundamenta-se em três premissas: que deve haver um monopólio sobre a cópia; que há uma excepção a esse monopólio por ser legalmente permitido copiar para uso privado; e que essa excepção causa um prejuízo que tem de ser compensado pela taxa. Muita gente tem protestado contra os factos das duas últimas premissas. A proibição de contornar o DRM elimina, na prática, a cópia legal sem autorização e os suportes digitais servem também para guardar as criações do comprador e as cópias legais compradas aos detentores dos monopólios e, por isso, o benefício é maior do que o prejuízo. No entanto, a primeira premissa tem ficado fora desta discussão apesar de ser a mais fundamental e a que presume um direito moral.

Vamos supor que a Ana escreveu um poema e vendeu uma cópia do ficheiro ao Bruno. O Bruno agora quer dar uma cópia do ficheiro à Carla mas a Ana opõe-se porque quer ganhar mais dinheiro vendendo também à Carla. A questão é se, ponderando os direitos de todos, será legítimo dar à Ana o poder legal de impedir o Bruno de dar uma cópia do ficheiro à Carla. Por um lado, o Bruno e a Carla têm o direito de comunicar entre si sem interferência de terceiros, o Bruno tem direitos de propriedade sobre o seu computador e o direito de partilhar o que é seu, e a Carla tem o direito de aceder à cultura, entre outros. Por outro lado, o único interesse que a Ana tem em jogo é o de vender o ficheiro à Carla, o que nem sequer é um direito da Ana porque depende da vontade da Carla. Claramente, não há, do lado da Ana, direitos suficientemente importantes para justificar a restrição dos direitos do Bruno, da Carla e de todas as outras pessoas que vivam naquela jurisdição. O problema fundamental da “cobrança de direitos” é que o monopólio sobre a cópia não é um direito moral. Pelo contrário. Da forma como se tem estendido à esfera pessoal, é uma violação sistemática de direitos morais importantes*.

Quando a SPA alega que a taxa vai “satisfazer os direitos dos autores”, também o termo “autores” está deturpado. Os beneficiários da taxa são os detentores dos monopólios e são beneficiários em virtude apenas de deterem esses monopólios. O resto é irrelevante. Por isso, a maior parte do dinheiro reverte para empresas e não para autores, outra parte vai para produtores e executantes e a pequena fatia que calha aos autores não lhes cabe por serem autores. Autores somos todos, por cada email, fotografia, vídeo, comentário ou post que criamos, e não recebemos nada por isso. Os “autores” que esta taxa beneficia são simplesmente as pessoas que fazem negócio a vender cópias de obras, aproveitando um monopólio legal.

Finalmente, a “cultura” que esta taxa pretende proteger e prestigiar não é a cultura no sentido do conhecimento, hábitos, língua, valores e obras que uma comunidade partilha em comum. O Português, Os Lusíadas, o Mosteiro dos Jerónimos e o Natal fazem parte da nossa cultura, num bolo enorme que também inclui a migalha onde estão os livros do José Jorge Letria e as músicas do Pedro Abrunhosa. Mas o que a SPA chama “cultura” é apenas essa migalha de obras cuja cópia é restringida por lei e que, precisamente por serem de distribuição restrita, contribuem muito menos para a cultura do que se as pudéssemos partilhar e transformar livremente. Cultura não é o que se vende nas lojas ou se guarda na gaveta. É o que se aprende, ensina e partilha livremente entre todos. Confundir negócio com cultura é outra peça central na defesa dos monopólios sobre a cópia. Por exemplo, a Ana Rita Guerra escreveu que, por causa das inovações tecnológicas, «Há que encontrar uma nova forma de monetizar o trabalho intelectual e artístico» (3). É verdade que a tecnologia força mudanças nos modelos de negócio. Mas isso é um problema de quem faz negócio e não tem nada que ver com cultura.

A propaganda do copyright depende totalmente destas deturpações. Por isso, quando os ouvirem falar de “direitos”, lembrem-se de que vos exigem o sacrifício de direitos muito mais importantes do que o “direito” de cobrar taxas ou vender discos. Quando vos falarem dos “autores”, lembrem-se de que autores somos todos nós e não apenas quem faz negócio com o monopólio da cópia. E quando vos disserem que é para proteger a “cultura”, lembrem-se de que a cultura não é um negócio e que não se protege restringindo a distribuição. Pelo contrário, a cultura só o é quando é de todos e quando todos são livres de usufruir dela e de a usar para criar mais cultura.

* A situação seria diferente se o Bruno quisesse vender o ficheiro à Carla. Nesse caso, estaria em jogo apenas o conflito entre o negócio do Bruno e o negócio da Ana, pelo que podia ser legítimo dar prioridade à Ana durante um tempo limitado. É por isso que não vejo problemas fundamentais na concessão de alguns monopólios desde que sejam exclusivamente para fins comerciais.

1- SPA, SPA considera positivo o novo diploma sobre a cópia privada
2- SPA, Lei da Cópia Privada 2014
3- Dinheiro Vivo, Lei da cópia privada. O drama, a tragédia, o horror

4 comentários:

  1. Eu sugiro que pelo menos todos assinem a petição: Petição Impedir a Taxação da Sociedade da Informação.
    Adicionalmente, que enviem e-mail "chato" a aborrecer os autores de tal lei. Podem ver em Projeto de Lei 118/XII. A minha sugestão é enviar um e-mail voodoo, nunca se sabe se pega!

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  2. Eish!... Tiro na água!
    Não é difícil discordar e criticar taxa agora estendida a outros suportes para compensar a cópia privada, tendo em conta a sua construção actual. Contudo, o texto nem se quer critica os aspectos criticáveis dessa taxa, pois confunde o que está aí em causa com a partilha de obras protegidas por direito de autor. Ficava bem se procurasse melhor saber do que escreve.
    Só para dar alguns exemplos:
    - É claro que uma ordem jurídica assenta numa ordem moral, mas podem existir direitos perfeitamente válidos e juridicamente eficazes que, para algumas ordens morais, sejam imorais. Por exemplo, em Portugal, as mulheres tem o direito de abortar livremente até às 10 semanas, mas não é difícil encontrar quem defenda uma escalas de valores segundo a qual esse direito é imoral. Que moralidade existe no direito do vendedor de tabaco em receber o seu pagamento? Provavelmente, não há nesse direito qualquer moralidade ou imoralidade que seja; provavelmente, é uma situação amoral.
    - O direito de autor português não corresponde ao copyright anglosaxónico, pois a sua concepção, fins e estrutura não são exatamente coincidente. Não tutelam exatamente os mesmo valores da mesma forma.
    - O direito de autor visa proteger o autor e incentivar a sua criação artística. Para tal, atribui-lhe um direito de monopólio sobre a exploração económica da sua obra. O conceito de obra não se confunde com o conceito de exemplar da obra (ou de cópia deste). A ideia que fundamento o direito de autor é que o autor consiga obter alguma remuneração com a exploração da obra que criou, assim se recompensando o seu esforço e a mais-valia que a sua criação que trouxe ao mundo, seja, por exemplo, através de uma exposição, da edição da obra ou da sua representação. Saber se o autor merece ou não ser remunerado pela sua obra dependeria então de despertar ou não interessa nas pessoas para que estas estejam disposta a pagar pela fruição da obra. É fácil de conceber que, se um autor não se pudesse remunerar com a sua obra, porque todas se poderiam apropriar dela e copiá-la, a criação artística seria muito menor ou talvez impossível.
    Saber se o Bruno pode dar uma cópia do poema da Ana à Carla depende da questão de saber de que forma a Ana onerou ou cedeu o seu direito de autor ao Bruno. Mas é fácil de ver que, se a Ana não se pudesse opor-se às utilizações que o Bruno faça do seu poema sem que aquela o tenha autorizado, então a Ana não conseguia qualquer remuneração pela sua obra (ou conseguiria uma remuneração diminuta) e o seu esforço não seria recompensado. Por exemplo, se alguém que tivesse comprado um livro do Saramago o pudesse copiar e dar a toda a gente que quisesse, então o Saramago não ia conseguir vender muitos livros, porque aqueles copiados seriam, muito provavelmente, mais baratos do que os que ele quer vender, uma vez que quem copia os livros não teve de fazer o investimento que o escritor fez (tendo em conta o tempo e o trabalho que o livro terá dado a escrever). E assim, provavelmente, o Saramago não poderia viver da escrita e teria de arranjar outro emprego.
    À falta de melhor construção, o direito de autor faz sentido (na minha opinião, claro!). Os livros, a música, o teatro, etc., não caem do céu! Implicam esforço e trabalho dos autores e participantes, que merece ser recompensado.
    Questão diferente é a da exploração sobre os artistas e sobre os consumidores e o lobbying sobre os decisores políticos que as grandes editoras muitas vezes fazem. E, por vezes, as associações de autores (que muitas vezes pouco representam os autores) são apenas uma marioneta no jogo dos grandes interesses.
    Bom, o texto já vai longo e o que eu queria dizer era apenas que a taxa sobre os suportes para compensar as cópias privadas pode ser muito criticável, mas é preciso que essa crítica tenha algum fundamento para poder ser levada a sério.
    Um abraço.

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  3. Samuel,

    Este texto não é sobre a taxa em si. Sobre isso já escrevi várias vezes, principalmente no tempo do PL 118.

    Sei que é possível haver leis imorais mas, quando isso acontece, devemos opô-las. o que defendo é que, sendo a extensão dos monopólios sobre a cópia à nossa vida pessoal uma violação de direitos muito mais importantes do que aqueles que pretende defender, é uma lei imoral que deve ser oposta.

    Sei também que o direito de autor continental não é igual ao copyright. A noção de direitos de autor que temos cá inclui coisas como os direitos morais com as quais concordo. Mas como a parte da qual discordo é aquela que é igual ao copyright – o monopólio sobre a cópia – e como muita da nossa legislação provém de tratados internacionais onde a noção de copyright domina, é esse o foco das minhas críticas.

    Finalmente, o copyright já não protege o autor (pelo contrário), nunca foi um incentivo adequado (a história é bem mais complexa do que isso) e, seja como for, é eticamente inadmissível. Mas isso já dá matéria para um post. Vou tentar escrevê-lo em breve, se cá voltares. Entretanto, neste blog já escrevi 305 posts sobre copyright; é provável que, se tiveres paciência, encontres lá respostas a essa tua objecção :)

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  4. Bom, se depois de cerca de três séculos de direito de autor, tiveres uma solução que melhor ajude a criação artística, sou todo ouvidos - e escrevo-o sem qualquer sarcasmo.
    Não acho que o direito de autor seja imoral. Por outro lado, se me disseres que a atuação de certas sociedades representativas de autores não é a mais correcta e a alegada protecção dos autores é por vezes usada para encobrir outros interesses, então já mais facilmente concordarei contigo.
    Quanto à comparação copyright/direito de autor, olha que, através dos referidos tratados internacionais, tem sido o sistema copyright a ser mais influenciado pela construção do direito de autor, do que o contrário, do que são exemplo a proteção de certas faculdades incluidas nos direitos morais (ou pessoas) de autor, típicos do sistema continental.

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