domingo, fevereiro 01, 2015

Treta da semana: cinco vias.

Esta semana celebrou-se o dia de São Tomás de Aquino, doutor do cristianismo medieval e tido por muitos cristãos como o expoente máximo da teologia. Conta-se que, quando a sua família o fechou num quarto com uma prostituta, «ele perseguiu-a com um tronco a arder» e, em seguida, «desenhou uma cruz na parede do quarto e ajoelhou-se em veneração. Imediatamente dois anjos da pureza apareceram e colocaram um cinto angélico à volta da sua cintura. A partir deste dia ele nunca mais sofreu um pensamento ou acção de luxúria em toda a sua vida.»(1) Era, de facto, um indivíduo excepcional.

Um dos muitos feitos de Aquino foi ter demonstrado a existência do deus da sua religião com cinco argumentos diferentes, se bem que seguindo um padrão comum. Por exemplo, tudo o que concretiza o seu potencial precisa de algo que leve esse potencial a concretizar-se. A madeira está potencialmente a arder até que lhe pegam fogo e fica realmente a arder, precisando do fogo para concretizar o seu potencial. Se cada um desses “movimentos” do potencial para o concretizado precisa de algo que o concretize e se ,por sua vez, esse algo tem de ser concretizado por outra coisa, será preciso um concretizador original. Que é Deus, pois claro. Fazendo o mesmo com as causas dá-nos Deus como a causa original, com a perfeição temos Deus como o ser mais perfeito e assim por diante (2). Como manda a tradição escolástica, e como ainda é hábito na apologética e na filosofia da religião, a argumentação de Aquino parte de premissas aparentemente triviais, apresentadas como auto-evidentes, e prossegue com um argumento sofisticado, recorrendo a conceitos complexos e terminologia obscura para chegar à conclusão desejada. A vantagem desta abordagem é tornar o argumento tão hermético que o apologista pode deflectir qualquer crítica focando as minudências da terminologia e acusando o crítico de não perceber os detalhes. Mesmo que sejam irrelevantes. Por exemplo, se alguém questionar porque é que a causa original há de ser um deus e não outra coisa qualquer, o apologista dirá que “causa” é um termo da metafísica aristotélica e que só quem leu Aristóteles em grego e mais umas dúzias de livros sobre o assunto é que pode questionar o que quer que seja. Não resolve o problema apontado mas disfarça a crítica com a ilusão de autoridade.

Um argumento complexo com premissas simples também é vantajoso quando a audiência está predisposta para aceitar a conclusão. Apesar de, logicamente, a conclusão nunca merecer mais confiança do que as premissas, psicologicamente, a ênfase num argumento elaborado que conduz a uma conclusão aprazível faz as premissas parecerem muito mais fundamentadas do que realmente são. É este efeito que torna esta argumentação tão popular entre os crentes e faz com que ainda hoje se dediquem a “provar” a existência do Gambozino. No entanto, para quem não esteja particularmente inclinado a acreditar que o tal deus existe, esta argumentação revela-se um exercício fútil de retórica e contorcionismo mental. Para admiração de muitos cristãos, os argumentos que lhes parecem constituir prova irrefutável da existência do seu deus são notoriamente ineficazes para converter seja quem for ao cristianismo.

O erro fundamental da apologética e da filosofia da religião é focar demais no argumento e descurar a explicação. Um argumento exprime um processo de inferência que interliga conceitos e proposições que concebemos na nossa mente, enquanto uma explicação pretende descrever relações entre os aspectos da realidade que queremos explicar. Isto impõe à explicação restrições adicionais que permitem distinguir mais objectivamente entre explicações melhores e piores. Por exemplo, se partirmos da premissa de que Deus existe e encarnou em Jesus podemos argumentar que o cristianismo é verdadeiro. Ou então, se assumirmos que não existem deuses, podemos argumentar que o cristianismo é falso. Estes argumentos são igualmente válidos e o mais persuasivo será apenas aquele que partir da premissa preferida. É por isso que se pode andar milénios a argumentar estas coisas sem sair da cepa torta.

Mas se optarmos por explicações em vez de argumentos o resultado é outro porque, em vez de descrevemos o que fazemos mentalmente com as premissas, tentamos descrever o que se passa na realidade e essas descrições já não são equivalentes. Uma explicação para a origem do cristianismo pode ser a de que o criador do universo encarnou em Jesus e revelou a sua mensagem aos primeiros cristãos. Outra pode ser a de que as religiões são uma expressão da propensão humana para inventar narrativas como forma de persuadir, organizar grupos e regular comportamentos. Enquanto que a primeira só se aplica ao cristianismo, deixa muitos detalhes de fora e tem de assumir proposições para as quais não há evidências, como a existência de Deus, a natureza divina de Jesus e assim por diante, a segunda abrange todas as religiões e recorre apenas a aspectos bem conhecidos do comportamento humano. Independentemente das nossas crenças pessoais, há diferenças objectivas no fundamento empírico, na arbitrariedade das premissas e na abrangência destas explicações que torna uma claramente melhor que a outra.

O argumento exprime aquele raciocínio, daquela pessoa, com aquelas premissas. Por isso, quem quer estudar a teologia de Aquino tem de ler o que Aquino escreveu. A explicação, como pretende descrever a realidade, transcende o pensamento do seu autor e tende a aperfeiçoar-se. Por isso é que ninguém estuda evolução lendo Darwin nem física pelos textos de Newton. O grande progresso dos últimos séculos deveu-se a desistir do argumento complexo pendurado de premissas arbitrárias e a exigir que as premissas sejam as melhores explicações. Foi isto que nos deu mecanismos objectivos para progredir no conhecimento em vez de andarmos às voltas com os mesmos argumentos bolorentos.

1- Taylor Marshall, traduzido por João Silveira, As minhas três histórias preferidas da vida de S. Tomás de Aquino
2- Wikipedia, Quinque viae

9 comentários:

  1. Que homem excepcional, mesmo. Até teve a coragem que perseguir uma mulher desarmada com um tronco a arder (eu queria ver se fosse um cavaleiro "pecador" armado de espada). Sim senhor! Mas que belo homem para ser celebrado!

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  2. Se calhar a prostituta era feia como o diabo. Quem pode ter uma erecção assim?

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  3. Como estamos no século XXI talvez seja melhor ver um video sobre como como as mutações degradam o genoma em vez de serem o motor da evolução...

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    1. «Como estamos no século XXI» - Como se alguma coisa tivesse melhorado para os lados do cristianismo. Pfff...

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    2. Uma coisa que é triste de ver entre os autodenominados cristãos do séc. XXI é o seu total desconhecimento das regras de base de argumentação e discussão, que é lamentável, pois no passado não era assim. Outras religiões, como o Judaísmo, o Islão, ou o Budismo, ainda preservam — e encorajam! — o debate usando regras de lógica. Uma das primeiras regras fundamentais que se aprende muito cedo é saber escolher fontes de autoridade. Quando ambas as partes não concordam com as fontes de autoridade, é preciso saber-se argumentar sem elas. Assim, um judeu pode discutir e argumentar com um budista: ambos sabem que não podem usar as respectivas fontes de autoridade, porque não são reconhecidas por ambas as partes. Argumentam, pois, apenas recorrendo à lógica. Não quer dizer que se consigam convencer mutuamente, é certo, mas no seu debate pelo menos estarão a seguir regras de lógica que ambas as partes aceitarão, e poderão, isso sim, discutir erros de lógica na argumentação.

      Os autodenominados cristãos também tinham este espírito, mas perderam-no. Sabem apenas usar fontes de autoridade não reconhecidas. O amigo Criacionista Bíblico insiste usar como fonte de autoridade sites e publicações feitas por outros Criacionistas Bíblicos, e assume que estas fontes sejam aceitáveis para não-criacionistas bíblicos. Isso é não saber argumentar.

      Se eu citasse blogs de neo-paganistas para contradizer as suas afirmações, o amigo Criacionista Bíblico aceitava os meus argumentos? Claro que não. Diria que esses blogs e sites são todos uns disparates pegados e que não são fontes credíveis para a argumentação (e teria razão!). No entanto, insiste que as suas fontes são credíveis — comete precisamente o mesmo erro.

      Tente argumentar sem recorrer a fontes de autoridade. É muito mais difícil, mas é um exercício intelectual saudável. Merecerá todo o meu respeito se o conseguir fazer, independentemente de concordar com a sua argumentação ou não. Mas se nem sequer souber argumentar sem fontes de autoridade, então os seus comentários são vazios de sentido: mostra que nem sequer sabe pensar pela sua própria cabeça, pois só sabe usar os argumentos de terceiros, cuja credibilidade não está estabelecida...

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  4. Respostas
    1. Depende da origem dos videos...

      É que se for de origem duvidosa, assim tipo, fundamentalistas religiosos, quer sejam cristão, judeus, muçulmanos, candomblé ou outras, eu sugiro que não vejam para não ferir as susceptibilidades de uns fundamentalistas que publicaram e dos outros fundamentalistas que não publicaram ainda...

      Sim, que os fundamentalistas são muito zelosos das suas crenças, e ainda aparece por aí um Charlie peregrino de má fama e depois já se sabe no que dá...

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    2. Já agora uma pergunta: quando é que está prevista uma evolução da Bíblia? É que aqueles erros científicos grosseiros ficam mesmo mal, ainda que o livro tenha 2 mil anos, é pá, começa a cheirar mal...

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  5. Bem, eu gosto de ler Darwin. É um pouco chatinho de ler, é verdade, mas a genialidade da sua argumentação, assim como a forma de argumentação contra os seus críticos há 150 anos atrás — antecipando as discussões que ainda hoje se fazem em torno das suas teorias — é simplesmente brilhante.

    No entanto, é óbvio que cientistas e autores posteriores a Darwin são capazes de explicar melhor como funciona (e como não funciona!) a evolução, especialmente para diferentes audiências.

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