domingo, abril 12, 2015

Treta da semana (atrasada): a epidemia.

No blog católico “Senza Pagare”, João Silveira pede que «Rezemos para que o Sínodo sobre a Família ajude a acabar com esta epidemia e a manter as famílias unidas.» A epidemia é o divórcio, que Silveira diz ser «Um drama a nível global». Para dar uma ideia da magnitude do problema, Silveira mostra esta imagem do Business Insider:



e aponta que a taxa de divórcio é muito mais alta na Europa. Por exemplo, «Na Bélgica ultrapassa os 70%, enquanto no Chile é apenas de 3%.»(1)

Penso que esta imagem revela algo realmente dramático mas nem se trata de uma epidemia nem o drama é o que Silveira julga ser. O divórcio não é uma infecção. Não dá às pessoas como quem acorda com gripe. É uma decisão desagradável mas, na generalidade dos casos, é a opção consensual do casal e, por muito mau que seja, é o mal menor. O drama é outro.

Silveira contrasta a Bélgica com o Chile, que são diferentes em muitas coisas além do divórcio. Por exemplo, a Bélgica gasta cerca de 4700 dólares por ano por pessoa em cuidados de saúde. O Chile gasta apenas 1000 (2). Uma análise como a do João Silveira poderia sugerir que é preciso combater a epidemia que assola a Bélgica e força os belgas, enfermos, a gastar tanto em cuidados de saúde e concluir que os chilenos estarão muito melhor, tão fortes e saudáveis que lhes basta um quinto do investimento para resolver os seus problemas. Mas não é bem assim. No Chile a mortalidade infantil é o dobro (3) e a esperança média de vida três anos menor do que na Bélgica (4). Como não deve surpreender ninguém, um país gastar menos dinheiro em saúde não quer dizer que tenha uma população mais saudável.

No divórcio passa-se algo análogo porque o divórcio não é o mal. É a cura. É uma cura drástica, como arrancar um dente ou tirar o apêndice, mas à qual se recorre quando a alternativa é pior. Isto, obviamente, quando é possível. Para tirar o apêndice é preciso haver hospitais e para se divorciar é preciso que a lei e a sociedade o permitam. No caso do Chile, a baixa taxa de divórcio parece dever-se, principalmente, ao divórcio ter sido ilegal até 2004 e à prevalência de pressões sociais relacionadas com discriminação sexual. No Chile 62% da população é contra a igualdade de direitos entre os sexos e uma em cada três mulheres relata ter sido vítima de violência doméstica (5).

As estatísticas do divórcio sugerem uma situação dramática. Mas o drama é dos milhões de pessoas que são forçadas – pela lei, pela sociedade ou por gente como o João Silveira – a viver com quem não querem e a sofrer por isso.

1- João Silveira, Divórcio: Um drama a nível global
2- The World Bank, Health expenditure per capita (current US$)
3- Wikipedia, List of countries by infant mortality rate
4- Wikipedia, List of countries by life expectancy 5- Wikipedia, Women in Chile

domingo, abril 05, 2015

Treta da semana (atrasada): igualdade de efeitos.

No seu discurso de aceitação do Oscar, Patricia Arquette proclamou que «Está na altura de ter igualdade nos salários de uma vez por todas, e iguais direitos para as mulheres nos Estados Unidos da América» (1). Vou assumir que não quer direitos iguais apenas para as mulheres dos EUA e generalizar. Direitos iguais para todos. Com isso concordo. Mas preocupa-me a ideia de que quererem forçar o salário médio a ser igual. Ou qualquer média. Porque a ideia devia ser dar direitos aos indivíduos e deixá-los decidir a média e não o contrário.

Parte do problema está no salário resultar de uma transacção voluntária, o que não permite uma decisão fácil acerca do que é justo ou injusto. As actrizes como a Patricia Arquette ganham, em média, muito mais por hora de trabalho do que o pessoal que constrói os cenários ou carrega com as câmaras porque ninguém paga bilhete por a câmara ter sido operada pelo Zé ou pela Maria. Mulheres muito bonitas podem ganhar fortunas só por sorrir nas fotografias enquanto outras podem passar anos a estudar medicina e salvar vidas num hospital ganhando muito menos. No boxe profissional os homens ganham, em média, muito mais do que as mulheres, mas na moda é o contrário. Nenhuma destas diferenças médias é inquestionavelmente justa ou injusta. São apenas um efeito do conjunto de escolhas individuais de quem compra os produtos ou serviços e os casos de discriminação injusta, que têm de ser combatidos, nada têm que ver com estes efeitos médios. O que me preocupa nestas reivindicações como a da Patricia Arquette é a tentação de subordinar as escolhas individuais a uma ideia arbitrária do que a média deveria ser. Mas vou ilustrar este problema com outra diferença média entre os sexos no local de trabalho, uma diferença bem maior e mais séria do que a dos salários.

Em 2012 morreram em Portugal 175 pessoas em acidentes de trabalho. Morreram 168 homens e 7 mulheres. Se a diferença de salário fosse tão grande como esta, por cada euro que um homem ganhasse uma mulher ganharia, em média, quatro cêntimos. Realmente, há uma diferença de salários entre os sexos em Portugal, mas é de um euro para 82 cêntimos e não para quatro (3). Mas, apesar de ser uma diferença muito mais acentuada do que a do salário, é mais fácil perceber nesta o erro de nos preocuparmos mais com a média do que com os indivíduos. Por exemplo, não aceitaríamos que se impusesse quotas nas minas e na construção civil de forma a obrigar os empregadores a contratar mais mulheres para ocupações perigosas e equilibrar a disparidade de mortes por acidentes no trabalho. Em primeiro lugar, porque grande parte da diferença resulta de diferentes escolhas individuais. A percentagem de pessoas que prefere trabalhar numa mina do que na caixa do supermercado parece ser maior entre homens do que entre mulheres. Em segundo lugar, porque são ocupações onde se justifica discriminar de acordo com atributos como a força física, que tendem a correlacionar-se com o sexo. Mas, principalmente, porque impor quotas para equilibrar uma média exige discriminar indivíduos em função dessa média em vez de os discriminar apenas em função dos seus atributos individuais, e é precisamente essa discriminação que temos de combater.

Acontece o mesmo com os salários. Não podemos admitir que um trabalhador seja discriminado injustificadamente e, por isso, tenha um salário menor. Mas nem toda a discriminação é injustificada nem é a média que importa. Por exemplo, é discriminatório pagar mais a uma mulher para modelar roupa do que se paga a um homem, mas esta discriminação é justificada pelo maior volume de vendas da roupa feminina e não viola qualquer princípio de igualdade de direitos. Cada um está a ser avaliado e remunerado pelo seu papel e pelos seus atributos. Diferente seria se pagassem menos a um homem que cuida de crianças só porque, em média, os homens têm menos jeito para cuidar de crianças. Essa discriminação seria injusta por discriminar indivíduos com base em atributos médios que lhes são alheios. É nesses casos concretos que se justifica exigir igualdade de direitos. De resto, a igualdade de direitos nem pode exigir que todos sejam tratados da mesma forma – que a Patricia Arquette ganhe o mesmo que o Nuno Melo (4), por exemplo – nem que todos escolham fazer os mesmos trabalhos. A igualdade de direitos no trabalho apenas exige que cada um seja julgado pelo seu desempenho.

É por isto que é errado e preocupante que queiram corrigir estas diferenças médias. Errado porque o que se tem de combater são os casos individuais de discriminação injusta. Só esses. A média ser maior para um sexo ou outro conforme as profissões, escolhas e aptidões dos indivíduos nem é indício de desigualdades nos direitos nem é algo que de errado em si porque a igualdade de direitos inclui o direito de ser diferente, tanto individualmente como na média. E é preocupante porque a única forma de forçar estas médias, para além da correcção de injustiças individuais, é com medidas inevitavelmente discriminatórias e injustas, como quotas, por exemplo. No fundo, ou se exige igualdade de direitos e se aceita que as pessoas usem os direitos como entenderem ou se exige igualdade de efeitos e tem de se retirar às pessoas o direito à diferença.

1- Washington Post, Patricia Arquette calls for wage, gender equality in show-stealing Oscar speech
2- INE, Acidentes de trabalho mortais
3- Público (um pouco desactualizado, mas foi o que encontrei), Rendimento médio líquido dos assalariados portugueses ficou quase estagnado no final de 2007
4- Um excelente actor português, com uma enorme capacidade para se emocionar: YouTube.

quarta-feira, abril 01, 2015

Estou convencido.

Há anos que eu defendo que há um conflito fundamental entre ciência e religião. Sempre me pareceram actividades incompatíveis. Mas, hoje, o Miguel Panão convenceu-me de que, afinal, ele é que tem razão. Não há conflito nenhum.

O meu primeiro erro tem sido pensar que “religião” referia o conjunto de ideias que os religiosos do mundo inteiro têm como religião, conjunto no qual abundam crenças contrárias àquilo que a ciência moderna afirma. No entanto, parece que o significado verdadeiro do termo “religião”, afinal, restringe-se à variante do catolicismo que o Miguel Panão defende, especialmente concebida para não afirmar nada que se possa averiguar se é ou não é verdade.

Eu também julgava que a religião seria incompatível com a ciência por se fundamentar em argumentos de autoridade, algo que a ciência rejeita liminarmente. A crença numa proposição por ser afirmada num livro sagrado, ou por um profeta ou sacerdote, é o contrário do espírito de crítica e verificação independente que a ciência exige. Mas, neste seu último post, o Miguel Panão apresenta um argumento muito persuasivo. Acerca da tese do conflito, o Miguel afirma que «não vale a pena insistir num modelo que não só não tem futuro, como nunca teve passado», e justifica cabalmente esta afirmação citando «o seguinte comentário de um historiador de ciência: “The common belief that … the actual relations between religion and science over the last few centuries have been marked by deep and enduring hostility ….is not only historically inaccurate, but actually a caricature...”». A ciência tem mérito em muitas coisas mas é impotente perante o poder persuasivo de justificar uma afirmação citando um comentador anónimo que afirma o mesmo.

Também me apercebi que, até agora, não tinha conseguido apreciar o progresso que a tal “religião” nos deu. Em 1586, Domenico Fontana, sob direcção do Papa Sisto V, colocou no centro da praça de São Pedro o obelisco egípcio que ainda hoje lá se encontra. Nessa altura, o obelisco estava a umas centenas de metros dali e o transporte e colocação daquela pedra com 25m de altura e trezentas toneladas de peso foi um feito notável para a época. Foi uma cuidadosa operação de cinco meses envolvendo novecentos trabalhadores e 72 cavalos, um grande triunfo da engenharia inspirada e fomentada pela religião do Miguel. Até recentemente, sempre me parecera que o obelisco ter sido erguido originalmente pelos egípcios dois milénios antes de Cristo e ter sido trazido do Egipto pelos engenheiros romanos mil e quinhentos anos antes da grande façanha de Fontana seria evidência de que aqueles séculos de cristianismo não tinham feito grande coisa pelo progresso científico e tecnológico. Mas isto é ver mal as coisas. Se bem que o domínio do cristianismo se caracterize pela estagnação ao nível material, houve grandes progressos em temas importantes. Tais como Deus ser um só mas três ao mesmo tempo, ou como conciliar a hipótese de um ser invisível saber tudo o que vai acontecer com a hipótese de termos vontade livre. Foi um trabalho importante sem o qual, hoje, a teologia e a filosofia da religião não seriam profissões viáveis. Graças à escolástica medieval, temos agora um respeitável corpus bibliográfico de especulações vazias que permite ao teólogo distinguir-se de um perito em mafaguinhos.

Hoje posso concordar com o Miguel e aceitar que o método da ciência é compatível com a atitude de ter fé em hipóteses que não se testou ou que nem se pode testar. Ou que adoptar dogmas pela autoridade de fontes alegadamente infalíveis é compatível com a atitude céptica de quem procura as melhores explicações. Afinal, hoje os investigadores no CERN descobriram que a Força existe mesmo (3) e há indícios sólidos de que os dragões podem voltar (4). Por isso hoje a ciência pode ser compatível com a religião do Miguel. E com a astrologia, o tarot da Maya e as vidências do Professor Karamba. Mas amanhã... bem, amanhã logo se vê.

1- Miguel Panão, O Mito do Conflito entre Fé e Ciência
2- Pruned, Moving the vatican obelisk
3- CERN, CERN researchers confirm existence of the Force
4- Nature News, Zoology: Here be dragons