quinta-feira, setembro 10, 2015

O Livre e o preço do livro.

A versão anterior do programa preliminar do Livre propunha, na alínea 12.19.f, «Melhorar a regulação da edição e do livro» pela «a revisão da Lei do Preço Fixo no objeto do livro de forma a combater descontos abusivos que minam a competitividade e sustentabilidade do meio editorial», e isto em nome da «promoção da leitura». Eu propus uma alteração radical desta alínea para que, em vez de servir os interesses comerciais duma minoria de editores, passasse a defender a cultura e os direitos dos cidadãos:

«...fiscalizar o recurso a medidas tecnológicas de protecção (DRM) em obras no domínio público, cujo acesso não devia ser restringido; incentivar o uso de obras em domínio público no ensino; promover a publicação em acesso aberto e em formatos abertos [...]; apoiar a digitalização e disponibilização gratuita do património literário arquivado em museus e bibliotecas; promover o recurso a, e a criação de, materiais de apoio ao ensino disponibilizados sem restrições de cópia, utilização ou transformação [...]; reduzir os impedimentos legais à adaptação, citação e uso de obras literárias no ensino; e legalizar a partilha e transformação, sem fins lucrativos ...»(1)

Tinha consciência do carácter revolucionário desta minha proposta. Muitas pessoas pensam que devemos equilibrar os interesses dos “produtores” e dos “consumidores” de cultura esquecendo-se de que esta divisão nem faz sentido. Na cultura somos todos participantes e as ideias não se consomem. O equilíbrio que aqui procuram é entre, por um lado, o lucro de uma actividade comercial e, por outro, os direitos pessoais de expressão, educação e acesso à informação. É como defender um equilíbrio entre o preço do algodão e os direitos dos escravos. Não há nada aqui a equilibrar. Primeiro, deve-se garantir os direitos das pessoas. Depois, e só dentro da margem que isso permita, é que se pode regular o comércio de forma a beneficiar mais estes ou aqueles. Infelizmente, a retórica do equilíbrio de interesses faz com que se trate o comércio ao mesmo nível, ou mesmo a um nível superior, do dos direitos pessoais. Os livros escolares são um de muitos exemplos deste problema, com o direito à educação posto em causa para garantir rendas a quem vende estes livros.

Segundo a resposta do grupo coordenador do programa do Livre, esta minha proposta «não foi contemplada uma vez que alterava fundamentalmente a intenção expressa nesta alínea». Admito que a alterava fundamentalmente, porque era mesmo essa a ideia, e lamento que por isso não tenha sido contemplada. Ainda assim, a redacção da nova versão do programa omite a referência ao combate aos descontos (2), o que já é algum progresso. No entanto, persiste o problema fundamental que devia ter sido corrigido. Esta alínea revela claramente uma instrumentalização do programa do Livre ao serviço de interesses de uma minoria de editores. É falsa a premissa de que «A promoção da leitura pressupõe a existência de um setor livreiro pujante, capaz de garantir a qualidade da edição e a diversidade da oferta». A promoção da leitura exige, sobretudo, acesso fácil aos livros. Isto consegue-se mais recorrendo à possibilidade de os distribuir gratuitamente do que pela regulação dos preços, ainda por cima num sector já completamente regulado por monopólios sobre a cópia. Há algumas boas ideias nesta alínea, como «novos programas de intercâmbio literário e editorial entre os países de língua oficial portuguesa e a criação da Feira Internacional do Livro de Lisboa ou do Porto», mas estas não têm nada que ver com a Lei do Preço Fixo nem exigem iniciativas parlamentares.

Estou parcialmente satisfeito com o resultado deste processo. A minha proposta de eliminar o financiamento das touradas ficou abrangida pela alínea 13.17.e da nova versão, «Eliminar os subsídios a espetáculos que promovam maus-tratos aos animais» e, se bem que as restantes tenham sido rejeitadas em grande parte, parece-me que contribuíram para um pequeno desvio na direcção certa. Como isto é um trabalho em curso – e sê-lo-á sempre – o resultado é encorajador e tenciono continuar a pressionar. Mas escrevo este post, principalmente, para deixar dois apelos.

O primeiro é dirigido aos apoiantes, membros e subscritores do Livre. É possível ainda enviar pedidos de alteração até às 20:00 do dia 11 (amanhã), mas têm de ser apoiados, pelo menos, por cinco subscritores. Para evitar que a proposta seja rejeitada por “alterar fundamentalmente a intenção expressa nesta alínea”, queria propor simplesmente eliminar a alínea 13.19.f, «Melhorar a regulação da edição e do livro.» Se houver subscritores do Livre interessados em apoiar esta proposta, por favor contactem-me; quantos mais melhor, presumo.

O segundo é dirigido a toda a gente. Eu apoio o Livre, sobretudo, porque é o único partido cujas listas são decididas por eleições abertas e não pela direcção à porta fechada. É uma prática importante sem a qual vamos continuar com a política corrupta de favores e interesses que temos tido nas últimas décadas. Mas não estou comprometido com nenhum partido. Participar na democracia não se restringe a votar ou militar. Todos podemos participar tentando influenciar as ideologias, os programas e as decisões dos nossos representantes. Podemos, e devemos. Por isso, apelo a todos que não desistam nem se demitam desta responsabilidade. Leiam as propostas, apontem defeitos concretos, sugiram melhorias e pressionem alterações. Durante a campanha os candidatos andam mais atentos à opinião pública e é a altura ideal para lhes dizermos o que queremos que façam e o que lhes faremos se não nos ouvirem.

1- Se alguém tiver interesse, estão aqui as propostas todas que submeti durante a primeira revisão: Propostas_LK.pdf
2- O programa do Livre Tempo de Avançar está disponível na página do Formulário de proposta de emenda e aditamentos (segunda fase). Esta alínea agora é a 13.19.f.

domingo, setembro 06, 2015

Treta da semana (passada): a ciência segundo Braga.

Orlando Braga dedicou três posts a mim e à ideia que Braga tem daquilo que é ciência. Entre os três, aproveita-se algumas frases que, apesar de erradas, erram de forma interessante. No primeiro post, Braga afirma que «a ciência não explica: em vez disso, descreve» (1). É uma afirmação curiosa porque uma explicação também descreve e o que a ciência faz é precisamente procurar as melhores explicações que, por o serem, são também a melhor forma de descrever a realidade. Consideremos, por exemplo, estas duas afirmações:

A: Todos os pedaços de cobre que existem neste universo conduzem electricidade.
B: Os pedaços de cobre conduzem electricidade porque, no cobre, os electrões deslocam-se facilmente quando sujeitos a um campo eléctrico.

Ambas descrevem aspectos da realidade e dizem a mesma coisa acerca dos pedaços de cobre existentes. No entanto, B é uma explicação melhor. Por um lado, porque integra numa narrativa consistente aspectos adicionais como os electrões e o campo eléctrico e, por outro lado, porque conjectura um mecanismo causal que nos informa acerca de situações hipotéticas ou contrafactuais. Por exemplo, que o meu nariz conduziria electricidade se fosse feito de cobre. A afirmação A não diz nada acerca disto porque se refere apenas ao que já é realmente de cobre e isso não inclui o meu nariz. Ao contrário do que Braga propõe, em ciência procura-se as descrições que sejam as melhores explicações e a ciência é a forma mais fiável de as encontrar.

No segundo post desta série, Braga defende que «A filosofia será sempre necessária para controlar a ciência» porque «existem relações dedutíveis (a lógica) entre teorias e leis empíricas» e «existem numerosas leis empíricas que são “relativamente estáveis e aproximadamente precisas”». Consigo perceber as premissas mas não percebo como a filosofia vai “controlar a ciência” nem o que isso tem que ver com o resto. Assim, foco antes a parte em que me acusa de algo que nunca defendi: «A ciência é feita por homens — e não por semi-deuses, como implicitamente pretende o Ludwig Krippahl. O cientista não está acima da condição humana, por mais que o Ludwig Krippahl pretenda que esteja.»

A ciência é feita por humanos que, mais do que falíveis, não evoluíram para resolver estes problemas. Nós somos dotados de sentidos muito apurados para coisas como detectar animais perigosos, encontrar frutos maduros, evitar venenos e escolher parceiros sexuais. Mas para saber de que é feita a matéria, a que distância está a Lua ou como surgiu a vida na Terra as nossas capacidades naturais são inadequadas. Só após dezenas de milhares de anos de construções simbólicas artificiais – linguagem, escrita, álgebra, lógica – e de inovações tecnológicas é que, nos últimos dois ou três séculos, finalmente começámos a responder a este tipo de perguntas com um mínimo de fiabilidade. E, mesmo assim, só graças ao método que desenrascámos, a que chamamos ciência, mitigar as falhas nas nossas capacidades naturais. A falibilidade não é uma característica da ciência. É uma característica humana. A teologia é falível, a fé é falível, a tradição, a intuição e tudo o que fazemos é falível porque nós somos falíveis. Muito falíveis. O que a ciência tem que essas outras não têm é reconhecer a nossa falibilidade e compensá-la evitando o subjectivo sempre que possível. Em vez de ver cores medimos comprimentos de onda. Em vez de cheirar medimos concentrações. Em vez de desenhar ou recordar fotografamos. E em vez de dar palpites testamos e fazemos contas. Continua a ser falível mas é muito menos falível do que qualquer alternativa.

Finalmente, Braga conclui que «a ciência é uma crença, embora de grau superior; mas não deixa de ser crença.» Não sei o que é uma crença de grau superior mas o termo “crença” tem dois sentidos. No sentido mais trivial, de mera aceitação de algo como verdadeiro, praticamente tudo o que fazemos envolve crenças. Até quando andamos de bicicleta acreditamos que andamos de bicicleta. Mas a crença no sentido usual de confiança na verdade de uma proposição não tem nada que ver com ciência. Primeiro, porque a ciência é o método de explorar e seleccionar proposições e não as proposições em si, acredite-se nelas ou não. E, em segundo lugar, porque o que é preciso para fazer e usar ciência é compreender. Acreditar ou não acreditar tanto faz porque o resultado é o mesmo. Não é preciso pensamento positivo para andar de elevador nem adianta ter fé para resolver equações.

Braga julga que «a ciência assume à partida que é possível resolver problemas e descobrir a verdade». Nem por isso. A ciência não precisa de assumir nada à partida porque a ciência não é um dogma, nem um argumento dedutivo nem uma demonstração matemática. A ciência é o resultado de centenas de milhões de pessoas, ao longo de dezenas de milhares de anos, terem tentado resolver milhões de problemas da melhor forma que conseguiram. Com o acumular de resultados, técnicas, conceitos e outros truques foi-se aperfeiçoando este método. Talvez nunca se possa descobrir a verdade. Talvez haja problemas que não se consegue resolver. Ou talvez não. Seja como for, até agora tem compensado tentar resolver e descobrir e, até agora, esta abordagem a que chamamos ciência demonstrou funcionar muito melhor do que qualquer outra. Para quem acredita em seres omniscientes, milagres, verdades reveladas e histórias da carochinha este “talvez” pode parecer pouco. Mas é o melhor que temos e, para quem é realista, as incertezas da ciência têm muito mais valor do que a forte convicção num disparate qualquer.

1- Orlando Braga, Ludwig Krippahl, a ciência e a moral, Parte 1, Parte 2 e Parte 3.