quarta-feira, fevereiro 22, 2017

Treta da semana (atrasada): a vitória.

Em 1998 referendou-se a despenalização do aborto em Portugal. Tendo ganho o “não”, marcou-se a desforra para 2007 e, desde então, já não foi preciso referendar de novo. O Expresso celebra a vitória do “sim” com um vídeo que ilustra como o aproveitamento político do aborto tem impedido a ponderação racional do problema e a sua resolução. Aos 45 segundos, a jornalista Carolina Reis afirma que a lei ficou «sem criminalizar a mulher que aborta»(1). O que é falso porque o aborto continua a ser crime a partir das 11 semanas e, a julgar pelas mulheres hospitalizadas por complicações devidas a abortos ilegais, o número, se bem que menor do que era antes, ainda é significativo (2), com cerca de três mil mulheres* a praticar um crime pelo qual não são punidas. É evidência clara de que prender mulheres nunca foi uma solução prática para o aborto, mas revela ser falsa a ideia de que se resolveu o problema da criminalização.

O vídeo também mostra a redução no número de abortos, que é verdade mas engana. O gráfico abaixo mostra os nados vivos a azul e os abortos a verde, em proporção aos valores respectivos de 2007 (dados da PORDATA). Se bem que o número de abortos tenha diminuído, em proporção aos nados vivos (pontilhado) manteve-se constante porque a redução no número de abortos apenas acompanhou a redução na taxa de gravidez e o envelhecimento da população (a cinzento). Isto não surpreende porque, apesar do combate aos factores que levavam as mulheres a abortar ter sido uma das razões invocadas para se despenalizar o aborto, a única medida que se tomou foi subsidiar o aborto. Qualquer proposta para tentar persuadir as mulheres a não abortar foi sempre rejeitada por razões ideológicas e nada se fez para diminuir o recurso ao aborto**.



O vídeo apregoa também uma vitória para a saúde pública com a eliminação das mortes devidas ao aborto, que passaram de uma média estimada de 2 por ano antes da despenalização para apenas uma morte, ao todo, desde a despenalização. É outra verdade enganadora, principalmente no título que proclama «nenhuma mortalidade materna». O aborto a pedido da mulher custa ao Estado cerca de 4 milhões de euros por ano em intervenções sem justificação médica. É provável que haja problemas de saúde nos quais se salve mais do que uma vida por cada dois milhões de euros. Por exemplo, há 1200 suicídios por ano mas muitas linhas de apoio ao suicídio são operadas por associações de voluntários. Outro problema é a mortalidade entre as mulheres grávidas, que tinha diminuído desde 1960 mas, nos últimos 10 anos, parece estar a aumentar. A tendência não é estatisticamente significativa, porque os números são pequenos – cerca de 6 mortes por ano – e variam muito de ano para ano. Além disso, mesmo que haja uma correlação, isso por si só não demonstra uma relação causal com a alocação ao aborto de recursos que podiam ser usados para ajudar as grávidas. Mas o facto é que, neste momento, morrem três vezes mais mulheres por complicações com a gravidez, em cada ano, do que morriam por causa do aborto clandestino antes da despenalização. Em vez de se apregoar cegamente que gastar quatro milhões de euros por ano em abortos é uma vitória para a saúde pública, justificava-se uma análise mais crítica desta aplicação dos recursos limitados do SNS.

Esta abordagem ideológica é também cega aos problemas éticos do aborto. Mesmo desqualificando como pessoa o feto de 10 semanas, quinze mil abortos por ano é um número suficientemente grande para justificar cautela. Se o Estado subsidiasse o abate de quinze mil animais de estimação por ano a pedido dos donos que já não quisessem os bichos em casa, não seria preciso classificar os cães de pessoas para protestar contra a injustiça de tal medida. A exigência de uma idade mínima para a vida humana merecer protecção também é inconsistente. Por exemplo, se proibimos que se faça a um feto de 20 semanas experiências que possam causar danos permanentes, nunca autorizaríamos que as fizessem a um feto de 10 semanas. Precisamente porque, sendo permanente, não se resolve o problema antecipando o dano. No entanto, a morte é tida como uma estranha excepção a esta regra perfeitamente razoável.

Além do problema do feto, há também o problema da mulher. Segundo dados da DGS (3), metade das mulheres que abortam não coabitam com o companheiro e 40% não têm rendimentos. Dizer que o aborto é “por opção da mulher” parece tão adequado quanto dizer que quem recolhe o lixo o faz por opção profissional. Mesmo quem considera que abortar é um direito que a mulher pode exercer só porque lhe apetece – e, quando vamos aos detalhes, parece raro haver quem defenda isso – devia perceber que um direito deixa de ser uma coisa boa quando se é forçado a exercê-lo. Mas nada se faz para resolver este problema. Que também não se está a resolver sozinho, como mostra a proporção entre abortos e nascimentos.

O legado mais significativo do referendo não foi a descriminalização do aborto, que continua a ser crime. Nem a redução do recurso ao aborto, que se mantém na mesma. Nem sequer a redução na mortalidade feminina, que provavelmente beneficiaria mais de uma aplicação melhor dos recursos que se dedica ao aborto. O que nasceu, ou foi abortado, do referendo foi simplesmente um aproveitamento político desta ideia do direito de abortar como desculpa para ignorar todos os problemas associados ao aborto. Problemas de saúde, problemas das mulheres e o problema dos abortados. No ano passado, em muitos casos por força das circunstâncias, 7500 mulheres mataram as filhas que traziam no ventre. Mesmo que não se conte os outros 7500 por serem do sexo masculino, parece pouco feminista aplaudir isto como uma vitória dos direitos das mulheres.

* As complicações pelo aborto clandestino são cerca de um quinto do que eram antes da alteração à lei. Em parte isto pode dever-se ao recurso mais comum ao aborto químico, que é mais seguro, pelo que o número de abortos ilegais pode ser maior do que um quinto dos abortos legais, mas é uma estimativa aproximada.
** 95% das mulheres que abortam aceitam usar contraceptivos. No entanto, 30% das mulheres que abortam já abortaram pelo menos uma vez antes e isto só é legal há 10 anos, pelo que a eficácia da prevenção não parece ser grande.

1- Expresso, Há menos abortos, menos reincidência e nenhuma mortalidade materna: 10 anos de IVG
2- Público, Aborto clandestino ainda existe e é feito sobretudo com medicamentos
3- DGS, Relatório dos registos das interrupções da gravidez, 2014 (pdf)

7 comentários:

  1. A IVG não se trata duma conquista civilizacional ou conquista de direitos das mulheres, mas antes, ao contrário é a cedência à irracionalidade. Que arbitrariedade é essa de ser legal até às 10 semanas? O que é isso? E se for menos 1 semana? Qual é a lógica disto? Liberdade para a mulher? Uma ova! É o recurso ao mais fácil e o culto da irresponsabilidade.
    Francisco Correia




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  2. «Qual é a lógica disto?»

    Suspeito que seja meramente pragmática.

    Menos semanas e seria difícil determinar a gravidez e concluir o processo a tempo.

    Mais semanas e seria difícil obter um referendo favorável logo à segunda, sendo preciso ir repetindo o processo várias vezes até mais gente desistir de votar.

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  3. Devemos admitir que a perspetiva do Ludwig sobre o aborto é muito relevante. É importante ter em conta que feto é, semn qualquer margem para dúvida, um ser humano em formação.

    Quem não respeita a vida de um ser humano não pode, em rigor, exigir que respeitem a sua própria vida.

    Ninguém pode exigir mais respeito pelos seus direitos do que o respeito que mostra para com os direitos dos outros.

    A sexualidade deve ser vivida numa liberdade responsável.

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  4. Estou em grande parte de acordo com o artigo.

    Parece-me que os que debatem sobre o aborto nem sempre se apoiam em bases correctas.

    Para começar ninguém defende o aborto em si, ninguém pensa que é uma boa coisa, todos estamos de acordo que o aborto é um mal, uma decisão que nenhuma mulher toma de animo leve.

    Estando isto esclarecido, o debate é entre aqueles que qualificam o aborto de mal absoluto e aqueles que o qualificam de mal relativo, ou seja admitem que, em certas circunstâncias, é um mal menor. Tudo o resto parecem ser detalhes de somenos importância.

    É interessante observar as consequências da despenalização do aborto em todas as suas vertentes e não só na saúde das mulheres, mas ainda é muito cedo para se poder medir com eficácia essas consequências.

    Dever-se-ia por exemplo observar a evolução dos maus tratos a crianças: havendo menos crianças “não desejadas" poderia pensar-se que a despenalização do aborto levaria a uma diminuição dos maus tratos.

    A mais longo prazo ainda, lembro por exemplo que nos Estados Unidos se verificou uma significativa diminuição da criminalidade entre 18 e 20 anos depois da legalização do aborto, em todos os estados em que essa legalização aconteceu, mas não nos outros estados.

    O que não cabe na discussão são gritos histéricos sobre o assassínio de criancinhas.

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  5. Acho que é o primeiro post com o qual concordo em quase toda a linha.

    Boa análise e bons argumentos.

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