quinta-feira, junho 15, 2017

Treta da semana (atrasada): cortar no osso.

No seu blog sobre o diálogo entre fé e ciência, Miguel Panão escreveu há tempos que «Não há nada mais complicado e infrutífero do que meter tudo no saco de explicações da nossa zona de conforto» (1). Concordo. Como Sócrates terá dito a Fedro, para compreender a realidade temos de a desmanchar pelas articulações, distinguindo o que é diferente e agrupando o que é análogo. Mas é precisamente nisto que Panão revela dificuldades.

Noutro post, Panão alega que, tal como a ciência, «toda a fé assenta numa experiência sensível». Em particular, «a experiência de Deus». E pergunta «De que modo pode uma pessoa que não tem fé encontrar o valor de uma experiência de fé?» (2). Mas a experiência científica não é uma sensação privada como Panão refere em «experiência de Deus». A experiência científica é pública, partilhável, de resultados que podem ser confirmados por terceiros e que, por isso, servem para encontrar consenso acerca das melhores explicações. São dois sentidos opostos de “experiência” que Panão enfia no mesmo saco. E depois tenta separar o que é análogo. Ter fé é empenhar-se pessoalmente numa crença, coisa que os ateus também fazem. Eu acredito que a liberdade individual tem valor e acredito que amanhã não vai chover. Mas enquanto esta última crença é descartável – se chover mudo logo de opinião – a primeira, para mim, é essencial na ética e na decência humana. Eu não me limito a acreditar no valor da liberdade. Eu quero acreditar no valor da liberdade. Eu até considero ser um defeito de carácter não acreditar nesse valor. Ou seja, eu tenho fé no valor da liberdade. Portanto, quando Panão tenta separar o religioso com fé e o ateu sem fé, está a cortar no sítio errado. Ambos temos fé e ambos percebemos a importância de ter fé. O que nos distingue é o tipo de crenças em que temos fé. Ter fé no valor da liberdade faz sentido porque os valores são algo que podemos escolher. Vale a pena querer crer neles. Mas é absurdo ter fé em factos porque os factos não dependem da nossa vontade. Não vai existir água em Marte só por eu querer acreditar. Ou unicórnios, ou o deus de Panão. Nessas coisas não faz sentido ter fé.

Outra confusão de Panão é com os «níveis de compreensão da realidade»(1), dos quais diz haver vários e compatíveis entre si. Exemplifica: «Posso acender uma vela e a explicação do senso comum é a de que não há luz elétrica e eu preciso de ver; a explicação científica envolve a combustão do pavio que liquidifica a cera [e] a explicação religiosa é a de que a luz da vela representa um sinal visível da luz de Deus no meio da escuridão.» É verdade que podemos descrever estes acontecimentos focando diferentes aspectos como o comportamento de quem acende a vela, a combustão, os movimentos das moléculas e assim por diante. Mas a compreensão está no encaixe destas descrições para formar uma imagem mental coerente e consistente daquilo que está a acontecer. Não a podemos separar em níveis diferentes. O que devemos separar é o que não encaixa no resto. Por exemplo, aquela coisa da vela simbolizar Deus, que não contribui nada para se compreender o que quer que seja. O que Panão diz ser outro nível da compreensão é simplesmente um vestígio de hipóteses descartadas por não encaixarem em lado nenhum.

Finalmente, Panão cola o cristianismo ao ateísmo assumindo que ambos são caminhos que escolhemos, distinguindo-se apenas por serem caminhos diferentes: «O facto de seguirmos um caminho e procurarmos compreender as coisas à luz desse caminho [...] não é diferente do ateu porque também ele escolheu o ateísmo e procura compreender as coisas sem ser à luz de Deus.»(3) É outro corte mal feito. Ao contrário de Panão, eu não procuro compreender as coisas “à luz de um caminho” que tenha escolhido inicialmente. O que acontece é que, para formar uma imagem consistente da realidade, tenho de seleccionar as explicações que encaixem umas nas outras. E o que não encaixa vai fora. Os dragões, as fadas, a eficácia do tarot, os muitos deuses – incluindo o de Panão – e tudo o resto que não contribui para a compreensão de coisa nenhuma. Nisto somos diferentes porque enquanto Panão escolhe o seu caminho eu vou descobrindo o meu. Prefiro ver primeiro onde há silvas em vez avançar por onde calhe e seja o que Deus quiser. É nesta diferença de atitude que Panão devia ter cortado. Em vez disso, tenta separar-nos na compreensão, que é o que temos em comum. Não é verdade que Panão compreenda as coisas “à luz de um caminho” diferente do meu. Tudo aquilo que Panão compreende, no sentido concreto de ser capaz de explicar, Panão compreende da mesma forma que eu. Com as mesmas explicações, encaixadas da mesma maneira e obtidas pelo mesmo processo. É assim que ele compreende como funciona um computador, como se põe um satélite em órbita, o que é uma célula, a combustão da cera da vela e tudo o resto que conseguimos compreender. O deus só serve para aquilo que Panão não consegue compreender nem explicar. Aquilo que Panão diz ser “inexplicável”(4), na esperança de que ninguém consiga explicar porque, como tem sempre acontecido, quando se explica nota-se que não tem nada que ver com Deus. Ao fim de milhares de anos disto, já era altura de perceber que o caminho não é por aí.

Panão tem razão em não querer «meter tudo no saco de explicações da nossa zona de conforto». Compreender exige encontrar as explicações certas, aquelas que separam o diferente, agrupam o semelhante e cortam a realidade pelas articulações. Mas isso só serve quem quer ajustar as suas crenças aos factos e não se importa de trocar umas por outras mais correctas. Para quem tem fé acerca de factos, cortar no sítio certo traz dissabores sempre que revela uma realidade diferente daquela em que se quer acreditar. É isso que obriga Panão ao trabalho árduo, mas infrutífero, de raspar a faca no osso para cortar onde não é possível.

1- Miguel Panão, Explicações em Ciência e Religião
2- Miguel Panão, Pode um ateu encontrar valor numa experiência de fé?
3- Miguel Panão, Como responder quando questionam o que acreditamos?
4- Miguel Panão, Como reagir ao experimentar algo inexplicável?

domingo, junho 04, 2017

Treta da semana (atrasada): a cultura da violação.

No Jornal de Notícias, Mariana Mortágua escreveu:

«A cultura da violação não vive apenas da imagem agressiva e violenta que o termo convoca. O piropo que não pedimos, o assédio light, a insistência desconfortável, o gesto não consentido partem todos do mesmo princípio. O princípio que o "não" de uma mulher vale menos que a vontade ou desejo de um homem. E que ao homem é dado o direito de expressar essa sua vontade, mesmo que isso signifique ir contra o direito de uma mulher se sentir incomodada, de não querer ser alvo dela.» (1)

Segundo Mortágua, tudo isto é violação e a diferença está apenas no grau. «Do tipo insistente do bar à oferta sexual que nunca pedimos ou desejámos. Do estranho que nos toca ao amigo que nos beija sem que queiramos, ou ao sexo não consentido.» Mas não é tudo violação. Há uma diferença fundamental entre a oferta que não pedimos e uma relação sexual sem consentimento. A dificuldade em perceber onde deve acabar a liberdade de uns para que outros também sejam livres tem enfraquecido a esquerda política, desviando-a da luta pela liberdade e pela justiça e fragmentando-a numa salganhada de caprichos.

Consideremos duas situações hipotéticas. Numa, tocam trombone à noite e alguém, incomodado, diz para não tocarem. Noutra, dois homens beijam-se na rua e outro, incomodado, diz para não se beijarem. Assumindo ser óbvio que estes “não” não valem o mesmo, o interessante é pensar porquê. Dizer que temos o direito de beijar mas não o direito de tocar trombone à noite é uma justificação ilusória que apenas inventa um “direito” sem dizer de onde vem. É um erro comum julgar que os direitos são um bom ponto de partida. Não são. Não é por cair ao mar que ganho o direito a uma bóia. É só se alguém por perto tiver uma bóia a jeito que o seu dever de me ajudar se configura no meu direito à bóia. É do dever de cada um que vêm os direitos dos outros.

Tocar trombone à noite é condenável por violar o dever de não impor incómodo a terceiros. É um dever ético fundamental que limita a liberdade da cada um para que não restrinja a do outro. Mas o incómodo de quem vê o beijo, por muito grande que seja, vem da liberdade do incomodado. Se for adulto e não tiver problemas mentais, é responsabilidade sua decidir que não é nada consigo, ficar feliz pelos namorados ou ficar escandalizado porque aquilo é pecado. Seja como for, o resultado não é imposto por quem se beija. É, literalmente, o direito do outro se sentir incomodado. Só se causassem transtorno a alguém que não fosse responsabilizável, como uma criança ou um doente mental, é que teriam o dever moral não se beijarem à sua frente.

Se me ameaçam, agridem ou me forçam a ter relações sexuais impõem restrições à minha liberdade e, por isso, violam o dever ético de não me fazer essas coisas. E se eu fosse criança ou doente mental teriam de ter um cuidado adicional com o que me fizessem porque não me seria imputável a responsabilidade pelo exercício da minha liberdade. Mas, sendo eu adulto e não tendo doenças mentais óbvias*, fazer-me propostas que não peço, insistir quando digo não ou dizer que tenho um rabo jeitoso não me restringe a liberdade e qualquer incómodo que eu sinta será responsabilidade minha. É essa a diferença entre o que vai «Do estranho que nos toca ao amigo que nos beija sem que queiramos, ou ao sexo não consentido», coisas que impõem objectivamente restrições à liberdade do visado, e o que vai «Do tipo insistente do bar à oferta sexual que nunca pedimos», que não é nada que restrinja a liberdade a um adulto normal.

Os “não” não valem mais ou menos em função do sexo de quem os diz. Mas valem mais ou menos em função do que exigem dos outros e da razão pela qual o exigem. O “não quero ter relações sexuais” vale muito porque forçar alguém a ter relações sexuais é subordinar a sua liberdade aos desejos de outrem. Não é legítimo tirar liberdade a alguém só porque se quer. Mas, precisamente por isso, eu dizer “não quero que me chamem imbecil, ou “não quero que olhem para o meu rabo”, ou “não quero que me convidem para ir ao cinema” não valeria de nada porque, nesse caso, estaria eu a exigir dos outros que subordinassem a sua liberdade à minha vontade. Tenho todo o direito de me incomodar com estas coisas mas ninguém tem obrigações por isso.

Infelizmente, na nossa sociedade há mesmo uma cultura de violação. Não no sentido de violação sexual, porque é consensual a condenação das relações sexuais sem consentimento. Mas há uma cultura de violação de liberdades em favor de caprichos e sensibilidades. Há imensa gente conivente, cúmplice e culpada de violar a liberdade individual de decidir o que é privado e o que é público, seja nas revistas de coscuvilhice seja pelas fotografias de menores que constantemente publicam na Internet. Há muita gente a pedir a criminalização do racismo, a ostracização de xenófobos e a repressão de ideias das quais discordam, violando o seu dever de respeitar a liberdade de consciência dos outros. Esse dever não desaparece só porque nos incomoda o que os outros pensam. Mortágua propõe mais uma dessas violações. Agrupar na mesma categoria de acto condenável a proposta indesejada e as relações sexuais sem consentimento altera a fronteira entre as liberdades de uns e de outros. Em vez da liberdade de cada um só parar na liberdade do outro, Mortágua quer que pare logo naquilo que lhe incomode. Ou seja, quer subordinar a liberdade dos outros à sua vontade. O que é irónico porque, no fundo, esse “direito ao não” que Mortágua reclama acaba por ser a mesma violação que Mortágua diz opor: a violação da liberdade de uns só porque outro quer.

* Que eu saiba.

1- Jornal de Notícias, O nosso direito ao "não"