quarta-feira, agosto 30, 2017

Treta da semana (atrasada): acreditar, mas em quê?

Daniel Dennett pediu uma vez a um colega turco que lhe escrevesse uma frase verdadeira em Turco mas sem lhe dizer o que significava. Dennett usa esta frase como um exemplo de uma crença peculiar: Dennett acredita que a frase é verdadeira, porque confia no colega, mas não acredita na frase em si porque nem sequer sabe o que lá está escrito. Por estranho que este tipo de crença pareça, é cada vez mais comum entre os crentes religiosos.

Acreditar em algo inteligível é mais satisfatório e, por isso, as crendices inteligíveis são mais populares. Há quem acredite em vidas passadas, que a personalidade de cada um depende da posição dos planetas, que os santinhos intercedem por nós, que temos energias positivas e podemos ver o futuro nas cartas e carradas de coisas assim. Sempre foi assim. Quem acreditava que um deus escaravelho fazia rolar o Sol pelo céu acreditava num disparate. Mas era um disparate que se percebia, tal como o disparate de acreditar que andar de joelhos em Fátima convence a mãe do criador do universo a meter uma cunha pelo fiel que assim se sacrifica.

No entanto, a crença inteligível não é ideal para a religião. Nunca foi, e agora ainda é menos. Primeiro, porque perceber uma ideia permite interpretá-la e preencher os detalhes com a imaginação de cada um. Daqui brotam muitas variantes como se nota, por exemplo, nas várias formas de venerar santinhos e na diversidade de santinhos venerados. Formalmente, a Nossa Senhora de Fátima é a Nossa Senhora de Lourdes e de muitos outros sítios. Mas, na imaginação dos crentes, são diferentes. Quem faz promessas à de Fátima é a Fátima que as vai pagar. Assim, as crenças inteligíveis tendem a fragmentar as religiões, por vezes de forma violenta. No século XVI, alguns cristãos dizerem que os homens só se salvam pela fé e que só a Bíblia é fonte de dogmas acabou por matar oito milhões de pessoas em século e meio de guerras*.

A outra desvantagem das crenças inteligíveis é serem vulneráveis aos factos. Isto é menos problemático quando abunda a ignorância. Quando ninguém sabia o que era a trovoada ou que existiam bactérias não era estranho acreditar que as doenças e os raios fossem castigo de Deus. Sem perceber de estatística também não se estranha a crença no poder da oração. Muitas crendices ainda sobrevivem em buracos no conhecimento. Mas esses buracos são cada vez menores e cada vez mais gente os vai tapando. Por isso, especialmente entre os crentes mais esclarecidos, as crenças inteligíveis tornaram-se indefensáveis. Deus passou de um ser poderoso a quem se podia pedir favores a um conceito abstracto e paradoxal.

Miguel Panão dá bons exemplos das dificuldades de ser um crente erudito. O conhecimento que tem obriga-o a trocar crenças inteligíveis por alegações incompreensíveis: «Eu estou cada vez mais convicto de que Deus não existe como todas as outras coisas neste universo existem, mas sim que Deus é existência. Ou seja, onde assenta todo e qualquer processo passível de existir, seja ele racional ou relacional.»(1) Não se percebe como Deus pode ser existência, problema que Panão admite logo a seguir: «Paradoxal. Falar de Deus é querer atingir o inatingível. O confronto com os paradoxos quando nos referimos a Deus podem ser uma causa para alguém iniciar um processo que acaba no ateísmo. Não porque Deus não exista, mas por ser difícil lidar racionalmente com os paradoxos que encontramos em Deus». Não é apenas difícil. É mesmo impossível. Não é por acaso que lhe chamam o mistério da fé. É que uma hipótese acerca de um deus, para não ser obviamente inconsistente com a realidade que conhecemos, tem de ser uma hipótese que ninguém possa compreender. Tem de ser uma frase em Turco que ninguém pode compreender. E nem há turco que a traduza.

Esta característica curiosa da fé erudita mostra que ninguém acredita em Deus. A maioria dos adeptos de cada religião tem uma crença menos sofisticada, menos reflectida, e acredita em deuses primitivos, daqueles que se zangam, que respondem a orações, a quem se pede favores e de quem se teme castigos. São crenças inteligíveis mas incompatíveis com o que sabemos da realidade. Não são o Deus dos crentes eruditos. E os crentes eruditos não acreditam em Deus porque, como Panão demonstra, acreditam que é verdade algo que não se compreende.

Este processo de perda de inteligibilidade da crença religiosa também contrasta com o que tem acontecido na ciência. A ciência aproveita a acumulação de informação acerca da realidade para aperfeiçoar teorias e tornar-se cada vez mais esclarecedora. As religiões ou ignoram essa informação e insistem em crenças inteligíveis mas obviamente disparatadas, ou então fogem dessa informação e refugiam-se em demagogia incompreensível. A tese de que ciência e religião se complementam como vias para o conhecimento é obviamente falsa. A primeira procura a compreensão. A segunda procura precisamente o contrário.

* Ou então foi por causa da manteiga. Mas vai tudo dar ao mesmo.

1- Miguel Panão, Única resposta à possibilidade de Deus

9 comentários:

  1. É tão ininteligível acreditar que não nascemos apenas para morrer como acreditar que somos um eterno nada com uma momentanea interrupção. Não é vão o inconformismo que procura esbracejar sentido e confiança à nossa vida, que aceita que o real não se esgota no que é racional. Baixar os braços é entrar no absurdo, meio caminho andado para oferecer lógica a volutariamente lhe pôr fim.

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    1. Não necessariamente. Os ateus gostam da vida, da paz, da ética, dos outros, tanto quanto os que são crentes em Deus. Era bom que este mito do ateu zombie fosse posto na prateleira como uma reliquia de uma era intolerante. Uma das razões dessa especulação que o NG faz estar errada, é porque parte do principio que os ateus são conformistas que não procuram dar sentido à vida. E que não pensam que nascemos apenas para morrer. O ateismo é muito mais vezes um processo racional exigente e na realidade não muito compensador socialmente.

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  2. Vamos ver se damos um jeito nisto do acreditar, porque continua muito difícil, sobretudo desde que a ciência se oferece/arroga resolver os problemas.
    Então, tem sido, mais ou menos, assim: problema? Método científico - problema resolvido/em fase de resolução.
    Problema: em que acreditam as pessoas?
    Método científico: em banha da cobra, no homem-aranha, no Cavaco Silva, no Mosteiro dos Jerónimos de Sousa, no Ludwig, no Pinto da Costa, no Euromilhões, no fim do mundo, na morte, na absolvição do Sócrates, na condenação do sistema judicial português, que não existe justiça..., nem existe Deus (por causa do que se referiu anteriormente).
    Valia a pena continuar a explorar a vereda, até chegarmos aonde eu quero. As pessoas acreditam na satisfação das suas necessidades, na resolução dos seus problemas e são imensamente preconceituosas e cobardes (esta asserção é prova disso).
    Acreditar em quê? É difícil? O Ludwig não acredita em nada. Eu, pelo menos, acredito que o Ludwig nem sequer acredita em mim.
    Entonces, vamos à ciência.
    Ó pá, diz-nos lá, com base na composição das pedras e do fogo, com que espada vamos cortar ou acariciar a cabeça de um incendiário que adora o fogo e detesta tudo o resto.
    Diz-nos, aliás, ensina-nos, com as teorias da relatividade e a quântica...a não odiar..., a amar..., a esperar..., a aceitar os outros..., a aceitar e a obedecer às leis..., a brincar..., a sorrir..., a morrer...
    As pessoas não têm outro remédio senão iludirem-se. A realidade, para o homem, é virtual. E quando alguém pretende substituir/impor uma ilusão por outra corre o risco de ser substituído.
    Nenhuma ciência é alternativa à religião. Nenhuma ciência é inquisição da religião, ainda que alguns "cientófilos" o sejam.
    Podes fundar um partido político científico, experimenta, (podes?). Os seus princípios seriam do tipo tabela periódica, leis da termodinâmica, vá comer a lua quando tiver fome, e faça um fado segundo as leis da acústica (todos são feitos segundo essas leis). Deixe-se estar quieto ou mexa-se...Você não conta nada. Voto? Para quê? Você não conta.
    A religião é tudo aquilo de que (não) precisamos para sermos quem somos na esperança inconcebível do que queremos ser.
    A ciência tem muito a ver com isto, mas é uma gaveta de um armário cheio de surpresas.
    Tu estás encantado com esta gaveta. Nem é para menos. Bom proveito.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. "Acreditar em quê? É difícil? O Ludwig não acredita em nada. Eu, pelo menos, acredito que o Ludwig nem sequer acredita em mim."

    Fala como se acreditar fosse uma virtude em si própria. Toda a gente tem crenças, mas alguns reservam uma duvida saudável em relação ao grosso delas, em grau variável e sujeita a revisão. Eu saúdo as dúvidas implicitas nas frases do Miguel Panão, embora regeite o também implicito apelo à crença só por si. Não é a crença que tem de ser fulcral, é a justificação.

    A ética não é uma ciência. Não sei sequer se poderá um dia vir a ser. Há coisas que são escolhas, não são factos. A ciência é acerca de factos, não de escolhas, ainda que possa dizer porque fazemos determinadas escolhas, ou como podemos obter as escolhas que fazemos. Enquanto acreditarmos no livre arbirtrio, e aqui não temos escolha, temos de acreditar que a ética, nunca será uma ciencia. E por consequencia, tudo o que é normativo nunca o será também. Há aqui no ktreta uns posts sobre isso.

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  5. João,

    constato que sobre o assunto já está esclarecido. Ótimo. Eu também. Nem preciso de ir ler os tais posts.

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  6. Ludwig,

    Hoje li uma notícia sobre o actual papa ter recorrido a uma psicanalista. Nada que me faça espécie:
    http://feeds.tsf.pt/~r/TSF-Internacional/~3/91V_cLGvXQA/papa-teve-sessoes-de-psicanalise-aos-42-anos---jornal-la-stampa-8742671.html

    Mas a parte interessante e até relevante para este teu post, é quando ele diz:«O que o incomoda, disse, são pessoas com pontos de vista inflexíveis.

    Referiu os "sacerdotes inflexíveis, que têm medo de comunicar". "É uma forma de fundamentalismo. Sempre que encontro uma pessoa inflexível, sobretudo se jovem, digo-me que é doente"»

    Eu só posso falar pela minha própria experiência, mas não nunca ouvi falar de um crente de qualquer religião a dizer que é capaz de mudar de opinião...

    Acho este papa um fulano bastante interessante.

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