domingo, setembro 24, 2017

Adenda à rábula da misoginia.

A conversa com Mário Moura durou mais um pouco (1). Segundo Moura, a desigualdade sexual nas profissões «Não tem nada a ver com evolução, com biologia ou o que seja». Isto é pouco plausível. Entre outras coisas, implica acreditar que nenhum homem alteraria o seu projecto de vida perante o prognóstico de ficar estéril aos quarenta anos e que a gravidez e a amamentação têm um impacto exactamente nulo na competição por promoções. Implica também que a cultura humana seja independente da biologia, quando a capacidade de criar culturas como as que temos é a característica biológica mais saliente da nossa espécie. Mas a conversa estava a ser interessante pela admissão de Moura que rejeitar uma explicação biológica «é uma questão de princípio» e pela forma quase explícita como defendeu que a melhor explicação é aquilo que cada um quiser: «nunca te expliquei porquê... de uma maneira que tu achasses plausível. Porque já te expliquei porquê uma dúzia de vezes ou até talvez mais.» O relativismo é comum nas humanidades. Mas aquelas pessoas cuja disciplina tem “ciências” no nome tendem a disfarçá-lo melhor. Moura, que é designer, tem menos receio em admitir que mistura o que é com o que gostaria que fosse, exibindo às claras um tipo de raciocínio que sempre me fascinou.

Foi uma conversa penosa. Quando algo me interessa, sou muito melga e não respeito a convenção para este tipo de diálogo. Manda a tradição que se comece com arrogância, se passe logo ao insulto, que o interlocutor depois responde à altura e a conversa detona em indignação catártica para gáudio da assistência. Como eu não alinho nisto, a conversa costuma arrastar-se por várias tentativas de me picar até que a outra parte se farta. Pode parecer fútil, mas só perseverando é que se percebe como pensa quem diverge tanto de nós que nos detesta visceralmente. O normal é a conversa acabar quando o outro diz que já chega mas, desta vez, Moura também me bloqueou. E isto tem uns efeitos engraçados.

Bloquear podia ser uma forma razoável de filtrar comentários indesejados. Há tempos, quando o spam criacionista neste blog estava a ser excessivo, criei um script que permitia cada visitante filtrar os comentários como quisesse no seu computador. Mas, no Facebook, o bloqueio é mais radical. O bloqueado fica isolado de tudo o que esteja relacionado com o bloqueador. Por exemplo, quando Moura me bloqueou, fiquei sem acesso a toda a conversa, incluindo tudo o que eu escrevi e os diálogos que tive com outros interlocutores. Este bloqueio faz também com que eu não possa ler o que Moura escreve sobre mim no seu perfil público, acessível a todos os outros utilizadores do Facebook. Faz-me lembrar os segredos e os bilhetinhos passados às escondidas na escola primária. Sempre discordei de chamar “redes sociais” a estas plataformas. A rede são as pessoas e não a tecnologia. Mas talvez o Facebook mereça a designação de rede anti-social pela forma como aproveita os piores impulsos dos seus utilizadores para vender mais anúncios.

Obviamente, só usa o Facebook quem quer e Moura tem todo o direito de o usar como entender. Quem bloqueia ou não bloqueia é consigo. Mas esta pirraça é parte de um padrão preocupante nos guerreiros da justiça social. Não é um padrão novo, mas repete erros antigos que sabemos serem nefastos. Seitas e religiões sempre impuseram preceitos para isolar os seus seguidores de ideias que os pudessem tresmalhar. O que comer, como rezar, o que vestir, ler ou dizer, e até com quem se podiam casar, contribuíam para manter fiéis separados de infiéis. Hoje, nestas novas seitas, cumpre-se o sagrado dever de bloquear, “desamigar” ou limpar das listas de contactos qualquer fonte de impureza ideológica. É a doutrina do sou tão contra a discriminação que nem sequer falo com essa gente. Isto é preocupante porque mostra que não estão interessados em promover as suas ideias pelo diálogo. O que querem é impô-las à força.

Outro aspecto preocupante deste padrão é a convicção de que as explicações certas só podem interpretar os dados de acordo com a ideologia adoptada. É claro que homens e mulheres são muito diferentes. Mas essa diferença não pode influenciar a progressão numa carreira porque, se influenciasse, a realidade estaria a contradizer o princípio sagrado de que a culpa tem de ser do sexismo. No tempo de Galileu era a heresia. Agora é o politicamente incorrecto. O nome difere mas a ideia é a mesma. E, como podemos ver no exemplo do aquecimento global, quando a ideologia se interpõe entre nós e a realidade quem se lixa somos nós porque a realidade está-se nas tintas para o que pensamos dela.

Os gregos adorariam isto. Nas trevas da ignorância e da superstição fizemos luz. Inventámos métodos para compreender a realidade, criámos tecnologia que permite partilhar informação globalmente e construímos sociedades livres partilhando poder e responsabilidade entre todos. Há uns anos, a Internet aberta parecia anunciar uma sociedade global ainda mais esclarecida. Mas os deuses devem ter ficado com inveja, ou essas coisas que acontecem nas tragédias, e agora o negócio aduba novamente a mesquinhez intelectual que começara a definhar. As coutadas isoladas pela ideologia são alvo fácil de manipulação, comercial por intenção e eleitoral por efeito secundário. O discurso racional não consegue competir com a indignação irracional, que cabe no ecrã do telemóvel e dá mais likes. E a facilidade com que se cria uma bolha na qual todos concordam faz parecer que a realidade, afinal, obedece mesmo à ideologia. Algures pelo Facebook, apoiantes incondicionais da igualdade de género aplaudem com antecipação os autocarros exclusivos para mulheres, expurgando dos seus contactos qualquer machista que desconfie da contradição. É uma questão de princípio, dirão. Esperemos é que não seja o princípio do fim.

1- Nelson Zagalo, (Facebook). Ver também o post anterior, Treta da semana (atrasada): diz que sou misógino.

sexta-feira, setembro 22, 2017

Treta da semana (atrasada): diz que sou misógino.

O Facebook é um meio de comunicação peculiar. Nelson Zagalo mencionou que a sua filha o questionara acerca de haver tão poucas mulheres realizadoras. Vários comentadores apontaram o dedo ao sexismo e ao “patriarcado”. Este patriarcado está para as humanidades como o éter luminífero esteve para a física; um fluido invisível, sem massa nem viscosidade, mas milhões de vezes mais rígido do que o aço. O patriarcado também tem de ser tão poderoso que impede as raparigas de ir para informática, barra o acesso das mulheres a cargos eleitos e não as deixa fundar empresas mas, ao mesmo tempo, não se consegue vislumbrar como é que obriga as mulheres a fazer o contrário do que querem. O sexo que dantes marchou contra os cassetetes da polícia para ganhar o direito ao voto agora é subjugado pelo poder misterioso dos brinquedos cor-de-rosa e dos micromachismos.

Eu propus uma explicação alternativa. Há países onde a lei discrimina as mulheres e, nesses, o sexismo é obviamente o factor dominante. Mas nos países que garantem igualdade de direitos, a vontade individual tem mais poder do que essas pressões. O sexismo não desapareceu mas também não consegue impedir uma rapariga de ser engenheira ou um rapaz de ser enfermeiro se for isso que querem ser. As pessoas não são tão frágeis quanto a tese do patriarcado exige. A explicação mais plausível é a de que há diferenças médias nas preferências de homens e mulheres. Em particular, em quanto querem sacrificar para serem melhores que os outros.

Vamos imaginar que só existiam homens e, por só haver um sexo, não havia sexismo nem patriarcado. Mas metade dos homens engravidava, dava à luz, amamentava, só podia ter filhos em segurança até aos 40 anos de idade e, da puberdade aos 50 anos, tinha hemorragias e dores dois ou três dias por mês todos os meses. É óbvio que estes homens, mesmo sem sexismo, teriam de fazer um sacrifício maior para competir com os outros. É o que acontece às mulheres. Não é um impedimento. Não é impossível uma mulher superar os homens e há mulheres que o fazem, como Angela Merkel demonstra. Mas sai-lhes mais caro. Aos 63 anos, se Merkel fosse homem ainda podia ter filhos. Ou, não tendo de engravidar nem amamentar, até podia tê-los tido mais cedo. Mas, sendo mulher, seria muito difícil chegar onde chegou se tivesse tido filhos e agora já não os pode ter. Diferenças como estas afectam, em média, as escolhas das pessoas.

Além de ter custos menores, investir no sucesso profissional tem benefícios maiores para homens do que para mulheres. Woody Allen é um bom exemplo disso. Casou três vezes, a terceira com uma mulher com metade da sua idade, e teve relações com Diane Keaton e Mia Farrow. Eu não sei como ele é na cama, mas suspeito que, sem o sucesso profissional que teve, o seu sucesso com as senhoras seria também menor. Donald Trump, Richard Branson e Mick Jagger são outros exemplos de como o sucesso traz mais benefícios aos homens do que traz às mulheres.

Assim, a melhor explicação para haver mais homens que mulheres no topo de muitas carreiras é que a fossanguice para ser o melhor custa menos aos homens e dá-lhes mais proveito do que dá às mulheres. É uma explicação melhor do que a do tal “patriarcado”, não só porque se percebe de onde vem – não exige postular factores ad hoc para explicar cada caso – como também explica porque é que muitas desigualdades sexuais se agravam quanto mais liberdade, legal e económica, as pessoas têm para viver as suas vidas como preferem.

Mas este post é mais sobre o Facebook. Enquanto estava a ter esta discussão com Mário Moura no post de Nelson Zagalo (1), Moura deturpava a minha posição no seu perfil, escrevendo que eu defendia que «o facto de uma mulher ter dores menstruais a incapacita para realizar filmes» e que «A UP está cheia de grunhos mas desta vez» o grunho é da NOVA (2). É perfeitamente legítimo mas, graças à magia do Facebook, toda a gente pode ver esses comentários mas eu não posso comentar lá. Como Moura também não dá a ligação para o que eu escrevi, é fácil mostrar o espantalho que lhe aprouver sem enfrentar contraditório. Não é por isso de estranhar que passasse a ideia de que eu sou misógino (3). O que é falso e até irónico.

Apesar de perceber a correlação entre a fossanguice masculina e o sucesso reprodutivo, e como isso fez evoluir estas disposições típicas dos homens, parece-me que as mulheres é que têm razão. Allen, Branson, Jagger e Trump podem ter muito sucesso mas uma vida bem vivida não se mede por isso. Exige um equilíbrio razoável entre carreira, família e vida pessoal. Foi um revés infeliz do feminismo moderno ter adoptado uma métrica machista para avaliar a vida das pessoas. Moura, por exemplo, escreveu que numa sociedade igualitária as mulheres não se vão «dedicar a ser sopeiras ou qualquer actividade adequadamente feminina»(1). É como se fosse degradante investir menos na carreira para ter uma vida familiar melhor. Eu acho que é precisamente o contrário. Seria um disparate abdicar de brincar com os meus filhos e de os ajudar com os trabalhos de casa, ou abandonar interesses pessoais como a agricultura e discussões sobre religião, só para ser chefe ou para ser o melhor investigador do departamento. A ânsia de ultrapassar os outros é um impulso tipicamente masculino, e que suspeito estar relacionado com a maior taxa de suicídios neste sexo, mas não é receita para uma vida boa. Nisto, ao contrário de ser misógino, até sou mais mulher que homem. E tenho alguma pena daqueles, principalmente homens, que não conseguem perceber isto.

PS: tenho de me lembrar de discutir menos no Facebook e, em vez disso, trazer a discussão para aqui onde o direito ao contraditório incentiva mais honestidade.

1- Nelson Zagalo, (Facebook)
2- Mário Moura, (Facebook)
3- Mário Moura, mais comentários aqui, e aqui, por exemplo.

domingo, setembro 17, 2017

CETA.

Amanhã, dia 18, o Parlamento debaterá o Comprehensive Economic and Trade Agreement. Especificamente, uma proposta do governo para aprovar o acordo e quatro projectos para a sua rejeição (BE, PAN, PCP e PEV). As votações regimentais serão no dia 20.

Já escrevi sobre este tratado, há uns tempos (1). Agarrado ao objectivo de facilitar o comércio, o CETA inclui cláusulas que obrigam a alterar a legislação dos países signatários de formas que afectam directamente os cidadãos, como mais legislação criminal para proteger os monopólio sobre as cópias de obras, enfraquecer a protecção legal da privacidade e facilitar o comércio e exportação de dados pessoais. Inclui também um mecanismo que permite empresas estrangeiras processarem Estados cuja legislação lhes frustre a expectativa de lucro, condicionando ainda mais o processo legislativo e pondo em risco medidas de protecção do património, do ambiente ou dos direitos dos cidadãos. E tudo isto resulta de uma negociação à porta fechada entre grupos interessados, sem debate público nem qualquer legitimidade democrática.

A Plataforma Não aos Tratados TTIP/CETA/TISA organizou para amanhã uma concentração, em frente ao Parlamento, contra a aprovação do CETA (2). Eu não vou poder ir, mas vou escrever aos deputados do PS que foram eleitos por Lisboa e pedir que votem contra. Escolhi os do PS porque à esquerda está tudo contra o CETA e à direita é mais difícil persuadir a fazer o que está certo quando a alternativa pode dar mais dinheiro a quem já tem muito. Para escolher os deputados podem ir ao site da Assembleia da República, à página dos Deputados e Grupos Parlamentares. Na maioria dos casos, a página do deputado tem uma ligação para enviar um email.

Há uma carta-tipo no site da Plataforma contra o CETA, nesta página. Deixo também a minha aqui abaixo, se preferirem. O efeito individual será pequeno mas, se formos muitos, pode ser que eles façam contas aos votos e a democracia funcione.

1- Treta da semana (atrasada): CETA.
2- Contagem Final contra o CETA



Cara(o) Deputada(o) [...]

Eu, Ludwig Krippahl, cidadão e eleitor no círculo eleitoral de Lisboa, venho por este meio pedir que vote contra a Proposta de Resolução n.º 49/XIII/2.ª, que pretende aprovar o Acordo Económico e Comercial Global (CETA).

Este acordo, fruto de negociações secretas, pretende ter efeitos muito além da mera facilitação do comércio. Introduz novos mecanismos de resolução judicial que permitem a empresas processarem Estados à margem das leis de cada país, condicionando o processo legislativo, e exige alterações legais que põem em causa direitos dos cidadãos em vários aspectos da sua vida pessoal, desde o acesso à cultura aos direitos de privacidade e à protecção de dados pessoais.

Um tratado com um impacto tão grande na vida de todos os cidadãos não pode ser aprovado sem uma análise cuidada das suas consequências e sem um debate público que permita aos eleitores compreender o que se está a aprovar e decidir se é desejável. Este tratado, sendo muito mais abrangente do que um mero tratado comercial, não deve ser ratificado enquanto essas condições não se cumprirem.

Saudações cordiais,
Ludwig Krippahl