domingo, fevereiro 18, 2018

Treta da semana (atrasada): a entrevista.

Até recentemente, o meu interesse pelas polémicas da política identitária, igualdade de género, “diversidade” e afins foi um interesse impessoal, fruto de um fascínio genérico por tretas. Em Dezembro isto mudou. Fui convidado por colegas do departamento onde trabalho a participar numa iniciativa pedagógica dirigida exclusivamente a raparigas (1). Recusei, por me parecer imoral organizar uma actividade destas excluindo crianças conforme o seu sexo. E até me senti no dever de alertar para a possibilidade de isto não ser legal. Admito que não sei se a lei permite fazer uma coisa destas numa instituição pública de ensino mas, se permitir, não devia. Não tenho problemas em manifestar discordância acerca destas coisas, porque Portugal ainda está longe da intolerância que há noutros países, mas é sempre desconfortável sentir conflitos entre a ética e o dever profissional. E o episódio mostrou-me que estas políticas já não são algo distante. Chegaram ao meu quintal e receio que isto ainda possa piorar antes de melhorar.

A entrevista de Cathy Newman a Jordan Peterson impressionou-me por coincidir tão bem com várias experiências que tenho tido ao discutir estes temas com defensores da igualdade estatística. Não é vulgar encontrar tudo numa só pessoa, mas Newman conseguiu destilar na perfeição as inconsistências, as deturpações, a cegueira ideológica e a demagogia desonesta que tenho encontrado espalhadas por vários interlocutores. E Peterson foi uma descoberta curiosa. Cristão existencialista de direita, aparentemente fã da psicanálise de Freud e Jung, tem muita coisa que deveria afastar-nos. Na verdade, apesar de gostar das palestras que tenho visto dele, o livro não me parece tão bom. É demasiado místico e metafórico para o meu gosto. Mas ambos vemos a ética como assente na responsabilidade pessoal e no dever de cada um respeitar a liberdade de cada um dos outros. A aplicação consistente deste princípio dá-nos muita coisa em comum, como a compreensão de que o propósito da vida é precisamente a construção de propósito na vida e não tretas como a felicidade; o respeito pelo direito dos outros pensarem e dizerem o que pensam mesmo quando discordamos da sua opinião; o respeito pelo direito de cada um ser único e diferente dos demais; e a rejeição cabal da pseudo-ética identitária que presume avaliar indivíduos pelo grupo e por estatísticas. Não há injustiça nenhuma em haver poucos homens em enfermagem ou poucas mulheres em informática. Injustiça é impedir uma criança de participar num curso de informática só porque nasceu com testículos em vez de ovários. Desconfio que é por isto ser tão óbvio que quem defende o contrário se vê forçado ao contorcionismo demagógico que Newman demonstra.

Já vos deixo com a entrevista, que vale bem a pena. Não é por acaso que tem mais de sete milhões de visualizações quando os restantes vídeos da Channel 4 News andam pelos milhares ou dezenas de milhares. Mas, antes, gostava de chamar a atenção para alguns truques recorrentes. Newman passa grande parte do tempo a dizer “So you’re saying…” seguido de algo completamente diferente do que Peterson está a dizer. Pede a Peterson que justifique a diferença média de salários entre homens e mulheres mas quando ele aponta diferenças médias entre homens e mulheres diz que discorda disso porque as mulheres são todas diferentes. Pois são, mas também não ganham todas o mesmo salário. Passa o tempo a correr com a baliza de um lado para o outro.

É também fascinante a trajectória da conversa sobre a igualdade no trabalho. Newman começa por defender que as mulheres são impedidas de progredir. Peterson aponta que as pessoas que chegam ao topo têm de ser obsessivamente empenhadas na carreira e extremamente competitivas, algo que é menos raro nos homens. Newman acaba por admitir ter chegado ao topo precisamente porque agiu como um homem competitivo e agressivo. Isso parece-me igualdade. Quem quer ganhar o salário do Cristiano Ronaldo tem de jogar como o Cristiano Ronaldo. E dá para ver que Newman percebe isto porque, após algumas tentativas de deturpar o que Peterson disse, vira o assunto ao contrário. O problema deixa de ser o suposto tratamento desigual de homens e mulheres e passa a ser exigirem que as mulheres se comportem como homens, o que não é agradável. Isto não faz sentido nenhum mas mostra bem como se consegue partir do “é mau discriminar” e chegar ao “vamos impor quotas”.

Mas a minha parte preferida começa a meio do minuto 21. Newman pergunta porque é que o direito de Peterson dizer o que pensa há de ter precedência sobre o direito dos outros não se sentirem ofendidos. É delicioso ver a reacção de Newman quando Peterson explica que isso é o que ela está a fazer e porque é bom que o faça. Até se ouve a moeda a cair.

E pronto, deixo-vos em paz para verem a entrevista. Mas fica já a ameaça de voltar a estes assuntos, porque cada vez me parece haver mais para dizer.





1- DI, FCT/NOVA, Technovation Challenge

sábado, fevereiro 17, 2018

Treta da semana (atrasada): os três aquecedores.

Foi recentemente publicada a portaria 45/2018, que «Regula os requisitos gerais [da licenciatura] em Medicina Tradicional Chinesa». Entre outras coisas, estes licenciados em “medicina” terão de dominar «a) Teorias de medicina tradicional chinesa, incluindo [...] Os seis níveis, as quatro camadas, os três aquecedores» (1). Os três aquecedores são órgãos fictícios que os chineses julgavam fazer circular os fluidos pelo corpo (2). São os erros normais em qualquer investigação porque, no fundo, o nosso conhecimento cresce precisamente corrigindo erros anteriores. Na “medicina tradicional” grega, Aristóteles afirmou que as mulheres têm menos dentes que os homens. É falso mas faltavam-lhe as noções de estatística necessárias para perceber que não basta contar os dentes de uma desdentada qualquer para fundamentar uma conclusão destas. Um tratamento para feridas do século XVII era o “pó da simpatia”, um preparado de sulfato de cobre que se aplicava à lâmina que causara o ferimento. Tinha a vantagem de poupar o paciente às porcarias que, de outra forma, lhe iriam pôr na ferida (3).

As “medicinas” tradicionais brotaram da imaginação de pessoas mais ignorantes do que nós. A nossa medicina também não é perfeita. Provavelmente, as gerações vindouras ainda vão corrigir muitos erros. Mas quanto mais se sabe melhores soluções se encontra. É obviamente indesejável optar pelo saneamento tradicional e ter toda a gente despejar os penicos pela janela. Ou o transporte tradicional a partilhar a autoestrada com carros de bois. A medicina tradicional é igualmente absurda. Até 1960, a esperança média de vida na China rondava os 40 anos. Mesmo com antibióticos, vacinas e outras coisas nada tradicionais, hoje ainda é dez anos menor do que em Portugal (4). Quem diz que a medicina tradicional chinesa é melhor do que a medicina moderna portuguesa ou tem algo a ganhar com isso ou tem o barrete enfiado até ao queixo.

Ah, e tal, mas a medicina tradicional até pode ter coisas boas. Com certeza. Eu tenho um relógio parado que também está certo duas vezes por dia. Seja como for, a medicina progride aproveitando o que funciona, melhorando o que dá problemas e procurando alternativas. Quando eu era miúdo tomava aspirina para a febre. Era um risco calculado, porque há quem tenha reacções graves à aspirina (5). Mas antes isso do que ficar com danos cerebrais se a febre fosse muito alta*. Os meus filhos tomaram paracetamol em vez de aspirina, porque hoje sabemos ser mais seguro. Medicina é isto. Não faz sentido inventar uma “medicina da aspirina” em contraponto à “medicina do paracetamol” só para haver complementaridade ou tretas dessas. O mais racional é tratar cada doença com a terapia melhor. Isso de inventar “medicinas” avulsas é só truque para fazer negócio.

A maneira dos praticantes destas “medicinas” responderem a críticas demonstra bem os seus objectivos. Um técnico competente responde a críticas admitindo que errou ou explicando por que tem razão. Mas quando João Cerqueira questionou a eficácia terapêutica dos serviços vendidos no Centro de Cura Corpo Limpo (6) recebeu uma notificação de um advogado solicitando que retratasse a crítica por colocar em causa «a credibilidade, o bom nome e a imagem» dos auto-proclamados terapeutas (7). Ficou de parte a questão mais importante, e mais objectiva, que é a da eficácia e segurança do «método próprio de tratamento Cérebroterapia e Despertar da Consciência» que vendem no tal “Centro de Cura”. O truque da virgem ofendida é muito usado nestas andanças. Há uns anos fui depor a tribunal por causa disso (8). Hoje, por Cerqueira ter dado uma classificação baixa à página “Clínicas Pedro Choy”, Pedro Choy comentou que «Fica mal a um profissional de saúde ( sem grandes provas dadas, diga-se de passagem) criticar o trabalho dos seus concorrentes»(9). No mesmo sítio, Ana Rodrigues, terapeuta holística e facilitadora do método Kiron, concordou: «Fica muito mal a um professional de saúde, seja de que área for, criticar / julgar o trabalho de outro profissional.» Faz sentido. Quem tem pés de barro não dança. Mas a crítica, principalmente entre peritos, é o motor principal do progresso. É à prática de criticar que devemos o conhecimento que temos, incluindo o conhecimento de antibióticos, vacinas, saneamento básico e medicina preventiva que dá tanta saúde a tanta gente que a podem esbanjar em tretas. Ironicamente, foi o enorme sucesso da medicina a sério que permitiu a proliferação das outras “medicinas”. Ana Rodrigues defende que «Cada um é livre de ter a sua experiência! O que funciona para uns às vezes não funciona para outros, faz parte do caminho». Mas se tem mais de quarenta anos, ou se não viu metade dos seus filhos morrer antes dos cinco, é graças à medicina a sério ser muito mais fiável do que o método de Kiron, a acupunctura ou a Cérebroterapia.

Há licenciaturas que abordam temas fictícios. Em literatura, história ou filosofia, por exemplo, é preciso estudar relatos que não correspondem à realidade. Mas, com a teologia fora do ensino público, é invulgar obrigar os alunos a afirmar serem reais coisas tão obviamente fictícias como o sistema dos meridianos, as patologias energéticas ou o “qi”. Também parece pouco útil, ou sequer honesto, licenciar técnicos no tratamento de doenças dos três aquecedores. Dizem que a oposição da Ordem dos Médicos é “sectária” (10) mas parece-me tão razoável que os médicos se oponham a isto quanto seria os químicos protestarem contra uma licenciatura em “química tradicional” que leccionasse o flogisto e a pedra filosofal. O que querem ensinar são erros que a ciência já corrigiu. Mas se a racionalidade continuar a perder terreno, pelo menos deixem-me criar uma licenciatura em caça de gambozinos ou uma pós-graduação em fadas e duendes. Será tradicional e, sem as restrições da realidade, terei muito menos trabalho a preparar as aulas. A quem criticar a matéria, também já sei o que responder: criticar é feio e o caminho é mesmo assim; não serve para todos. Este caminho é bom é para os que ficam servidos.

*Admito que, no meu caso, talvez a aspirina não tenha sido inteiramente eficaz.

1- DRE, Portaria n.º 45/2018
2- Shen-Nong, Triple Burner
3- Wikipedia, Powder of sympathy; e também weapon salve, na RationalWiki.
4- World Bank, Life expectancy at birth, total (years)
5- Wikipedia, Aspirin-induced asthma.
6- Scimed, Clínica Placebo – Centro de Cura Corpo Limpo
7- Scimed (Facebook): 8 Fevereiro, 18:59
8- Processado
9- Facebook, João Júlio Cerqueira reviewed Clínicas Pedro Choy
10- DN, Sociedade de Medicina Chinesa acusa Ordem dos Médicos de sectarismo

segunda-feira, fevereiro 12, 2018

Treta da semana (atrasada): distribuições, igualdades e direitos.

Quando me acusam de não defender a igualdade de género admito que sou culpado. E quando explico que quero igualdade de direitos em vez de igualdade de género, muitas vezes dizem-me que são a mesma coisa. Mas não são. Não são sequer compatíveis.



A figura acima mostra as distribuições de altura de dez mil pessoas, separadas por género (1). Isto ilustra a generalidade dos atributos. Seja a idade a que teve o primeiro filho, o tempo passado a ver desporto, o interesse por informática ou o número de dias de baixa por ano, as distribuições são diferentes para homens e mulheres mas sobrepõem-se e têm grande variação dentro de cada grupo. O primeiro problema da igualdade de género é que, ao contrário da igualdade de direitos, pretende igualar distribuições sem igualar indivíduos. Por exemplo, a igualdade de género nos salários não pretende salários iguais para todos. Mas é difícil defender que é injusto a Jennifer Lawrence ganhar menos que o Mark Wahlberg por causa da distribuição de salários de homens e mulheres que nada têm que ver com Lawrence ou Wahlberg. Ou justificar a preocupação com diferenças salariais entre milionários e milionárias quando se ignora a diferença entre o salário de Lawrence e de uma enfermeira ou de Wahlberg e de um bombeiro. Exigir igualdade nas distribuições não tem justificação ética porque a justiça ou injustiça da desigualdade depende dos indivíduos e não da distribuição. E é suspeito que se preocupem só com a desigualdade entre distribuições quando a maior desigualdade está dentro de cada distribuição.

Outro problema é a selecção dos atributos cujas distribuições querem iguais. Na igualdade de direitos é fácil porque são todos os direitos. Se é direito, deve ser igual para todos. Mas a igualdade de género não quer igualdade na altura, nos balneários, na roupa ou no desporto. É só em algumas coisas. É estranho exigir igualdade de género no salário e ignorar a desigualdade de género nas doenças profissionais, acidentes de trabalho ou esperança de vida. Acontece o mesmo com os grupos que consideram. Enquanto a igualdade de direitos é igualdade para todos, como qualquer igualdade deve ser, quem exige quotas de género em cargos de direcção não quer quotas na construção civil e quem lamenta a falta de mulheres na informática não se importa que faltem homens na enfermagem. São todos iguais, mas uns são mais iguais que outros.

Depois, há as correlações. Para a igualdade de direitos entre indivíduos não faz mal se os doentes forem, em média, mais fracos ou se os doutorados em ciência forem menos religiosos. Os direitos são os mesmos para todos e cada um que faça dos seus o que quiser. Mas quem procura injustiças nas distribuições facilmente se ilude por ignorar correlações. Uma diferença média entre os salários de quem executa tarefas perigosas e quem se recusa a correr riscos não demonstra injustiça ou discriminação. É de esperar melhor remuneração por trabalhos arriscados. Acontece o mesmo com diferenças na força física, tempo de baixa médica, estatura, uso de analgésicos e assim por diante. Estes factores dizem pouco acerca do indivíduo; uma pessoa usar mais analgésicos não implica ter um salário menor. Mas tudo isto contribui para criar diferenças entre distribuições e estatísticas. Por isso, é errado concluir que a diferença de género em distribuições como as dos salários é indicativa de injustiças. Há muitas correlações que contribuem para esta diferença sem nada terem de injusto. Isto não quer dizer que não haja injustiças. Infelizmente, há muitas. Mas não afectam só um género nem vitimam todas as pessoas desse género por igual. E não têm nada que ver com a distribuição. Quando uma pessoa sofre uma injustiça, o que temos de corrigir é essa injustiça e não a média da distribuição.

Finalmente, enquanto a igualdade de direitos é um objectivo meritório, a igualdade de género é um erro factual porque homens e mulheres são diferentes. Basta ver o gráfico ali em cima. Se bem que o género seja uma construção social, não só está fortemente correlacionado com diferenças biológicas como serve para acentuar essas diferenças. Isto é evidente em todas as culturas. Seja qual for a forma de vestir, a maneira de falar, os gestos ou costumes, os géneros enfatizam sempre as diferenças entre homens e mulheres. É absurdo querer igualdade entre os géneros quando o género em si é uma afirmação de diferença. É por isso que segregamos os géneros nos balneários e no desporto ao mesmo tempo que condenaríamos uma segregação por raça, credo ou orientação sexual. É por isso que recusar relações sexuais com parceiros de certa raça é racismo mas recusar relações sexuais com parceiros de certo género é perfeitamente normal. Quem adopta um género fá-lo por, e para, ser diferente de quem adopta o outro.

É claro que ninguém é obrigado a isso. Há pessoas que se identificam com um género diferente do seu sexo, ou com ambos, ou com nenhum. Há pessoas que agem como a média de um género numas coisas mas não noutras. Há pessoas de todos os tipos e têm todo o direito de ser como são. E este é o ponto fundamental: o nosso dever é respeitar essa liberdade de cada indivíduo. Mesmo que isso estrague as estatísticas e gere distribuições diferentes. A doutrina da igualdade de género é incompatível com este dever, atropelando direitos individuais com medidas discriminatórias, como quotas e afins, só para forçar algumas estatísticas escolhidas de forma suspeita. Politicamente, é conveniente. A aceitação acrítica de que a discriminação é a única causa das irredutíveis diferenças entre distribuições garante o tacho a quem quiser inventar injustiças na desigualdade dos géneros. Mas esta doutrina é um cancro. Cresce por todo o lado substituindo-se ao respeito pelos direitos dos indivíduos, incluindo o direito à diferença, que é a peça mais fundamental de qualquer sociedade decente. Por isso, sim, sou contra a igualdade de género. Os géneros são diferentes. Isso é um facto e é mesmo por isso que há géneros. Se fossem iguais só haveria um. A igualdade que devemos garantir é a da liberdade, de todas as pessoas e de cada uma. As distribuições depois que se espalhem por onde calhar.



1- Os dados são do livro “Machine Learning for Hackers” (Conway e White), disponíveis no Github. Não sei de onde é a amostra, ao certo, mas para os efeitos deste post é pouco importante.

domingo, fevereiro 04, 2018

Treta da semana (atrasada): criptomoeda, parte 2.

Na primeira parte, propus que as “criptomoedas”, mesmo não sendo moedas por falta de estatuto legal, são fundamentalmente equivalentes às moedas fiduciárias. Todas valem em função daquilo que especulamos irão valer para os outros no futuro. Se estimamos que ninguém vai querer bolívares, o Bolívar deixa de ter valor. De pouco adianta o governo da Venezuela insistir que é muito bom para pagar impostos. Se as “criptomoedas” funcionam como o dinheiro mas não estão sujeitas a autoridades centrais que as possam controlar, pode parecer que só têm vantagens. Não é bem assim.

Não haver autoridades centrais que controlam o nosso dinheiro protege-nos de ficar sem nada quando o banco vai à falência ou do Estado facilmente restringir o que podemos fazer com o dinheiro. Mas se eu perder o cartão multibanco posso pedir um novo e se me enganar numa transferência ou falsificarem a minha assinatura tenho a quem recorrer. Em contraste, se perder a chave criptográfica de uma “criptomoeda” é impossível recuperá-la e qualquer transacção é irreversível. Posso mitigar o risco distribuindo-o por várias “criptomoedas”, ter cuidados com a segurança e especial atenção a fraudes, mas qualquer distracção pode sair cara.

Outra apregoada vantagem das “criptomoedas” é a segurança criptográfica. Em teoria, a criptografia é a tecnologia mais segura que temos. Mais segura do que qualquer fechadura ou cofre. Mas a teoria e a prática não são a mesma coisa. Na prática, basta um erro de implementação para estragar tudo e o software que usamos faz parte de um ecossistema complexo, com muito que pode correr mal. Pode haver um problema na geração de números aleatórios (1) ou selecção de números primos (2), o computador pode estar infectado com malware ou até haver falhas na arquitectura do CPU (3). Este risco também pode ser mitigado, com algum esforço, mas será sempre significativo. Isto é especialmente importante para quem queira investir a suas poupanças em “criptomoeda”. Basta um bug para perder tudo.

Finalmente, como as “criptomoedas” funcionam sobre sistemas distribuídos, sem controlo central, muita gente julga que são à prova de interferência do Estado. Não é verdade. São sistemas robustos porque estão concebidos para contrariar incentivos económicos à aldrabice. Por exemplo, para controlar a rede Bitcoin e poder reverter transacções e gastar as mesmas bitcoins várias vezes é preciso ter mais de metade do poder de computação da rede. Além de exigir um investimento enorme, isto seria imediatamente visível no registo dos blocos, levando toda a gente a abandonar essa “criptomoeda”. O investidor nesta aldrabice passaria a controlar algo que mais ninguém quereria e que, por isso, não teria qualquer valor. O incentivo económico é apenas para colaborar e ajudar a proteger a rede.

Mas nem todo o incentivo é económico. Se o governo da China decidir que a Bitcoin é um empecilho, facilmente obtém o poder de computação necessário para controlar a rede e destruir a Bitcoin. Ou qualquer outra “criptomoeda”. E, na prática, nem precisa desse investimento. A mera capacidade de o fazer torna suficiente declarar essa intenção para colapsar o preço de qualquer “criptomoeda”. Esta é outra consideração importante para quem quer ganhar dinheiro investindo nestas coisas. Quanto mais peso as “criptomoedas” tiverem na economia, mais provável é serem eliminadas ou sujeitas a regulação do Estado.

É por estas razões, e não pelo valor ser especulativo, que eu não recomendo investir muito nestas “moedas” com o intuito de enriquecer. Na prática, há muita coisa que pode correr mal. Mas faz sentido investir um pouco nesta tecnologia porque é muito mais do que uma aposta para ganhar euros. Estes sistemas distribuídos de registo de transacções podem servir como dinheiro, para registar contratos, para alugar poder de computação ou espaço de armazenamento ou, em teoria, qualquer coisa que se possa fazer com a Internet e serviços digitais. Nós estamos habituados a obter estes serviços de entidades nas quais temos de confiar, seja o banco seja a Google ou a Microsoft. Mas, por um preço um pouco mais alto – um sistema distribuído fiável tem custos – poderemos optar por alternativas que não dependem de confiar em ninguém. Não é claro que fracção do mercado corresponderá a essas alternativas mas é muito provável que seja significativa. As “criptomoedas” são apenas o primeiro exemplo desse potencial.

1- Arstechnica, 2013, Google confirms critical Android crypto flaw used in $5,700 Bitcoin heist
2- Arstechnica, 2017, Flaw crippling millions of crypto keys is worse than first disclosed
3- Meltdownattack.com